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Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versão impressa ISSN 0034-7183versão On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.101 no.259 Brasília set./dez 2020

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.101i259.3910 

ESTUDOS

A alfabetização nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): o que mudou de 1997 a 2017

Literacy in National Curriculum Parameters (PCN) and the National Common Curriculum Base (BNCC): what changed between 1997 and 2017

Alfabetización en los Parámetros Curriculares Nacionales (PCN) y de la Base Nacional Común Curricular (BNCC): lo que cambió de 1997 a 2017

Cássia Helena GuillenI  II 
http://orcid.org/0000-0002-7004-4143

Maria Elisabeth Blanck MiguelIII  IV 
http://orcid.org/0000-0003-2307-7791

I Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail:< cassiacavarsan@gmail.com>.

II Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Curitiba, Paraná, Brasil.

III Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: <maria. elisabeth@pucpr.br>.

IV Doutora em História e Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). São Paulo, São Paulo, Brasil.


Resumo:

Este trabalho, inserido na história da alfabetização recente do Brasil, tem o objetivo de refletir sobre como a alfabetização é atualmente considerada nos documentos curriculares oficiais, ou seja, a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Busca ainda compreender em que medida esses documentos se aproximam e/ou se distanciam em relação às suas propostas de alfabetização e quais são as orientações metodológicas diante de permanências, rupturas, avanços ou atualizações contextuais. Para tanto, é feita uma investigação na recente proposta curricular do Governo Federal, materializada na BNCC (Brasil. MEC. CNE, [2017]), em comparação aos PCN (Brasil. MEC, SEF, 1997). Esses documentos oficiais são tomados aqui como fontes primárias, por serem os norteadores dos referenciais curriculares estaduais e municipais. De modo geral, com esta investigação foi possível perceber que há um alinhamento entre os PCN e a BNCC no que concerne ao ensino da Língua Portuguesa. No entanto, ao tratarem da alfabetização, os documentos se afastam, ocorrendo uma ruptura principalmente em relação à forma de conceber, descrever e visualizar sua materialização pedagógica e prática.

Palavras-chave: Base Nacional Comum Curricular; Parâmetros Curriculares Nacionais; programa de alfabetização

Abstract

This article, inserted in the recent history of literacy in Brazil, reflects on how literacy is currently covered in the official curriculum documents: the National Curriculum Parameters (PCN) and the National Common Curriculum Base (BNCC). It also seeks to understand the extent to which these sources differ or stay true to their literacy proposals as well as what the methodological orientations regarding permanencies, ruptures, advances or contextual updates are. Therefore, an investigation will be made into the recent Federal Government curriculum proposal, materialized as the BNCC (Brasil. MEC. CNE, [2017]), in relation to the PCN (Brazil. MEC, SEF, 1997). These official documents will be regarded as primary sources, as they guide state and municipal Curriculum References. In general, it was possible to realize that there is an alignment between the PCN and the BNCC regarding the teaching of Portuguese language. However, when dealing with literacy, the documents diverge, especially in the way they conceive, describe and visualize pedagogical and practical materialization.

Keywords: literacy program; National Curriculum Parameters; National Common Curriculum Base

Resumen

El presente trabajo, incorporado en la historia de la alfabetización reciente de Brasil, tiene por objetivo reflexionar sobre cómo la alfabetización está siendo actualmente considerada en los documentos curriculares oficiales, es decir, a partir de los Parámetros Curriculares Nacionales (PCN) y de la Base Nacional Común Curricular (BNCC). De igual manera, se pretende comprender hasta qué punto estas fuentes se acoplan o distancian de la propuesta de alfabetización actual y cuáles son las orientaciones metodológicas frente a sus permanencias, rupturas, avances y actualizaciones. Para ello, será realizada una investigación de la propuesta curricular del Gobierno Federal representada en la BNCC (Brasil. MEC. CNE, [2017]) en relación con los PCN (Brasil. MEC, SEF, 1997). Dichos documentos de orden oficial serán considerados aquí como fuentes primarias, ya que son la carta de navegación curricular de los estados y municipios. De modo general, con esta investigación se logró constatar que existe una articulación entre los PCN y la BNCC en lo que respecta a la enseñanza de la lengua portuguesa. No obstante, y con relación a la alfabetización, los documentos entre sí se distancian, produciendo una ruptura, principalmente en relación con la forma concebir, describir y visualizar su materialización pedagógica y práctica.

Palabras clave: Base Nacional Común Curricular; Parámetros Curriculares Nacionales; programa de alfabetización

A alfabetização e a relevância de pesquisar sua história recente

A história da alfabetização brasileira é marcada por embates sobre qual a melhor metodologia para se alfabetizar (Mortatti, 2010) e por altos índices de analfabetismo, o que resulta no chamado “fracasso escolar”. A maior causa dos problemas com a alfabetização recai, por assim dizer, na metodologia que os documentos oficiais propõem ou deixam de propor. Por essa razão, de tempos em tempos, velhos modos de ensinar ressurgem como novas abordagens e como a promessa de solução.

No entanto, as dificuldades das crianças em se alfabetizarem permanecem, independentemente da proposta desenvolvida. Assim, desde a forma mais tradicional de ensinar a ler e escrever pelo método sincrético, analítico ou global, até chegar à psicogênese da língua escrita, de Ferreiro e Teberosky (1986), passando pela perspectiva de aliar alfabetização ao letramento, a marcha segue ainda lenta. Trata-se de um fato levantado pela própria Base Nacional Comum Curricular - BNCC, a qual recomenda que se trabalhe a consciência fonológica nos primeiros anos do ensino fundamental, deixando a ortografização para ser desenvolvida a partir do 3º ano (Brasil. MEC. CNE, [2017]). Nesse sentido, a intenção da BNCC é concretizar nos dois primeiros anos do ensino fundamental a sistematização da alfabetização.

Diante disso, este trabalho, inserido na história da alfabetização recente, tem o objetivo de refletir sobre como a alfabetização é atualmente considerada nos documentos curriculares oficiais, ou seja, a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e da BNCC, já que esta declara que segue a mesma linha daqueles. Por outro lado, não é possível investigar a alfabetização sem considerar juntamente o ensino da Língua Portuguesa em alguns aspectos.

Dessa maneira, esta investigação busca compreender em que medida essas duas fontes documentais se aproximam e/ou se distanciam com relação a suas propostas de alfabetização e quais são as orientações metodológicas diante de permanências, rupturas, avanços ou atualizações contextuais. Tais questões serão contempladas como categorias de análise deste trabalho, pois, conforme salienta Saviani (2003) apudMiguel (2007, p. 70), as categorias são “conceitos preponderantes em determinada teoria ou podem ser assim considerados aqueles que agrupam informações provenientes de pesquisas e que traduzem fenômenos ou fatos existentes na situação pesquisada”.

A Língua Portuguesa e a alfabetização no contexto dos Parâmetros Curriculares Nacionais

Os PCN foram elaborados em 1997, após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394/19961, e disponibilizados pelo Ministério da Educação (MEC) aos professores do ensino fundamental no ano subsequente. O contexto político, social e econômico da época se centrava no bojo das ideias neoliberais, as quais priorizavam o modelo de desenvolvimento caracterizado pelo “esvaziamento do aparelho do Estado Nacional em virtude da necessidade de reorganização funcional exigida [no] processo de globalização” (Eisenbach Neto; Campos, 2017, p. 10990).

O impacto dessas novas ideias na educação básica decorria do fato de que era preciso melhorar o índice de alfabetização do País, a fim de atender às novas exigências internacionais para os países periféricos, bem como os índices das avaliações de larga escala. A despeito disso, Geraldi (2015) afirma que os PCN foram criados para atender à necessidade de preparar os alunos para a nova ordem neoliberal. Em suas próprias palavras, “foi por necessidade de parâmetros para elaborar as provas que surgiram” esses documentos (Geraldi, 2015, p. 383). Assim, ainda segundo o autor,

Inicia-se o tempo da inundação das escolas por documentos oficiais definindo metas, objetivos, modos de gestão, índices desejados etc. Inicia-se a implantação verticalizada do novo como exigência e não como opção abraçada pelos verdadeiros agentes educativos. As avaliações de larga escala, obrigatórias e já agora com consequências até mesmo na renda de professores e gestores, tornam o que poderia ser indicações de ações possíveis em obrigações para a atividade de sala de aula. E o acervo das provas aplicadas torna-se, de fato, o orientador do que se ensina e de como se ensina, principalmente adequando os alunos para responderem a testes. Treinar para responder eleva os índices, que dão aparente sucesso às inúmeras consultorias prestadas aos diferentes sistemas de ensino (Geraldi, 2015, p. 383).

O Governo Federal empenhava-se em uniformizar a educação nacional por meio de um currículo mínimo a ser seguido por todos, assim como faz a BNCC atualmente. No contexto neoliberal em que os parâmetros surgiram, as escolas receberam a nova orientação oficial para desenvolver o trabalho com as diferentes áreas de conhecimento e, dessa forma, melhorar os índices de desenvolvimento educacional do País. Entre as novas recomendações, encontravam-se orientações para ensinar a Língua Portuguesa, da qual a alfabetização é o passo inicial.

Contudo, os PCN chegaram ao território educacional recebendo algumas críticas, principalmente por se originarem em um ambiente dominado por ideias voltadas ao mercado de trabalho, em detrimento do desenvolvimento integral dos estudantes. Grosso modo,

[...] as críticas destacaram a vinculação dos PCN às novas exigências da ordem econômica globalizada e das políticas neoliberais, que têm como palavras-chave: consenso, competitividade, equidade, produtividade, cidadania, flexibilidade, desempenho, integração e descentralização. Nesse sentido, os PCN seriam obedientes às orientações da Conferência Mundial de Educação para Todos, condizentes com as determinações do Banco Mundial, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco - e da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe - Cepal. Tais orientações focalizam a questão do conhecimento, da informação e do domínio técnico-científico com o objetivo de formação de recursos humanos flexíveis, adaptáveis às exigências do mercado (Galian, 2014, p. 653).

Mesmo diante de contradições, embates, resistências e outras tensões que envolveram os PCN, a partir de sua divulgação oficial, as ideias relacionadas ao ensino da Língua Portuguesa foram incorporadas pouco a pouco, ao menos nos discursos dos novos referenciais estaduais e dos currículos municipais de todo o contexto nacional.

Nessa abordagem, ao iniciar este estudo pelos PCN, observa-se que eles ressaltavam que, para melhorar a qualidade da educação do País, principalmente nos quesitos de escrita e leitura, as discussões acerca da Língua Portuguesa eram ponto central. O discurso sinalizava que a escola tinha dificuldade de ensinar a ler e escrever. Essas constatações se expressavam

[...] com clareza nos dois gargalos em que se concentra a maior parte da repetência: no fim da primeira série (ou mesmo das duas primeiras) e na quinta série. No primeiro, por dificuldade em alfabetizar; no segundo, por não conseguir garantir o uso eficaz da linguagem, condição para que os alunos possam continuar a progredir até, pelo menos, o fim da oitava série2 (Brasil. MEC, SEF, 1997, p. 19).

Perante o panorama de dificuldades com o ensino da Língua Portuguesa naquele período, que reverberava nas universidades (já que recebiam alunos com dificuldade de organizar suas ideias por escrito e de interpretar de forma eficaz o que liam), os PCN justificavam a relevância de se reestruturar o ensino da Língua Portuguesa, com o intuito de encontrar formas de garantir o desenvolvimento das habilidades de leitura e de escrita.

Para tanto, o documento trazia uma breve linha histórica sobre as mudanças de paradigmas de alfabetização no decorrer do tempo, a partir do recorte da década de 1960. De acordo com os PCN, a forma de ensinar a ler e escrever, principalmente nos anos 1960 e 1970, passava antes de tudo por exercícios de “prontidão”3, que tinham o objetivo de preparar os alunos para se alfabetizarem.

Os anos 1980 romperam, todavia, com essa visão preparatória, em virtude de novos estudos direcionados a compreender o processo de alfabetização. A nova abordagem, oriunda essencialmente dos estudos da psicogênese da língua escrita, chegava com grande impacto sobre a maneira de se conceber e de se trabalhar a alfabetização, pois não se pensava mais em “como se ensinava”, mas em “como se aprendia”. Essa mudança de foco gerou um grande esforço das secretarias de educação para revisarem as práticas de alfabetização, conforme apontam os PCN (Brasil. MEC, SEF, 1997).

O conceito de alfabetização vislumbrado nos PCN, portanto, não se restringia mais ao conhecimento das letras do alfabeto, tampouco da codificação e decodificação desses grafemas. Destacava-se que o ensino da escrita e da leitura se pautaria nas práticas sociais de linguagem4, nas quais textos reais são produzidos e lidos com intenções comunicativas. Nessa linha de pensamento, a oralidade foi considerada também no ensino da língua, em razão de estar inserida na esfera de interação social. A orientação curricular, portanto, era a de que ocorressem

Práticas que partem do uso possível aos alunos e pretendem provê-los de oportunidades de conquistarem o uso desejável e eficaz. Em que a razão de ser das propostas de leitura e escuta é a compreensão ativa e não a decodificação e o silêncio. Em que a razão de ser das propostas de uso da fala e da escrita é a expressão e a comunicação por meio de textos e não a avaliação da correção do produto. Em que as situações didáticas têm como objetivo levar os alunos a pensarem sobre a linguagem para poderem compreendê-la e utilizá-la adequadamente (Brasil. MEC, SEF, 1997, p. 21).

Os novos parâmetros sobre o ensino da Língua Portuguesa passam da decodificação dos grafemas em fonemas para a compreensão e análise no ato de ler, e da codificação dos fonemas para uma escrita que se contextualize nas práticas sociais, rompendo definitivamente com o antigo padrão de ensinar. Para justificar essa concepção, os PCN asseguravam que seu principal objetivo era contribuir para um ensino mais eficaz diante das novas exigências da sociedade e possibilitar o acesso e o sucesso do aluno na educação.

Outra mudança significativa no modo de conceber a alfabetização prescrita pelos PCN consistia em considerar que o ensino das primeiras letras e o trabalho com outros aspectos da língua deveriam ser tratados em conjunto. Em outras palavras, a alfabetização deveria estar atrelada ao uso textual que ocorre nas práticas de linguagem. Amparados nos estudos da época, os documentos defendiam que era preciso repensar a metodologia anterior, na qual se ensinava o alfabeto na primeira série, para, nos anos seguintes, ensinar as noções de gramática e da língua propriamente dita. Cabe aqui a observação de que essa “separação” entre a alfabetização e outros aspectos da língua ocorrerá novamente na BNCC, fato tratado mais adiante. Sendo assim, a justificativa para as novas acepções dos PCN (Brasil. MEC, SEF, 1997, p. 27) dizia que

A compreensão atual da relação entre a aquisição das capacidades de redigir e grafar rompe com a crença arraigada de que o domínio do bê-á-bá seja pré-requisito para o início do ensino de língua e nos mostra que esses dois processos de aprendizagem podem e devem ocorrer de forma simultânea. Um diz respeito à aprendizagem de um conhecimento de natureza notacional: a escrita alfabética; o outro se refere à aprendizagem da linguagem que se usa para escrever.

Um argumento que corroborava essa ideia presente nos PCN era a defesa de que somente o domínio da escrita alfabética não garantiria ao estudante a compreensão dos textos e sua produção de maneira eficaz. Além disso, havia a proposição de que quem produz um texto não necessariamente sabe grafá-lo, ou seja, uma criança que ainda não escrevesse poderia produzir um texto oralmente e pedir a outra que o registrasse. Com essas argumentações, a tese central defendida era a de que o texto se fizesse presente no processo de alfabetização, pois

Ensinar a escrever textos torna-se uma tarefa muito difícil fora do convívio com textos verdadeiros, com leitores e escritores verdadeiros e com situações de comunicação que os tornem necessários. Fora da escola escrevem-se textos dirigidos a interlocutores de fato. Todo texto pertence a um determinado gênero, com uma forma própria, que se pode aprender. Quando entram na escola, os textos que circulam socialmente cumprem um papel modelizador5, servindo como fonte de referência, repertório textual, suporte da atividade intertextual. A diversidade textual que existe fora da escola pode e deve estar a serviço da expansão do conhecimento letrado do aluno (Brasil. MEC, SEF, 1997, p. 28).

Diante de todas essas mudanças apresentadas nos PCN, o papel do professor também foi afetado de forma expressiva, visto que não era mais caracterizado apenas como alfabetizador. O motivo da modificação de seu status se deu pelo fato de a alfabetização não ser mais concebida separada do ensino da Língua Portuguesa. Nesse sentido, o professor das séries iniciais do ensino fundamental passava a ser considerado um professor de Língua Portuguesa (Brasil. MEC, SEF, 1997, p. 28). No entanto, é oportuno refletir a esse respeito, ou seja, a formação inicial desse professor como generalista deveria também ter sido repensada para que pudesse de fato conhecer profundamente os aspectos da língua e, por conseguinte, o das outras áreas que precisaria saber para ensinar.

Nos parâmetros, havia também uma seção voltada para o tratamento didático da alfabetização. Os PCN defendiam que o educando deveria, na etapa inicial de aprendizagem da Língua Portuguesa, fazer uma análise e uma reflexão sobre o sistema de escrita alfabética (SEA) e apontar a correspondência fonográfica - porém, não mencionava o termo consciência fonológica. No entanto, considera-se importante destacar que essa questão fonológica está contemplada na BNCC com muita ênfase, o que indica uma divergência de ideias entre as duas fontes, assunto que será tratado adiante.

Mediante uma análise atenta do conteúdo dos PCN, é possível apreender que o estudante deveria criar suposições de sentido sobre o conteúdo textual. A proposta de leitura contida no documento sugere que o alfabetizando “leia” por meio de pistas encontradas no texto ou daquilo que já sabe de memória pelo contato com os gêneros textuais trabalhados oralmente em sala de aula. Outro destaque nessas orientações provém dos materiais para a realização da leitura, isto é, não seriam mais indicados cartilhas ou livros didáticos como ferramentas de leitura, mas materiais procedentes do próprio cotidiano social da criança e das conjunturas reais de uso e circulação dos impressos. Entretanto, os textos mais recomendados pelos PCN seriam os que fossem memorizados pelas crianças e os que contivessem algum recurso de imagens para mediar o sentido e, assim, facilitar a compreensão do que estava escrito.

No que concerne à escrita, o documento orientava que o aprendiz analisasse essa ação. Em outras palavras, ele deveria, ao pensar sobre como se escreve, conceber hipóteses acerca de que letra usaria para escrever as palavras, antes mesmo de dominar o SEA. Dessa forma, o alfabetizando deixaria de reproduzir algo previamente entregue a ele e passaria a representar graficamente sua escrita após refletir sobre como fazê-lo. Nessa perspectiva, o trabalho em grupo se destacava, pois, em conjunto, as próprias crianças poderiam analisar quais e quantas letras seriam necessárias para escrever um texto. Faz-se oportuno ressaltar, novamente, que os gêneros textuais sugeridos recorreriam ao auxílio da memória, já que seriam previamente conhecidos pelos aprendizes.

Recursos didáticos também eram apresentados no documento curricular para facilitar o ensino da alfabetização: “alfabetos, crachás ou cartazes com os nomes dos alunos, cadernos de textos conhecidos pela classe, pastas de determinados gêneros de textos, dicionários organizados pelos alunos com suas dificuldades” (Brasil. MEC, SEF, 1997, p. 62). Nesse aspecto, os PCN procuravam subsidiar os docentes com diferentes sugestões tanto de atividades quanto de recursos. Esses subsídios não são abordados pela BNCC, o que sinaliza, de certo modo, uma perda importante para a prática alfabetizadora.

Assim, compreende-se que as principais rupturas trazidas por esses novos parâmetros estão relacionadas às críticas à metodologia de alfabetização e ao questionamento dos exercícios de prontidão, bem como ao ensino do silabário das cartilhas. Nesse sentido, essas velhas práticas deveriam ser substituídas pelo trabalho com uma diversidade de textos, pois eles dariam mais sentido ao aprendizado da língua de forma significativa, tratando-a de modo articulado ao seu uso social.

Entretanto, toda a mudança de paradigma sobre a maneira de alfabetizar não foi capaz de diminuir os problemas com a alfabetização. Passadas mais de duas décadas após a adoção dos PCN, o Brasil permaneceu com os mesmos entraves no que tange ao ensino da leitura e escrita. Mortatti (2010, p. 330) argumenta que a história da alfabetização brasileira se resume basicamente a “disputas pela hegemonia de projetos políticos e educacionais”, marcados “pela recorrência discursiva da mudança”, que se traduz em permanências e rupturas de métodos de alfabetização. Corroborando a tese de Mortatti, recentemente, o governo lançou a já mencionada BNCC. Assim, mais uma vez, a pedagogia da alfabetização se faz presente e urgente, com velhas e novas argumentações.

A Língua Portuguesa e a alfabetização no contexto da Base Nacional Comum Curricular

A BNCC é um documento de caráter normativo, portanto deve ser incorporada às novas propostas curriculares desde 2018. Tem o objetivo de definir “o conjunto orgânico e progressivo das aprendizagens essenciais que todos os estudantes devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da educação básica” (Brasil. MEC. CNE, [2017], p. 7). Assim,

Este documento normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define o § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996) e está orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCN) (Brasil. MEC. CNE, [2017], p. 7).

Desse modo, em 2017, depois de duas décadas da publicação dos PCN, o MEC, com a versão final concluída, levou o documento ao Conselho Nacional de Educação (CNE) e, em 20 de dezembro, a BNCC é enfim homologada. O CNE instituiu e orientou a implantação da BNCC com a Resolução CNE/CP nº 2, de 22 de dezembro de 2017. Depois disso, os sistemas estaduais e municipais iniciaram um estudo sobre a BNCC para se apropriarem de seu conteúdo e, ao mesmo tempo, compreenderem e realizarem sua implementação6.

A Língua Portuguesa é incorporada pela BNCC como um componente da área de Linguagens, na qual estão Arte, Educação Física e, no ensino fundamental - anos finais, Língua Inglesa. O documento justifica que as atividades humanas se realizam nas práticas sociais, mediadas por diferentes linguagens: verbal (oral ou visual-motora, como Língua Brasileira de Sinais - Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e, contemporaneamente, digital. Portanto, destaca-se a alfabetização:

No ensino fundamental - anos iniciais, os componentes curriculares tematizam diversas práticas, considerando especialmente aquelas relativas às culturas infantis tradicionais e contemporâneas. Nesse conjunto de práticas, nos dois primeiros anos desse segmento, o processo de alfabetização deve ser o foco da ação pedagógica. Afinal, aprender a ler e escrever oferece aos estudantes algo novo e surpreendente: amplia suas possibilidades de construir conhecimentos nos diferentes componentes, por sua inserção na cultura letrada, e de participar com maior autonomia e protagonismo na vida social (Brasil. MEC. CNE, [2017], p. 61).

Diante de tais pressupostos, para se analisar como a alfabetização é abordada pela BNCC, é necessário primeiramente entender como a Língua Portuguesa é apresentada e o que o documento traz de orientação para os referenciais curriculares estaduais e os currículos municipais a serem reformulados. Vale destacar que a Base não refuta os documentos anteriores, mas alega que se alinha a eles e os atualiza. Em outras palavras,

O componente Língua Portuguesa da BNCC dialoga com documentos e orientações curriculares produzidos nas últimas décadas, buscando atualizá-los em relação às pesquisas recentes da área e às transformações das práticas de linguagem ocorridas neste século, devidas em grande parte ao desenvolvimento das tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC) (Brasil. MEC. CNE, [2017], p. 65).

A BNCC não tem a intenção de preterir as diretrizes anteriores, já que mantém a mesma concepção teórica sobre o trabalho com a Língua Portuguesa7, pois, segundo consta no documento, ao referenciar os Parâmetros

Assume-se aqui a perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem, já assumida em outros documentos, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), para os quais a linguagem é ‘uma forma de ação interindividual orientada para uma finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes numa sociedade, nos distintos momentos de sua história’ [...] (Brasil. MEC. CNE, [2017], p. 65).

A proposta de trabalho com a Língua Portuguesa permanece centrada no texto, visto como uma unidade de trabalho relacionada às perspectivas enunciativo-discursivas. Dito de outra maneira, sempre que o professor trabalhar com um texto deverá associá-lo ao contexto de produção e circulação nas esferas sociais, ao considerar uma ação comunicativa entre interlocutores. Dessa forma, os sujeitos são constituídos pelas práticas de linguagem8. Conforme analisa Geraldi (2015, p. 384),

Na área de linguagens, a BNCC mantém coerência com os PCN, de que é uma extensão. Desde a publicação desses parâmetros, assumimos oficialmente uma concepção de linguagem: uma forma de ação e interação no mundo. Essa concepção é tributária dos estudos procedentes do que se convencionou chamar de Linguística da Enunciação (atravessada por algumas posições teóricas procedentes da Análise do Discurso). Sobretudo, o pensador que subjaz a essas concepções enunciativas é Mikhail Bakhtin, de quem também serão extraídos para os documentos oficiais suas concepções sobre gênero discursivo.

Tanto os PCN quanto a BNCC, na visão de Geraldi (2015), avançam no trato do ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa, ao abordarem as práticas de linguagem como objeto de estudo e ao destacarem os recursos expressivos a serem mobilizados com essas práticas. Desse modo, ao invés de o estudante aprender a descrição de alguns elementos da língua, passa a conhecê-la e a analisar o seu uso em suas diferentes modalidades, como a escrita e a oralidade.

A BNCC articula ainda o ensino da Língua Portuguesa ao desenvolvimento de habilidades e competências, a fim de que o estudante ao longo de todo o processo da educação básica se aproprie da linguagem em atividades de leitura, escuta e produção de textos em várias mídias e semioses (outras formas de linguagens).

Com relação à semiose, esse é um termo que não consta nos PCN. A BNCC justifica que, devido à conjuntura atual, surgem novas formas de letramento, ou seja, há novas demandas sociais a serem atendidas. A linguista Roxane Rojo esclarece alguns termos que são abordados pela BNCC por meio do Glossário do Ceale (Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais). Segundo a autora, essas novas definições decorrem do grande alcance de textos de outras linguagens (semioses), pois:

Esses ‘novos escritos’, obviamente, dão lugar a novos gêneros discursivos, quase diariamente: chats, páginas, tweets, posts, ezines, funclips etc. E isso se dá porque hoje dispomos de novas tecnologias e ferramentas de ‘leitura-escrita’, que, convocando novos letramentos, configuram os enunciados/textos em sua multissemiose (multiplicidade de semioses ou linguagens), ou multimodalidade. São modos de significar e configurações que se valem das possibilidades hipertextuais, multimidiáticas e hipermidiáticas do texto eletrônico e que trazem novas feições para o ato de leitura: já não basta mais a leitura do texto verbal escrito - é preciso colocá-lo em relação com um conjunto de signos de outras modalidades de linguagem (imagem estática, imagem em movimento, som, fala) que o cercam, ou intercalam ou impregnam. Esses textos multissemióticos extrapolaram os limites dos ambientes digitais e invadiram, hoje, também os impressos (jornais, revistas, livros didáticos) (Glossário Ceale, 2014).

A BNCC afirma que, diante das inovações do contexto atual, o propósito do ensino de Língua Portuguesa é “proporcionar aos estudantes experiências que contribuam para a ampliação dos letramentos, de forma a possibilitar a participação significativa e crítica” (Brasil. MEC. CNE, [2017], p. 65). Assim,

As práticas de linguagem contemporâneas não só envolvem novos gêneros e textos cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos, como também novas formas de produzir, de configurar, de disponibilizar, de replicar e de interagir. As novas ferramentas de edição de textos, áudios, fotos, vídeos tornam acessíveis a qualquer um a produção e disponibilização de textos multissemióticos nas redes sociais e outros ambientes da web. Não só é possível acessar conteúdos variados em diferentes mídias, como também produzir e publicar fotos, vídeos diversos, podcasts, infográficos, enciclopédias colaborativas, revistas e livros digitais etc. Depois de ler um livro de literatura ou assistir a um filme, pode-se postar comentários em redes sociais específicas, seguir diretores, autores, escritores, acompanhar de perto seu trabalho; podemos produzir playlists, vlogs, vídeos-minuto, escrever fanfics, produzir e-zines, nos tornar um booktuber, dentre outras muitas possibilidades. Em tese, a web é democrática: todos podem acessá-la e alimentá-la continuamente. Mas se esse espaço é livre e bastante familiar para crianças, adolescentes e jovens de hoje, por que a escola teria que, de alguma forma, considerá-lo? (Brasil. MEC. CNE, [2017], p. 66).

De qualquer modo, mesmo diante dos letramentos contemporâneos, percebe-se que uma permanência entre os dois documentos reside no fato de que o texto continua como grande protagonista no componente Língua Portuguesa, seja de que espécie for, verbal ou não, ou de outras semioses (linguagens). O texto se reafirma como eixo das práticas de linguagem, em que tudo começa e termina. A BNCC ratifica que o trato com diferentes textos, pertencentes a algum gênero discursivo, dá sentido e significado ao estudante, quando retirado das esferas de circulação.

As esferas ou lugares onde são produzidos e lidos os textos são agora categorizados como campos de atuação9. Isso representa um avanço trazido pela BNCC diante dos documentos norteadores anteriores, que não classificavam os textos nesses conjuntos de circulação de forma categórica. Segundo a BNCC,

Em função disso, outra categoria organizadora do currículo que se articula com as práticas são os campos de atuação em que essas práticas se realizam. Assim, na BNCC, a organização das práticas de linguagem (leitura de textos, produção de textos, oralidade e análise linguística/semiótica) por campos de atuação aponta para a importância da contextualização do conhecimento escolar, para a ideia de que essas práticas derivam de situações da vida social e, ao mesmo tempo, precisam ser situadas em contextos significativos para os estudantes (Brasil. MEC. CNE, [2017], p. 84).

A constituição dos campos de atuação elaborada pela BNCC atrelou os textos aos seus contextos de circulação e produção, ou seja, a diferentes práticas sociais. Dito de outro modo, é possível inferir que os campos e os textos que nele circulam são pensados de forma a evitar que o professor alfabetize ou ensine os conteúdos de Língua Portuguesa sem fazer uso de textos reais e, assim, deixe de “artificializar” as práticas de sala de aula, ao forjar textos para ensinar, repetindo o mesmo procedimento das antigas cartilhas que traziam textos como “o bebê baba”.

Contudo, uma crítica pertinente à BNCC está relacionada ao exagero de gêneros textuais a serem trabalhados desde o primeiro ano do ensino fundamental. De acordo com Geraldi (2015, p. 387), a proposta curricular não quer deixar “nada de lado” e se torna pretensiosa perante o volume de textos abordados. Na mesma perspectiva, essa crítica leva à reflexão acerca do fato de que tal exagero recaia no mesmo equívoco de excesso de conteúdos, feito nos períodos caracterizados como tradicionais. Assim, o perigo de não se avançar na qualidade desse ensino é o mesmo, já que se exige que tanto o professor quanto o aluno deem conta de colocar em prática o contato com diversos gêneros textuais, velhos e novos, sem conhecer profundamente a língua e como utilizá-la em diferentes espaços de comunicação, de maneira eficaz e eficiente.

Proposta curricular de alfabetização dentro do componente de Língua Portuguesa: pontos e contrapontos entre os PCN e a BNCC

Grosso modo, em relação aos PCN, a BNCC apresenta pouca divergência de ideias sobre o ensino da Língua Portuguesa, já que tão somente o adapta aos novos tempos. Dessa forma, a distância entre esses dois documentos se ajusta à realidade social, econômica e histórica contemporânea. Nesse sentido, a Base insere alguns elementos que julga necessários ao trabalho do professor, por exemplo, a realização de uma análise semiótica com os estudantes, além da análise linguística. Isso para abordar as múltiplas linguagens evidenciadas, principalmente, na cultura digital que se faz muito presente nas práticas atuais.

Outro destaque da BNCC são os campos de atuação que sinalizam o alinhamento e aprimoramento com o que foi preconizado pelos PCN e que permeiam todos os anos do ensino fundamental: o trabalho com textos em espaços sociais de circulação. Entretanto, por meio do estudo das duas fontes, percebe-se que há divergência entre a BNCC e os PCN no fato de assinalar a separação da alfabetização de outros aspectos do trabalho com a Língua Portuguesa, por exemplo, da ortografização, conforme o trecho da BNCC a seguir:

Embora, desde que nasce e na educação infantil, a criança esteja cercada e participe de diferentes práticas letradas, é nos anos iniciais (1º e 2º anos) do ensino fundamental que se espera que ela se alfabetize. Isso significa que a alfabetização deve ser o foco da ação pedagógica. Nesse processo, é preciso que os estudantes conheçam o alfabeto e a mecânica da escrita/leitura - processos que visam a que alguém (se) torne alfabetizado, ou seja, consiga ‘codificar e decodificar’ os sons da língua (fonemas) em material gráfico (grafemas ou letras), o que envolve o desenvolvimento de uma consciência fonológica (dos fonemas do português do Brasil e de sua organização em segmentos sonoros maiores como sílabas e palavras) e o conhecimento do alfabeto do português do Brasil em seus vários formatos (letras imprensa e cursiva, maiúsculas e minúsculas), além do estabelecimento de relações grafofônicas entre esses dois sistemas de materialização da língua (Brasil. MEC. CNE, [2017], p. 87-88).

Com relação a esse fragmento, interessa destacar que a BNCC apresenta o que deve ser feito primordialmente nos anos de alfabetização, ou seja, o estudante deve conhecer o alfabeto e a “mecânica” da escrita e leitura. Esses aspectos, aliás, são totalmente contrários àqueles que foram preconizados pelos PCN no que diz respeito ao entendimento de alfabetizar. A BNCC ainda considera que o aprendiz consiga codificar e decodificar os fonemas e que, para isso, é necessário desenvolver a consciência fonológica. Porém, para Morais (2015, p. 63), não é possível pensar em alfabetização sem pensar paralelamente na habilidade fonológica, já que:

[...] queremos enfatizar as evidências disponíveis, há quase três décadas, de que as relações de influência entre consciência fonológica e domínio da escrita alfabética são recíprocas (Stanovich, 1986). Tal como explicitamos em outras ocasiões (Morais, 2004, 2006, 2012), concebemos que o desenvolvimento de habilidades metafonológicas é uma condição necessária para a apropriação da escrita alfabética, o que não significa que tais habilidades devessem estar disponíveis no início do primeiro ano de alfabetização, sendo cobradas e medidas através de testes de prontidão.

Contudo, Morais (2015) afirma que trabalhar somente com a consciência fonológica não é o suficiente para o aluno se alfabetizar. Ele sustenta que é preciso também que o aprendiz compreenda e reconstrua mentalmente as propriedades do sistema notacional da língua10. Essa questão merece destaque por ser o eixo de diferença entre os documentos aqui estudados no tocante à alfabetização. Todavia, não se pode negar que a abordagem da consciência fonológica como instrumento a serviço da sistematização da escrita alfabética seja um fator positivo levantado pela BNCC, já que auxilia principalmente os estudantes que necessitam desenvolver essa percepção para se alfabetizarem.

Diante disso, é pertinente fazer os seguintes questionamentos: Por que a BNCC trata a alfabetização de modo diferente dos PCN? O que levou seus redatores a determinarem o trabalho com a alfabetização no âmbito da codificação e decodificação do alfabeto, não dando tanto destaque ao letramento? Sobre a última questão, Rodrigues e Sá (2018, p. 587) argumentam que

Não resta dúvidas de que o foco majoritariamente dado, nas escolas, ao trabalho com os gêneros textuais, verificado especialmente nos anos que sucederam a publicação da primeira edição dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1997, não resolveu o problema do mau desempenho em leitura e em escrita dos nossos alunos.

Para melhor compreensão dos pontos e contrapontos entre as duas propostas de ensino da língua materna, foi realizada uma leitura minuciosa das duas fontes, com o objetivo de analisar algumas possíveis aproximações ou distinções sobre a ideia de alfabetização. Os PCN consideram que ler e escrever são atos determinados pelo processo de como a criança aprende, ou seja, mediante hipóteses e estratégias criadas por ela por meio do contato com a leitura e a escrita. Para tanto, não é necessário que ela já tenha se apropriado das letras do alfabeto e que entenda como usá-las, pois pode fazer isso concomitantemente com as tentativas de leitura e escrita. Nessa perspectiva, alfabetizar significa levar o aluno a construir conceitos sobre os processos da língua. Portanto, são sugeridos textos que o alfabetizando conheça previamente ou nos quais encontre pistas para entender seu sentido.

Para a BNCC, alfabetização envolve, sobretudo, desenvolver no estudante a consciência fonológica e o conhecimento do alfabeto e da mecânica da escrita e da leitura, ou seja, a codificação e a decodificação, ao mesmo tempo, sem desconsiderar o trabalho a partir do texto. Em outras palavras, essa perspectiva enfatiza que o estudante tenha como foco saber o alfabeto e que, tanto para ler quanto para escrever, estabeleça as relações grafofônicas entre sons da fala e das letras. Para tal proposta, são indicados os gêneros textuais “mais simples”, contextualizados nos campos de atuação, com a inserção dos multissemióticos.

Considerações finais

Os PCN, como diretrizes da alfabetização, ofereciam ao professor subsídios de orientações didáticas e de recursos e estratégias e apresentavam elementos para avaliar a aprendizagem dos alunos. A ruptura com a forma de ensinar das décadas anteriores ocorreu por meio do olhar que se deslocou de pensar o modo de alfabetizar para compreender como a criança aprende ao longo do processo de alfabetização. Nessa visão, a perspectiva da psicogênese da língua escrita era a teoria prevalecente.

A BNCC, entretanto, não expõe com clareza sua visão epistemológica de alfabetização e não se preocupa com a questão de como ensinar, mas sim do que precisa ser ensinado. O documento declara que está alinhado aos PCN, atualizando os gêneros textuais em relação a novas formas de linguagens e de letramento das circunstâncias atuais. Identifica como prioridade para a alfabetização a consciência fonológica, como modo de resolver as lacunas deixadas pelos PCN, apesar de não explicitar isso.

Este estudo, ao investigar as duas fontes (tendo como objeto de pesquisa a recente história da alfabetização), considera que há um alinhamento entre os PCN e a BNCC na questão dos aspectos gerais referentes ao ensino da Língua Portuguesa por meio da permanência do trabalho com os gêneros textuais inseridos em práticas de comunicação reais. No entanto, ao tratarem da alfabetização, os documentos divergem, havendo uma ruptura principalmente em relação à forma de conceber, descrever e visualizar esse ensino em sua materialização pedagógica e prática

Referências

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1 No governo de Fernando Henrique Cardoso, a nova LDB foi oficialmente publicada. À frente do Ministério da Educação estava o Ministro Paulo Renato Souza (empossado em janeiro de 1995 e permanecendo no cargo até o final de 2002). (Fundação Fernando Henrique Cardoso, [2020])

2Naquele contexto de meados da década de 1990, o ensino fundamental ainda correspondia a oito anos de estudo e era dividido por séries, iniciando na 1ª série e terminando na 8ª. Com a Lei nº 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, o ensino fundamental foi ampliado de oito para nove anos.

3Esses exercícios se pautavam na premissa de que era preciso treinar um conjunto de habilidades psicomotoras que produziriam as condições necessárias para se aprender a ler e escrever (Brasil. MEC, SEF, 1997).

4Os PCN consideravam que o tratamento didático da área de Língua Portuguesa devesse ocorrer por meio da língua oral: usos e formas; e língua escrita: usos e formas. Inseridas nesses usos estariam as práticas de escrita e leitura, simultaneamente, com análise e reflexão sobre a língua.

5“Isto é, funcionam como modelos a partir dos quais os alunos vão se familiarizando com as características discursivas dos diferentes gêneros” (Brasil. MEC, SEF, 1997, p. 28). Nota contida na citação dos Parâmetros.

6Para saber mais informações sobre o histórico da construção da BNCC, buscar o site do MEC: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/historico.

7Geraldi (2015) declara que essas concepções em relação à Língua Portuguesa não são novidades, pois estavam presentes em propostas de ensino desde meados dos anos 1980.

8“[...] a atuação do sujeito em suas práticas de linguagem se dará por meio de ações com a linguagem e sobre a linguagem e que estas são marcadas pela ação da linguagem que o constitui e que continuará o constituindo no curso das interações com outro de que participa” (Geraldi, 1991 apudGeraldi, 2015, p. 385).

9Os campos de atuação, conforme proposto pela Base, são: Campo da vida cotidiana (somente anos iniciais), Campo artístico-literário, Campo das práticas de estudo e pesquisa, Campo jornalístico-midiático e Campo de atuação na vida pública, sendo que esses dois últimos aparecem fundidos nos anos iniciais do ensino fundamental, com a denominação Campo da vida pública (Brasil. MEC. CNE, [2017]).

10“O alfabeto da Língua Portuguesa é considerado como um sistema notacional e não é, portanto, apenas um código. Isso implica que é um sistema complexo e econômico que representa algo, ou seja, a fala. Para se apropriar desse sistema, a criança necessita compreender como ele funciona e aprender suas convenções”. (Glossário Ceale, 2014, verbete apropriação do sistema de escrita alfabética).

Recebido: 13 de Outubro de 2019; Aceito: 10 de Agosto de 2020

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