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Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versão impressa ISSN 0034-7183versão On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.102 no.262 Brasília set./dez. 2021

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.102i262.4177 

ESTUDOS

A constituição da identidade docente e suas implicações nas práticas educativas de professores de uma universidade comunitária

The constitution of teacher identity and its implications on the educational practices from teachers of a community university

La constitución de la identidad docente y sus implicaciones en las prácticas educativas de los profesores de una universidad comunitaria

Rose Aparecida Colognese RechI  II 
http://orcid.org/0000-0001-8595-9402

Eva Teresinha de Oliveira BoffIII  IV 
http://orcid.org/0000-0002-7266-9630

IUniversidade de Cruz Alta (Unicruz). Cruz Alta, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: <rrech@unicruz.edu.br>

IIDoutora em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil.

IIIUniversidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: <evaboff@unijui.edu.br>

IVDoutora em Educação em Ciências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.


Resumo:

A identidade é um processo que emerge da percepção que temos sobre nós mesmos como sujeitos históricos, construída de acordo com o contexto, as vivências e as relações que cada pessoa estabelece com os outros e com o mundo. Este texto objetiva identificar e analisar os fatores que influenciaram na constituição da identidade docente e as suas implicações nas práticas educativas de um grupo de professores do ensino superior de uma universidade comunitária. A pesquisa seguiu uma abordagem qualitativa, de caráter descritivo, por meio de uma entrevista semiestruturada. Os professores foram questionados de forma que pudessem rememorar sua trajetória de vida pessoal e profissional. Para esta investigação, encontramos aportes teóricos nos estudos acerca da temática “identidade profissional” na obra de Dubar (2005) e sobre a formação do professor do ensino superior em Pimenta e Anastasiou (2014), entre outros autores. A análise dos dados foi fundamentada na Análise Textual Discursiva de Moraes e Galiazzi (2016), que propõe três momentos: desmontagem dos textos, estabelecimento das relações e captação do novo emergente. De acordo com as afirmações dos professores, analisadas à luz do referencial teórico, consideramos que o professor tem seu ingresso na docência do ensino superior pelo perfil investigativo, tornando sua iniciação repleta de insegurança pela falta de conhecimentos específicos da docência. Esse profissional vai constituindo-se e identificando-se com a profissão no decorrer da trajetória docente pelos saberes práticos, resultantes das interações humanas estabelecidas no cotidiano acadêmico. Tais saberes necessitam ser refletidos criticamente segundo os referenciais do campo da educação. Por isso, são necessários, no âmbito da instituição, processos de profissionalização continuados que possibilitem que os saberes da prática sejam problematizados e reconstruídos pelos professores, tanto individual como coletivamente.

Palavras-chave: ensino superior; formação de professores; identidade profissional

Abstract:

Identity is a process that emerges from the perception we have about ourselves as historical subjects, built according to the context, experiences and relationships that each person establishes with others and with the world. This text aims to identify and analyze the factors that influenced the constitution of the teaching identity and its implications on the educational practices of a group of higher education teachers of a community university. The research followed a qualitative, descriptive approach, through a semi-structured interview. The teachers were questioned in a way that they could recall their personal and professional life trajectory. For this investigation, we found theoretical contributions in studies on the theme of professional identity in the works of Dubar (2005) and higher education teacher training in Pimenta and Anastasiou (2014), among other authors who contribute to the research theme. Data analysis was based on the Textual Discursive Analysis of Moraes and Galiazzi (2016), which proposes three stages: dismantling the texts, establishing relationships and capturing the new emerging. According to the teachers' statements, analyzed in the light of the theoretical framework, we consider that the teacher has their/an entry to higher education teaching by the investigative profile, making their initiation full of insecurity due to the lack of specific knowledge of teaching. The professional is constituted and identified with the occupation along the teaching path by practical knowledge, resulting from human interactions established in the academic daily life. Such knowledge needs to be critically reflected according to the references of the field of education. Therefore, within the institution, continued professionalization processes are necessary, which enable the knowledge of practice to be problematized and reconstructed by teachers, both individually and collectively.

Keywords: identity; higher education; teacher education

Resumen:

La identidad es un proceso que surge de la percepción que tenemos de nosotros mismos como sujetos históricos, construida según el contexto, las vivencias y las relaciones que cada persona establece con los demás y con el mundo. Este texto tiene como objetivo identificar y analizar los factores que influyeron en la constitución de la identidad docente y sus implicaciones en las prácticas educativas de un grupo de profesores de educación superior en una universidad comunitaria. La investigación siguió un enfoque cualitativo y descriptivo, por medio de una entrevista semiestructurada. Se interrogó a los docentes para que recordaran su trayectoria de vida personal y profesional. Para esta investigación, encontramos aportes teóricos en los estudios sobre el tema “identidad profesional” en el trabajo de Dubar (2005) y sobre la formación de profesores de educación superior en Pimenta y Anastasiou (2014), entre otros autores. El análisis de datos se basó en el Análisis Textual Discursivo de Moraes y Galiazzi (2016), que propone tres etapas: desmantelar los textos, establecer relaciones y captar lo nuevo emergente. De acuerdo a las declaraciones de los profesores, analizadas a la luz del marco teórico, consideramos que el ingreso del profesor a la docencia de la educación superior se debe al perfil investigativo, haciendo que su iniciación esté cargada de inseguridad por la falta de conocimientos docentes específicos. Este profesional se construye y se identifica con la profesión a lo largo de la trayectoria docente por medio de conocimientos prácticos, resultado de las interacciones humanas establecidas en la rutina académica. Este conocimiento debe reflejarse críticamente, de acuerdo con las referencias, en el campo de la educación. Por tanto, es necesario, en el ámbito de la institución, procesos de profesionalización continuos que permitan problematizar y reconstruir el conocimiento de la práctica por parte de los docentes, tanto individual como colectivamente.

Palabras clave: educación superior; formación de profesores; identidad profesional

Introdução

Havia uma menina que refletia em seu espelho a sua face e de outras pessoas também. Como uma colcha de retalhos, era o seu reflexo. Cada pedaço de pano representava um rosto, com todas as suas histórias e fantasias. Colcha esta, que nunca estava pronta, por mais que gastasse dias a bordá-la... Michele Mendes Maranhão Queiroz

Assim como uma colcha de retalhos sempre inacabada, construímo-nos e nos reconstruímos. A constituição da identidade emerge da percepção que temos sobre nós mesmos como sujeitos históricos, de acordo com o contexto, as vivências e as relações que cada pessoa estabelece com os outros e com o mundo.

Na docência, de acordo com Pimenta e Anastasiou (2014, p. 77), a identidade se constrói:

[...] pelo significado que cada professor, enquanto ator e autor, confere à atividade docente no seu cotidiano, com base em seus valores, em seu modo de situar-se no mundo, em sua história de vida, em suas representações, em seus saberes, em suas angústias e anseios, no sentido que tem em sua vida o ser professor.

No ensino superior, entretanto, esse processo identitário do professor possui alguns elementos que o diferencia dos docentes de outros níveis de ensino. A principal diferença é relativa à formação profissional: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) estabelece que ela se constitua em nível de pós-graduação (Brasil, 1996). No ensino superior, os requisitos se distinguem da educação básica pela especificidade da formação docente. Enquanto na educação básica o professor precisa ser formado em curso de licenciatura na área de atuação, no ensino superior, a lei estabelece que o professor deverá possuir diploma de curso de pós-graduação stricto sensu em nível de mestrado e/ou doutorado para exercer a sua profissão.

Os cursos desse nível, entretanto, possuem um viés fortemente focado na pesquisa e não garantem a formação pedagógica e humana necessária para o exercício de uma atividade extremamente complexa que é a docência. Assim, o ingresso nas instituições de ensino superior é privilegiado pela pesquisa e não pela formação para a docência propriamente. Esse professor vai para a sala de aula com o domínio dos conteúdos específicos da sua área e desempenha seu papel com base no que vivenciou até o momento como aluno, ou seja, utiliza a imitação fundamentada nas experiências que teve com os professores que passaram pela sua trajetória formativa. Nessa sistemática, a formação inicial está voltada para os conhecimentos científicos e para a pesquisa, uma vez que os currículos dos cursos stricto sensu, na atualidade, estão direcionados para a formação do pesquisador. Nesse sentido, Pimenta e Anastasiou (2014, p. 190) concluem que “ser um reconhecido pesquisador, produzindo acréscimos significativos aos quadros teóricos existentes, não é garantia da excelência no desenvolvimento pedagógico”.

Ser um exímio pesquisador não basta para garantir a aprendizagem dos estudantes, pois a docência requer também conhecimentos voltados para a construção do fazer pedagógico. Para Pimenta e Anastasiou (2014, p. 15):

[...] ser professor requer saberes e conhecimentos científicos, pedagógicos, educacionais, sensibilidade da experiência, indagação teórica e criatividade para fazer frente às situações únicas, ambíguas, incertas, conflitivas, e, por vezes violentas, das situações de ensino.

Nesse contexto, a questão que buscamos responder é: como o professor do ensino superior, que não possui na sua formação inicial fundamentos acerca da docência, constrói a sua identidade profissional?

Objetivamos, com este trabalho, identificar e analisar os fatores que influenciaram na constituição da identidade docente e as suas implicações nas práticas educativas de um grupo de professores do ensino superior de uma universidade comunitária.

Em resposta à questão da pesquisa, apresentamos, na parte introdutória, a problemática investigativa e os seus objetivos. Na sequência, expomos os caminhos metodológicos que foram percorridos para alcançar os objetivos propostos. Posteriormente, analisamos os motivos que levaram os professores entrevistados à docência do ensino superior, bem como as suas trajetórias e as mudanças que ocorreram nas suas práticas educativas. Discutimos a constituição da identidade docente e a prática educativa e, nas considerações finais, sintetizamos os elementos constantes desta pesquisa.

Caminhos metodológicos

A pesquisa seguiu uma abordagem qualitativa, pois atende as características elencadas por Bogdan e Biklen (1994): o investigador teve papel essencial e os dados foram coletados no contexto por meio do contato direto com os investigados; a investigação foi descritiva, sendo os dados transcritos e analisados de forma minuciosa, respeitando todos os detalhes; a ênfase da pesquisa se deu no processo, focando o modo como as definições se formaram; a análise dos dados ocorreu de maneira indutiva, pois as abstrações foram construídas à medida que os dados foram agrupando-se e sendo analisados; e o significado que os entrevistados atribuíram aos fenômenos foi aprofundado.

Para alcançar o objetivo, por meio de uma entrevista semiestruturada, questionamos os professores de forma que pudessem rememorar suas histórias de vida pessoal e profissional. As questões foram pautadas nos seguintes aspectos: os motivos que os levaram à docência no ensino superior; a sua trajetória formativa; e as transformações que ocorreram na sua prática educativa durante a trajetória docente. Conforme Mouriño-Mosquera (1975, p. 95-96), o professor:

[...] tem um passado histórico que se mede, não apenas num relato subjetivo, mas, e principalmente, nas experiências realizadas e nas ações que conseguiu desencadear através de comportamentos sucessivos. A história do indivíduo parece fundamental para entender o significado de sua profissão.

Além do sentido atribuído à profissão, a história de vida pode auxiliar na compreensão das ações docentes. Para Freitas (2014, p. 25):

[...] o trabalho de rememorização realizado na história de vida por professores pode trazer-lhes pistas importantes sobre sua prática docente, fornecendo elementos para a compreensão de aspectos constitutivos de sua vida profissional.

A análise das entrevistas com os professores foi fundamentada na Análise Textual Discursiva de Moraes e Galiazzi (2016). De acordo com os autores, essa análise é um processo que passa por várias etapas, iniciando-se pela desconstrução dos textos e unitarização, momento em que os textos foram separados por unidades de significado, passando por um processo de estabelecimento de categorias, denominado “categorização”, constituindo os metatextos analíticos que compuseram os textos interpretativos. Esse processo constitui uma:

[...] ferramenta mediadora na produção de significados e por isso, em processos recursivos, a análise se desloca do empírico para a abstração teórica, que só pode ser alcançada se o pesquisador fizer um movimento intenso de interpretação e produção de argumentos. (Moraes; Galiazzi, 2006, p. 118).

Na instituição investigada, grande parte dos professores é composta de profissionais liberais que possuem formação específica na sua área, em cursos de pós-graduação stricto sensu, de acordo com o que prevê a legislação vigente: “a preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado” (Brasil, 1996, p. 27839). As pesquisas na área da formação no ensino superior, entretanto, apontam para a carência da formação pedagógica nesses cursos, uma vez que estão mais focados em qualificar o pesquisador, sem a preocupação de formação para o exercício da docência (Pimenta; Anastasiou, 2014).

Para alcançar os objetivos da pesquisa, foram definidos critérios de seleção dos participantes: cursos distintos quanto à área que lecionam na universidade, e professores de cursos que representassem as três grandes áreas do conhecimento (curso de Administração, representando a área de Ciências Exatas; Enfermagem, representando a área de Ciências Biológicas; e Pedagogia, as Ciências Humanas). Todos os professores dos três cursos foram convidados a participar do estudo, perfazendo um total de 30 - destes, 18 aceitaram colaborar com a pesquisa, 3 homens e 15 mulheres. As entrevistas foram realizadas no segundo semestre de 2018. As informações quanto à formação e ao tempo de atuação no ensino superior são apresentadas no Quadro 1.

Fonte: Elaboração própria

Quadro 1 Sujeitos da pesquisa - professores entrevistados 

Relativamente à formação pedagógica, apenas um professor disse não possuir cursos nesse campo, os demais relatam ter realizado, em algum momento de sua carreira, algum curso que considera essa formação, entre cursos de mestrado, especializações na área e formações continuadas oferecidas pela instituição em que atuam. Apenas os professores com cursos de licenciatura possuem formação pedagógica na sua formação inicial.

Esta pesquisa, por envolver seres humanos, foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)1 para garantir o cumprimento das exigências éticas e científicas, obtendo o parecer favorável ao seu desenvolvimento. Os preceitos éticos de sigilo e anonimato dos pesquisados foram resguardados por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Dessa forma, não tiveram seus nomes revelados e serão identificados ao longo do texto como P1, P2... P18.

Escolha da profissão: motivos que levaram à docência no ensino superior

A escolha pela profissão é um dos fatores determinantes na constituição da identidade docente. Essa decisão nem sempre é tomada de forma tranquila, pois ela é permeada por fatores que muitas vezes são conflitantes entre si, como a identificação pessoal, as influências familiares, a situação econômica, a oportunidade de empregabilidade e outros motivos que vão além da opção pessoal ou da predestinação à docência, principalmente no ensino superior que, na maioria dos casos, exceto nas áreas das licenciaturas, teve sua formação inicial voltada para uma área específica do conhecimento da profissão escolhida.

Ao abordar os motivos que levaram à docência no ensino superior, cabe um parêntese para a constituição pessoal agregando sentido às escolhas profissionais. Isaia (2000, p. 21) destaca que o professor “[...] é uma pessoa que se constrói nas relações que estabelece com os outros que lhe são significativos, com a história social que o permeia e com sua própria história”. Na mesma direção, Nóvoa (2007, p. 17) enfatiza que não é possível separar o pessoal do profissional: “aqui estamos nós. Nós e a profissão. E as opções que cada um de nós tem de se fazer como professor, as quais cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar”. A história de vida dos professores e os motivos que os levaram à docência parecem fundamentais para entender o significado da sua profissão e da sua prática educativa.

É comum identificar, na fala dos professores do ensino superior que já tiveram uma trajetória formativa em um campo diferente da docência, afirmações como: “Na minha carreira, eu não tinha esse sonho; eu nunca tinha pensado em entrar para a carreira docente” (P2), “eu não queria ser professora, eu queria atuar no centro de pesquisa, até por isso, a opção de fazer bacharelado” (P4), “não tinha tanta vontade assim, de dedicar parte da minha profissão para o ensino” (P4), “não foi algo que eu imaginei para mim” (P5), “primeiro descobri que eu não queria dar aula” (P13). Tais afirmações denotam uma não identificação a priori com a docência e aguçam ainda mais a investigação das razões que levaram esses profissionais às salas de aula de uma universidade.

Dentre os motivos elencados pelos professores entrevistados, podemos destacar os seguintes: o financeiro, o gosto pelos estudos, a pós-graduação, a pesquisa, a possibilidade de relacionar teoria com prática, a influência familiar, o compromisso com a mudança e a troca com os alunos. Ao analisarmos mais detalhadamente as respostas, agrupamos os motivos, e a grande maioria, além do financeiro e da influência familiar, possui um perfil investigativo, de busca constante pelo conhecimento.

Os professores que apontaram os motivos financeiros foram apenas dois. Eles são formados nas áreas da licenciatura e justificam alegando que no ensino superior os professores são mais valorizados financeiramente.

Eu sempre quis me dar bem na vida e eu sempre soube também que o professor o salário é bem complicado. O financeiro veio em primeiro lugar, e aí fez com que eu fizesse o mestrado e então tentasse o único concurso que eu fiz a nível superior, nunca mais eu fiz nenhum outro concurso. Sempre gostei muito de trabalhar aqui, me satisfiz financeiramente, emocionalmente, profissionalmente sou muito bem-sucedida, graças a Deus (P1).

O ensino fundamental e o ensino público, ele é gratificante enquanto retorno que se tem de pessoas, de crianças, de aluno, mas o lado financeiro é algo que pesa muito, principalmente na nossa região, a questão de concurso público estadual e de ensino superior, nem se compara a questão do salário (P8).

Os professores buscaram no ensino superior uma possibilidade de melhorar suas condições financeiras, pois já atuavam na docência em outros níveis e destacam sua realização profissional em continuar na docência, porém, com uma melhor valorização salarial.

Quanto à influência familiar, três entrevistados manifestaram que enveredaram pelo caminho da docência para acompanharem a trajetória de familiares que já atuavam na área.

Eu tenho mãe professora, tias professoras. Aquela coisa, desde a infância, a gente brincava de ser professora e ensinar as colegas e as vizinhas, então, fazia sempre isso (P12).

Meu irmão já era professor e ele sempre me instigava a participar de grupos de pesquisa, a parte de se envolver com os professores, participar em eventos para estar se atualizando (P15).

Na verdade, eu tenho influência familiar. Porque as minhas tias, todas, a minha mãe, ela tem cinco irmãs, as cinco irmãs são professoras (P18).

Ao analisarmos as falas, concordamos com Dubar (2005), quando afirma que a identidade é um processo que emerge da negociação entre aspectos biográficos e relacionais, que articula a história de vida do sujeito, de pertencimento e identificação com suas raízes, com a atribuição que o outro lhe confere, pois observamos que os motivos foram além da influência familiar:

E eu ia junto com a mãe, nas aulas dela. E daí eu comecei: quem sabe, então, eu quero ser professora, também, de Educação Física. E daí resolvi fazer Educação Física (P12).

Na universidade federal, eu tive outras oportunidades, o que me direcionou mais ainda ao gostar de estar lá ensinando, de estar ajudando colegas, foi a participação de projetos externos, tanto de pesquisa como de extensão. Então, isso voltou o desejo que eu finalizei a graduação já com foco, com objetivo de fazer o mestrado para a docência, que é o mestrado acadêmico (P15).

Mas na graduação, em relação à formação, eu tive muito envolvimento com a academia, sempre participei de projetos de pesquisa e extensão. Sempre fui muito envolvida, desde o primeiro semestre. E eu sabia, desde quando eu entrei na faculdade, que eu queria a docência, então, eu sempre procurei me qualificar em relação a isso, sempre fui monitora, sempre os projetos que eu estava envolvida, eles tinham algo de palestras ou sempre com o público (P18).

Na fala de P12, observamos que ela possuía influência familiar, porém, o que fez com que optasse por um curso de licenciatura em Educação Física foi a observação da prática de sua mãe. De acordo com Freitas (2014, p. 109), “a concretização da identidade do indivíduo se dá no seu tempo vivido, na articulação do que é e do que não é; das experiências passadas e presentes e do que imagina que será o futuro”.

Da mesma forma, P15 e P18, além de possuírem familiares docentes, manifestaram que o desejo pela profissão despertou no meio acadêmico, por intermédio de suas vivências com projetos com os quais se envolveram na universidade.

Os argumentos dessas professoras se aproximam da categoria “perfil investigativo”, que emergiu dos motivos que todos os demais pesquisados elencaram: o gosto pelos estudos, a pós-graduação, a pesquisa, a possibilidade de relacionar teoria com prática, o compromisso com a mudança e a troca com os alunos.

Os motivos elencados pelos professores evidenciam que pesquisa e prática na docência estão interligadas. De acordo com Boff e Del Pino (2018, p. 277):

[...] a pesquisa não está separada da prática, pelo contrário, ela é inerente ao trabalho docente. A pesquisa qualifica o ensino, desenvolve a autonomia docente e produz conhecimento sobre e na ação prática na sala de aula.

O gosto pelos estudos aproximou P2 da docência do ensino superior:

Eu sempre tive muito gosto por estudar, de forma bastante modesta e humilde, eu sempre fui bem e gostei de estudar, na minha vida. A vida foi me encaminhando para algumas coisas e nisso surgiu a possibilidade de eu fazer o mestrado, e aí eu agarrei isso e segui isso com toda força que eu tinha. E, depois, eu, realmente, me encontrei. Eu gosto muito, sou apaixonado pela área acadêmica (P2).

Aproximamos o comentário de P2 ao que preconiza Freire (1996) sobre o ensinar e a exigência da consciência do inacabamento. O ofício de professor requer uma atitude de permanente busca e reconstrução.

Do mesmo modo, a paixão pelos estudos e a formação stricto sensu foram os motivos apontados por P3 e P6:

Eu entrei, consegui ingressar no mestrado e pela minha colocação eu consegui a bolsa. E aí que eu tive esse contato com a docência, dentro do estágio, que foi obrigatório. E estudar, eu sempre gostei bastante de estudar (P3).

Como eu tenho objetivo de fazer doutorado e na minha análise, para fazer um doutorado conta muito você estar em sala de aula, então, isso também foi um dos fatores. Talvez, não para o começo preponderante, e agora nem tanto, porque o que que me leva a estar mais próximo da sala de aula? É o fato que eu sempre gostei de estudar. Na minha área, obviamente, e isso, eu vi que foi um diferencial para mim, muito grande, o fato de eu estar em sala de aula e exige que eu retome conceitualmente toda aquela minha formação bem técnica mesmo e aprofunde, e isso foi um ganho fundamental. Então, isso, somado a esses dois fatores, eu acho que é o que mais me impulsionou a seguir essa trajetória (P6).

Nos seus argumentos sobre a vinculação dos seus estudos de doutorado à prática docente, P6 sugere as contribuições de Zeichner (1998), que, por meio dos seus estudos, busca aproximar o mundo dos professores pesquisadores com o mundo dos professores acadêmicos. Para o autor, é necessário reconhecer o conhecimento da prática como passível de teorização, mediante a discussão, a análise e a pesquisa. Na mesma linha de pensamento, Tardif (2014, p. 239) defende que para os professores, sendo sujeitos do conhecimento, é necessário “[...] o esforço de se apropriarem da pesquisa e de aprenderem a reformular seus próprios discursos, perspectivas, interesses e necessidades individuais ou coletivas em linguagens suscetíveis de uma certa objetivação”. Dessa forma, os professores de profissão assumiriam um espaço nos dispositivos de pesquisa, assumindo-se como sujeitos produtores do conhecimento.

P5 e P13, além da experiência com o mestrado, trazem um elemento novo: a possibilidade que a docência promove de articular teoria e prática, posto que esses professores já tinham experiência prática nas suas áreas de formação:

Eu acabei me encontrando em muitas coisas e a ideia de juntar a teoria lá da sala de aula com a prática que durante todo esse tempo, eu tenho prática em empresas privadas, eu acho que a união dessas duas esferas é positiva (P5).

A caminhada e a experiência também do mestrado, por conta de estágios, e descobri todo esse mundo acadêmico, essa relação com os alunos, mas sempre ligada à questão da vivência prática. Isso foi muito impressionante na minha vida, assim, essa relação (P13).

Trazer a sua bagagem de experiência profissional e aproximá-la da docência parece ser um dos motivos que levaram esses professores a ingressarem na docência universitária. Essa experiência, porém, está ligada ao conteúdo da área de atuação profissional e não propriamente aos conhecimentos específicos da docência.

Esse perfil investigativo que constatamos com as falas dos professores está muito mais atrelado às características da pesquisa do que da docência. A pesquisa tem papel fundamental na universidade, dada a importância pela busca, ampliação e sistematização do conhecimento perante as demandas da humanidade. É, entretanto, apenas um dos pilares da universidade. A Constituição Federal estabelece o princípio da indissociabilidade entre ensino-pesquisa-extensão no âmbito da universidade (Brasil, 1988). A articulação desses três elementos é um dos desafios propostos para a universidade atualmente, que visa provocar mudanças significativas no processo de ensinar e aprender no meio acadêmico. Portanto, os motivos de ingresso na docência foram pelo viés da pesquisa, mas a sua atividade docente envolve a integração do ensino, da pesquisa e da extensão.

A pesquisa está presente na prática educativa do professor universitário. De acordo com Severino (2008), o processo de ensino-aprendizagem é sustentado por uma permanente atividade de construção do conhecimento, no qual a docência é praticada mediante uma postura investigativa. Para o autor, são dois os motivos pelos quais o professor necessita se envolver com a pesquisa: “primeiro, para acompanhar o desenvolvimento histórico do conhecimento, segundo, porque o conhecimento só se realiza como construção de objetos” (Severino, 2008, p. 14). Na mesma linha, o autor argumenta que não se trata de transformar as instituições de ensino superior em institutos de pesquisa, mas de ensinar pela mediação do pesquisar, “mediante procedimentos de construção do objeto que se quer ou que se necessita conhecer, sempre trabalhando a partir das fontes” (Severino, 2008, p. 22).

Na perspectiva de Severino (2008), assume-se a pesquisa como parte do processo formativo do acadêmico, e cabe ao professor a tarefa de iniciar os estudantes no processo epistêmico, garantindo ao aprendiz o domínio do próprio processo de construção do conhecimento.

Considerando os fundamentos apresentados por Severino (2008), reconhecemos que o professor que escolheu a docência no ensino superior por possuir um perfil investigativo estaria, em tese, mais motivado/preparado para conduzir um processo de ensino-aprendizagem significativo mediado pela pesquisa. No entendimento de Pimenta e Anastasiou (2014), entretanto, os procedimentos didáticos conservadores baseados em concepções de um saber inquestionável persistem com mais intensidade no ensino superior e, portanto:

[...] não se associa com o dinamismo próprio resultante aos processos de pesquisa, centrados na historicidade, na problematização, na elaboração e levantamento de hipóteses, na busca do novo, no desenvolvimento de habilidades de atenção, na criação de novas respostas a problemas existentes até mesmo mediante a revisão de diferentes teorias explicativas da realidade. Na docência universitária, essa fragilidade do ensinar é reveladora da incapacidade de associação da ação de pesquisar com a ação de ensinar, o que conduz à docência a ser identificada muito mais com a atividade de pesquisa do que com a de ensino. (Pimenta; Anastasiou, 2014, p. 228).

Para cumprir com as funções da universidade elencadas por Pimenta e Anastasiou (2014, p. 163):

[...] criação, desenvolvimento, transmissão e crítica da ciência, da técnica e da cultura; preparação para o exercício de atividades profissionais que exijam a aplicação de conhecimentos e métodos científicos e para a criação artística; apoio científico e técnico ao desenvolvimento cultural, social e econômico das sociedades [...].

é preciso que os professores possuam mais do que um perfil investigativo e o domínio de técnicas de pesquisa. Ensinar é uma atividade complexa que exige do professor “[...] conhecimentos científicos, pedagógicos, educacionais, sensibilidade da experiência, indagação teórica e criatividade [...]” (Pimenta; Anastasiou, 2014, p. 15).

As motivações que os levaram à docência do ensino superior são importantes para a problematização da prática educativa do professor universitário, pois revelam seus interesses e suas expectativas em relação à profissão. Existem outros fatores essenciais que precisam ser considerados na discussão da constituição da identidade docente, como a experiência das primeiras aulas do professor ingressante, a acolhida da instituição e dos colegas, as formações ofertadas e as vivências durante a trajetória docente.

Trajetória docente: que mudanças ocorreram no caminho?

O ser humano se constitui nas relações ao longo de sua vida. No mesmo sentido, a formação docente vai sendo construída em diferentes espaços e tempos ao longo da carreira, ou seja, é um processo que se desenvolve no decorrer da trajetória docente por intermédio das relações estabelecidas com o meio e com os outros. De acordo com Moita (2007, p. 115), “ninguém se forma no vazio. Formar-se supõe troca, experiência, interacções sociais, aprendizagens, um sem-fim de relações”.

Na perspectiva do formar-se continuamente, os pesquisados relataram suas primeiras aulas no ensino superior e as transformações que ocorreram no decorrer do caminho, refletindo suas práticas na atualidade.

Sobre as primeiras experiências como docentes, grande parte dos entrevistados relatou o sentimento de insegurança: “eu entrei muito nervosa, muito insegura, com medo de não saber responder os alunos” (P1). P2 se questiona quanto às suas condições para exercer a docência: “será que eu teria condições efetivamente? [...] E daqui a pouco, talvez, como eu sou da Administração, eu também não me achava, assim, tão preparado enquanto docente para dar aula” (P2).

Nas palavras de P5 e P15, é possível perceber como foi marcante o ingresso na docência, no que diz respeito à falta de formação inicial:

Foi um horror, porque eu peguei a pior turma quando eu entrei, sem preparo nenhum. Eu não sabia nem como começar uma aula. Naquela época as turmas eram muito grandes, e eu peguei uma turma considerada na época um problema dentro do curso (P5).

Eu saí arrasada, eu não consegui alcançar o meu objetivo, o planejamento todo que eu fiz há uma semana atrás não alcancei, eu saí péssima da sala de aula por isso, pela quantidade de aluno, por eu não ter conseguido dominar (P15).

Não foram diferentes as experiências de P6, P7 e P18. O sentimento de insegurança predominou nesse primeiro contato com a docência.

Um pouco perdido, a questão do time, tanto tempo de exposição, das intervenções, tinha aquela dificuldade de achar o tempo certo (P6).

Eu acho que foi um momento de muito nervosismo, muita insegurança, uma turma grande, uma turma com alunos que falavam, me questionavam muito (P7).

Eu não tinha experiência, era tudo novo, eu tinha medo, às vezes, de falar alguma coisa e não dar conta daquilo que eu estava falando e isso serviu, nas primeiras aulas, serviu muito para ver que eu preciso realmente me preparar e estar, sim, inteiramente, pronta para dar aula, e foi o que me motivou a estudar (P18).

Os depoimentos dos professores quanto às suas primeiras aulas no ensino superior denotam a insegurança de encarar a docência sem uma “preparação” prévia para isso. Fica evidente nas suas falas a carência de uma formação inicial voltada para os fundamentos da docência.

Huberman (2007), estudioso do ciclo de vida dos professores, salienta que o professor iniciante, ou seja, aquele que se encontra nos três primeiros anos de carreira, passa por um período de sobrevivência ou “choque do real”, no qual se confronta com a complexidade da docência:

[...] o tactear constante, a preocupação consigo próprio (“Estou-me a aguentar?”), a distância entre os ideais e as realidades quotidianas da sala de aula, a fragmentação do trabalho, a dificuldade em fazer face, simultaneamente, à relação pedagógica e à transmissão de conhecimentos, a oscilação entre relações demasiado íntimas e demasiado distantes, dificuldades com alunos que criam problemas, com material didáctico inadequado etc. (Huberman, 2007, p. 39).

Esses fatores elencados pelo autor são enfrentados pelo professor iniciante diante do ofício da profissão. P17 expressa esse “choque do real”: “o domínio do conteúdo eu tinha, o que eu não tinha era domínio de sala de aula. Então isso foi chocando, assim, trabalhar com uma turma de 40 alunas, isso te assusta um pouco”. O professor do ensino superior possui um agravante perante essa situação: ele não tem formação específica para a docência - pelo menos, os egressos de cursos de bacharelado. Essa falta de formação específica é reconhecida: “como eu sou da Administração, eu também não me achava, assim, tão preparado enquanto docente para dar aula” (P2). A sua formação inicial o capacitou para ser administrador, e os cursos de mestrado e doutorado, como já mencionamos, estão mais voltados para a formação do pesquisador. A docência e as suas características específicas só serão problematizadas quando o professor se deparar com uma turma de acadêmicos. Isso nos faz compreender por que os primeiros contatos com a sala de aula são tão traumáticos, conforme descrito nas falas dos entrevistados.

No tocante às mudanças na prática docente que ocorreram desde o ingresso na docência do ensino superior, os professores foram unânimes em afirmar que suas práticas mudaram bastante no decorrer da trajetória, e a maioria deles atribui à experiência a responsabilidade pelas transformações: “eu acho que primeiro essa questão da experiência, o acúmulo da experiência, eu acho que nos deixa mais serenos” (P2).

A experiência que transformou as práticas dos professores é chamada por Tardif (2014) de saberes experienciais ou práticos, que resultam do seu cotidiano profissional e do conhecimento do seu meio. Esses saberes, de acordo com o autor, representam uma categoria de saberes, pois o saber do professor é “[...] plural, compósito, heterogêneo, porque envolve, no próprio exercício do trabalho, conhecimentos e um saber-fazer bastante diversos, provenientes de fontes variadas e, provavelmente, de natureza diferente” (Tardif, 2014, p. 18). Compondo essa gama de saberes estão os experienciais, que “incorporam-se à experiência individual e coletiva sob forma de habitus e de habilidades, de saber-fazer e de saber-ser” (Tardif, 2014, p. 39). A fala de P7 caracteriza bem tais saberes, inclusive quando menciona a contribuição dos colegas para a sua formação:

Hoje, eu me sinto muito mais segura, muito mais preparada, mais madura. Eu acho que eu me permito mais, eu digo esse fazer, eu sou muito mais segura, com certeza, então isso me permite ter mais tranquilidade no planejamento das aulas. Eu acho que essa caminhada é algo que eu venho adquirindo, na convivência com os colegas, eu aprendo muito. Eu tive muitos colegas que contribuíram muito para a minha formação, a troca (P7).

Segundo os professores, a experiência trouxe segurança e tranquilidade para sua atuação no ensino superior: “uma tranquilidade maior para lidar com o cotidiano da sala de aula, com perguntas, com comportamentos de alunos. Essa parte, eu acho que a maturidade contribuiu bastante para eu poder lidar” (P3).

Os saberes provindos da experiência diferem dos saberes formais, como curriculares, disciplinares e acadêmicos. Nos estudos de Tardif (2014, p. 54), o saber experiencial é visto como um saber “formado por todos os demais, porém, [...] retraduzidos, ‘polidos’ e submetidos às certezas construídas na prática e na experiência”.

Concordamos com o autor nessa perspectiva, pois os entrevistados evidenciaram o lugar que os saberes da experiência ocupam na sua constituição docente. Nas falas de P5, P8 e P10, o saber experiencial assume a característica de um saber interativo, produzido no âmbito das interações entre professor e aluno: “jogo de cintura, maturidade, paciência, porque hoje a gente utiliza muito a resiliência para poder conviver com tantas gerações diferentes, tantos anseios” (P5).

Eu acho que eu acreditei mais e a confiança de que eu podia fazer a diferença, a confiança de que junto com aquelas pessoas ali, eu poderia construir algo, essa sensação de que realmente aquele projeto de aula de educação ia crescer, tinha fundamento (P8).

E na medida que o tempo foi passando, eu fui vendo que: bom, nem sempre eu vou conseguir tudo, e eu vou ter que adaptar inclusive dentro da aula, mas porque a discussão rende, e que leva até pra outros caminhos pra repensar, a segunda aula, a terceira, e assim sucessivamente. E se antes isso era pra mim um fator de ansiedade, hoje eu já levo com tranquilidade, e eu já consigo perceber o tempo e a avaliação (P10).

A partir das interações estabelecidas no cotidiano acadêmico, os saberes vão sendo construídos e transformados no decorrer da trajetória, como declara P9: “Mas eu acho que em termos dessa experiência do conhecimento, do estudo, tudo foi sendo construído passo a passo, sabe?”. Para Tardif (2014), essa interação é impregnada de normatividade e afetividade e recorre a procedimentos de interpretação de situações rápidas, instáveis, complexas etc. Por isso os saberes experienciais são significativos para a constituição docente e ao mesmo tempo complexos e difíceis de sistematização, porque emergem das interações estabelecidas com o objeto de trabalho do professor: o humano.

A experiência construída, para os professores entrevistados, mobilizou saberes sobre o humano e suas relações, a exemplo do depoimento de P4:

Hoje eu tenho uma proximidade muito maior com os meus alunos do que no início [...]. Então, aos pouquinhos eu fui aprendendo que a gente tem que conquistar a confiança dos alunos, isso é uma coisa que eu levo sempre, principalmente agora, depois desse tempo. Então, quando eu conquisto a confiança dos meus alunos, eu posso dar o exercício mais difícil que eles fazem, porque à medida que isso acontece essa conquista, eles sentem assim: eu vou fazer, mas como eu tenho o apoio da professora, eu vou conseguir entender esse exercício. Eu digo que ser professor tem que existir essa interação, essa troca de energia, essa troca de conhecimento (P4).

A aproximação dos alunos, a relação de confiança e as trocas estabelecidas fazem parte das aprendizagens que a professora construiu na constituição de sua trajetória docente.

Da mesma forma, P16 identifica as mudanças, do ponto de vista das relações humanas, que ocorreram na sua prática educativa:

[...] mas, também, aquele olhar, assim, da questão dos alunos, do acompanhamento dos alunos, de ver as necessidades deles, eu acho que é essa mudança, que antes eu não tinha, depois que eu fiz essa pós em docência em saúde, ela me descortinou muitas coisas (P16).

A transformação da professora, de acordo com o seu depoimento, deu-se após um curso de formação. O que, entretanto, impulsionou-a para a busca por formação foi o cotidiano acadêmico, por meio das vivências e das relações humanas que permeiam a prática docente.

Para P11, as mudanças ocorreram na “conduta com os alunos pelas características deles, pela faixa etária, enfim, então cada turma tem as suas especificidades e isso que é interessante, da gente ter esse olhar que a cada turma é um processo novo, embora você tenha o mesmo conteúdo”. Dessa forma, o trabalho docente pode ser definido como “[...] um conjunto de interações personalizadas com os alunos, a fim de obter participação deles em seu próprio processo de formação e atender às suas diferentes necessidades” (Tardif; Lessard, 2014, p. 267).

Durante a trajetória dos professores, as mudanças ocorreram também na maneira como eles concebem a avaliação: “sobre os processos de avaliação, quando eu chego na universidade também tem todo um processo de conhecer melhor esse campo, a forma como eu avaliava os alunos, e hoje, eu vejo uma diferença muito grande” (P13).

O tema avaliação tem sido muito discutido tanto no âmbito da educação básica quanto no ensino superior. Ela faz parte do processo de aprendizagem e objetiva principalmente qualificá-lo, embora nem sempre concebida a favor da aprendizagem.

Sem a clareza do significado da avaliação, professores e alunos vivenciam intuitivamente práticas avaliativas que podem tanto estimular, promover, gerar avanço e crescimento, quanto podem desestimular, frustrar, impedir esse avanço e crescimento do sujeito que aprende. (Berbel et al., 2001, p. 8).

A avaliação, quando entendida com o objetivo de classificar, rotular ou como instrumento de coerção, vai na contramão da aprendizagem. Para Libâneo (1994), a avaliação não pode ser dissociada da aprendizagem, pois ela é um componente do processo de ensino que visa qualificar os resultados para uma tomada de decisão em relação ao planejamento das atividades didáticas.

A complexidade do problema da avaliação é manifestada por P2, que a relaciona com sua formação inicial profissional: “a formação ela é muito técnica. E, às vezes, coisas bem práticas: como fazer uma boa avaliação? São questões que a gente faz todo semestre, mas que precisam ser discutidas”.

Nesse sentido, o professor destaca a carência na sua formação inicial de elementos que remetam à docência, a exemplo da avaliação da aprendizagem, que possibilita a reflexão sobre o processo que envolve professor e acadêmico em busca do conhecimento. No decorrer da trajetória docente, contudo, por meio das vivências práticas, essas preocupações o fazem refletir sobre tais questões e considerar necessária a discussão dos temas no âmbito da universidade.

A docência na universidade é um processo de construção da identidade docente que, de acordo com Pimenta e Anastasiou (2014), tem por base os saberes da experiência; mas, para que essa identidade se configure como identidade epistemológica, esses saberes precisam ser refletidos criticamente à luz de referenciais do campo da educação.

Segundo P17, esse processo não se estabelece em um determinado momento: “não se constitui um professor assim da noite para o dia. As histórias, tudo isso vai agregando de um semestre para outro, o próprio conteúdo”. P11 complementa: “na verdade, eu acho que esse processo muda sempre”.

Entre as mudanças que aconteceram no decorrer da prática educativa estão as metodologias empregadas pelos professores. Eles destacam que, em decorrência do perfil do aluno na atualidade e das inúmeras possibilidades de que a tecnologia dispõe, é preciso inovar nos métodos didáticos e citam que as melhores aulas que já desenvolveram são as que promovem a participação, a interação e a troca de conhecimentos, assim como as que conseguem vincular a teoria com a prática.

E eu não consigo nem terminar o conteúdo que eu tinha previsto no dia, porque eles perguntaram muito, porque eles participaram, porque eles trouxeram contribuições. Isso para mim é um exemplo de uma aula que eu saio feliz, pensando assim: hoje eu consegui fazer com que eles lembrem (P13).

Porque eu entendo assim, que no momento que tu traz o sentido para a aula, o porquê disso, aquilo tem um aprendizado. No momento que aquilo não tem significado nenhum para o aluno, não vai dar em nada (P12).

Os professores relataram várias mudanças no decorrer de suas trajetórias. Essas transformações foram ocorrendo pautadas nas experiências do cotidiano, mobilizando saberes sobre as relações humanas, a interação com o outro e a forma como percebem a avaliação e as metodologias. Contudo, essas mudanças fazem parte da construção da identidade do docente do ensino superior e influenciam na sua prática educativa.

Constituição da identidade docente e a prática educativa

O que distingue o ser professor universitário de outras profissões? Quem é o professor do ensino superior? Como ele se constitui? Essas questões buscam identificar o professor na sua profissão. A identidade, todavia, não é dada como definitiva, ela é sempre construída. Trata-se de um processo pessoal e social, concebido a partir do eu pessoal e das relações estabelecidas com os outros e com o mundo.

Para Dubar (2005), a identidade não é apenas a soma de processos internos e externos, mas uma negociação complexa, que ele define da seguinte forma:

[...] a identidade nada mais é que o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições. (Dubar, 2005, p. 136).

Para o autor, a identidade se constrói com a articulação de dois processos heterogêneos: o biográfico e o relacional. O processo identitário biográfico (identidade para si) é uma construção social e profissional realizada pelos indivíduos a partir das categorias oferecidas pelas instituições sucessivas, como a família, a escola e o mercado de trabalho. Já o processo identitário relacional (identidade para o outro) é o reconhecimento, “em um momento dado e no interior de um espaço determinado de legitimação, das identidades associadas aos saberes, competências e imagens de si propostos e expressos pelos indivíduos nos sistemas de ação” (Dubar, 2005, p. 156).

A identidade, nessa abordagem sociológica, portanto, é resultado da transação entre dois processos distintos. A identidade para si é um processo subjetivo, no qual o indivíduo define o que ele é ou quer ser de acordo com as construções vivenciadas segundo sua história de vida, ou seja, de pertencimento. A identidade para o outro é um processo objetivo, que define o indivíduo sob o ponto de vista do outro, ou seja, de atribuição (Dubar, 2005).

Dessa forma, percebemos a constituição da identidade docente em relação ao intercruzamento de aspectos biográficos e relacionais, resultante de um processo não só interno, mas também como resultado de suas interações estabelecidas na sua trajetória de vida pessoal e profissional. O que complementa Gatti (1996), quando afirma que o professor é um ser em movimento, constituído por múltiplos elementos que determinam o seu modo de ser profissional: seus valores, suas crenças, suas atitudes, suas expectativas e seus interesses.

Com o intuito de compreender esse processo de construção da identidade, perguntamos aos professores como eles se constituem enquanto docentes do ensino superior. Assim como relataram que as principais mudanças na sua prática aconteceram no decorrer de suas trajetórias, por meio da experiência, a maioria também respondeu a essa questão remetendo a experiência como principal fator na sua constituição docente no ensino superior.

O que que me constitui como professora, hoje, é toda essa minha trajetória e, assim, todos os espaços que eu tive de estudo e de estar convivendo com outros professores, porque durante toda a minha história, toda a minha vida, eu fui colocada nesse desafio de estar como professora, de falar com professores, de conversar, de ouvir os professores. Isso sempre assim, claro que eu tremia, que eu tinha medo, que eu gaguejava, sabe? Mas, assim, isso sempre foi um desafio para mim, eu sempre fui colocada nesse lugar de estar com professores e de estar com alunos, claro (P9).

O depoimento da professora traz muitos elementos sobre a identidade da profissão. Ela atribui a sua constituição à trajetória, porém, qualifica essa caminhada remetendo-se ao estudo, às relações estabelecidas com os demais professores e alunos e à sua história de vida. Salienta sua insegurança em relação ao lugar que ocupa, mas ressalta que as relações constituíram seu crescimento profissional. Do mesmo modo, P7 fala da segurança que suas vivências a proporcionam:

Hoje, eu acho que eu já tenho, assim, um bom acúmulo de experiência, que eu vivenciei durante muitos anos em uma carreira. Então, eu me sinto muito segura, porque tudo evolui, a gente vai mudando a metodologia, mas essa prática, esse conhecimento, essa vivência me ajudam muito.

P11, com formação em licenciatura, atribui a sua constituição como professora, além da trajetória na universidade, à sua experiência na educação básica:

[...] a questão do trato com o próprio aluno veio lá da educação básica, porque, por trás desse aluno que tem que construir o conhecimento, tem uma pessoa, tem um sujeito. Então, eu acho que esse trabalho com a escola pública faz com que a gente traga esse processo todo para cá.

A afirmação de P11 vai ao encontro da teoria defendida por Tardif e Lessard (2014), ao destacarem que a docência é uma profissão de interações humanas. Os autores consideram que “o espaço - no sentido do espaço marinho ou aéreo - no qual o professor penetra para trabalhar” é o espaço das relações humanas, por isso, ensinar é considerado um trabalho genuinamente interativo (Tardif; Lessard, 2014, p. 235).

Os professores reconhecem esse espaço das relações humanas como constituidor da sua identidade docente:

O professor é aquele profissional que ele não só ensina, ele tem que aprender o tempo todo, então eu tenho essa necessidade, o momento que eu chego na sala de aula e que eu só ensino e não aprendo nada, eu me sinto assim, deslocada daquela sala de aula. Então, eu como profissional, se não fossem os meus alunos e principalmente a interação, muitas atividades que eu estou desenvolvendo hoje, é graças ao estímulo deles (P14).

O diálogo para mim em sala de aula, iniciando desde o primeiro dia. Às vezes um aluno se desenvolve, ele tem um desenvolvimento melhor com o diálogo do que com a escrita, isso em uma avaliação do perfil da turma, me faz até mudar no decorrer o modo como eu vou avaliar aquela turma (P15).

É essa necessidade de estar próxima. Eu não consigo me imaginar num outro espaço que não seja dentro da universidade. Essa vinculação, esse crescimento com os alunos, porque eles crescem, e eu também cresço. A cada ano eu me sinto diferente (P18).

Nesse sentido, o objeto de trabalho do professor é o humano, que difere de um objeto de trabalho industrial, que é serial, homogêneo, passivo e determinado. O objeto humano de trabalho é individual, pois cada sujeito é diferente e aprende de maneira peculiar. Além do caráter individual, ele é social, permeado por representações sociais. Está envolto pela afetividade, pois o trabalho docente repousa sobre as emoções. É heterogêneo porque os alunos são diferentes quanto a sua proveniência social, cultural, étnica e econômica. As relações estabelecidas são multidimensionais, ou seja, profissionais, pessoais, intersubjetivas, jurídicas, emocionais, normativas etc. Por último, tem característica de ausência de controle sobre o objeto, à medida que o professor precisa contar com a colaboração do objeto (Tardif; Lessard, 2014).

Ainda no tocante às interações, P8 fala sobre a superação da racionalidade técnica nos processos de aprendizagem no ensino superior:

[...] explorar a essência que tem o ser humano, a essência que tem o profissional que está se constituindo ali, que está se formando ali e colocar para eles que o profissional não é só técnico, que, enquanto pessoa, ele tem que saber também explorar esse lado afetivo, esse lado emocional (P8).

Da mesma forma, P15 manifesta a importância de considerar as relações humanas como constituidoras do profissional. Ela refere que sua formação profissional, nesse caso, a Enfermagem, contribuiu para que pensasse nos processos de aprendizagem considerando a subjetividade humana:

[...] a graduação proporcionou muito isso, um aprendizado de vivência com o ser humano, de valorizar o ser humano, do cuidado, de valorizar muito mais a questão subjetiva do que objetiva, e isso me fortalece muito hoje como professora na questão da avaliação.

No sentido das afirmações das professoras, além da preparação técnica para o mercado de trabalho, a universidade visa perceber o que acontece no seu entorno, compreendendo e oferecendo respostas às mudanças sociais, ou seja:

[...] preparar globalmente os estudantes para as complexidades que se avizinham, a situar-se como instituição líder, produtora de ideias, culturas, artes e técnicas renovadas que se comprometam com a humanidade, com o processo de humanização. (Pimenta; Anastasiou, 2014, p. 173).

A constituição da identidade também é permeada, de acordo com os professores, pela aposta que se faz na educação como transformadora dos sujeitos:

[...] não só sujeitos capazes e preparados profissionalmente, mas pessoas melhores, seres humanos melhores. Então, eu tenho também isso como essência dentro da educação que é trabalhar com o outro na sua completude” (P10).

Igualmente, P13 se constitui como professora do ensino superior por acreditar na educação como meio de transformação social:

[...] o desafio das mudanças e transformações no campo da vida, das diferentes instituições e processos também vivenciais que eu tive, estar no ensino superior realmente é estar acreditando na mudança da educação, na formação desses profissionais.

Outro aspecto a ser destacado nas afirmações dos professores é a experiência como profissional da área que leciona na universidade. Na opinião deles, a atuação na área profissional, antes ou concomitante com a docência, qualifica os processos de ensino:

A minha experiência em sala de aula, ela se consolida pelo fato de eu também ser bacharel na mesma área, eu acho isso extremamente importante, porque para mim é muito claro o que é o meu objeto de estudo pelo bacharelado... como fazer, o que fazer para chegar lá, pela licenciatura (P14).

A bagagem que eu trago como enfermeiro na assistência e como pesquisador. Se ele não tem uma certa bagagem, muitas vezes ele acaba tendo dificuldades, e o que embasa as minhas discussões em sala de aula é muito daquilo que eu vivenciei como enfermeiro assistencial, porque a teoria eu consigo buscar, por exemplo, assim, a cada semestre nós aqui temos desafios novos (P17).

Essas falas nos remetem à experiência, mas, nesse caso, não à experiência da profissão docente e sim à experiência de atuação na área específica de formação, que se traduz em conhecimentos técnicos da profissão.

Essa prática na área profissional, aliada à docência, traz à discussão a relação entre a teoria e a prática na constituição do profissional que se deseja formar. Essa relação, conforme Candau e Lelis (2001), pode acontecer numa visão dicotômica ou de unidade. Na visão dicotômica, teoria e prática são independentes, cabendo aos teóricos pensar, refletir e elaborar e, aos práticos, executar o que foi teorizado. Nesse caso, a prática decorre da aplicação da teoria, o que torna a teoria preponderante à prática. Já na perspectiva de unidade, a relação é interdependente e indissociável:

a teoria não mais comanda a prática, não mais a orienta no sentido de torná-la dependente das ideias, como também não se dissolve na prática, anulando-se a si mesma. A prática, por seu lado, não significa mais a aplicação da teoria ou uma atividade dada ou imutável. (Candau; Lelis, 2001, p. 63).

Nesse sentido, teoria e prática se encontram em um movimento dialético, regado pela reflexividade, no qual se retroalimentam. Essa reflexão, de acordo com Boff e Del Pino (2018, p. 20), não é:

[...] embasada somente nos saberes da experiência desconectada da teoria, trata-se da constituição de um profissional que reflete sobre os saberes obtidos na prática e os compreende à luz de uma teoria, articulando múltiplas interlocuções.

Na concepção dos professores, essa relação entre teoria e prática contribui para estabelecer sentido ao processo de aprendizagem do futuro profissional, ou seja, trazer essa experiência para sala de aula aproxima a realidade profissional dos conteúdos ali trabalhados.

Ainda sobre a constituição da identidade do professor do ensino superior, os participantes mencionam a formação continuada vivenciada na instituição:

Eu acredito que a formação oferecida hoje pela instituição, com certeza, a gente tem um ganho extremamente importante e, com certeza, é diferente. Não são somente as questões técnicas, então essa comparação. Assim, a gente vê nitidamente a necessidade de ter essa formação (P16).

Os docentes do ensino superior, principalmente das áreas técnicas, carecem de discussões e articulações com os objetivos da docência. Como não as tiveram nas suas formações iniciais, as formações no decorrer da trajetória são indispensáveis na constituição do processo identitário do professor universitário.

P15 considera indispensáveis as formações continuadas ofertadas na instituição e salienta o reflexo dessas formações para a prática educativa:

Indispensável. Então, até os alunos avaliam isso, mas como que o professor que tem doutorado, as aulas dele não são tão boas como aquela professora, aquele professor que só tem especialização, mas é o aperfeiçoamento de estar buscando, do modo como está ministrando, é o encontro também do alcance do desafio, das dificuldades que a turma apresenta. Então, essa implicação da busca de novos conhecimentos é algo que nenhum professor deveria deixar de realizar, mesmo com doutorado (P15).

De acordo com Nóvoa (2007, p. 16), a construção do processo identitário “é uma dimensão decisiva da profissão docente, na medida em que a mudança e a inovação pedagógica estão intimamente dependentes deste pensamento reflexivo”. Assim, os processos formativos, no âmbito da universidade, favorecem a reflexão sobre a ação docente e implicam diretamente as transformações e inovações da prática educativa, contribuindo para a constituição da identidade do professor no ensino superior.

Considerações finais

O percurso realizado nesta pesquisa sugere algumas considerações que, a nosso ver, não se esgotam neste estudo, mas propõem um olhar para a constituição da identidade do professor do ensino superior. A identidade vista como processo se constrói pelo sentido que os professores atribuem à sua profissão de acordo com o contexto, as vivências e as relações que estabelecem com os outros e com o mundo.

Pretendeu-se com este trabalho identificar e analisar os fatores que influenciaram na constituição da identidade docente e suas implicações nas práticas educativas de um grupo de professores. Para isso, analisaram-se os motivos que levaram à docência do ensino superior, por considerar que a escolha pela profissão é um dos fatores determinantes para entender o significado da sua profissão e sua prática educativa. Nos argumentos dos professores, a partir das histórias de vida, foi possível evidenciar os motivos que os levaram para a docência do ensino superior. Denominamos de perfil investigativo os argumentos que os conduziram para a docência. Esses argumentos revelam que os interesses dos professores estavam ligados à pesquisa.

Para além da pesquisa, porém, é preciso entender que a docência envolve outros aspectos atinentes às relações que se estabelecem com os alunos para desenvolver o seu trabalho. A docência é praticada mediante uma postura investigativa, entretanto, por ser uma atividade complexa, exige do professor outros saberes. Além do domínio técnico da investigação, requer conhecimentos científicos, pedagógicos e práticos.

O estudo também revela o sentimento de insegurança dos professores no início de suas carreiras, pela falta de uma formação inicial voltada para os fundamentos da docência. A problematização da docência ocorre em serviço, ou seja, somente é realizada quando eles se deparam com o cotidiano da sala de aula.

As mudanças na prática educativa acontecem, de acordo com os professores, com o passar do tempo, por meio dos saberes da experiência, que resultam do cotidiano profissional e do conhecimento do meio em que atuam. Esses saberes assumem características de um saber interativo, produzido no âmbito das vivências e das relações humanas que permeiam a prática docente. Em decorrência dos saberes experienciais e das mudanças do perfil do acadêmico na atualidade, eles modificaram sua concepção de avaliação e buscaram inovar suas metodologias. Para que os saberes da experiência, ou práticos, configurem-se em identidade epistemológica, eles necessitam ser analisados pelos referenciais do campo da educação (Pimenta; Anastasiou, 2014).

A relação entre teoria e prática também vem à tona na constituição da identidade profissional, no entanto, nesse caso, não se refere aos saberes práticos da profissão docente, mas sim às experiências da área profissional de formação específica. Na visão dos professores, ter experiência ou atuar profissionalmente na área concomitantemente com a docência favorece a construção do conhecimento profissional com os alunos, contribuindo para aproximar e atribuir sentido aos conteúdos trabalhados em sala de aula com a prática profissional.

A constituição da identidade docente, além da trajetória na universidade, dos estudos e da relação entre teoria e prática, é remetida às relações estabelecidas entre alunos e professores. Os professores reconhecem o espaço das relações humanas como constituidor da identidade docente, pois o objeto de trabalho do professor é o humano, e a docência, por sua vez, é uma profissão de interações humanas, na qual o professor vai desenvolvendo-se profissionalmente na medida em que vivencia as situações do cotidiano acadêmico com seus desafios, tensões e aprendizagens e reflete sobre elas, reelaborando seus saberes.

Por fim, as formações continuadas, vivenciadas na instituição, são apontadas pelos professores como fundamentais na constituição do processo identitário do professor do ensino superior, já que eles não tiveram nas suas formações iniciais aportes sobre a docência. A formação somente pela prática, no entanto, não é suficiente; é necessário o diálogo com outros, em assimetria, diálogos que impliquem reflexões teóricas à luz dos conhecimentos científicos.

Contudo, voltamos à nossa questão inicial: como o professor do ensino superior constrói a sua identidade profissional? De acordo com as afirmações dos entrevistados, analisadas à luz do referencial teórico, consideramos que o professor tem seu ingresso na docência do ensino superior pelo perfil investigativo, tornando sua iniciação repleta de insegurança pela falta de conhecimentos específicos da docência. Esse profissional vai constituindo-se e identificando-se com a profissão no decorrer da trajetória docente pelos saberes práticos, resultantes das interações humanas estabelecidas no cotidiano acadêmico. Tais saberes precisam ser refletidos criticamente segundo os referenciais do campo da educação. Por isso, faz-se necessário, no âmbito da instituição, processos de profissionalização continuados, que possibilitem que os saberes da prática sejam problematizados e reconstruídos pelos professores, tanto individual como coletivamente.

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1 A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), por meio da Plataforma Brasil, obtendo a aprovação com o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (Caae): 98163218.7.0000.5350.

Recebido: 21 de Fevereiro de 2020; Aceito: 22 de Junho de 2021

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