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Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versión impresa ISSN 0034-7183versión On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.102 no.260 Brasília ene./apr 2021

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.102.i260.4521 

RESENHAS

Um livro de combate contra a barbárie na educação brasileira

Jonas Alves da Silva JuniorI  II 
http://orcid.org/0000-0002-7809-5164

I Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: <ufrrjonas@gmail.com>.

II Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, São Paulo, Brasil.

CÁSSIO, F.. Educação contra a barbárie, : por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019.


O título do livro Educação contra a barbárie - por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar, organizado por Fernando Cássio, foi inspirado em um texto de Adorno (2003), de título homônimo, em que é discutido se um ato violento pode ser considerado barbárie. Neste texto, Adorno evoca uma manifestação de estudantes secundaristas contra o aumento da tarifa de transporte, na Alemanha de 1968, e critica o discurso demagógico que dizia que aqueles(as) alunos(as) insurgentes eram bárbaros(as). Para o teórico, tal ação não se tratava de barbárie, pois os(as) estudantes, por meio da desobediência, colocaram-se, na verdade, contra movimentos que pretendiam diminuir a qualidade civilizatória da população. Assim, Adorno (2003) relativiza a ideia de barbárie, utilizando a insurgência como exemplo e ponderando que bárbaro é o Estado que pratica uma violência desproporcional contra aqueles(as) alunos(as), movido pela vontade de destruir um movimento que visava garantir melhores condições de vida.

Nessa reflexão do texto de Adorno (2003), Fernando Cássio encontra o mote para delinear um livro contra-hegemônico que, de alguma forma, condensa os problemas da educação, sobretudo os pontos nevrálgicos do debate educacional brasileiro na conjuntura política de hoje.

Fernando Cássio é professor de políticas educacionais na Universidade Federal do ABC, membro do grupo de pesquisa “Direito à Educação, Políticas Educacionais e Escola” (DiEPEE), integra o coletivo “Rede Escola Pública e Universidade” e colabora para a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Cássio tem se destacado nos últimos anos não só pela qualidade na produção de textos acadêmicos que analisam e denunciam as desigualdades educacionais pelas quais as escolas brasileiras têm sido acometidas, mas também por estabelecer diálogo com a sociedade para além dos muros da universidade - quer seja participando de debates nas redes sociais, quer seja como colaborador de revistas de grande circulação, como Carta Capital e Fórum, ou por meio da participação em coletivos que militam em prol de uma educação democrática.

O livro Educação contra a barbárie surge na intenção de promover o debate sobre educação para um público além daquele que frequenta os espaços universitários. Para isso, Cássio contou com um grupo de mais de 30 autores(as), entre educadores(as), professores(as), pesquisadores(as) e jornalistas, para escreverem textos curtos, diretos e acessíveis sobre as múltiplas formas pelas quais a barbárie adentra e teima em destruir a escola.

A obra é composta por 26 artigos, mais três textos de abertura que contaram com a autoria de Mário Sérgio Cortella (“Sobre Educação contra a barbárie”), Fernando Haddad (“Prólogo”) e do próprio Fernando Cássio (“Apresentação - Desbarbarizar a educação”). É dividida em três partes: “A barbárie gerencial”, “A barbárie total” e “Educação contra a barbárie”. As duas primeiras visam esmiuçar os projetos ultraliberais e ultrarreacionários de aniquilação da escola. Já a terceira parte reúne textos propositivos que apontam caminhos para uma educação democrática.

O primeiro bloco é composto de oito textos que vão tratar de uma barbárie mais sutil. O projeto educacional da barbárie gerencial é o que destrói a escola de fora para dentro. Aproxima-se desta por conta de planilhas de indicadores, rankings e promessa de uma pretensa eficiência para, com isso, desumanizar os processos educativos.

Temas como direito à educação, “ideologia da aprendizagem”, desmonte do ensino médio, educação a distância, financiamento da educação, debate sobre o ensino superior privado-mercantil e parceria público-privada são bem detalhados, no sentido de evidenciar que a barbárie se apresenta envolta em um projeto educacional aparentemente democrático, plural, dialógico, republicano, racional e eficiente, mas que, na verdade, são programas que desmontam a educação brasileira e visam manter intactas as estruturas de desigualdades sociais já entranhadas na história e na construção deste País. Assim, os textos abordam os diversos projetos de fundações empresariais e a leitura superficial desses grupos que almejam simplificar a formação escolar, sobretudo das pessoas mais pobres.

Trata-se de uma agenda de instituições que detêm a riqueza nacional e dominam o discurso da grande mídia, como fundações e institutos ligados a bancos e a empresas, que não possuem nenhuma relação e nenhum conhecimento sobre a escola pública. São, sim, fundações ligadas à economia e à administração, ou seja, outros paradigmas, outras formas de interpretar a sociedade, outros projetos societários que, mesmo revestidos de sutileza, sedução e racionalidade, configuram-se como autoritários e simplistas para a escola.

No entanto, existe hoje um discurso educacional homogêneo sobre indicadores que normalmente conclui que a escola pública vai muito mal nas avaliações em larga escala. Mas os problemas estruturais da educação, como material didático, infraestrutura, salário, plano de carreira docente, condições socioeconômicas dos(as) estudantes e de suas famílias, não são colocados em pauta. Dessa forma, os textos da obra esclarecem que não é possível discutir se os indicadores educacionais vão melhorar ou não a escola, se vai ser utilizada parceria público-privada inovadora ou financiamento misto, uma vez que os problemas estruturais da escola, que já existem há bastante tempo, nunca foram de fato considerados nas políticas educacionais.

Os nove textos da segunda parte do livro, “A barbárie total”, abordam outro de barbarização da escola, que é uma disputa curricular realizada dentro desta. É o que se pode chamar de “guerra cultural”. Ainda que as mazelas que acompanham a educação existam há certo tempo, é no governo Bolsonaro (iniciado em janeiro de 2019) que essa amálgama de problemas se materializa e se fortalece. Assim, os textos analisam as múltiplas expressões de um projeto político ultrarreacionário que solidifica o viés conservador com a assunção da família tradicional como núcleo fundamental de organização da sociedade.

São projetos políticos que explicitamente se apresentam como inimigos da escola, da universidade e da liberdade de ensinar. Por isso, temas como o obscurantismo, o negacionismo científico, o revisionismo histórico, o anti-intelectualismo, a ideologia de gênero, a militarização nas escolas, a intolerância religiosa, a homeschooling e o levante da extrema direita contra Paulo Freire são abordados na obra. Os textos evidenciam, assim, projetos de destruição que operam no campo legal, como o Escola Sem Partido, cujo principal efeito é criar um debate público que vai reverberar no ambiente educacional e, dessa forma, solapar a confiança e as relações de espaço entre todos os sujeitos da escola. São, na verdade, movimentos de negação desta e do conhecimento, que vieram como reação aos poucos avanços progressistas alcançados pela sociedade brasileira nas duas últimas décadas e que, no atual governo, ganham força para engendrar uma guerra cultural.

Os textos que compõem as duas primeiras partes do livro analisam com minúcia toda desonestidade das barbáries que destroem a escola e que tentam dizimar as possibilidades de se construir uma educação democrática e libertadora.

Já a terceira parte trata da disputa na escola, ou seja, os nove textos desse bloco vão evidenciar como a pedagogia e o currículo são disputados nesse espaço, além de apresentar o que tem sido trilhado para uma educação contra a barbárie no Brasil. Os artigos trazem diversas frentes de luta que têm sido engendradas na educação, desde a pedagogia do Movimento Sem Terra (MST) até a experiência do coletivo “Rede Escola Pública e Universidade”, no sentido de construir o conhecimento educacional dentro e para a luta política. São experiências propositivas de resistência que vão disputar a escola contra os projetos ultrarreacionários e ultraliberais, com base no que se tem discutido tanto no campo da militância quanto no da produção intelectual.

O debate que o livro promove é de relevância, porque se propõe a um esforço duplo: além de uma crítica à lógica empresarial e conservadora sobre a educação, apresenta uma série de propostas e de alternativas democráticas, inclusivas, laicas e plurais, na direção de desbarbarizar a educação.

Educação contra a barbárie foi lançado em maio de 2019, bem no início do atual governo. No mandato de Bolsonaro, as políticas educacionais passaram a ser pautadas pelos interesses regidos pelas alas ultraliberais e ultrarreacionárias da sociedade, tornando a barbárie ainda mais evidente. Nessa perspectiva, os indicadores educacionais de larga escala, por exemplo, estão enlaçados em confusões envolvendo o Ministério da Educação (MEC) e os grupos que apoiam o governo. Articulada a isso, há a política de negação da escola, da ciência, das artes e do intelectualismo, que é materializada no apoio ao Escola sem Partido, na proposição da educação domiciliar, na militarização das escolas, na cruzada antigênero, no ataque às políticas de direitos humanos... a lista de barbáries parece não ter fim.

Para piorar a situação, com a pandemia do novo coronavírus (Covid-19) decretada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde o dia 11 de março de 2020, empresários “reformadores” da educação, sob a chancela do MEC, têm visto neste momento de crise a oportunidade de acelerar o projeto de precarização da escola e da universidade pública, com a implantação da educação a distância, sem considerar os impactos no processo de ensino-aprendizagem e a infraestrutura dos espaços educativos e, sobretudo, negligenciando as desigualdades sociais que impedem que boa parte da população tenha acesso a essa modalidade de ensino. Os tratados de civilidade que grande parte das nações parece ter pactuado, ainda que sob o escudo do neoliberalismo, estão sob ataque no atual governo, e isso tem deixado o mundo atônito.

Por isso, Educação contra a barbárie é uma obra fundamental para que entendamos o contexto político adverso em que a escola e a universidade estão situadas hoje. Trata-se de um livro corajoso porque aborda, sem meias palavras, os vários tipos de barbárie e de movimentos de barbarização pelos quais passou e tem passado a educação. E vai além: nomeia quem são os inimigos da educação brasileira e como atuam para aniquilar a escola. Sinaliza como fundações e institutos empresariais, grupos articulados a think tanks da direita, fundamentalistas religiosos, militaristas, movimentos antiescola, negacionistas, movimentos de censura e perseguição a professores(as), grupos antigênero e antifeministas, dentre outros, relacionam-se, o que eles fazem e que prejuízos trazem a professores(as), à liberdade de ensinar, à infraestrutura da escola e da universidade, à vida dos(as) estudantes e aos movimentos sindicais docentes.

Adorno (2003) postula que é papel da educação o contraponto aos princípios da barbárie. Nessa direção, a educação precisa se consolidar contra a barbárie na composição do passado, na concepção do presente e na projeção do futuro: “a tentativa de superar a barbárie é decisiva para a sobrevivência da humanidade” (Adorno, 2003, p. 156). A educação contra a barbárie pressupõe também uma educação para os princípios civilizatórios, ou seja, entender os riscos da barbárie requer evocar, para a memória presente, os episódios históricos de violências, desmandos e opressões, com o intuito de que tais acontecimentos não sejam reeditados.

Barbárie e alienação política transitam com naturalidade, alicerçadas pela apatia e massificação. Por serem sutis e quase invisíveis, conseguem ser naturalizadas mediante a incapacidade de reflexão sobre o contexto social em que se vive. Nesse sentido, o livro organizado por Fernando Cássio, enquanto artefato contra-hegemônico da cultura vigente de consolidação da barbárie, que se apresenta como uma insurgência possível, capaz de negar os valores da competição normalmente determinados pelo capital, torna-se primordial para fomentar o combate contra a barbárie, as perversidades da guerra cultural e a negação do pensamento.

Portanto, esta obra denuncia os ataques que a escola vem sofrendo incessantemente nos últimos anos. Mas não só isso: propõe uma educação para a diferença e para a autonomia do sujeito pensante, aponta caminhos para uma educação pautada no reconhecimento do outro, na vivência de práticas culturais, na liberdade de ensinar. Uma escola que ouve e acolhe “as Marias, Mahins, Marielles, Malês”.

Referência

ADORNO, T. W. A educação contra a barbárie. In: ADORNO, T. W. Educação e emancipação. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 155-168 [ Links ]

1A expressão catalisa termos da ultradireita, como “doutrinação ideológica”, “ideologia de gênero”, “globalismo” e “marxismo cultural”, provocando posicionamentos polarizados sobre sexualidade, religiosidade, raça, identidade de gênero e comportamento, com base em princípios morais: de um lado, grupos conservadores; de outro, setores progressistas da sociedade.

2Referência a trecho do samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira de 2019, “História para ninar gente grande”. Tal samba-enredo foi mencionado em dois artigos que integram o livro, “Recursos educacionais abertos: conhecimento como bem comum, autoria docente e outras perspectivas”, de Bianca Santana; e “Muito além da escola: as disputas em torno do passado no debate público”, autoria coletiva da Rede Brasileira de História Pública.

Recebido: 08 de Julho de 2020; Aceito: 25 de Novembro de 2020

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