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Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versión impresa ISSN 0034-7183versión On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.102 no.261 Brasília mayo/ago 2021

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.102i261.4619 

ESTUDOS

A complexa relação humana no espaço escolar: o que indisciplina, currículo e cultura têm a nos revelar?

The complex human relationship in school environment: what can indiscipline, curriculum and culture tell us?

Rosane Barreto Ramos dos SantosI  II 
http://orcid.org/0000-0002-3188-908X

Paulo Pires de QueirozIII  IV  5 
http://orcid.org/0000-0002-0609-6424

IInstituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: <rosanebarretorj@yahoo.com.br>

IIMestra em Diversidade e Inclusão pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.

IIIUniversidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: <ppqueiroz@yahoo.com.br>.

IV Doutor em Filosofia e Humanidades pela Columbia Pacific University, San Rafael, California, United States - Título reconhecido pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.

5Doutor em Filosofia e Humanidades pela Columbia Pacific University, San Rafael, California, United States - Título reconhecido pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.


Resumo:

Este artigo é resultado de uma pesquisa qualitativa-descritiva, autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense, de acordo com o parecer consubstanciado nº 2.112.310, realizada em duas escolas da cidade de Nova Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro, que trazia como objetivos identificar as impressões de professores e alunos sobre indisciplina discente e cultura no espaço escolar, bem como observar os atos indisciplinares e analisar a importância de diálogos interculturais na diminuição de conflitos. Utilizando como referencial teórico Barreto (2018), Caldeira (2007), Silva (2020), Freire (2016), Tardif (2014), Candau (2012) e Walsh (2009), foram abordados os eixos indisciplina, currículo e cultura no cotidiano da escola básica e as relações desenvolvidas entre docentes e discentes. Como instrumentos foram empregados observação de campo, análise documental e entrevista semiestruturada com 6 professores e 20 alunos dos 7º e 9º anos do ensino fundamental, envolvidos em situação de conflito e indisciplina nas práticas de sala de aula. A triangulação dos dados obtidos ao longo da empiria revelou a necessidade de serem construídos diálogos interculturais por meio de práticas curriculares flexíveis e plurais que viabilizem construções pedagógicas de reconhecimento e valorização dos diferentes sujeitos em suas origens étnico-histórico-culturais, dirimindo situações de conflito e contribuindo, assim, para um processo de ensino-aprendizagem exitoso.

Palavras-chave: diálogo; escola básica; interculturalidade

Abstract:

This article results from a qualitative-descriptive research. It was authorized by the Committee of Ethics in Research from the Fluminense Federal University, in accordance with the document parecer consubstanciado nº 2.112.310. The research was carried out in two schools in the city of Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, aiming to identify teachers and students’ perceptions about student indiscipline and culture in school. It also intended to observe acts of indiscipline and to analyze how intercultural dialogues acts to reduce conflicts. Using Barreto (2018), Caldeira (2007), Silva (2020), Freire (2016), Tardif (2014), Candau (2012), Walsh (2009), as a theoretical reference, the axes indiscipline, curriculum and culture were addressed in the daily life of the basic school and the relationships developed between teachers and students. As instruments, it were used field observation, document analysis and semi-structured interviews with six teachers and twenty students from the 7th and 9th years of elementary school, involved in conflict and indiscipline in classroom practices. The triangulation of the data obtained throughout the empiry revealed intercultural dialogues must be built through flexible and plural curricular practices that enable pedagogical constructions of recognition and appreciation of the different subjects in their ethnic-historical-cultural origins, resolving situations of conflict, thus contributing to a successful teaching-learning process.

Keywords: basic school; dialogue; interculturality

Resumen:

Este artículo es el resultado de una investigación cualitativo-descriptiva, autorizada por el Comité de Ética en Investigación de la Universidade Federal Fluminense, de acuerdo con dictamen consubstanciado n.º 2.112.310, realizada en dos escuelas de la ciudad de Nova Iguaçu, estado de Rio de Janeiro, y tuvo como objetivo identificar las impresiones de profesores y estudiantes sobre la indisciplina y cultura estudiantil en el espacio escolar, así como observar los actos indisciplinarios y analizar la importancia de los diálogos interculturales en la reducción de conflictos. Utilizando Barreto (2018), Caldeira (2007), Silva (2020), Freire (2016), Tardif (2014), Candau (2012) y Walsh (2009) como referencia teórica, se abordaron los ejes de indisciplina, currículo y cultura en el cotidiano de la escuela básica y las relaciones que se desarrollan entre docentes y alumnos. Como instrumentos se utilizaron: observación de campo, análisis documental y entrevista semiestructurada a seis docentes y veinte alumnos de los 7º y 9º anõs de primaria involucrados en situaciones de conflicto e indisciplina en las prácticas de aula. La triangulación de los datos obtenidos durante la investigación reveló la necesidad de construir diálogos interculturales por medio de prácticas curriculares flexibles y plurales que hagan factibles construcciones pedagógicas de reconocimiento y valoración de los diferentes sujetos en sus orígenes étnico-histórico-culturales, resolviendo situaciones de conflicto, contribuyendo, así, a un proceso de enseñanza-aprendizaje exitoso.

Palabras clave: diálogo; escuela básica; interculturalidad

Introdução

Refletir acerca dos problemas relacionados à indisciplina e aos aspectos culturais dos alunos sob o prisma de como se constroem os processos educativos dentro do espaço escolar é questão que inquieta educadores rumo a uma ressignificação das bases nas quais o ensino se encontra alicerçado. Sociedade em movimento, histórias e origens plurais, convergindo ou divergindo em meio às práticas pedagógicas e curriculares, direcionam-nos a redefinir nossos olhares sobre as diversidades culturais presentes no cotidiano da escola básica, encaminhando-nos a compreender indisciplina e diversidade humana como algo que não se encerra em si, mas, é cercado de significados.

A pesquisa, aprovada sob o parecer consubstanciado nº 2.112.310 do Comitê de Ética em Pesquisa, foi desenvolvida em duas escolas da rede pública de ensino da cidade de Nova Iguaçu, localizada no estado do Rio de Janeiro, sendo selecionados três professores e dez alunos de cada escola, envolvidos diretamente em situações de indisciplina ou de conflito no espaço escolar, com base na metodologia qualitativa-descritiva de Minayo (2016). Foram desenhados os seguintes objetivos: identificar as impressões de professores e alunos sobre indisciplina discente e cultura no espaço escolar, observar os atos indisciplinares e analisar a importância de diálogos interculturais na diminuição de conflitos. Norteando os objetivos, trouxemos como questionamento: “Como compreender as relações entre a indisciplina discente e a diversidade cultural no espaço escolar para contribuir com um ensino mais democrático?”. Para discutir os resultados, aplicou-se a triangulação de dados de Triviños (2007), composta pelo referencial teórico, pela análise documental, pelas entrevistas semiestruturadas e pela observação de campo, configurando-se como os instrumentos que possibilitaram os achados da pesquisa em profundidade e extensão.

Os questionamentos permanecem os mesmos: Por que o aluno não considera a sala de aula atrativa? Será a indisciplina um problema social, cultural? Como discutir identidade e diferença entre alunos e professores, conscientizando e desconstruindo pré-conceitos? Em que práticas curriculares diversificadas podem contribuir? Qual o papel do docente em meio a esse desafio? Essas são algumas perguntas comumente utilizadas e exaustivamente repetidas pelos docentes, mas que ainda carecem de respostas que convirjam em ações modificadoras e flexibilizadoras de teorias e práticas educativas.

Buscando responder a esses questionamentos desafiadores, a relação existente entre a indisciplina discente e o não reconhecimento da diversidade cultural baseou a investigação que alicerçava em seus aspectos monoculturais ou interculturais a condução para que a aprendizagem acontecesse, mantendo a passividade do papel discente ou permitindo que o aluno construísse ativamente suas maneiras de aprender.

Indisciplina discente e suas nuances

Os atos de ensinar e aprender se constroem mutuamente e concomitantemente entre professores e alunos. É uma relação na qual “[...] quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (Freire, 2016, p. 25). Para que esse pressuposto se efetive na prática de sala de aula, precisa estar vinculado a elos de pertença e significado que levem os indivíduos a construírem pontes (Vasconcellos, 2006), aproximando quem eu sou, quem o outro representa e como podemos percorrer esse caminho, sem que as diferenças sejam enxergadas como empecilho ao longo do trajeto. A transitoriedade e a oportunidade de conhecer nos permitem sair de nossa zona de conforto, oportunizam que o caminhar seja contínuo. É o estar sendo e a inconclusão do ser humano de Freire (2016) que possibilitam essa travessia constante e ininterrupta.

Segundo Barreto (2018), Caldeira (2007) e Vasconcellos (2006), quando o estreitamento desses laços é interrompido, a vivência da escola passa a se constituir ou de forma negativa ou como um sinal de que mudanças são necessárias. As conjunturas envolvendo o sistema educacional, o fazer pedagógico distante da realidade dos alunos, as teorias predominantemente monoculturais, ou quaisquer outros agravantes que configuram situações destoantes na escola, podem ser consequências ou causas da indisciplina discente. Além disso, quando alguns fatores não são levados em consideração em sala de aula, como a história de vida dos alunos, suas origens, suas vivências sociais e culturais conflitantes com a proposta curricular homogeneizante, também podem ser facilitadores de conflitos e indisciplina (Caldeira, 2007).

Portanto, refletir sobre as situações que envolvem a indisciplina pode variar de acordo com a proposta da instituição educacional na qual o aluno está inserido e a concepção dos docentes acerca do tema. Da estigmatização da indisciplina como distúrbios comportamentais em si até as percepções plurais sobre os contextos dos alunos, os atos indisciplinares podem orientar educadores a refletirem sobre suas práticas e as condições em que determinado comportamento inadequado se manifesta (Barreto, 2018).

Alunos desinteressados cumprindo conteúdos programáticos excessivos, professores que se desdobram para alcançar currículos extensos que precisam ser concluídos de acordo com a burocracia do sistema educacional, levando-os à pouca reflexão sobre as teorias a serem ensinadas, transformam o ato dinâmico e curioso do ensino em mecanicismo e produtivismo. Não é de se espantar que o que convirja desse cenário seja insatisfação e indisciplina discente e desânimo docente. O professor está lá, os conteúdos são cumpridos, mas qual é a qualidade em que o trabalho se constrói? Quais espaços prazerosos de trocas são estabelecidos? Nesse cenário, a educação se esvai de sentido e pertença e os protagonistas desse processo se distanciam da valorização do papel de cada um.

Soma-se a esse panorama um espaço infraestrutural desfavorável, insuficiente para acomodar alunos e professores de forma confortável. Se refletirmos sobre como uma sala de aula está preparada para recebê-los, concluiremos que, na grande maioria dos estabelecimentos de ensino, o espaço físico não se apresenta convidativo ao aprendizado. São problemas com ventilação, iluminação e carteiras, entre outros que dificultam formas plurais de aprender e ensinar (Barreto, 2018).

Como observamos, tomar a indisciplina discente somente pelo que os estereótipos a reduzem não contemplaria as diversas vertentes subjetivas intrincadas nas relações humanas, emocionais, culturais e das práticas de ensino que envolvem as ações de ensinar e aprender. Pensar escola não se resume a conteúdos e aprovação. É mais do que isso. É perceber como os sujeitos se comportam diante de cada situação (Vasconcellos, 2006); é não confundir aprendizagem com produtividade em larga escala; é considerar o aluno único em suas vivências, respeitando seus tempos e momentos de aprendizagem; é incentivar os professores em suas potências criativas; é compreender o espaço escolar como um organismo vivo e pulsante e, por isso, considerar a relevância da escola na emancipação de sujeitos pensantes e críticos da sociedade que os cerca.

Práticas curriculares e seus desdobramentos

Práticas curriculares e seus consequentes conteúdos respaldam contextos e ações que podem ou reproduzir o discurso monocultural da classe dominante ou produzir ações e reflexões interculturais, fomentando a percepção das diferentes identidades dos alunos, não só na esfera escolar como em toda sociedade. A maneira como os sistemas educacionais tratam e os professores compreendem e executam o currículo revela os objetivos de aprendizagem que pretendem desenvolver em seus alunos.

O currículo deixou de se restringir às técnicas, aos procedimentos, ao como fazer e ensinar conteúdos. Ele expressa relações de poder dentro do espaço escolar e é reflexo da sociedade, do conhecimento e das políticas que cercam os objetivos da aprendizagem. A quem interessa que os alunos aprendam? Quem seleciona aquilo que deve ser ensinado? Que posição ocupam professores e alunos nesse processo? Em quais bases se encontram fundamentados os conteúdos? Sendo homogêneo ou heterogêneo, tradicional ou crítico e emancipatório, o currículo é carregado de ideologias e sinaliza o tipo de educação e a intencionalidade por trás do discurso escolar (Silva, 2020; Moreira, 2012). É por meio de planos de curso e de aula, conteúdos, estratégias, diretrizes e aplicabilidades que as finalidades implícitas ou explícitas do currículo se revelam.

Nessa perspectiva, o currículo é considerado um artefato social e cultural. Isso significa que ele é colocado na moldura mais ampla de suas determinações sociais, de sua história, de sua produção contextual. O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares. O currículo não é um elemento transcendente e atemporal - ele tem uma história, vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação. (Tadeu; Moreira, 2013, p. 13-14).

Dentro do contexto escolar atual, de prevalência ideológica tradicional e sustentada pela classe social dominante, Silva (2020, p. 32) adverte que:

[...] a ideologia atua de forma discriminatória: ela inclina as pessoas das classes subordinadas à submissão e à obediência, enquanto as pessoas das classes dominantes aprendem a comandar e a controlar.

Configura-se como desafio identificar no sistema educacional como os processos ideológicos são delineados, para, partindo-se dessa análise, serem elaborados currículos diversificados, flexibilizando planos de ensino, materiais didáticos e conteúdos, extraindo, em consonância com a classe em que leciona, uma singularidade estratégica que contemple os alunos, coletando desse emaranhado complexo a boniteza de Freire (2016) sobre o ato de aprender e ensinar. Passa a se tratar de uma experiência na qual as relações não submetem os sujeitos, mas são representadas por pontes (Vasconcellos, 2006) atravessadas em um movimento contínuo de cooperação, em que sempre há o que aprender e sempre há o que se ensinar. E nessas:

[...] condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo. [...] faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos, mas também ensinar a pensar certo. (Freire, 2016, p. 28).

Conscientizar sobre a boniteza da singularidade que constitui cada ser humano requer prezar não somente pela diversidade de identidades dos discentes, mas também pela dos docentes, em suas origens, histórias e culturas (Tardif, 2014), além da relevância de sua função social e profissional junto aos alunos, elaborando as estratégias de planejamento mais adequadas à realidade de sua classe, cujos conteúdos e currículos devem estar imbuídos de práticas dialógicas com e sobre as diferenças - Candau (2008), Moreira (2012) e Freire (2016) -, integrando relações flexíveis entre teorias e práticas educativas.

Convidar os alunos a se envolverem em seu próprio processo de ensino- aprendizagem, ressignificando a pertença desses atores em sala de aula e protagonizando sua participação, pode contribuir para a diminuição de situações de conflito e indisciplina (Barreto, 2018), pois seu foco e sua energia estarão direcionados para a construção de seu próprio conhecimento, em que currículo, conteúdo e materiais didáticos não serão estranhos à sua identidade. Em consonância, há a oportunidade de se estabelecerem mudanças, utilizando a própria crítica ao que está sendo apresentado homogeneamente como verdade, como fonte de (re)conhecimento e luta. É um trabalho que se realiza em conjunto, no qual há reciprocidade entre ensinar e aprender de alunos e professores.

É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. (Freire, 2016, p. 25).

É necessário, portanto, que a escola seja fomentadora de reencontros dos indivíduos consigo mesmos, (re)pensando práticas curriculares e docentes, conteúdos, materiais didáticos e, principalmente, olhando o aluno não como um produto, mas como um sujeito em construção. A escola é responsável nesse processo, uma vez que assume uma educação integral, cidadã, crítica e emancipatória dos sujeitos.

Interculturalidade na escola: um diálogo possível

Pensar interculturalmente a educação é retirar o aluno do seu anonimato educacional; é distinguir no ato indisciplinar a inquietação pela falta de reconhecimento de sua identidade e o sentimento de pertencimento a esse espaço (Barreto, 2018); é permitir que mediante o diálogo crítico, possível pelo viés que a interculturalidade propõe, os sujeitos se reconheçam como partes ativas e protagonistas do processo educacional, revertendo indisciplina em reconhecimento das identidades plurais e das diferenças que enriquecem social, educacional e culturalmente cada indivíduo.

Portanto, pensar em educação em termos de identidade e diferença é preocupar-se, primeiramente, com as bases nas quais o aprendizado se encontra alicerçado, pois, assim como o currículo é território ideológico de poder, também se constitui a cultura. E uma vez que a educação não é neutra, nem desculturalizada (Candau, 2008, 2012; Moreira, 2012; Freire, 2016; Santos, 2016), mas repleta de sentidos e intenções, compete indagarmos a quem ou a que interessa determinado tipo de aprendizagem, que de acordo com os conceitos predominantemente monoculturais da/na escola invisibilizam os sujeitos.

A indisciplina, de antagonista, pode passar a desempenhar um papel de protagonismo rumo às modificações estruturais de valorização das diferenças. Pode indicar que os processos educacionais não caminham em direção à subjetividade, convidando-nos a repensar quem é o sujeito histórico e cultural que a escola recebe e em quais pressupostos ela trabalha diferenças que não inferiorizem nem igualdades que homogeinizem os sujeitos (Santos, 2016).

[...] Na perspectiva da diversidade, a diferença e a identidade tendem a ser naturalizadas, cristalizadas, essencializadas. São tomadas como dados ou fatos da vida social diante dos quais se deve tomar posição. [...] Não deveríamos, antes de mais nada, ter uma teoria sobre a produção de identidade e da diferença? Quais implicações políticas de conceitos como diferença, identidade, diversidade, alteridade? Como se configuraria uma pedagogia e um currículo que estivessem centrados não na diversidade, mas na diferença, concebida como processo, uma pedagogia e um currículo que não se limitassem a celebrar a identidade e a diferença, mas que buscassem problematizá-las? (Silva, 2014, p. 73-74).

Tais indagações podem ser mais claramente contextualizadas à luz do monoculturalismo e da interculturalidade, pois os elementos culturais, políticos e sociais presentes em cada uma das abordagens justificam e respaldam determinados atos de aprender e ensinar que acontecem nos cotidianos das práticas e condizem com muitas das situações de indisciplina enfrentadas pelas escolas. Portanto, é primordial saber se a instituição de ensino mantém uma aproximação monocultural, com currículos subordinados aos interesses de manipulação dos grupos dominantes (Silva, 2020) traduzidos em conteúdos de manutenção do status quo, ou assume uma pedagogia crítica, revelando os potenciais dos alunos, rompendo com a linha abissal (Santos, 2010), possibilitando um movimento crítico de emancipação, em que as histórias das páginas dos livros didáticos daltonicamente culturais (Cortesão; Stoer, 1999) ganham diferentes cores e formas, propiciando que muitos se descubram e se reconheçam.

Nesse cenário, professores são desafiados a desconstruírem práticas monoculturais enraizadas em um fazer pedagógico unilateral, que ideologicamente faz os alunos praticarem papéis subordinados (Silva, 2020). Segundo Barreto (2018), Tardif (2014) e Candau (2008), abrindo-se espaços para diálogos e um fazer pedagógico que inclua os diferentes personagens que se encontram na sala de aula, os alunos terão a chance de desenvolver a criticidade e fazer aprendizagens outras (Walsh, 2009), configurando uma educação de qualidade que

[...] incentiva um processo contínuo de interação e de inovação, centrado na criatividade dos professores e das escolas e na sua capacidade para, constante e coletivamente, definir, avaliar e retificar o processo pedagógico. Qualidade resultaria, então, de transação, de cooperação, de reflexão, de um debate constante entre os diversos atores e grupos sociais interessados nos distintos aspectos do fenômeno educativo (Moreira, 2012, p. 182).

A interculturalidade responde aos anseios por uma proposta educacional igualitária e diferenciada, por questionamentos construídos de maneira sadia entre os alunos e seus professores, estimulando as trocas de experiência de vida e de aprendizagem que ultrapassam os pressupostos monoculturais, configurando-se como alternativa que respalde práticas docentes plurais, utilizando tempos de aprendizagem, momentos de partilha e de reconhecimento de si e dos demais. Lutas deixam de ser teorias daltônicas e abrem-se para as cores dos diferentes sujeitos, refletindo condição e posição social, papel do aluno, do professor e do aprendizado.

A interculturalidade representa uma lógica, não simplesmente um discurso, construída a partir da particularidade da diferença. [...] a lógica da interculturalidade compromete um conhecimento e pensamento que não se encontra isolado dos paradigmas ou das estruturas dominantes; por necessidade (e como um resultado do processo de colonialidade) essa lógica conhece esses paradigmas e estruturas. E é através desse conhecimento que se gera um outro conhecimento (Walsh, 2019, p. 15-16).

Porém, segundo Walsh (2009), há de se ter cuidado com o tipo de interculturalidade prevista nas ações educativas, que por diversas vezes são utilizadas pela escola, sem o devido conhecimento de suas nuances. Walsh (2009) destaca dois tipos de interculturalidade, uma intitulada funcional e outra crítica. A interculturalidade funcional serve aos interesses da classe dominante, pois causa a falsa sensação de respeito à diversidade, mas na verdade continua agindo de acordo com a lógica de poder eurocêntrica, “[...] para o controle do conflito étnico e a conservação da estabilidade social, [...] agora incluindo os grupos historicamente excluídos” (Walsh, 2009, p. 16). Ainda, conforme Walsh (2009) e Santos (2010, 2016), essa é uma forma de controle dos considerados subgrupos, sendo também uma forma de exclusão dos alunos em sua aprendizagem, pois, na exigência do cumprimento do currículo, não sobra tempo para outras formas de intervenção, propícias a um debate aprofundado sobre suas origens e condições sociais.

A interculturalidade denominada crítica, de acordo com Walsh (2009), aponta a educação como lugar de luta, enfrentamento reflexivo, construção coletiva de conhecimentos, traz uma postura horizontalizada no processo de aprender e ensinar, pensando criticamente no que a identidade representa dentro do contexto de dominação da classe hegemônica. Dessa forma, suscita o papel e o lugar do aluno no mundo, uma vez que “parte do problema do poder, seu padrão de racialização e da diferença [...] é uma construção de e a partir das pessoas que sofreram uma histórica submissão e subalternização” (Walsh, 2009, p. 21).

Nessa direção, somos impulsionados e desafiados a compreender as variáveis que promovem ou dificultam o processo de ensino-aprendizagem, como é o caso da indisciplina e da ausência de diálogos sobre/com as diferenças. Ouvir o aluno, compreender o contexto da escola, implementar novas dinâmicas nas práticas docentes que criem mecanismos outros de aprendizagem, passando os sujeitos da objetividade dos estudos monoculturais para a subjetividade crítica e emancipatória que trabalhe igualdade e diferença, reflete os sentimentos de alunos e professores ao longo do percurso escolar.

Vemos que o modelo monocultural de escolarização está para a indisciplina assim como a indisciplina está para o monoculturalismo e o não reconhecimento da diversidade cultural, homogeneizando igualdade e diferença, estereotipando aprendizagens e desconsiderando a variedade de sentidos e experiências que a relevância da palavra igualdade pode carregar (Candau, 2012).

A mudança para uma direção intercultural deve considerar a importância do docente na construção dos princípios democráticos. O professor precisa estar disposto à mudança, sabendo que o pensar e o agir diversamente vão exigir dele um pouco mais de esforço e de conhecimentos sobre diferentes práticas educativas oportunizadas por um currículo que estimule a heterogeneidade em suas teorias e ações pedagógicas e valorize as identidades dos indivíduos.

Metodologia

Para contextualizar a dinâmica de indisciplina, currículo e cultura no espaço escolar, foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa-descritiva para auxiliar a compreensão dos sujeitos envolvidos na investigação em suas relações sociais, culturais e educativas em suas diversas interpretações, valores e atitudes que se desdobram nos espaços escolares e em suas capacidades de elaborar conhecimentos e produzir práticas para intervir nos problemas que identificam.

Os sujeitos/objetos de investigação, primeiramente, são construídos teoricamente enquanto componentes do objeto de estudo. No campo, eles fazem parte de uma relação de intersubjetividade, de interação social com o pesquisador, daí resultando num produto compreensivo que não é a realidade concreta e sim uma descoberta construída com todas as disposições em mãos do investigador: suas hipóteses e pressupostos teóricos, seu quadro conceitual e metodológico, suas interações, suas entrevistas e observações, inter-relações com os colegas de trabalho (Minayo, 2016, p. 57).

A pesquisa foi iniciada após a autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense sob o parecer consubstanciado nº 2.112.310 e trouxe como objetivos: identificar as impressões de professores e alunos sobre indisciplina discente e cultura no espaço escolar, observar os atos indisciplinares e analisar a importância de diálogos interculturais na diminuição de conflitos. Alicerçando esse movimento, a triangulação de dados, norteada pela fundamentação teórica da pesquisa, adicionada à sua empiria (observação de campo e entrevistas realizadas com os professores e alunos) e às análises dos documentos das escolas observadas sistematicamente, compôs uma análise ampla dos dados em profundidade e extensão, pois, diante da proporção de elementos que ocorreram concomitantemente, seria:

[...] impossível conceber a existência isolada de um fenômeno social, sem raízes históricas, sem significados culturais e sem vinculações estreitas e essenciais com uma macrorrealidade social” (Triviños, 2007, p. 38).

Vivenciando tempos, espaços e ações em duas escolas públicas municipais da cidade de Nova Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro, situada em uma zona periférica conhecida como Baixada Fluminense, foi possível desenvolver a pesquisa qualitativa-descritiva que apresentava a problemática “Como compreender as relações entre a indisciplina discente e a diversidade cultural no espaço escolar para contribuir com um ensino mais democrático?”, trazendo como hipótese que o não reconhecimento da diversidade étnico-histórico-cultural presente nos bancos escolares pode estar intrinsicamente relacionado com a indisciplina discente e seus desdobramentos.

Para compor os sujeitos da empiria, inicialmente, foram selecionados 5 professores e 15 alunos de cada escola investigada. A participação dos estudantes foi autorizada mediante a assinatura do Termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) por seus responsáveis e a assinatura do Termo de assentimento livre e esclarecido (Tale) pelos alunos antes do início de cada entrevista, além do TCLE para os professores participantes da empiria. O total de 6 docentes e 20 discentes fazia parte dos 7º e 9º anos do ensino fundamental, e eles foram observados por oito meses, em momentos na sala de aula e extraclasse. Os professores selecionados estavam diretamente envolvidos e eram atingidos pelos conflitos e comportamentos dos alunos; já os alunos eram os causadores dos distúrbios verificados. A escolha ocorreu após a leitura do livro de ocorrências e a observação de diferentes anos de escolaridade.

Além da observação de campo, a análise documental se configurou como importante ferramenta de informação. O projeto político-pedagógico, com a ideologia norteadora das práticas, e os registros nos livros de ocorrência, com a realidade de como as relações são (des)construídas nas ações dos sujeitos, auxiliaram na compreensão de como as propostas educativas orientavam as maneiras de agir de ambas as escolas, diante da indisciplina discente e da falta de planos plurais de ensino-aprendizagem. Já as entrevistas semiestruturadas com os docentes e discentes foram elaboradas com base em temas como a indisciplina discente, o currículo e as práticas educacionais, o papel do professor e do aluno e a diversidade étnico-histórico-cultural presentes na escola e, mais propriamente, em sala de aula.

Com base no problema proposto, refletindo criticamente os aspectos culturais, causa ou consequência de indisciplina, espera-se proporcionar aos docentes novas possibilidades e perspectivas que suscitem práticas educativas de respeito e fomento à diversidade, valorizando as identidades e pensando criticamente o espaço escolar e social, a cidadania e o sujeito.

Resultados

A observação das aulas revelou uma falta de interesse dos alunos pela aprendizagem que se resumia, na sua maioria, em cópias de textos e questionários. A polarização do espaço se dividia entre os alunos que se empenhavam no cumprimento das atividades e os que se isolavam em seus próprios grupos de convívio social. Outra situação que acentuava a dispersão discente e a falta de controle docente se referia à ausência de espaço físico para a circulação dos professores, a fim de que dessem suporte aos alunos em suas necessidades. A falta de mobilidade melindrava professores de se aproximarem dos alunos e vice-versa. Durante as entrevistas, o desânimo docente em relação às formas de aproximar alunos e conteúdos atingia 70% dos professores, configurando-se como maior desafio o despertar nos alunos da vontade de aprender.

Sobre o assunto indisciplina, para 80% dos estudantes significava não obedecer às regras, não cumprir as atividades, desrespeitar os colegas e professores. Essa mesma porcentagem admitiu ser indisciplinada. Dentre esses, 30% afirmaram que a bagunça e a indisciplina aconteciam porque muitos professores eram omissos e, para 50% dos alunos, a indisciplina ocorria porque as matérias ensinadas não eram interessantes, visto que os assuntos eram abordados do mesmo jeito e não falavam do cotidiano. Já para 30% dos professores, indisciplinado era o aluno que não se concentrava nas aulas, não se interessava pelos conteúdos explanados e podia apresentar atitudes violentas. Para 60% dos docentes, era aquele que não considerava a sala de aula atrativa, que não tinha identificação com a escola, pois o modelo de ensino defasado não permitia que o outro expusesse suas diferenças.

As propostas descritas no projeto político-pedagógico traziam as premissas de uma educação plural, com diferenças e igualdades valorizadas e currículos flexíveis dentro de um contexto escolar dialógico e cidadão. Entretanto, a observação da sala de aula se encaminhava para a práxis restrita aos livros didáticos, predominantemente monoculturais e tradicionais, em que o currículo engessado e conteudista, para 90% dos professores, não levava em consideração as diferenças culturais dos alunos, as quais acabavam praticamente esquecidas, substituídas pela preocupação com o cumprimento de diretrizes de um sistema educacional tradicionalmente homogêneo. Essa situação, para 60% dos docentes, poderia acarretar momentos de indisciplina e de conflitos, uma vez que os alunos não se sentiam identificados, representados pelos padrões preconizados.

Em relação à cultura, as respostas dos professores coadunavam com as dos alunos, já que para 74% dos entrevistados não havia o respeito pela diferença cultural entre os colegas de classe. A resposta seguinte, sobre a maneira como os alunos eram tratados no espaço escolar, confirmava a relação entre as diferentes culturas, pois, para 41% dos discentes entrevistados, os alunos eram tratados de forma diferenciada, em que os indisciplinados se sentiam excluídos do processo.

Pensando em uma otimização do ensino e possível redução dos atos indisciplinares, propostas dialógicas protagonizaram 80% das respostas dos alunos, que sugeriram debates em sala de aula, dinâmicas de interação com aulas menos expositivas para impulsionar a aprendizagem e mais diversificação, inclusive na maneira como as carteiras escolares eram organizadas.

Seria injusto não falar do esforço que grande parte dos docentes empreendia para tornar o fazer pedagógico mais interessante aos alunos, tentando estimular pequenos debates, mesmo com a precariedade do ambiente e a preocupação para que aprendessem as lições. A observação de campo mostrou que o sistema educacional com seus entraves pedagógicos prejudicava grande parte das iniciativas, pois esbarrava no tempo escasso e no cumprimento daquilo que já estava previsto nos currículos prescritivos.

Outro documento, o livro de ocorrências, revelou importantes achados para compreender a interação dos alunos e como as situações de conflito eclodiam dentro e fora da sala de aula. O não reconhecimento das diferenças foi constatado na leitura das páginas desse livro como causa e consequência das situações de conflito e indisciplina, extensivas às áreas externas, como corredores e pátios. Momentos envolvendo o desrespeito às diferenças raciais eram frequentes e convergiam em agressões. Os conceitos de etnia e raça eram comumente usados como forma de ofensa pessoal. Escuro, pixaim e macaco eram alguns dos termos pejorativos usados entre eles. Destacou-se que, na maioria das vezes, tratava-se de alunos negros ofendendo outros alunos negros, em uma total desconstrução de si próprios, suas origens e suas histórias. Eram os resultados das reproduções de agressões no cotidiano das relações sociais, que se naturalizavam nos enfrentamentos na escola.

No tocante à sala de aula, o livro de ocorrências registrava relatos de insubordinação e desrespeito à figura do professor, em que alunos se recusavam a realizar as atividades propostas, questionando agressivamente sobre o porquê de terem que fazer determinada tarefa. Comprovando os relatos, as entrevistas com os docentes indicaram que 100% dos profissionais já haviam presenciado trocas de agressões entre os alunos e 70% dos docentes tinham sofrido agressões verbais por parte dos discentes.

Nesse ínterim, perguntou-se aos professores quais seriam as bases para um bom relacionamento entre docentes e discentes, e 70% acreditavam que o relacionamento deveria ser baseado no respeito mútuo, no diálogo e na troca de opiniões, sendo sensível a sua realidade social. Para 30%, o professor precisaria se aproximar do aluno para tentar entender as entrelinhas de suas atitudes, movimento que ficava prejudicado pela grande quantidade de estudantes presentes em sala de aula e pelo limitado espaço de tempo, o que desfavorece o diálogo. Essa constatação encontrou 41% dos discentes entrevistados, que afirmaram perguntar somente o essencial aos professores. Para 33% dos discentes, alguns docentes seriam mais abertos à comunicação, e o diálogo se tornava possível. Porém, alertaram que a predileção de professores por determinados alunos fazia com que a grande maioria se sentisse excluída.

Apesar do cenário desfavorável, algumas iniciativas de conscientização de alunos, diminuindo situações de conflito e de preconceito, puderam ser acompanhadas durante a observação de campo, em ambas as escolas investigadas. Uma delas elaborou rodas de conversa com alunos indisciplinados de cada ano escolar e, durante a apresentação de vídeos, eram trabalhados assuntos como identidade, raça, classe social e outros pertinentes às situações enfrentadas. A outra escola criou um projeto de valorização das identidades e de cidadania com alunos indisciplinados de cada ano escolar e com aqueles que se sentiam diminuídos pela sua cor da pele, previamente identificados pela equipe pedagógica.

Discussão

Os achados revelam o contínuo desafio de serem (re)organizadas teorias e práticas de favorecimento das diferenças no contexto escolar. Foi recorrente a indagação dos alunos sobre o porquê de frequentarem esse espaço e aprenderem determinado conteúdo, ao mesmo tempo que os professores questionavam o porquê de terem que lecionar determinado conteúdo nas condições de trabalho que enfrentavam.

Para a maioria dos professores, a escola era responsável pelos comportamentos indisciplinares e até pelos conflitos existentes entre os próprios alunos e entre alunos e professores, uma vez que as diferenças culturais e sociais não eram destacadas no fazer pedagógico. Segundo os docentes, indisciplina se configurava como sinônimo de resistência, uma forma de despertar a atenção para que mudanças sociais, culturais e epistemológicas pudessem acontecer na escola.

É importante ressaltar a urgência de momentos de escuta e fala que foram repetidamente localizados nas respostas de docentes e discentes. Os alunos demonstravam interesse em expressar suas opiniões, sentiam falta do debate e de participarem mais ativamente do aprender. Os professores reconheciam a urgência de uma abordagem diferente, mas se sentiam limitados, presos ao cumprimento de currículos conteudistas.

Acolher as sugestões que eles traziam, que variava de acordo com cada ambiente escolar, poderia direcionar a sala de aula a um fazer pedagógico exitoso, com menos conflito e mais exercício crítico de cidadania. Além disso, escuta e diálogo poderiam facilitar uma interação curricular plural, haja vista o tradicional e o monocultural dificultarem uma aproximação entre os atores protagonistas do processo de ensino-aprendizagem.

Somou-se a isso a estrutura física inapropriada que desencorajava um fazer/ser diferenciado, pois o ambiente se resumia às práticas mecânicas nas quais mais importava um resultado do que o percurso percorrido, que deveria ser (como destacado no início do trabalho) construído por pontes, em que o movimento de travessia seria contínuo e cercado de momentos de colaboração, autonomia, altruísmo e proatividade.

Pensar nesses termos nos impulsiona a trazer para o contexto das práticas uma abordagem intercultural, aproximando os diferentes mundos dos alunos de maneira crítica e dialógica, tornando os atos de aprender e ensinar proveitosos para ambas as partes. Tal abordagem responde aos anseios por práticas dialógicas que construam conhecimento a partir das realidades, horizontalizando as perspectivas de aprender mediadas pela ação docente em termos de diferença e igualdade.

Os alunos não querem ser passivos em seu processo de ensino-aprendizagem. Eles não estão inertes, muito pelo contrário, estão atentos à realidade escolar que os rodeia. Portanto, a escola que se proponha intercultural, com currículos facilitadores de diálogos, precisa refletir: “convidamos os alunos e professores a trabalharem por meio das diferenças, exigindo um (re)fazer contínuo de teorias e práticas ou repetimos modelos prontos limitando o alcance do pensamento crítico a um ser e fazer cartesianos?”. “Nossos alunos entram na escola com suas identidades ou despretensiosamente pedimos que eles as deixem em suspenso, do lado de fora dos portões escolares?”. É essencial entender os sinais indisciplinares personificados nas (re)ações dos alunos para definirmos em quais bases os objetivos da escola estão desenhados, levando em conta os aspectos monoculturais ou interculturais que permeiam as práticas.

Tanto as respostas dos professores quanto as dos alunos nos convidam a refletir sobre a importância de documentos, como o projeto político-pedagógico, preverem em seus preceitos uma gestão democrática de escuta dos discentes, pois suas contribuições podem enriquecer uma aprendizagem em que todos aprendem e ensinam. Isso permite que os alunos se sintam responsáveis pelos seus espaços escolares, desenvolvendo sentimento de pertença, autonomia e valorização de suas identidades.

Aspectos indisciplinares, práticas curriculares e, agora, a cultura apontam para a necessidade do reconhecimento das diferenças. Quando um trabalho educativo não é plural e as diferentes identidades não são respeitadas, a indisciplina se torna um caminho possível ao aluno, chamando a atenção para a sua causa, sua existência. As contradições entre o querer e o ser dentro do espaço escolar não se esgotam nesta pesquisa, porém, contribuem para sinalizar que as mudanças ainda precisam acontecer e que a indisciplina, na maioria das vezes, não é mera insubordinação, mas está cercada de questões que necessitam de ser pontuadas pela escola que se proponha a um fazer pedagógico plural, discutindo as relações de poder, sem dissimular a realidade.

Considerações finais

A análise apresentada, com base na investigação sobre indisciplina, práticas curriculares e cultura, possibilitou a identificação de diversas situações que podem interligar a indisciplina ao não reconhecimento da diversidade étnico-histórico-cultural dos alunos, às práticas curriculares, à complexidade das relações humanas que convergem/divergem no espaço escolar, levando-nos a compreender que os atos indisciplinares não se encerram simplesmente em questões comportamentais.

Manutenção dos pressupostos monoculturais ou abordagem de práticas interculturais? A escola encontra-se diante de uma escolha crucial para o desenvolvimento de suas atividades pedagógicas. Ou se mantém a ideologia tradicionalmente enraizada pelos sistemas educacionais que ratificam a educação do subordinado, limitando sua emancipação, ou se permite desbravar formas outras de compreender e promover uma ideologia crítica, de assunção de si, contextualizando o outro e a sociedade com seus elementos discriminatórios ou inclusivos.

Com base no referencial teórico, na empiria, na análise documental e nas entrevistas, foi possível encontrar conexões entre situações indisciplinares e diferentes episódios do cotidiano escolar. Cultura, raça, teorias e práticas repetitivas e poucos momentos de diálogo e de interação construtiva possibilitavam crescentes cenários de conflito. Verificou-se ainda que as atividades curriculares em sala de aula representavam o processo educativo que temos, delineando aquele que desejamos desenvolver para alcançar a diversidade étnico-histórico-cultural que existe em sala de aula.

Nessa direção, as práticas curriculares interculturais têm caráter relevante no exercício de ações igualitárias considerando as diferenças no espaço escolar. Norteiam fazeres pedagógicos dentro de um ambiente propício para a formação integral dos estudantes, correspondendo às expectativas dos sujeitos da sala de aula para o mundo, transformando o espaço verticalizado de informação em horizontalidade de conhecimentos dentro de uma realidade dialógica.

Sendo recorrentemente almejadas por professores e alunos ao longo das entrevistas, práticas dialógicas se configuraram como um caminho possível para a diminuição da indisciplina e a discussão sobre as diferenças, a fim de serem (re)descobertas identidades escondidas nas práticas monoculturais homogêneas. Docentes e discentes afirmaram que dialogar com e sobre as diferenças, dentro de uma perspectiva intercultural, poderia minimizar ou eliminar as situações de indisciplina no contexto escolar. Esse caminho não é de fácil construção. Exige um despojamento do olhar monocromático sobre as relações que insistem em considerar igualdade como homogeneidade, para entendê-la como o direito à diferença sem discriminações. É uma luta para ser igual na diferença, sem considerá-la sinônimo de desigualdade. Esses são importantes passos rumo a uma democracia de fato e de direito.

O período da investigação contribuiu para mais uma vez afirmarmos que os atos de lecionar e aprender não são tarefas de simples execução. Ensinar e aprender são movimentos contínuos e trabalhosos que requerem tempo, estudo e dedicação. Como são os sujeitos que movimentam e dão sentido à escola, é comum que situações de conflito aconteçam, haja vista as diferentes identidades que cada um de nós possui. O desafio é saber até que ponto atos indisciplinares são indicadores de outros agravantes dentro do sistema escolar.

Nisso, incluem-se diferenças culturais e o não reconhecimento do papel que desempenham no contexto das práticas. Somente um trabalho em conjunto, analisando, (re)construindo e criticando teorias e ações dentro da estrutura social e educacional vigente, pode proporcionar uma educação que garanta o direito à diversidade, sem exclusões e pré-conceitos. Um trabalho aberto a uma proposta que emancipe os sujeitos e os prepare para uma efetiva e democrática cidadania em sociedade.

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Recebido: 14 de Outubro de 2020; Aceito: 16 de Março de 2021

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