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Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versão impressa ISSN 0034-7183versão On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.102 no.262 Brasília set./dez. 2021

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.102i262.4669 

ESTUDOS

Educação, comunicação e imaginação em John Dewey: contribuições teóricas e práticas

Education, communication and imagination in John Dewey: theoretical and practical contributions

Educación, comunicación y imaginación en John Dewey: aportes teóricos y prácticos

Tatiane da SilvaI  II 
http://orcid.org/0000-0003-1197-054X

Marcus Vinicius da CunhaIII  IV 
http://orcid.org/0000-0001-8414-7306

IUniversidade de São Paulo (USP). Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. E-mail: <tatianedasilva@usp.br>.

IIDoutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Araraquara, São Paulo, Brasil.

IIIUniversidade de São Paulo (USP). Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. E-mail: <marcusvc@ffclrp.usp.br>.

IVDoutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, São Paulo, Brasil.


Resumo:

Este artigo visa apresentar contribuições teóricas e práticas à educação, considerando o ensino de conteúdos escolares como uma dificuldade concernente à comunicação. Para isso, são realizadas duas operações: a análise teórica das ideias de John Dewey sobre o significado educacional da comunicação e da imaginação e a apresentação de um experimento de pensamento que simula dramaticamente uma situação prática - um curso de formação de professores cujo objetivo é ensinar tais ideias deweyanas utilizando as noções de drama e experimento de pensamento. As conclusões do artigo discutem a contribuição do experimento de pensamento para instituir valores fundamentais da prática docente.

Palavras-chave: comunicação; John Dewey; retórica

Abstract:

This article aims to present theoretical and practical contributions to education, considering the teaching of school subjects as a difficulty concerning communication. For this, two operations are carried out: the theoretical analysis of John Dewey’s ideas about the educational meaning of communication and imagination, and the presentation of a thought experiment that dramatically simulates a practical situation - a teacher training course whose objective is to teach such Deweyan ideas using the notions of drama and thought experiment. The conclusions of the article discuss the contribution of the thought experiment to establish fundamental values of teaching practice.

Keywords: communication; John Dewey; rhetoric

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo presentar aportes teóricos y prácticos a la educación, considerando la enseñanza de los contenidos escolares como una dificultad de comunicación. Para ello, se realizan dos operaciones: el análisis teórico de las ideas de John Dewey sobre el significado educativo de la comunicación y de la imaginación y la presentación de un experimento de pensamiento que simula dramáticamente una situación práctica -un curso de formación docente cuyo objetivo es enseñar tales ideas de Dewey, utilizando las nociones de drama y de experimento de pensamiento. Las conclusiones del artículo discuten la contribución del experimento mental para establecer valores fundamentales de la práctica docente.

Palabras clave: comunicación; John Dewey; retórica

Introdução

Qualquer que seja a modalidade de ensino, uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos professores diz respeito a como levar o aprendiz a elaborar mentalmente a imagem fiel do conteúdo comunicado. Quanto mais abstrata a matéria, mais aumenta o desafio; mesmo quando se apresenta fisicamente o objeto, os obstáculos não desaparecem, sendo apenas modificados pela necessidade de atribuir significado aos estímulos que impressionam os órgãos sensoriais. Embora o assunto envolva diversos fatores, este artigo irá tratá-lo como concernente ao fenômeno da comunicação.

Dentre os muitos autores que discutem e apresentam soluções para essa dificuldade, John Dewey tem especial relevância por promover a inédita associação entre os conceitos de educação, comunicação e arte. Na proposta educacional deweyana, as palavras, embora imprescindíveis ao ensino, devem ser estreitamente vinculadas aos interesses do educando e apresentar problemas significativos cuja solução o habilite a enfrentar novas situações problemáticas; caso contrário, o discurso do professor dará ensejo à mera reprodução dos conteúdos comunicados (Cunha, 2005).

Este artigo tem por objetivo oferecer contribuições de natureza teórica e prática à educação, abordando o ensino de conteúdos escolares como uma dificuldade situada no âmbito da comunicação. A primeira seção do texto desenvolverá esse tema focalizando os aspectos estritamente teóricos concernentes ao problema em pauta, utilizando, para tanto, as concepções de John Dewey acerca de linguagem e comunicação.

Reconhecendo que esse desenvolvimento não esgota as necessidades da sala de aula, espaço em que a teorização, embora imprescindível, requer direcionamentos práticos, a segunda seção do artigo discorrerá sobre as noções de drama e experimento de pensamento, propostas como métodos para o ensino. A terceira seção descreverá uma aula conduzida por essa estratégia didática, dedicada a ensinar certos componentes da teoria deweyana. Trata-se de uma simulação que emprega recursos dramáticos com o intuito de dar vida aos conteúdos veiculados. As conclusões do artigo discutirão a validade dessa abordagem metodológica para instituir valores essenciais ao trabalho docente.

O poder da imaginação

A frase “toda comunicação é semelhante à arte”, escrita por Dewey (1959b, p. 6) em Democracia e educação, é interpretada por Cunha (2005) no contexto da retórica, significando que a educação, entendida como trabalho dedicado a comunicar, requer uma concepção de linguagem que possua os mesmos atributos da arte de argumentar persuasivamente. Dewey jamais elaborou cabalmente uma teoria da linguagem, mas Puolakka (2017) entende que seus traços essenciais podem ser encontrados na noção deweyana de conversação, a qual integra a sua teoria estética - esta, sim, bastante articulada em Arte como experiência (Dewey, 2010).

Conversação é “uma das formas mais fundamentais de interação humana”, sendo “um bom exemplo de uma situação experiencial que pode formar um todo integral com início e fim claramente distinguíveis” (Puolakka, 2017, tradução nossa). A arte de conversar é uma experiência estética, expressão que na teoria deweyana designa atividades que possuem um começo bem definido e alcançam certa consumação, constituindo um movimento dotado de qualidades como ritmo, intensidade, resistência, tensão e equilíbrio, e resultam da interação do(s) sujeito(s) com os objetos sobre os quais alguma ação se desenvolve e com o ambiente em que transcorre o processo (Dewey, 2010).

Puolakka (2017) sugere que a concepção deweyana de conversação - que é, em última instância, uma concepção sobre a linguagem como instrumento de comunicação - pode ser elucidada por intermédio da teoria da linguagem formulada por Donald Davidson, cujo núcleo reside na convergência entre as disposições de quem fala e as disposições de seu interlocutor.1 A relação entre esses dois agentes obtém sucesso quando há o reconhecimento mútuo de suas respectivas capacidades linguísticas, as quais decorrem das características pessoais e sociais de cada um. Esse processo transcorre em um cenário de dupla interpretação, uma vez que os envolvidos apenas supõem o que sejam as disposições alheias.

Quando a conversa segue rumos indesejados, faz-se necessário um exercício de reinterpretação, fenômeno que posiciona a criatividade no centro da teoria linguística de Davidson, pois, como explica Puolakka (2017), as regras formais da linguagem são incapazes de explicar a função das palavras quando o conhecimento que cada um supunha ter sobre as disposições do outro torna-se insuficiente para assegurar a consumação do intercâmbio. Nos termos de Davidson citados por Puolakka (2017, tradução nossa), o conhecimento mútuo inicial não é mais do que uma “teoria passageira”, provisória, porque não assegura o almejado sucesso, o que torna a criatividade fator decisivo para esse fim. Os interlocutores, então, precisam de “inteligência, sorte e sabedoria” e, certamente, boa dose de “empatia e imaginação”.

O recurso à imaginação consolida a proximidade entre a teoria davidsoniana da linguagem e as concepções estéticas deweyanas. Para Dewey (2010, p. 469), “a experiência estética é imaginativa”. Ao operar imaginativamente, a experiência se transforma em “expressão”, tornando-se estética por ser “compartilhada, comunicada, própria da vida associada” (Alexander, 1998, p. 4, tradução nossa). Imaginar corresponde à capacidade de perceber e sentir o objeto em sua totalidade, permitindo que os interlocutores modulem o ritmo, equilibrem as expectativas, as tensões e as estratégias de comunicação e encontrem o momento certo para proferir a frase adequada à situação. Tais operações visam consumar a conversação, oferecendo a plena satisfação dos anseios de quem dela participa, o prazer inigualável que só o compartilhamento entre mentes imaginativas pode propiciar.

Compartilhamento e prazer podem ser experimentados mesmo quando a conversa ocorre em situação de amargura e desalento, como retrata Chico Buarque na canção Amigo é pra essas coisas. Dois homens que não se veem há tempos trocam impressões sobre a vida em uma mesa de bar: o abandono da mulher amada, o desemprego, o sofrimento, os dilemas cotidianos, o desejo de morrer. Nada impede que a interação seja consumada satisfatoriamente, pois o que conta, em última instância, é a disposição para ouvir o outro. Mas a conversação como experiência estética não se efetiva em qualquer circunstância, como se nota em Sinal fechado, de Paulinho da Viola, que canta o diálogo entrecortado de duas pessoas no trânsito agitado da cidade, cada qual em seu carro em movimento. A conversa não flui, a memória falha e na poeira da rua fica apenas a vaga promessa de um encontro genuíno.

O ambiente escolar pode ser organizado de modo a oferecer circunstâncias propícias à imaginação, dando ensejo à consecução da proposta deweyana de tornar a educação um processo destinado a desenvolver o pensamento reflexivo. Para Dewey (1959a, 1959b), a imaginação é decisiva em todas as etapas da reflexão, cujo ponto de partida é uma situação problemática, incerta e obscura, mas relevante para o aprendiz, para a qual se busca solução. A disposição para imaginar se faz presente na reunião de dados relativos ao problema e em seu confronto com o raciocínio, bem como na deliberação acerca de sua pertinência para a articulação de hipóteses. É também a imaginação que sustenta o juízo formado após o teste das hipóteses, do que resulta a atribuição de significados ao problema, o que se pode chamar de conhecimento.

A imaginação é a única via pela qual os significados das experiências anteriores podem ser atualizados por meio do ajuste consciente entre o que já se sabe e o que é apreendido no decorrer do processo reflexivo. Para Dewey (2010, p. 469), o mundo é repleto de interações das criaturas vivas com o ambiente, porém a:

experiência vivenciada só é humana e consciente na medida em que as ocorrências de um momento específico são ampliadas por sentidos e valores extraídos do que não se apresenta na realidade, apenas na imaginação.

A imaginação é também um dos componentes fundamentais da noção deweyana de democracia, em cuja base se situa igualmente a disposição para conversar. Dewey (2010) explica que as palavras, quando comunicadas, formam um registro de algo que aconteceu e, quando requisitadas, fornecem orientações e comandos para ações futuras específicas; a capacidade imaginativa da linguagem tem o singular potencial de abrir as possibilidades que se entrelaçam na textura do real. Segundo Puolakka (2017, tradução nossa), a experiência de comunhão entre cidadãos, tal qual proposto por Dewey, é alcançada graças “à comunicação e ao modo como as pessoas em geral interagem umas com as outras”. A ideia de compartilhamento assume posição ímpar na discussão política e educacional feita por Dewey (1959b), pois a reflexão que se compartilha com outras pessoas modifica substancialmente a natureza da experiência; todo o esforço se desloca para a necessidade de converter os significados em linguagem acessível às disposições alheias.

O compartilhamento inerente à arte de conversar é parte essencial da breve - porém, densa - conceituação deweyana do modo de vida democrático: “uma democracia é mais do que uma forma de governo; é, primacialmente, uma forma de vida associada, de experiência conjunta e mutuamente comunicada” (Dewey, 1959b, p. 93). A ênfase em mutuamente comunicada evidencia o valor da conversação nessa teoria política. Ao entender o poder da comunicação na construção de um modo de vida democrático, podemos ajudar os outros a criar um mundo melhor por intermédio do cultivo dessa arte (Crick, 2004).

Ao discorrer sobre a experiência na democracia adjetivada como criativa, Dewey (2003b, p. 230, tradução nossa) ressalta que a:

única base sólida para a comunicação e o compartilhamento [é a] interação livre de seres humanos individuais com as condições circundantes, especialmente o ambiente humano, que desenvolve e satisfaz a necessidade e o desejo e aumenta o conhecimento das coisas como elas são.

Nesse modo de vida, a necessidade e o desejo ultrapassam os limites do existente, avançando para “além do conhecimento, além da ciência”, e abrindo caminho para “o futuro inexplorado e não alcançado”. A democracia requer constante “esforço inventivo e atividade criativa”, pois não é um sistema que se autoperpetue por meio de uma máquina solucionadora de problemas (Dewey, 2003b, p. 226, tradução nossa).

O exercício da comunicação imaginativa em prol da democracia, em especial quando se assume a educação como experiência estética, é tarefa de “dimensões heroicas”, afirma Dewey (2003a, p. 199, tradução nossa): é preciso ter:

a coragem de uma imaginação inspirada” para atuar em “uma sociedade construída sobre uma indústria ainda não humanizada”, dilacerada por extremismos, em que o poder econômico se impõe “em nome de uma cultura democrática.

O domínio das ferramentas próprias da racionalidade cartesiana, a erudição acadêmica e a facilidade para escrever não suprem os requisitos para a efetivação de ações transformadoras; obstáculos concretos são impostos pelo ambiente dualista em que vivemos, no qual é fácil deixar nossas promessas ao sabor da poeira da rua enquanto alimentamos a vaga esperança de um encontro genuíno com nossos pares.

Uma vez elucidada por Davidson, a concepção deweyana de linguagem identifica-se com a retórica, ratificando a interpretação que situa no âmbito da Sofística a frase “toda comunicação é semelhante à arte”. Crick (2010) considera Dewey o mais destacado expoente contemporâneo da tradição retórica, da qual descende uma proposta educacional denominada pedagogia retórica. Divergente da imagem que se tornou dominante desde os escritos platônicos, essa caracterização postula que os sofistas foram pensadores comprometidos com a construção da democracia, professores cujos ensinamentos eram destinados a formar o homem como indivíduo e cidadão dedicado à arte da comunicação e do compartilhamento (Poulakos, 1995; Crick, 2004; Silva, 2018).

Definida por Aristóteles (1998) como correlata à dialética, a retórica é mais do que uma arte voltada à persuasão; seu propósito consiste em “provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento”, como destacam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 4, grifo dos autores). O empenho de persuadir envolve lidar com o raciocínio e, simultaneamente, com as paixões, como também esclarece Aristóteles (1998). Em Dewey, a conversação - experiência estética regida pelo espírito democrático - reúne todos esses atributos, sendo efetivada pela existência de disposições comuns ao orador e sua audiência, ambos em busca de consumar favoravelmente a interação, em respeito a princípios éticos e em sintonia com objetivos políticos.

Johnstone (1983, p. 198, tradução nossa) destaca que, em Dewey, o ideal de comunicação é sustentado por uma “forma poética de retórica” em que a eloquência alimenta uma “visão da individualidade” dirigida ao desenvolvimento individual, ao mesmo tempo que sugere caminhos para a vida associada. A retórica permite entender por que Dewey (1927, p. 184, tradução nossa), em The public and its problems, afirma que a democracia “terá sua consumação quando a investigação social livre for indissoluvelmente vinculada à arte da comunicação plena” capaz de comover e orientar toda uma coletividade.

A imaginação como experimento

Nada se sabe com precisão sobre os métodos de ensino utilizados pelos sofistas, razão pela qual a investigação desse tema conta unicamente com os poucos fragmentos e obras a eles atribuídos. É impossível saber, por exemplo, por que Górgias escreveu Elogio de Helena, mas o texto tem serventia pedagógica para quem deseje mostrar como é possível criar variados discursos a respeito de um mesmo evento, real ou imaginário. O mestre sofista solicita que seus alunos abandonem a narrativa tradicional registrada por Homero, que culpa Helena por ter causado a guerra de Troia ao fugir com Páris, e argumentem em prol de sua inocência.

Esse exercício de imaginação criativa pode resultar no aprendizado de como é poderosa a palavra, pois um dos argumentos gorgianos sugere que a rainha espartana foi enganada pelo lógos, “soberano que com um corpo diminuto e quase imperceptível” (Górgias, 1993, p. 1) é capaz de produzir a alegria e intensificar as paixões (DK 82B 11, 8).2 O Elogio pode ensinar também que as opiniões têm caráter situacional, podendo ser abaladas pelo tempo, pois, se fôssemos senhores do tempo, os discursos não precisariam ser feitos e refeitos seguidas vezes. E ensinar, ainda, que não precisamos dispensar as narrativas tradicionais; Homero continua sendo uma fonte confiável de “fatos”, mas o teor dos juízos que emite pode ser questionado.3

Não sabemos se Górgias escreveu Elogio de Helena com esse olhar pedagógico, mas, se assim o fez, visava ensinar técnicas de argumentação e valores de inegável utilidade no contexto da nascente democracia grega, incentivando a disposição para imaginar e comunicar novos mundos. Sobre o tratado de autoria indefinida intitulado Dissoì lógoi, atribuído a um ou mais sofistas, há interpretações mais seguras acerca de seu propósito didático. Prezotto (2009, p. 59) destaca as propriedades educativas do texto, certamente vinculado a um “ambiente de disputas intelectuais”; suas “potencialidades instrutivas” estimulavam a reflexão e orientavam a prática sofística, apresentando farto material sobre como conduzir um raciocínio, construir falácias, distinguir ambiguidades, atacar e defender posicionamentos éticos etc.

Seja ao propor a reinvenção da narrativa historiográfica, seja ao colocar o estudante no interior de uma disputa fictícia de argumentos, o traço comum a essas duas produções sofísticas é a criação de situações propícias ao exercício da imaginação e, por seu intermédio, comunicar noções teóricas e ensinar habilidades úteis à vida em sociedade. Em ambos os casos, solicita-se que o aprendiz imagine estar diante de uma situação problemática que requer solução. “Imagine que você tenha que inocentar Helena. Como argumentaria?” - diria Górgias. “Imagine que você tenha diante de si o argumento tal. Como poderia refutá-lo?” - proporia o Dissoì lógoi.

Como vimos na primeira seção deste artigo, a proposta metodológica de Dewey (1959a, 1959b) sugere que a educação ensine a pensar reflexivamente, ou seja, que o aluno, perante uma situação problemática inscrita em seu campo de interesses, investigue, raciocine, elabore e teste hipóteses. Em última instância, trata-se de possibilitar que o aprendiz tome posse de um significado que não lhe pertence até então. Em Como pensamos, Dewey (1959a, p. 142) exemplifica: levado a uma região desconhecida, um cientista encontra inúmeros objetos cujo significado desconhece, assim como ocorre com o nativo ao ser transportado a uma área urbana; o que lhes permitirá ampliar o rol dos significados que dominam será o ajuste de suas perplexidades ao que lhes é familiar - esse é o “movimento em espiral do conhecimento”.

O recurso ao empenho imaginativo de associar o conhecido ao desconhecido é evidente na proposta educacional deweyana. A provocação feita por Dewey pode ser assim formulada: “Imagine que você tenha que explicar ao nativo o que é um telefone. Como faria?” - e algo semelhante seria perguntado ao nativo diante do cientista desejoso de significar os objetos cotidianos da nova localidade. Na escolha dos estímulos a serem utilizados nessa transposição de significados, Dewey alerta:

[...] há educadores que acreditam estar a criança reagindo a uma grande verdade moral ou espiritual, quando o fato é que as suas reações são, quase sempre, físicas e sensoriais. As crianças são muito capazes de simulação dramática: sua atitude pode fazer crer (ao adulto dominado por uma teoria filosófica) que lhes causou impressão uma lição de cavalheirismo, devoção ou nobreza, quando a verdade é que apenas sentiram excitações físicas fugidias. (Dewey, 1959a, p. 212-213).

Dewey dedica essas reflexões a professores que trabalham com crianças, o que justifica a sua ênfase no sensorial e na dramatização, mas o seu alerta pode ser igualmente proveitoso a quem trabalhe com adultos, como era o caso dos sofistas e como é também a situação de quem atua na formação de professores. Em Emílio, Rousseau (1999) convida o leitor - porventura um aprendiz de professor - a imaginar o ambiente em que um menino é educado por meio de uma pedagogia tão inovadora que requer uma simulação dramática para ser entendida. Certo dia, o aprendiz tem uma lição de Geografia que começa assim:

Uma bela tarde vamos passear num lugar favorável, onde o horizonte bem descoberto deixa ver por inteiro o sol poente, e observamos os objetos que tornam reconhecível o lugar onde se põe. No dia seguinte, para respirar ar fresco, voltamos ao mesmo lugar antes que o sol se levante. Vemo-lo anunciar-se de longe pelos raios de fogo que lança à sua frente. O incêndio aumenta, o oriente parece todo em chamas; por seu fulgor esperamos o astro bastante tempo antes que ele se mostre; a cada instante acreditamos vê-lo aparecer; vemo-lo, finalmente. [...] É meia hora de encantamento a que nenhum homem resiste; um espetáculo tão grande, tão bonito, tão delicioso não deixa ninguém indiferente. (Rousseau, 1999, p. 206-207).

Colocar-se no interior de cenário tão grandioso é condição para que o leitor de Emílio acompanhe em pensamento os contornos práticos da lição proposta, cujo objetivo é ensinar o movimento do sol entre o raiar do dia e o poente. Como diria Dewey, não basta a revelação de uma verdade moral abstrata para que tais contornos sejam claramente visualizados e o vocabulário daquela pedagogia, devidamente significado. “Como devo ensinar a minha proposta pedagógica a um professor? Devo apenas comunicar meus pressupostos teóricos ou devo sugerir que ele se posicione imaginariamente dentro de uma situação?” - eis as indagações que Rousseau pode ter feito a si mesmo.

Dewey não é tão generoso quanto Rousseau no oferecimento de orientações práticas, mas nos incita a inventar estratégias de ensino tomando como ponto de partida o que é comum a todos os casos aqui mencionados, dos sofistas à filosofia educacional deweyana: o uso da imaginação como experimento, mais precisamente, um experimento dramático. Derivada do grego, a palavra drama significa ação, sendo aqui utilizada sem a conotação técnica originária de Aristóteles (2011) e discutida em tratados especializados, mas com o sentido genérico que se encontra na filosofia deweyana, como encenação ou simulação regida pelo pensamento, capaz de despertar ou criar disposições cognitivas e emocionais.

A criação de disposições cognitivas e emocionais em outra pessoa, tendo por base a nossa própria experiência, é condizente com a tese deweyana de que nossas experiências nunca são totalmente particulares e finitas, mas fenômenos eminentemente sociais. Crick (2004) considera que, para sermos fiéis a Dewey, não deveríamos dizer “minha experiência”, como se fosse uma propriedade individual, pois sempre estamos envolvidos em relações de comunicação. Para comunicar nossa experiência a outrem, temos que imaginar a perspectiva alheia e formular uma linguagem compreensível situada no que Dewey denomina “amplo fundo de conhecimento social”, empregando a imaginação para alcançar os significados comuns que dão forma à experiência narrada. Em suma, trata-se de compartilhar certo entendimento do mundo.

A estratégia de ensino que propomos neste artigo consiste em produzir um experimento de pensamento, recurso que, segundo Elgin (2014, p. 222, tradução nossa), embora não se ocupe com a enunciação de “verdades sobre uma gama de fenômenos pode, não acidentalmente, fornecer acesso epistêmico a esses fenômenos”. Além de seu emprego óbvio na literatura de ficção, os experimentos de pensamento são úteis também na ciência, quando determinado fenômeno não pode ser produzido para demonstrar uma teoria, e igualmente na Filosofia, por razões semelhantes. Para discutir as teses de seus pares acerca da mente, Davidson (2001) criou a narrativa (“seria fictícia?” - provoca ele) do Homem dos Pântanos: um raio atinge uma árvore à beira de um pântano; Davidson, que estava a seu lado, é atingido também e a árvore se transforma em uma réplica de seu corpo, que sai por aí agindo como Davidson, sem que ninguém perceba a diferença.4

Elgin (2014, p. 231, tradução nossa) assim resume as características básicas de um experimento de pensamento: trata-se de um “exercício imaginativo” que requer a “suspensão da crença”, ou seja, a capacidade de admitir que “as condições imaginadas não são realizadas de fato e podem ser inconsistentes com as condições que sabemos que acontecem de fato”; requer também “uma suspensão da descrença, na medida em que nos pede para acolher cenários que sabemos que não acontecem e que não poderiam acontecer”; certos compromissos devem ser assumidos e outros, relaxados, para que se possa criar o cenário imaginado; inventa-se uma “estrutura narrativa, com começo, meio e fim”, sobre a qual podem incidir interpretações e reinterpretações a qualquer momento, na medida em que se alterem as suposições iniciais.

No que interessa à nossa proposta metodológica, vale destacar também, ainda seguindo as diretrizes de Elgin (2014, p. 226, tradução nossa), que experimentos de pensamento não são “experimentos reais, nem mesmo possíveis”; na qualidade de narrativas imaginárias, não respeitam “conexões conceituais, evidências, leis da natureza ou ditames do bom senso”. Sua exposição pode ser pública, envolvendo discussão e articulação coletiva, contendo representações verbais ou pictóricas de objetos existentes ou não, e o seu descompromisso com a realidade não prejudica a função para a qual se destinam. Em tais experimentos, a imaginação serve como “um laboratório da mente, um local em que hipóteses podem ser inventadas, elaboradas e testadas” (Elgin, 2014, p. 227, tradução nossa).

A invenção de criaturas

Um a um, os estudantes vão apresentando aos colegas e aos professores as suas criaturas feitas de massa de modelar em variadas cores.5 Quando é chegada a sua vez, Caroline diz:

Este é o Donald, não riam, é sim uma homenagem a Davidson. Como vocês podem ver, ele está bem vestido, terno e gravata, como um professor universitário, é meio carequinha, usa óculos, fuma cachimbo - estão vendo aqui em sua boca? A seu lado está o famoso pântano, que é essa superfície meio esverdeada, aqui. Do outro lado estão os destroços da árvore que foi atingida pelo raio. Claro que este não é o Donald de verdade, mas o Donald que surgiu depois que as moléculas do verdadeiro Donald foram reagrupadas.

Indagada sobre as aspirações de Donald do Pântano, Caroline responde que o maior desejo dele é ser como o Donald que não existe mais, mas ele sabe que isso vai ser bem difícil; no começo, tentará observar como as pessoas reagem, ver se elas percebem que ele não é o que aparenta ser, até que consiga aprender a agir como - ou mesmo ser - uma pessoa de verdade.

Os professores agradecem e dão continuidade às apresentações, chegando a André, que assim se manifesta:

Apresento a vocês a Minerva. Como vocês podem ver, ela é formada por peças de variadas máquinas. Ela mora no planeta Mecânical, onde os nativos têm a capacidade de consertar qualquer aparelho existente no universo. Ela é muito orientada em tudo o que faz, só usa o raciocínio lógico, mas é desprovida de emoções. Minerva foi enviada à Terra para ver se entende as relações humanas, especialmente as relacionadas aos sentimentos, a capacidade de sentir e expressar emoções.

Estamos em um curso destinado a ensinar certos conceitos fundamentais da filosofia educacional de John Dewey, os quais foram expostos nas seções anteriores deste trabalho e que os alunos já estudaram em teoria. Terminadas as apresentações das criaturas, os professores pedem que os alunos digam o que sentiram e o que fizeram ao receberem o convite para inventar um ou mais seres vivos com as massas de modelar.

A resposta de Caroline resume, em linhas gerais, a de André e dos demais alunos: ela conta que foi difícil, ficou indecisa, começou a mexer no material a esmo, até que surgiu uma forma meio humana, braços, uma cabeça e outras partes assemelhadas a uma figura humana. Foi então que ela se lembrou do Homem do Pântano, e tudo ficou mais fácil; suas mãos e suas ideias foram trabalhando em sintonia, seguindo um norte, mas foi preciso refazer várias vezes até chegar a uma aparência satisfatória. Como se sentiu ao terminar? Muito feliz, porque conseguiu dar uma forma, um sentido para aquelas massinhas. “O Donald do Pântano é uma criatura minha!” - exclama ela, exultante.

Os professores explicam que os alunos acabaram de realizar experiências estéticas. Diante de um problema, usaram o corpo e a mente para alcançar uma solução. Caroline tem formação em Filosofia; André é apaixonado por tudo o que diga respeito a máquinas; experiências e conhecimentos anteriores somados a ações corporais, intelecto e emoções atuando em conjunto no interior de um processo de reflexão que finalmente obteve a sua consumação: criaturas compostas por uma ideia e um esforço físico surgiram coloridas por um sentimento de realização pessoal. Esse processo, que evidencia o poder da imaginação, revela também o valor da comunicação, pois Caroline e André tiveram que encontrar recursos verbais, gestuais e pictóricos extraordinários para explicar as características e os desejos de seres imaginários cuja aparência não é autoexplicativa, por mais que seus criadores fossem talentosos no manuseio de massas de modelar.

O curso prossegue com o intuito de levar os criadores a estabelecerem laços afetivos e intelectuais com as suas respectivas criaturas, de maneira mais profunda e complexa do que foi possível até então, em busca de experimentar a essência do modo de vida democrático: o compartilhamento de objetivos em meio à diversidade. O que pode haver de comum entre Caroline e Donald do Pântano ou entre André e Minerva? Nada, muito pouco, talvez mais do que parece... Os dois estudantes, assim como os outros, assumem a responsabilidade pela construção de vínculos cooperativos com as suas criaturas. A jovem se diz motivada a ajudar o simulacro de Davidson a ser uma pessoa de verdade e o rapaz, a auxiliar Minerva em sua epopeia para entender os enigmáticos sentimentos humanos.

Caroline diz que acompanhará Donald à universidade, ao almoço com seus pares, às sessões de trabalho com seus orientandos e a todas as demais atividades que envolvam contato com pessoas e que tentará explicar a ele que ser humano não é somente recitar conteúdos escolares, debater assuntos acadêmicos etc. Ser humano é estabelecer relações de empatia, vínculos emocionais, é imaginar-se no lugar do outro, sentir e pensar como o outro pensa e sente. Caroline tem ciência da dificuldade dessa tarefa, pois o seu Donald não tem uma mente verdadeira, como tinha o Donald que se desintegrou, mas ela está disposta a tentar.

André afirma que vai atuar como o guia de Minerva na Terra; fará passeios com ela para mostrar eventos que marcam indelevelmente as pessoas e despertam fortes emoções, como o nascimento de uma criança, as primeiras palavras de um filho, a morte de um ente querido, a explosão de alegria que se tem ao obter uma conquista muito almejada, o primeiro beijo de um adolescente etc. André sabe que o desafio será enorme, pois não tem certeza se vínculos afetivos podem ser instituídos em “mecanicaleses” ou se vai conseguir, no máximo, levar Minerva a se aproximar intelectualmente desse tipo de processo mental. A resposta só virá quando a visitante for colocada em situações que envolvam sentimentos.

O próximo passo do curso exige igual disposição para imaginar criativamente, acrescentando agora a arte da conversação: fazer interagir a sua criatura com a criatura inventada pelo colega, de modo a construir um mundo em que se realizem as aspirações de ambas; e a dupla de alunos deverá dizer como chegar lá. Os alunos reclamam que será impossível, as criaturas são muito diferentes umas das outras, cada qual tem uma história, um objetivo etc. Os professores, então, pedem que eles se inspirem na canção Imagine, de John Lennon, na qual se fala de um mundo de paz e compartilhamento em que todos vivam harmonicamente. Trata-se de um mundo impossível? Lennon é um sonhador por pregar a esperança naquele mundo? Talvez a resposta seja sim, mas é precisamente esta a intenção do experimento de pensamento que agora se põe como desafio: sonhar, imaginar algo que pareça inalcançável e indicar meios para que o irrealizável se realize.

Sentindo-se desafiados, os alunos põem em prática a disposição para conversar e imaginar, visando ultrapassar os obstáculos inerentes à tarefa; a sala de aula é tomada por risos, gargalhadas, gesticulações e algumas falas em tom mais grave. Caroline e André concluem que Donald do Pântano e Minerva têm problemas semelhantes que podem ser enfrentados conjuntamente, pois ambos querem saber o que é ser humano, não sendo eles próprios humanos. O problema de Donald é maior, pois ele deseja tornar-se humano, ao passo que Minerva pretende apenas entender os humanos. “Mas será possível entender um ser sem viver como ele, sem sentir o que ele sente?” - reflete André. Ele e sua colega acreditam que não e, por isso, pretendem tornar humanas as duas criaturas, acompanhando-as em andanças pela Terra em busca de experiências capazes de realizar esse feito inédito.

O aluno Mateus pede a palavra para afirmar que a hipótese dos colegas está fadada ao fracasso, pois a resposta está dada de antemão: aquelas criaturas jamais serão humanas; no máximo, conseguirão apropriar-se intelectualmente do significado da palavra humanidade, o que realizará o desejo de Minerva, mas não o de Donald. Caroline e André retrucam dizendo que há uma hipótese a ser testada: ninguém é verdadeiramente humano por ter sido gerado por humanos; a humanidade não é uma qualidade inata, mas uma construção efetivada pela cultura, pelo convívio com os outros, no enfrentamento de variadas situações cotidianas. Aliás, há pessoas que são chamadas de humanas e pouco se parecem com o que entendemos por ser humano; desprezam o valor da preservação do planeta, não sentem compaixão diante do sofrimento alheio, não se importam com as desigualdades sociais, sustentam posicionamentos racistas e homofóbicos etc.

Mateus não se deixa convencer. Acredita que a mente é inata, um presente que Deus entregou somente a nós, algo que só os humanos legítimos têm e sabem utilizar com propriedade. Ele até aceita que Donald viva entre nós, mas prefere vê-lo retornar ao pântano e não sair mais de lá. Quanto à Minerva, seria mais proveitoso os colegas abandonarem o projeto de fazê-la entender os humanos, iniciativa arriscada que pode ter resultados imprevisíveis e danosos à humanidade. “A mecanicalesa poderia levar a vida consertando nossas máquinas defeituosas; ganharia um bom dinheiro e seria bastante útil a nós todos” - diz o rapaz.

As manifestações do rapaz geram controvérsia, muitos alunos argumentam em contrário, outros vão em sua defesa, alguns se exaltam... O debate parece não ter fim, até que os professores sugerem aos estudantes que reflitam sobre os rumos tomados pela conversa, pois o que se tem é a constituição de dois grupos, os “carolineandresianos” e os “mateusianos”, cada qual situado em um polo incompatível com o outro. “Temos dois dogmas que, por natureza, são inconciliáveis e, assim, não chegaremos nunca a um acordo!” - diz a aluna Sofia, obtendo a adesão dos demais. “A única saída - continua ela - está em concordarmos que precisamos testar a hipótese de Caroline e André; afinal, só saberemos se ela é verdadeira ao término da investigação.”

Considerações finais

Este artigo propôs ao leitor um experimento de pensamento. O experimento sugerido consistiu em imaginar um curso destinado a ensinar certas noções da filosofia educacional de John Dewey a estudantes que foram convidados a efetuar experimentos utilizando a imaginação, a dramatização e a comunicação para dar vida a tais noções. O curso teve o propósito de transmitir conhecimentos teóricos e criar disposições emocionais para os alunos atuarem futuramente como professores, sentindo-se capazes de criar inovações didáticas, confiando na capacidade de seus educandos.

Conhecimentos teóricos podem ser ensinados, bem ou mal, por meio de variados recursos instrucionais, uma aula expositiva ou mesmo um texto, como procuramos fazer nas duas seções iniciais deste artigo, correspondentes respectivamente às concepções de Dewey acerca da imaginação e à imaginação como experimento. Conforme registramos em nossa introdução, porém, esse método não esgota os desafios inerentes à formação docente, fazendo-se necessário recorrer a estratégias de ensino que viabilizem uma imagem mais viva daqueles conhecimentos. Aliada à teorização sobre o assunto em pauta, acreditamos que a participação dos alunos em experimentos de pensamento pode contribuir para esse fim, particularmente quanto à assimilação de valores essenciais à prática em sala de aula.

O cerne de nossa proposta, portanto, diz respeito a valores, restando discutir se, e em que medida, é possível operar sobre as instâncias valorativas do estudante quando não lidamos com a realidade, mas apenas com simulações dramáticas. O tema é evidentemente complexo, carecendo de imersão no debate entre os posicionamentos cognitivista e não cognitivista no campo dos valores. Nessa controvérsia, nossa proposição é favorecida por Cunha (2020), que, adotando uma abordagem pragmatista, defende ser viável o estabelecimento de valorações mesmo quando a experiência ultrapassa os limites do conhecimento, ou seja, na ausência de ocorrências fatuais que justifiquem e atribuam caráter de verdade a nossas reflexões.

Em se tratando de experiências que nos conduzem ao desconhecido por meio da imaginação, como foi proposto neste artigo, Murr (2020) destaca o potencial da arte, responsável por produzir uma sensação de estranhamento ante a realidade, uma vivência de desfamiliarização que nos incita a refletir sobre o que somos. A experiência estética propiciada pela literatura desautomatiza nossas concepções éticas e morais para que vejamos a vida com outros olhos. Ao analisar os famosos romances de ficção científica escritos por H. G. Wells, Murr (2020, p. 61-62) diz que:

Às vezes, é preciso imaginar que seja possível tornar-se invisível para estranhar o que é ser humano, o que é o corpo, o que é a matéria que compõe o universo ou mesmo o que são as leis que a ciência apresenta como verdadeiras. Outras vezes, é preciso imaginar possível a viagem no tempo, para que possamos refletir sobre o que significam realmente as instituições e os costumes que perpetuamos e a que ponto eles poderiam ser mudados; não são, na verdade, fixos, como éramos tão automaticamente levados a pensar.

Parafraseando Murr, podemos concluir que às vezes é preciso imaginar a existência de uma criatura como o Donald do Pântano para que nos vejamos como seres humanos; é preciso criar imaginativamente um espaço de convivência desse Donald com Minerva, de ambos com seus criadores e deles todos conosco, para entendermos o significado de palavras que utilizamos tão frequente e automaticamente, como cooperação e empatia.

As condições concretas da docência irão certamente impor limites ao poder imaginativo dos alunos do curso descrito neste artigo, mas acreditamos que seus professores tenham realizado - pelo menos tentaram realizar - o objetivo de oferecer a eles um espaço de convivência propício não só à veiculação de conhecimentos teóricos, mas principalmente à experiência de ver o mundo com outros olhos.

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1 Puolakka extrai essa teoria dos seguintes trabalhos de Davidson: Subjective, objective, intersubjective. Oxford: Clarendon, 2001; James Joyce and Humpty Dumpty, In: Davidson, D. Truth, language, and history. Oxford: Clarendon, 2005; A nice derangement of epitaphs, In: Davidson, D. Truth, language, and history. Oxford: Clarendon, 2005; Aristotle’s action. In: Davidson, D. Truth, language, and history. Oxford: Clarendon, 2005.

2O texto de Górgias é referenciado em consonância com a padronização de Diels e Kranz, seguindo a edição portuguesa (Górgias, 1993).

3As aspas em fatos são devidas, evidentemente, ao teor mítico das narrativas homéricas, as quais, no entanto, eram tidas pelos gregos como historicamente verídicas.

4O mesmo propósito motivou Rorty (1994) a inventar os antipodianos, habitantes de uma galáxia próxima à nossa, muito parecidos conosco, que não sabiam que eram dotados de mente.

5Adotaremos o genérico gramatical masculino somente com o propósito de economizar caracteres e dar fluidez à leitura, sem qualquer conotação sexista.

Recebido: 27 de Outubro de 2020; Aceito: 07 de Junho de 2021

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