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Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versión impresa ISSN 0034-7183versión On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.102 no.261 Brasília mayo/ago 2021

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.102i261.4552 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

Inclusão e acessibilidade na escola: conhecendo a deficiência visual nas aulas de Língua Portuguesa

Inclusion and accessibility at school: understanding visual impairment in Portuguese Language classes

Inclusión y accesibilidad en la escuela: conociendo la discapacidad visual en las clases de portugués

Paula Roberta Paschoal BoulitreauI  II  IX 
http://orcid.org/0000-0001-7044-0712

José Batista de BarrosIII  IV 
http://orcid.org/0000-0003-1463-7929

Adriana Letícia Torres da RosaV  VI 
http://orcid.org/0000-0002-9529-7251

Bárbara Cristina Oliveira MacedoVII  VIII 
http://orcid.org/0000-0002-9417-1622

IColégio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco (CAp/UFPE). Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: <roberta.boulitreau@ufpe.br>.

2Mestra em Educação Física pela Universidade de Pernambuco (UPE), Recife, Pernambuco, Brasil e Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, Brasil.

IIIColégio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco (CAp/UFPE). Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: <josebatista.40@gmail.com>.

IVDoutor em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Recife, Pernambuco, Brasil.

VColégio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco (CAp/UFPE). Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: <adriana.trosa@ufpe.br>.

VIDoutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, Pernambuco, Brasil.

VII Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: <barbaracristina.m@outlook.com>.

VIIIGraduada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, Pernambuco, Brasil.


Resumo:

Este trabalho tem como objetivo apresentar um relato de experiência pedagógica no contexto de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa de uma turma de 6º ano do ensino fundamental, no âmbito de uma escola pública de educação básica, inserida em uma universidade pública federal de Pernambuco, e envolve a temática da inclusão e da acessibilidade vinculada ao estudo do gênero do discurso entrevista. Seu quadro teórico abarca os pressupostos de Mantoan (2003) e Sassaki (2002) a respeito do horizonte da educação inclusiva e a perscom lerpectiva do estudo sociointeracional da linguagem com base em Voloschínov (2017), Bakhtin (2003) e Marcuschi (2008). Buscamos desenvolver um olhar qualitativo sobre a experiência pedagógica realizada entre agosto e dezembro de 2018, cujo registro foi por observação participante em diários de campo, por 16 horas-aulas. A vivência está inserida no contexto do projeto de ensino/estágio da escola, visando apoiar a formação inicial docente no contexto da universidade, contemplando, em específico, o curso de licenciatura em Letras. Os resultados apontam que, por meio do projeto de ensino-aprendizagem desenvolvido, além de reconhecerem o funcionamento social e as características textuais da entrevista, ao entrevistarem uma pessoa com deficiência visual, os estudantes compreenderam que a acessibilidade é um direito que precisa ser garantido à pessoa com deficiência, a fim de que esta possa viver com maior autonomia, participar com mais efetividade da vida social e exercer seus direitos como cidadã.

Palavras-chave: deficiência visual; educação inclusiva; entrevista; ensino de Língua Portuguesa

Abstract:

This work aims to report a pedagogical experience in the context of teaching and learning Portuguese language in a 6th-grade class in middle school, in a basic education public school, in a federal public university in Pernambuco. This deals with themes of inclusion and accessibility at school related to the study of the discourse gender ‘interview’. Its theoretical framework encompasses assumptions of Mantoan (2003) and Sassaki (2002) regarding the horizon of inclusive education and Voloschínov (2017), Bakhtin (2003) and Marcuschi’s (2008) perspective of socio-interactional study of language. The objective was to develop a qualitative look over our pedagogical experience carried through August and December 2018. Its record was made through participant observation in field diaries in the course of 16 hours of classes. The experience takes part in the context of the shcool’s project of teaching/internship, aiming to support the initial teacher training in the context of the university, in particular, when it comes to the teaching degree course in Letters. Results show that, through the teaching-learning project, besides recognizing the social functioning and the textual characteristics of the interview, while interviewing a visually-impaired person, students understood that accessibility is a right people with disabilies need guaranteed so that they can have greater autonomy, participate more effectively in social life, and exercise their rights as citizens.

Keywords: inclusive education; interview; portuguese language teaching; visual impairment.

Resumen:

El objetivo de este trabajo es presentar una descripción de la experiencia pedagógica en el contexto de la enseñanza y el aprendizaje de la lengua portuguesa de una clase de sexto grado de la escuela primaria, dentro de las posibilidades de una escuela pública de educación básica, insertada en una universidad pública federal de Pernambuco, que trata el tema de inclusión y accesibilidad en la escuela vinculado al estudio del género del discurso de la entrevista. Su marco teórico abarca los conceptos o las teorías de Mantoan (2003) y Sassaki (2002) con respecto al horizonte de la educación inclusiva y la perspectiva del estudio sociointeraccional del lenguaje de Voloschínov (2017), Bakhtin (2003) y Marcuschi (2008). Buscamos desarrollar una mirada cualitativa a la experiencia pedagógica realizada por nosotros, autores, vivida entre agosto y diciembre de 2018, cuyo registro se hizo por observación participante, en diarios de campo, durante 16 horas de clases. La experiencia se inserta en el contexto del proyecto docente/ pasantía escolar con el objetivo de apoyar la formación inicial del profesorado en el contexto de la universidad. Nuestro proyecto, en particular, incluyó el curso licenciatura en Letras. Los resultados muestran que, por medio del proyecto de enseñanza-aprendizaje desarrollado, además de reconocer el funcionamiento social y las características textuales de la entrevista, al entrevistar a una persona con discapacidad visual, los estudiantes entendieron que la accesibilidad es un derecho que debe garantizarse a la persona con discapacidad para que pueda vivir con mayor autonomía, participar más efectivamente en la vida social y ejercer sus derechos como ciudadanos.

Palabras clave: discapacidad visual; educación inclusiva; enseñanza del portugués; entrevista

Abrindo o diálogo

Este trabalho tem como objetivo apresentar um relato de experiência pedagógica no contexto de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa de uma turma de 6º ano do ensino fundamental, de uma escola pública de educação básica, inserida em uma universidade pública federal de Pernambuco, e envolve a temática da inclusão e da acessibilidade vinculada ao estudo do gênero do discurso entrevista.

O interesse pelo estudo nasceu de duas grandes demandas: a primeira se refere aos debates atuais sobre a necessidade de se abordar na escola o respeito à diversidade na perspectiva do exercício da cidadania no convívio com as diferenças; e a segunda está associada ao contexto específico da própria comunidade escolar à qual estamos vinculados como docentes e que se propõe a refletir, em suas formações continuadas, sobre a emergente necessidade de garantir a inclusão das pessoas com deficiência no corpo discente1, o que tem mobilizado o engajamento de todos nessa empreitada ante os desafios pedagógicos vindouros.

Com base nessas demandas, três docentes da escola em questão e mais uma estagiária compuseram um grupo para tratar da problemática, além de desenvolver uma pesquisa que nos ajudasse a identificar os possíveis caminhos a serem trilhados. As análises são apresentadas neste trabalho.

É nessa ótica que o projeto político-pedagógico institucional da escola aponta como uma de suas metas consolidar a educação especial e inclusiva na realidade escolar. Todavia, consideramos que os desafios enfrentados pela formação docente para o atendimento à pessoa com deficiência, que resultem no desenvolvimento de práticas exitosas em sala de aula e articulem no currículo o trabalho com as competências de linguagem, associado à interação social, à formação cidadã e à formação humana, são significativos. Concebemos que existem lacunas deixadas pela formação docente inicial que precisam ser superadas não só pelo estudo contínuo por parte dos professores, mas também pelo esforço do desenvolvimento de projetos de experimentações pedagógicas inovadoras, por isso optamos pela realização de tal experiência com os estudantes do 6º ano.

Para além disso, vale ressaltar que a escola em questão também objetiva, em sua missão institucional, colaborar com o processo de formação inicial dos acadêmicos da graduação da referida universidade, servindo como campo privilegiado para o estágio, no qual possam ser realizadas vivências experimentais de ensino-aprendizagem. Para tanto, ao planejarmos o ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa ao longo da escolarização, desenvolvemos de modo interdisciplinar o trato pedagógico de temáticas que emergem da realidade dos estudantes tanto da educação básica como da graduação.

O ano de 2018 foi o segundo em que a escola trabalhou especificamente com a realidade da reserva de 50% das suas vagas para estudantes que cursaram exclusivamente do 1º ao 5º ano do ensino fundamental em escolas públicas, sendo as demais vagas para livre concorrência. Diante disso, acentuaram-se as discussões sobre a inclusão e, ainda mais, sobre as possíveis necessidades de avanço nesse processo. Assim, entre seus profissionais, surgiu a ampliação do debate sobre a pessoa com deficiência, por isso, realizamos um projeto pedagógico que relacionou o conteúdo programático da Língua Portuguesa (gênero do discurso entrevista) à temática da inclusão e da acessibilidade. O projeto visou refletir sobre a diversidade com base no estudo do gênero do discurso: na leitura, análise linguística e produção oral e escrita.

A fim de pôr em prática a referida ação, formou-se uma equipe de trabalho composta por: a docente de Língua Portuguesa e a estagiária de Letras que atuaram no 6º ano, turma em estudo; um docente vinculado ao núcleo de acessibilidade e inclusão da escola; e uma docente colaboradora - todos membros do Grupo de Pesquisa em Formação Docente e Experimentação Pedagógica da instituição de ensino utilizada como campo de pesquisa.

Desenvolvemos a experiência, pois vislumbramos que ela poderia, potencialmente, ampliar as possibilidades de reflexão sobre a acessibilidade e inclusão entre os estudantes da educação básica, os estudantes de graduação do curso de licenciatura em Letras, bem como a comunidade escolar como um todo.

Na metodologia deste relato, apontamos as linhas mestras de construção do próprio projeto para referenciar o objeto de análise que selecionamos para este estudo: a realização da entrevista, por parte dos estudantes, com a pessoa com deficiência visual e os conhecimentos consolidados na interação de linguagem verbal situada contextualmente. Descrevemos, em diário de campo, o desenvolvimento do projeto, focados na rotina das práticas de ensino realizadas durante o período da experimentação pedagógica.

O quadro teórico deste estudo abrange a perspectiva inclusiva de educação, representada pelos pressupostos de Mantoan (2003) e Sassaki (2002) a respeito do horizonte do trabalho pedagógico no convívio com a diversidade, com o respeito mútuo, priorizando-se o ensino-aprendizagem-avaliação, com foco na pessoa e não na deficiência, por uma escola de fato inclusiva. Ainda, abarca a filosofia sociointerativa de linguagem de Volóschinov (2017), Bakhtin (2003), Marcuschi (2008) e Rojo (2009), para os quais a língua é uma forma de interação que se materializa com base no uso dos gêneros do discurso (textuais) em situações sociais concretas cujos interlocutores agem conforme orientações ideológicas coletivas.

Interação em Língua Portuguesa: um espaço para inclusão

Para se tratar da inclusão e acessibilidade na escola no contexto do ensino de língua materna, faz-se necessário apresentar o paradigma educacional da educação inclusiva que adotamos como estudiosos. No projeto político-pedagógico da instituição à qual estamos vinculados, defendemos que:

A educação inclusiva é um processo educacional inserido em uma proposta pedagógica que deva propiciar um conjunto de estratégias e serviços educacionais especiais, organizados institucionalmente para subsidiar, complementar, suplementar e garantir a escolarização ao promover o desenvolvimento dos educandos que apresentam necessidades educacionais especiais. (UFPE, 2016, p. 72).

Ao tratar das questões da deficiência visual em sala de aula com base no estudo do gênero entrevista, guiamo-nos pela perspectiva da educação como direito de todos e, como tal, comprometida com o atendimento de qualidade para todas as pessoas, considerando e valorizando a diversidade humana no que se refere às particularidades socioculturais, intelectuais, emocionais, físicas, linguísticas, entre tantas outras.

Do ponto de vista do marco legal brasileiro, essa perspectiva inclusiva educacional se ancora na Constituição Federal de 1988 para a qual todos têm direito à educação, ao passo que cabe ao Estado e à família a sua efetivação. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (1996), sob a influência da Declaração de Salamanca (Unesco, 1994), reforça o princípio do direito humano à educação como política de justiça social. Nessa lei, o atendimento aos estudantes com necessidades educacionais especiais tem capítulo específico que regulamenta que serviços de apoio especializado, na escola regular, para atender às peculiaridades dos sujeitos da educação especial deverão ser implementados diante da demanda. Por fim, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Brasil, 2015), em seu capítulo 4, reforça que a educação constitui direito da pessoa com deficiência, sendo a esta assegurado sistema educacional inclusivo em todos os níveis de aprendizado ao longo da vida, de forma a se alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e suas habilidades intelectuais, sensoriais, físicas e sociais, segundo suas características, seus interesses e suas necessidades de aprendizagem.

Embora o marco legal brasileiro seja bastante avançado, na prática, a garantia de todos os direitos da pessoa com deficiência não está posta na mesma medida: várias barreiras informativas, atitudinais e arquitetônicas circundam as escolas da educação básica, inclusive a falta de preparo pedagógico e a ausência de recursos didáticos apropriados para se atender o estudante com deficiência. Mantoan (2003) atenta para premência de reconhecer e valorizar as diferenças no processo de abordagem do conteúdo acadêmico e científico no contexto escolar inclusivo. Para tal, o projeto educativo precisa investir na formação humana, em toda a sua dimensão; a comunidade escolar deve ser protagonista de atitudes de cooperação e solidariedade; e os professores devem estar em constante aperfeiçoamento das suas práticas a fim de que as escolas atendam às necessidades de cada um de seus alunos, em suas especificidades, para além da educação especial. Para a estudiosa, escolas inclusivas são ambientes educativos que:

[...] ensinam-se os alunos a valorizar a diferença pela convivência com seus pares, pelo exemplo dos professores, pelo ensino ministrado nas salas de aula, pelo clima sócio afetivo das relações estabelecidas em toda a comunidade escolar - sem tensões competitivas, mas com espírito solidário, participativo. Escolas assim concebidas não excluem nenhum aluno de suas classes, de seus programas, de suas aulas, das atividades e do convívio escolar mais amplo. São contextos educacionais em que todos os alunos têm possibilidade de aprender, frequentando uma mesma e única turma. (Mantoan, 2003, p. 35).

Por seu turno, Sassaki (2002) já apontava indícios daquilo que seria evidenciado pelo pensamento de Montoan (2003) quando defendia a construção de um ambiente escolar inclusivo em que a acessibilidade seja algo naturalmente cotidiano, visto que a pessoa com deficiência goza de direitos cidadãos plenos. A inclusão é tomada como um processo bilateral em que a sociedade e as pessoas excluídas visam instaurar um processo de equiparação de oportunidades para todos. Nesse caminhar, a transformação social está presente na medida em que os seres humanos, suas práticas e suas condições de vida são reconfigurados na valorização do convívio com a diversidade.

As transformações no campo pedagógico, ao se incluir a pessoa com deficiência na escola, segundo os estudos de Hehir et al. (2016), evidenciam a promoção de melhorias nas práticas educativas que beneficiam todos os estudantes: gestores e professores desenvolvem habilidades para apoiar as necessidades individuais de cada aluno, não apenas daqueles com deficiência. Além disso, as escolas de fato inclusivas formam cidadãos menos preconceituosos e mais respeitosos em relação à diversidade.

Com essa visão, implementamos o projeto de ensino de Língua Portuguesa com o gênero do discurso entrevista, pautado na concepção de linguagem de Volóschinov (2017), para quem o signo linguístico é social e ideológico, entendimento que põe em relação a percepção individual com a interação social. Aproximando-nos do campo pedagógico, partimos do pressuposto de que ensinar língua materna envolve inserir o estudante em práticas sociais de uso da escrita e da oralidade, conforme preconizam Marcuschi (2008) e Rojo (2009). A compreensão e a interpretação de textos escritos e orais, a produção textual e a análise linguística devem priorizar o estudo de interações situadas em contextos autênticos do uso da língua, nos quais a relação entre sujeitos sociais se realiza segundo os propósitos que envolvem cada esfera discursiva.

É nesse caminhar que o ensino de língua, por nós defendido, adere a visão do objeto numa perspectiva sociointerativa, como bem descreveu Volóchinov (2017): a mutabilidade das formas linguísticas está em realce e não o seu aspecto estável; a situação concreta de interação é o parâmetro para o entendimento da linguagem e não a abstração; o valor histórico da constituição linguística é basilar para se compreender o seu funcionamento; as formas do todo são preponderantes às formas dos elementos particulares; a palavra é plural nos seus sentidos. O ensino, nesses termos, considera o texto associado a um gênero do discurso como central para abordagem pedagógica em leitura, produção e análise linguística.

Assim, vislumbramos a abordagem da entrevista, um gênero do discurso no campo da captação de novas informações, bem como da formação de pontos de vista, como uma possibilidade de aliar a discussão ao tema da inclusão e da acessibilidade. Tal temática carece de debates mais ampliados e aprofundados no contexto da escola, que foi nosso campo de intervenção e investigação, sobretudo se considerarmos a necessidade de conectá-lo ao estudo da Língua Portuguesa em situação concreta de uso. Para tornar a experiência possível, a Teoria dos Gêneros do Discurso bakhtiniana foi de fundamental importância, porque parte do pressuposto de que a linguagem tem caráter socioideológico e que se realiza em gêneros:

Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas acima de tudo, por sua composição. (Bakhtin, 2003, p. 261).

Os tipos relativamente estáveis de enunciados (orais e escritos) são os gêneros que encontramos na nossa vida diária e que têm o papel fulcral na organização da interação humana. Estes possuem características típicas sinalizadas por seus propósitos sócio-históricos de usos, as quais refletem em conteúdos, composição e estilo esperados, sem, contudo, desconsiderar a flexibilidade da linguagem e a possibilidade de mudança conforme as condições da situação de comunicação em que se inserem.

Na vertente sociointerativa da linguagem, Volochínov (2017) destaca um percurso metodológico para o estudo do fenômeno:

1. Formas e tipos de interação discursiva em sua relação com as condições concretas; 2. Formas dos enunciados ou discursos verbais singulares em relação estreita com a interação da qual são parte, isto é, os gêneros dos discursos verbais determinados pela interação discursiva na vida e na criação ideológica; 3. Partindo disso, revisão das formas da língua em sua concepção linguística habitual (Volochínov, 2017, p. 220).

Nessa esteira, aproximando-se do campo pedagógico, Marcuschi (2008) observa que o núcleo do trabalho com a língua parte do enunciado e de suas condições de elaboração para o entendimento e a produção de textos. Esse é um caminho para fazer com que o estudante perceba a função da língua no cotidiano e nos seus modos de agir e interagir e, assim, desenvolva competências discursivas e linguísticas funcionalmente adequadas.

Como bem observa o estudioso citado, ensinar/aprender língua com base em textos (falados e escritos) abre perspectivas para uma gama de potencialidades exploratórias no campo linguístico que envolvem aspectos como: elementos do desenvolvimento histórico da língua; funcionamento autêntico da língua; relações entre as variantes linguísticas; conexões fala-escrita; fonologia e fonética; questões morfológicas em diferentes níveis de complexidade; funcionamento das categorias gramaticais; organização e seleção lexical; processos semânticos, pragmáticos e estilísticos da língua; elementos de coesão e coerência, entre outros.

A educação linguística, em consonância com tal perspectiva, visa perceber as práticas sociais de usos da leitura, escrita e oralidade mediadas pelo gênero entrevista, considerando a temática da inclusão social, vislumbrando que a experiência pedagógica com a linguagem verbal pode aproximar o estudante de vivências linguísticas inseridas em culturas diversas, em que terá que construir sentidos ancorando-se em variadas semioses (verbais e não verbais) a fim de se inserir e intervir socialmente.

De acordo com Moita-Lopes e Rojo (2004), a escola precisa considerar:

Os multiletramentos ou letramentos múltiplos, deixando de ignorar ou apagar os letramentos das culturas locais de seus agentes (professores, alunos, comunidade escolar) e colocando-os em contato com os letramentos valorizados, universais [...].

Os letramentos multissemióticos exigidos pelos textos contemporâneos, ampliando a noção de letramentos para o campo da imagem, da música, das outras semioses que não somente à escrita. O conhecimento e as capacidades relativas a outros meios semióticos estão ficando cada vez mais necessários no uso da linguagem, tendo em vista os avanços tecnológicos: as cores, as imagens, os sons, o design, etc., que estão disponíveis na tela do computador e em muitos materiais impressos que têm transformado o letramento tradicional (da letra/livro) em um tipo de letramento insuficiente para dar conta dos letramentos necessários para agir na vida contemporânea.

Os letramentos críticos e protagonistas requeridos para o trato ético dos discursos em uma sociedade saturada de textos e que não pode lidar com eles de maneira instantânea, amorfa e alienada [...]. (Moita-Lopes; Rojo, 2004, p. 107).

Com a entrevista, é possível realçar tanto os letramentos das culturas locais quanto os letramentos valorizados universalmente com base na seleção dos textos que serão alvos de leitura e estudo. Além disso, há a possibilidade de explorar relações multissemióticas constitutivas do gênero associadas à fala, à escrita e à imagem: conexões e distanciamentos referentes ao modo de concepção, planejamento, realização e divulgação do texto. Ademais, todo o processo de entendimento e produção da entrevista posiciona o estudante como protagonista, agente crítico que reflete sobre as informações e age socialmente na construção de conteúdos a partir de pesquisas sobre temas caros a uma sociedade mais igualitária e democrática.

Assim, optamos por um projeto pedagógico que realça o estudo da entrevista midiática, gênero de variada e grande circulação, seja em TV, rádio, internet, jornais ou revistas, que se pauta no propósito da difusão do conhecimento e da formação da opinião pública sobre determinado tema eleito como de importância social. Desse projeto, para este relato, enfatizamos aspectos centrados na realização da própria entrevista - as questões dos estudantes e as respostas do entrevistado -, para refletirmos qualitativamente sobre o potencial dessa experiência para consolidação de conhecimentos transversais sobre inclusão e acessibilidade, possibilidade ofertada pelo gênero em evidência, baseada em uma escolha de conteúdo temático comprometida com os princípios da educação inclusiva.

O trabalho pedagógico com textos da esfera jornalística, nas aulas de Língua Portuguesa, é sempre motivo de grande valor para estudantes e professores. Ao se utilizar da carga de realidade, intrínseca a esse gênero discursivo, o evento se caracteriza por envolver e prender a atenção de entrevistado/entrevistador e plateia. Também se caracteriza por sua estruturação como dialogal, interativo e expositivo de uma experiência real de linguagem situada.

De acordo com Costa (2008), o gênero entrevista pode ser definido como:

Conversa/conversação entre pessoas em local combinado, para obtenção de esclarecimentos, opiniões, etc., como, por exemplo, numa entrevista de emprego. No discurso jornalístico, pode ser definida como uma coleta de declarações, informações, opiniões tomadas por jornalista(s) para divulgação através de meios de comunicação (imprensa falada, escrita, televisiva, internética). Pode designar também uma matéria jornalística - chamada pingue-pongue - que é redigida em forma de pergunta-resposta. Trata-se de um discurso assimétrico em que os interlocutores têm papel diverso. O entrevistado tem conhecimento do assunto/tema e o poder da palavra, que deve ser limitado ao que é perguntado. O(s) entrevistador(es), por sua vez, organiza(m) as respostas do entrevistado sem debatê-las ou discuti-las como é de praxe numa conversa/conversação ou em certos tipos de debate. Isso não significa que a entrevista seja um evento discursivo dialógico em que só o entrevistado tenha papel fundamental na construção do todo enunciativo e o(s) entrevistador(es) seja(m) mero(s) “perguntador(es)”. Na verdade, os interlocutores constroem esse todo enunciativo em conjunto, geralmente oral, gravado em áudio e/ou vídeo, que depois pode aparecer publicado por escrito num jornal ou revista. A entrevista, entre outros tipos, pode ser individual (dada a um só entrevistador) ou coletiva, quando concedida a um grupo de jornalistas de diferentes órgãos de comunicação. Trata-se, em qualquer caso, de um gênero formal de troca/busca de informações, em que o entrevistador deve estar seguro sobre o que vai perguntar a fim de obter informações relevantes. (Costa, 2008, p. 93).

Registrada na modalidade escrita ou oral, a entrevista é marcada pelo processo dialogal de interação entre entrevistado e entrevistador. Esse gênero, quando tomado como objeto de estudo pelo professor de Língua Portuguesa, exigirá dos estudantes o uso de competências linguísticas, dentre as quais: o questionamento, a argumentação, o recurso ao discurso de autoridade com variados propósitos e a transcrição de falas; tudo isso com vistas à coleta e divulgação de informações junto à comunidade.

Paralelo a tais exigências, os estudantes são desafiados a superar problemas de comunicação, ampliando suas habilidades comunicativas por meio de uma situação real de uso da língua/linguagem, o que contribui significativamente para o aumento do aprendizado de aspectos diversos da língua, sejam eles de origem semântica, fonética, fonológica ou sintática.

Diante dos apontamentos apresentados sobre o ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa, dos gêneros do discurso, considerando também as necessidades de aprendizagem da turma, em específico, bem como as indicações presentes na Base Nacional Comum Curricular - BNCC (2017), elaboramos alguns objetivos para tratar pedagogicamente tais conhecimentos, como pode ser observado no Quadro 1.

Fonte: Elaboração própria com base em Brasil. MEC (2017)

Quadro 1 Objetivos do projeto de ensino-aprendizagem do gênero entrevista com tema transversal da inclusão 

Com essas escolhas curriculares, a temática da educação especial e inclusiva aliada ao estudo do gênero entrevista, tentamos consolidar um caminho para que a escola, por sua função social, seja um lugar privilegiado de construção de uma sociedade inclusiva que combata atitudes preconceituosas e discriminatórias e crie oportunidades educativas para todas as pessoas.

Afinal, lidar com a entrevista é uma possibilidade que os envolvidos no processo têm de olhar para as pessoas que apresentam diferentes condições de vida a partir das suas peculiaridades (limitações, mas também potencialidades). Ou seja, com base no ensino-aprendizagem da língua em seu contexto de uso, professores, estagiários e estudantes podem lidar com as diferenças de modo positivo, desenvolvendo habilidades e competências necessárias à formação humana.

Participar de um processo inclusivo, pensando sobre a pessoa com deficiência e aprofundando as discussões sobre os cegos, gera empatia e alteridade porque solicita dos estudantes a criação de condições intra e interpessoais para que se estabeleça o respeito às diferenças.

Percurso metodológico

Este trabalho enfoca um olhar de natureza qualitativa sobre a experiência pedagógica vivenciada com uma turma de 6º ano do ensino fundamental, durante o período de agosto a dezembro de 2018. Nesse recorte, computamos o registro de observação de 16 horas-aulas, mais especificamente daquelas voltadas para o estudo do gênero entrevista. Isso porque não buscamos quantificar os dados coletados, mas sim descrever uma realidade com base na observação dos atores sociais, suscitando reflexões sobre as possibilidades de intervenção pedagógica a partir de um relato de experiência no qual os estudantes foram convidados a analisar suas aprendizagens e ações, bem como o reflexo delas em suas práticas sociais, considerando a realidade na qual estão inseridos (Gil, 2008).

A escolha pelo relato nos permitiu o compartilhamento da experiência de uma intervenção pedagógica exitosa no campo da inclusão e da acessibilidade, cujo foco foi exercitar a empatia e a alteridade. Para tanto, metodologicamente, buscamos contribuir com a discussão, a troca e a proposição de ideias no âmbito da prática pedagógica ao descrever o acontecido na escola.

A escola em questão é de educação básica e possui 14 turmas, sendo duas de cada série (A e B), cada uma com aproximadamente 30 estudantes, distribuídas do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e da 1ª a 3ª série do ensino médio. O ingresso, em geral, acontece no 6º ano, por meio da realização de seleção composta por avaliações de Língua Portuguesa, Matemática e Redação. Desde 2017, 50% das vagas ofertadas são preferencialmente destinadas a estudantes que cursaram os anos iniciais do ensino fundamental em escolas públicas.

Para além disso, a escola está inserida no contexto universitário, por isso se propõe a ser um campo privilegiado de estágio para os acadêmicos da instituição e se pauta no princípio da indissociabilidade da tríade ensino-pesquisa-extensão. Portanto, seus docentes contribuem também para o processo de formação inicial dos licenciados, desenvolvem projetos e pesquisas de modo integrado e articulado, o que de acordo com Farias, Soares e Farias (2010) possibilita uma formação acadêmica mais consistente.

Por isso, nosso estudo tem como base epistemológica a etnometodologia que, segundo Coulon (1995), é uma abordagem teórico-metodológica de pesquisa, voltada para os estudos de cunho qualitativo, com foco na compreensão da realidade social, uma vez que busca captar in loco as peculiaridades do fenômeno investigado. Ou seja, não observamos questões postas e estanques, mas a realidade em constante transformação.

Diante do aporte epistemológico, os atores sociais envolvidos foram: os 30 estudantes do 6º ano, a docente responsável pelo componente de Língua Portuguesa na turma, os dois professores colaboradores na estruturação do projeto de inclusão e da referida pesquisa, bem como a estagiária de Letras em formação na época. Todos atuaram e planejaram de modo participativo e colaborativo durante o desenvolvimento do projeto. Ao final, a equipe de professores e a estagiária avaliaram o processo, a fim de refletirem sobre a prática de ensino-aprendizagem para ressignificá-la, tendo como produto este relato de experiência.

Na ocasião, existiam duas turmas de 6º ano estudando o gênero entrevista, tendo como tema transversal os aspectos gerais da inclusão em função das questões trazidas pelo processo de seleção recém vivenciado por eles diante do contexto da reserva de vagas. Entretanto, sendo elas diferentes, uma dessas turmas, no desenvolvimento dos estudos, apontou a necessidade de aprofundar a discussão com base na perspectiva do avanço para as questões da acessibilidade. Por isso, foi selecionada para o desenvolvimento do projeto de inclusão e acessibilidade.

Foram realizados 11 encontros, totalizando 16 horas-aulas, todos registrados em diário de campo por meio de observação participante. O diário de campo teve natureza descritiva e reflexiva, buscando captar os detalhes possíveis: comportamentos, ideias, reflexões, debates, ambiente sociocultural etc. (Fajer; Araújo; Waismann, 2016), e foi registrado por dois pesquisadores em processo de observação participante que, de acordo com Marconi e Lakatos (2011), é uma técnica que permite a inserção do pesquisador no grupo observado para possibilitar a realidade social que o rodeia.

O projeto foi sistematizado e procedeu às seguintes etapas: i) encontros para estudos; ii) afunilamento dos estudos e convite à pessoa com deficiência; iii) distribuição dos estudantes em grupos de trabalho e estruturação da entrevista; iv) entrevista; v) transcrição de entrevista; vi) confecção de mural; e vii) debate e análise final. Todos os momentos foram mediados pela docente, bem como pela estagiária em formação, e registrados pelos pesquisadores, mantendo a tríade ensino-pesquisa-extensão.

O tempo foi organizado conforme apresenta o Quadro 2:

Fonte: Elaboração própria com base em Brasil. MEC (2017)

Quadro 2  Estruturação do projeto por carga horária de aula 

Feitos os procedimentos apresentados, a equipe responsável pela idealização do projeto se reuniu para analisar o conteúdo presente nos instrumentos utilizados para coleta de dados (diários de campo), estando o enfoque voltado ao processo de produção textual, quando os estudantes entrevistaram a pessoa com deficiência convidada. Na ocasião, as questões elaboradas pelos estudantes e respondidas pelo interlocutor foram transcritas no diário.

Nesse sentido, reforçamos que a entrevista foi realizada com a pessoa cega, já nossos achados/registros foram obtidos via diário de campo, em que registramos a dinâmica de entrevistas feitas pelos estudantes da turma a tal pessoa.

A análise dos estudantes sobre o teor da entrevista ocorreu para que eles pudessem refletir sobre os aspectos da inclusão e da acessibilidade. O que foi registrado pelos pesquisadores.

Fizemos análises de duas ordens: i) sobre o teor da entrevista da pessoa cega diante dos estudantes a partir dos registros em diários de campo; e ii) o teor das reflexões feitas pelos estudantes com base na entrevista que eles fizeram com a pessoa cega.

Diante dos dados coletados por esse instrumento, utilizamos a técnica da análise de conteúdo de Bardin (2010), que consiste em uma descrição sistemática do conteúdo captado a partir das comunicações, considerando a respectiva interpretação do pesquisador. Sendo assim, objetiva a análise das relações existentes entre o conteúdo do discurso e os aspectos exteriores. Associada a tal técnica, a interpretação dos discursos também utilizou o olhar da perspectiva inclusiva de educação, realçando especialmente quanto à educação linguística o valor da abordagem sociointeracionista para o ensino-aprendizagem de língua materna.

Resultados e discussão

Ao longo da interação que se estabeleceu, professores, estudantes e entrevistado refletiram sobre vários aspectos que envolvem a acessibilidade e a inclusão de pessoas com deficiência na sociedade. Isso ocorreu por meio da realização das perguntas em uma entrevista estruturada pelo coletivo da turma.

Surgiram diversas questões que visaram conhecer a história de vida do sujeito, os medos, as angústias, as dificuldades, as superações etc. Analisaremos alguns aspectos que circundam o processo de acolhimento da pessoa cega e as identidades, muitas vezes preconceituosas, que se constroem em relação a ela, na indagação apresentada a seguir:

(01) 6º ano - Qual foi a sua maior dificuldade após perder a visão? R - A maior dificuldade que eu tive foi por causa das questões históricas, por conta das ideias que se criaram sobre pessoas com deficiência, por exemplo: “as pessoas com deficiência não sabem o que fazem”, “o deficiente é inválido, ele não serve para nada”. Se você tiver uma família com condições razoáveis, você ainda pode ter uma vida um pouco melhor, mas se sua família vivesse em condições precárias, você teria que ir para um internato ou pedir dinheiro na feira ou tocar algum instrumento para ganhar alguma coisa... geralmente, as pessoas com deficiência visual desenvolviam uma grande habilidade para tocar instrumentos. Por isso, em 2010, quando eu perdi a visão, a imagem que veio em minha cabeça é que eu ficaria inválido, até porque o meu médico mandou eu parar de estudar e focar no tratamento, demorou três anos para eu perceber que não era inválido.

A resposta do entrevistado permitiu aos estudantes consolidarem as discussões iniciais de sala de aula ao realizarmos leituras sobre as pessoas com deficiência em comunidade e quando abordamos sobre o preconceito e a discriminação aos quais estão sujeitas no seu cotidiano, passando pela ideia equivocada de que são “inválidas, não servem para nada”. Essa visão equivocada da pessoa com deficiência visual, cega, ainda se presentifica em questões íntimas que dizem respeito à aceitação e adaptação da família a novas realidades quando um ente se apresenta com deficiência:

(02) 6º ano - Você já sofreu algum tipo de discriminação? R - O tempo todo! Sem dúvida. Até em casa minha mãe não aceita o fato de eu ter perdido a visão. Ela não aceita muito isso, inclusive ela diz pra mim isso. Isso é uma barreira entre nós.

Como apontou o convidado, há estereótipos históricos que contribuem para construção social da imagem da pessoa cega como inábil à participação social efetiva, e tal imagem pode se constituir como uma barreira psicológica ao deficiente e a sua família. A pessoa cega precisará lutar para se autorreconhecer como ser humano capaz e pelos seus direitos de cidadã.

Na perspectiva da sociedade democrática e inclusiva, a acessibilidade garante a autonomia para a participação social: em dignas condições, as pessoas com deficiências podem estudar, trabalhar, viajar, socializar, entre tantas outras coisas. A educação inclusiva, nesse caminhar, proporciona a desmitificação dos estereótipos, pois as pessoas, com ou sem deficiência, como lembra Mantoan (2003), na perspectiva da formação humana, são ensinadas a valorizar a diferença na convivência cooperativa e solidária. Nesse sentido, o acesso à informação é primordial para se compreender e lidar com a realidade:

(03) 6º ano - Várias pessoas nessa sala usam óculos, podemos dizer que são todas deficientes visuais? R - Teoricamente todas teriam alguma deficiência visual já que usam óculos. Mas legalmente, para ser considerada deficiente visual, a pessoa precisa ter uma limitação grande que não tem como ser corrigida por óculos ou perda total da visão; ou seja, ter baixa visão ou ser cega. Nos documentos oficiais encontramos a definição das condições para se dizer que alguém é deficiente, eles se amparam nos estudos médicos, científicos, sobre o sistema visual.

Identificando-se a deficiência e as suas singularidades, é possível entender e respeitar o lugar do outro na sociedade, bem como perceber e traçar caminhos para minimizar os impactos negativos decorrentes da deficiência, a fim de garantir a acessibilidade de todos. Uma das maiores barreiras encontradas pelas pessoas com deficiência, conforme relatado pelo entrevistado, é a atitudinal, decorrente de estereótipos, preconceitos e desinformação das pessoas. Nesse sentido, a escola desempenha um grande papel de informar, conscientizar e transformar mentes e ações acerca do tema para garantia dos direitos plenos de todos os cidadãos. Como bem observa Sassaki (2002), uma escola inclusiva tem a acessibilidade em toda a sua dimensão (atitudinal, arquitetônica, procedimental, pedagógica etc.) como naturalmente cotidiana num processo de equiparação de oportunidades para todos, em toda a sua diversidade.

No momento de entrevista, foi possível também ponderar com os estudantes sobre as matérias que envolvem o despreparo de instituições sociais para atender com dignidade as pessoas com deficiência. Contudo, por outro lado, contemplou-se o esforço de alguns agentes sociais que investem na garantia dos direitos humanos nas diversas esferas sociais, como é o caso da universidade:

(04) 6º ano - Ao tornar-se deficiente visual, você recebeu apoio da Universidade? Como você se sentiu ao receber esse apoio? R - Ou naquele momento o não apoio. A gente não pode ficar só no conto de fadas, pois logo que eu perdi a visão, para ser bem sincero, eu não recebi apoio da universidade, o que é previsto em lei. Existe um parágrafo que fala que o aluno que tem uma necessidade com relação a questões de saúde, precisa receber assistência estudantil, mas eu não tive nenhum tipo de acesso. Mas eu sabia que tinha? Não, eu não sabia que existia esse suporte, mas também ninguém me informou. Mas naquela época tinham os coordenadores dos cursos para orientar os alunos [...] eu não fui orientado e passei três anos sem estudar. Só depois disso que eu conheci alguns professores aqui no Centro de Educação que puderam me dar esse suporte, [...]. Hoje o aluno com deficiência tem o suporte específico do Nace2 na Universidade.

As palavras do entrevistado evidenciam a previsão legal da educação inclusiva e mostram que, no momento em que ficou cego, ele não tinha ainda compreendido a dimensão de seus direitos. A Constituição Federal e a LDB, para citar, destacam o princípio do direito humano à educação como política de justiça social. Contudo, as pessoas e as instituições nem sempre colocam em prática essa política: a falta de recursos materiais e humanos, as barreiras arquitetônicas e atitudinais e a ausência de informações legais, pedagógicas ou relacionais evidenciam o desrespeito à lei quando o assunto é a inclusão da pessoa com deficiência.

Todavia, embora ainda haja muito a se avançar, há uma mudança de paradigma que vem sendo abarcada pelas instituições sociais, visto que a luta da comunidade organizada para garantia dos seus direitos cresce, bem como as pesquisas na área da educação inclusiva se ampliam, levando a sociedade a se esclarecer e mudar de atitude. Universidades e escolas, por exemplo, vêm ampliando a oferta de um atendimento especializado para pessoa com deficiência, oferecendo salas de recursos multifuncionais, formando professores, debatendo a temática com todos os atores da comunidade, trabalhando com adaptações arquitetônicas, embora, como se observa no discurso do entrevistado, ainda haja muito a se avançar para se consolidar a política da inclusão.

Finalmente, várias curiosidades dos estudantes também foram elucidadas sobre o universo das pessoas cegas: quais os diferentes tipos de deficiência visual; o que é o Braile; como se consegue um cão guia; se os outros sentidos da pessoa cega se aguçam pela ausência da visão; como é andar por uma cidade cheia de barreiras arquitetônicas; como se dá a dinâmica da família: pai (cego) e esposa e filho pequeno (não cegos); entre outros questionamentos. Por meio do trabalho pedagógico com o gênero entrevista, o professor convidado relatou à classe os conceitos científicos sobre a deficiência visual; as dificuldades cotidianas; o preconceito que sofria e ainda sofre; a sua forma de se perceber e perceber o outro; a sua readaptação para a realização de coisas que lhe eram bem simples antes de ficar cego; as experiências engraçadas que já lhe aconteceram; e o mais importante: a cegueira não o impediu de trabalhar, estudar, relacionar-se com as pessoas a sua volta e muito menos de ser feliz.

Dessa forma, os estudantes compreenderam que a acessibilidade é um direito que precisa ser garantido à pessoa com deficiência para que ela possa viver com maior autonomia, participar com mais efetividade da vida social e exercer seus direitos como cidadã. Além disso, perceberam o papel de cada um como agente de transformação social na medida em que identificaram concretamente na relação com o entrevistado que preconceitos e discriminações são barreiras que devem ser vencidas com o apoio de todos.

No tocante ao conteúdo e aos objetivos curriculares de Língua Portuguesa na escola, os estudantes verificaram que o gênero entrevista é uma excelente forma de interação social que possibilita a ampliação de conhecimentos por meio de pesquisas que envolvem a preparação de questões que visem à obtenção de mais informações sobre temas de interesse da comunidade. Exercitaram empiricamente a seleção de entrevistado para o tema em discussão; elaboraram um roteiro de questões pertinentes a serem usadas na interação; valeram-se da oralidade em práticas formais de comunicação com estrutura dialogal em que o respeito aos turnos de fala se fez presente; compreenderam técnicas de transcrição do oral para a escrita; como também divulgaram as informações obtidas junto à escola em painel. Na avaliação geral do grupo, observamos que os alunos atingiram os critérios elencados para o estudo do gênero do discurso, considerando a fase pedagógica em que se encontram.

Considerações finais

Com este estudo participativo experienciado no seio da escola de educação básica, percebemos o quão é importante que o ensino de Língua Portuguesa seja desenvolvido a partir de um gênero do discurso, visando à interação do aluno com a comunidade, de modo que o professor dê direcionamento e autonomia ao estudante para a produção textual, para que seja possível não somente desenvolver as habilidades linguísticas - coesão, coerência, norma culta -, mas construir conhecimentos sobre uma temática relevante na sociedade atual.

Por meio dessa vivência procedimental e analítica, constatamos, como grupo de pesquisa, que dentro do contexto escolar é factível inserir os estudantes nas práticas sociais interativas autênticas de uso da linguagem verbal, contribuindo para a formação de um cidadão que esteja apto a se posicionar nas diversas esferas da sociedade com base na apropriação de conhecimentos qualificados na perspectiva dos direitos humanos que reverberem em atuação com compromisso social para transformação de suas realidades. E, para que a temática da inclusão seja abordada no contexto escolar, é necessário que o professor se posicione como pesquisador, disposto a dialogar com o cotidiano dos alunos e aprender com eles.

Nesse caminhar, percebemos que, para se consolidar um currículo comprometido com a inclusão, é relevante estabelecer relação com pessoas com deficiência, para entender seus potenciais e suas dificuldades e limitações e, assim, incluí-las em nosso meio, tratando-as com o devido respeito. A experiência pedagógica em relato sugere que os estudantes articularam significativamente as leituras e as pesquisas para aporte do planejamento e da realização da entrevista com a experiência singularmente contextualizada na situação dialógica e histórica de interação sociodiscursiva da qual foram protagonistas.

Verificamos, ademais, que o projeto pedagógico proposto sinaliza agregar valores e aprendizagem a todos os sujeitos envolvidos: professora, estagiária e demais docentes da equipe de pesquisa, bem como estudantes do ensino fundamental e convidado entrevistado; atendendo ao objetivo da indissociabilidade do ensino-pesquisa-extensão universitários, além de contemplar as dimensões da formação humana nas perspectivas do aprender os conhecimentos formais, mas também lidar com os aspectos socioemocionais.

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1 Atualmente a escola tem o acesso dos estudantes realizado por meio de seleção pública com provas de Língua Portuguesa e Matemática, na qual 50% das vagas são destinadas a estudantes provenientes de escolas públicas; entretanto, ainda não há vagas destinadas especificamente a pessoas com deficiência, algo que tem deixado a comunidade escolar inquieta.

2Núcleo de Acessibilidade.

Recebido: 30 de Julho de 2020; Aceito: 09 de Fevereiro de 2021

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