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Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versão impressa ISSN 0034-7183versão On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.103 no.264 Brasília maio/ago 2022

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.103i264.5453 

SEÇÃO COMEMORATIVA

A partir de Anísio Teixeira: reflexões sobre a educação brasileira

From Anísio Teixeira and on: reflecting upon the Brazilian education

A partir de Anísio Teixeira: reflexiones sobre la educación brasileña

Lia Ciomar Macedo de FariaI  II 
http://orcid.org/0000-0002-9172-9934

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: <liafolia11@gmail.com>.

IIDoutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.


Resumo:

Este texto buscou, na ocasião da comemoração dos 85 anos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), enfatizar a difusão e a propagação científica sobre educação, promovidas pela Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP). O periódico lançado em 1944 publica, desde então, artigos, pesquisas e práticas resultantes de investigações que auxiliam a formação docente e permitem ao pesquisador acesso a uma variada gama de estudos acadêmicos. Revendo suas edições e tomando-as como fontes/objetos historiográficos, deparamo-nos com o artigo impresso em 1966 (v. 46, n. 104, p. 278-287), “O Problema de Formação do Magistério”, de autoria de Anísio Teixeira, que foi republicado no mesmo periódico, provavelmente, pela importância das reflexões, em 2001 (v. 82, n. 200, p. 199-206). Tal texto tem a relevância de apresentar um histórico da formação do magistério e, a partir dele, ousamos revê-lo, sumariamente, à luz de alguns aspectos do ponto de vista gramsciano sobre educação.

Palavras-chave: Anísio Teixeira; formação docente; história da educação brasileira; Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.

Abstract:

On the celebration of the 85th anniversary of the National Institute of Educational Studies and Research Anísio Teixeira, this text aims to emphasize the scientific dissemination of Education, promoted by the journal Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP). Inaugurated in 1944, this journal publishes, since then, articles, research, and practices brought forth from investigations that aid teacher training and allow researchers to access a varied plethora of academic studies. Through the reassessment of its previous editions and by taking them as historiographic sources/objects, it has been brought to light the paper-printed article that composes the volume 46, number 104, published in 1966, pages 278-287: “O Problema de Formação do Magistério”, by Anísio Teixeira, republished in the same journal, for the importance of its reflections, in 2001 (vol.82. n.200, p.199-206). This text is relevant because it presents a record of the development of the teaching profession and, based on it, an assessment can be made considering some aspects of Gramsci’s point of view on Education.

Keywords: Anísio Teixeira; history of Brazilian Education; Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos; teaching profession.

Resumen:

Este texto buscó, en ocasión de la conmemoración de los 85 años del Instituto Nacional de Estudios e Investigaciones Educativas Anísio Teixeira (INEP), enfatizar la divulgación científica de la educación, promovida por la Revista Brasileña de Estudios Pedagógicos (RBEP). La revista lanzada en 1944 publica, desde entonces, artículos, investigaciones y prácticas resultantes de investigaciones que ayudan a la formación docente y permiten al investigador acceso a una amplia gama de estudios académicos. Revisando sus ediciones y tomándolas como fuentes/objetos historiográficos, encontramos el artículo impreso en el vol. 46, n. º 104, publicado en 1966, en las páginas 278-287: “O problema de formação do magisterio”, de Anísio Teixeira, que fue reeditado en el mismo periódico, probablemente por la importancia de las reflexiones, en 2001 (vol. 82, n.º 200, p. 199-206). Este texto tiene la relevancia de presentar un histórico de la formación de la profesión docente y, a partir de él, nos atrevemos a revisarlo, sumariamente, a la luz de algunos aspectos de la mirada gramsciana sobre la educación.

Palabras clave: Anísio Teixeira; formación docente; história de la educación brasileña; Revista Brasileña de Estudios Pedagógicos.

A questão escolar interessa-me muitíssimo [...]. Surge a dúvida de que [os] métodos acelerem artificialmente a orientação profissional e falsifiquem as inclinações das crianças, obscurecendo o objetivo da escola única, que é conduzir as crianças para um desenvolvimento harmonioso de todas as atividades, até o momento em que a personalidade formada manifestará as inclinações mais profundas e permanentes, porque são nascidas num nível mais elevado de desenvolvimento de todas as energias vitais etc. (Gramsci, 2011, p. 542-543).

Face às comemorações dos 85 anos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), torna-se premente enfatizar a difusão e a propagação científica sobre educação, promovidas por sua Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP). Lançada em 1944, em formato impresso, a revista vem popularizando, desde então, artigos, estudos e práticas resultantes de pesquisas que auxiliam a formação docente e permitem ao pesquisador acesso a prestimosas informações. Revendo as escrituras impressas nas suas inúmeras edições e tomando-as como fontes/objetos historiográficos, deparamo-nos com o artigo impresso em 1966 (v. 46, n. 104, p. 278-287), “O Problema de Formação do Magistério” , de autoria de Anísio Teixeira, que foi republicado no mesmo periódico, em 2001 (v. 82, n. 200, p. 199-206), cremos que pela importância das reflexões. Tal texto tem a relevância de apresentar um histórico da formação do magistério e, a partir dele, ousamos revê-lo, sumariamente, à luz de alguns aspectos do ponto de vista gramsciano sobre educação.

No artigo, Anísio Teixeira explica que o processo de formação de professores no Brasil, ao iniciar-se, padecia de um problema, o de ter dois sistemas de educação - o das escolas secundárias, preparatórias para o ensino superior, e o das escolas vocacionais, preparatórias para o trabalho - que, em dado momento, fundiram-se, ainda que houvesse hegemonia entre esses sistemas, pela necessidade de impor padrões de uma sociabilidade dominante - política e econômica (Gramsci, 1999) - que surgia.

O primeiro sistema, destinado às elites dominantes e, portanto, vinculado ao governo central (imperial e depois republicano), pretendia formar líderes para os diferentes cargos e funções de mando de que a estrutura social no momento precisava; o segundo sistema foi ligado, a partir da Lei Geral de Educação, de 1827, à esfera subalterna do poder central (nos âmbitos provincial, estadual e municipal, posteriormente) e objetivava “atender a todos” , à época, uma classe média emergente (Brasil, 1834). A esse sistema estavam subordinadas as escolas normais que formavam o magistério para o ensino primário. As primeiras escolas normais, norteadas pelo modelo francês, incluíam as cadeiras de Leitura e Escrita, Aritmética, Princípios da Moral Cristã e da Religião, Gramática, Geometria e Elementos de Geografia, e pela semelhança aos estudos dos liceus, em sua grande maioria, fracassaram. Foram de curta duração, pois dependiam de verbas inexistentes nas províncias que as custeavam e apresentavam-se com apenas uma especificidade pedagógica, a cadeira de Pedagogias. Ao lembrar o histórico de evolução dos dois sistemas, e do ensino a estes acoplado (o de formação docente, por exemplo), até a junção em um só sistema de educação, Anísio apresenta as características de cada um e a possibilidade de expansão da educação para um número cada vez maior de brasileiros ao longo do tempo. Explica a redução serial do ensino primário como um dos sérios problemas enfrentados, pois veio promover mudanças que se refletiram na formação docente efetuada no âmbito das escolas normais. Tal alteração ocasionou a redução do dia escolar e da duração do curso para o magistério, uma vez que “[com o curso reduzido] ao primeiro ciclo do curso secundário [o que fez surgir uma] política de educação popular aumentada, mas com professores [...] de preparo reduzido” (Teixeira, 2001, p. 200).

A mudança leva ao aparecimento do que Anísio Teixeira chamou de “educadores públicos” em confronto com os “velhos humanistas do ensino secundário” e a figura do “industrial trainer” (Teixeira, 2001, p. 201). Este último personagem trazendo, em seu bojo, um programa mínimo de educação primária para um maior quantitativo discente. É nesse ponto que estabelecemos a intercessão com Gramsci. Para Gramsci (1999), é a cultura - e a educação é sua parte integrante - que organiza e é organizadora da sociedade, logo todas essas práticas ficaram perceptíveis na nova materialidade educativa - que Teixeira descreve e caracteriza - e que se consolida ao longo do tempo, redefinindo as funções e a adesão ao projeto político e social da classe dominante dirigente. Cada alteração compreende a nosso ver as necessidades do processo capitalista em curso no solo brasileiro e a ascensão de elites dirigentes diferenciadas, o que altera o sistema educativo.

Essas marcas, sentidas em suas consequências até hoje na educação brasileira, unem contraditoriamente os sistemas, tornando as escolas normais oficiais - até então locus do ensino para o magistério público primário - um mero preparatório para a universidade, como já o era o ensino secundário. Ora, as universidades não estavam, e ainda não estão, preparadas para a docência das diferentes disciplinas que os cursos superiores ofereciam, porque a didática minuciosa e a metodologia esmiuçada com o “bê-á-bá” da docência, que se consolidaram nas escolas normais, foram suprimidas dos programas escolares com extinção ou acréscimo de disciplinas, em prol das suas especializações e da pesquisa e extensão que o curso universitário desenvolve prioritariamente.

Com o advento da popularização da educação “para todos”, decrescem as escolas normais e crescem as faculdades particulares, aumentando substancialmente a procura por vagas universitárias, que, muitas vezes, não formam docentes, mas aspirantes a um emprego posterior que eleve o status quo. Com o tempo, e por breve período, as escolas normais, não adaptadas às necessidades práticas do ensino secundário de finalidade humanística, tornam-se superiores, no ensejo de se equipararem aos cursos de Pedagogia das inúmeras faculdades que proliferaram à luz da demanda e da desigualdade que existe no Brasil. Pinto (2014) explica, ao estudar o déficit de professores de ensino médio nas disciplinas de Química e Física, tomadas aqui como exemplo, que, embora exista número suficiente de vagas nas habilitações da graduação daquelas disciplinas, os graduandos que preenchem essas vagas tendem a buscar remunerações mais atrativas do que as oferecidas no magistério (Ibañez Ruiz; Ramos; Hingel, 2007), o que corrobora, no nosso tempo, as dificuldades que ainda enfrentamos com “o problema da formação de docentes” relatado por Anísio Teixeira.

Reler o texto de Anísio Teixeira em um período em que se discute no Congresso Brasileiro o homeschooling e a militarização das escolas públicas nos faz pensar no processo histórico delineado por ele, em que os “problemas” que analisa podem ser explicados à luz de pensadores como Gramsci, e a importância de discutir os “problemas” da educação nas datas festivas de uma entidade da qual é patrono.

Referências

BRASIL. Lei de 15 de outubro de 1827. Manda crear escolas de primeiras letras em todas as cidades, villas e logares mais populosos do Imperio. In: BRASIL. Collecção das leis do Imperio do Brasil desde a Independencia: 1826-1834. Ouro Preto: Na Typografia de Silva, 1834. v. 1, p. 71. [ Links ]

GONDRA, J. G.; SCHUELER, A. Educação, poder e sociedade no Império brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008. (Biblioteca Básica da História da Educação Brasileira). [ Links ]

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. [ Links ]

GRAMSCI, A. Cartas do cárcere. Portugal: Estaleiro Editora, 2011. (Antologia). [ Links ]

IBAÑEZ RUIZ, A.; RAMOS, M. N.; HINGEL, M. Escassez de professores no ensino médio: propostas estruturais e emergenciais. Brasília, DF: Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica, 2007. Relatório produzido pela Comissão Especial instituída para estudar medidas que visem a superar o déficit docente no ensino médio - CNE/CEB. [ Links ]

PINTO, J. M. R. O que explica a falta de professores nas escolas brasileiras? Jornal de Políticas Educacionais, Curitiba, n. 15, p. 3-12, jan./jun. 2014. [ Links ]

TEIXEIRA, A. O problema de formação do magistério. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 46, n. 104, p. 278-287, 1966. [ Links ]

TEIXEIRA, A. O problema de formação do magistério. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 82, n. 200, p. 199-206, 2001. [ Links ]

1 Apresentado por Anísio Teixeira como estudo especial ao Conselho Federal de Educação.

2Não adentramos no debate historiográfico de materialismo versus idealismo por acreditarmos que Anísio Teixeira tinha concretizado seu “idealismo” com a criação da Universidade do Distrito Federal, em 1938, que incluía a Escola de Professores, constituindo partes do tripé educacional escolanovista.

3Anísio discorre, nesta digressão, sobre o sistema instituído a partir do século 19.

4Nem sempre “todos” correspondeu a todos os cidadãos. Inicialmente a escola não foi prevista para atender a negros, indígenas e mulheres; em um segundo momento, não foram atendidos negros escravos e indígenas, e, em outro, atendia apenas a classe média. “As práticas de educação dos meninos e meninas indígenas, das crianças e escravos menores, dos camponeses, sitiantes e colonos livres e pobres, dos meninos e meninas das casas senhoriais e dos engenhos; o ensino das letras realizado no interior das famílias, pela ação das mães e outras mulheres, de preceptores ou mestres particulares; a aprendizagem dos ofícios nas oficinas, nas fazendas, nos campos, nas instituições de assistência e em múltiplos espaços sociais – todas essas formas educativas, como vimos, conformaram outros modos e agentes do aprender e do ensinar” (Gondra; Schueler, 2008, p. 158).

ANEXO

O problema de formação do magistério*

Anísio Teixeira

1 - Dualismo da sociedade brasileira e conseqüente dualidade educacional

O fato dominante nos últimos cinqüenta anos de vida brasileira, com referência à educação, é a expansão e fusão gradual dos dois sistemas escolares que serviram ao país em seu dualismo orgânico de duas sociedades, primeiro de senhores e escravos, depois de senhores e povo, e que se iriam integrar progressivamente na sociedade de classe média em processo.

Reflete-se na educação êsse dualismo substancial, com a manutenção, desde a independência, de dois sistemas escolares. Um, destinado à formação da elite, compreendendo a escola secundário acadêmica e as escolas superiores, mantido sempre sob o contrôle do govêrno central e, rígida e uniformemente, impôsto a tôda a nação. Outro, destinado ao povo e, na realidade, à classe média emergente, compreendendo escolas primárias e escolas médias vocacionais, sob o contrôle, desde 1834, dos governos provinciais ou locais e mais tarde, com a federação, dos governos dos Estados. Os dois sistemas eram separados e independentes, para o que contribuía a sua subordinação a diferentes áreas do poder público. O sistema de elite era federal e o sistema popular ou classe média, estadual.

Além das diferentes filosofias dos dois sistemas de educação de classe, havia a diferença política, pela qual o sistema da classe média era estadual e de manutenção pública e o dos senhores (squireocracy) de contrôle nacional mas de manutenção dominantemente privada. O Govêrno Central mantinha uma escola secundária padrão ou modêlo e umas poucas escolas superiores, às quais se adicionavam escolas privadas, sob o regime de concessão do poder público e equiparadas aos padrões das instituições públicas. Os sistemas estaduais, pelo contrário, eram fundamentalmente de manutenção pública. Nestes sistemas públicos se encontravam as escolas normais de formação do professor primário.

Transferida assim às províncias, primeiro, e depois aos Estados, a obrigação de manter o sistema público de educação, está claro que êste se iria expandir mais fortemente e, gradualmente, tornar-se o sistema de educação da classe média nascente, o que logo ocorreu com o ensino primário e com o ensino médio, sobretudo o feminino, por representar para as mulheres as primeiras oportunidades de educação. As escolas vocacionais femininas e, entre elas, as escolas normais, fizeram-se, em certos Estados, escolas de acentuado prestígio social. Sòmente as escolas vocacionais masculinas destinadas a ocupações manuais ficaram marcadas por manifesta discriminação social.

Os sistemas públicos estaduais não se restringiram apenas a êsse ensino limitado ao seu contrôle, mas expandiram-se incluindo o ensino secundário acadêmico e até escolas superiores, mediante concessão federal, ficando suas escolas sob regime de equiparação, como era permitido ao ensino privado.

Por outro lado, o Govêrno federal, além das escolas de seu contrôle exclusivo, secundárias acadêmicas e superiores, resolveu manter estabelecimentos de nível médio de caráter vocacional. Quebrou-se, dêste modo, a rígida separação entre os dois tipos de govêrno quanto à manutenção dos dois sistemas. Tanto o govêrno federal como os governos estaduais mantinham escolas dos dois sistemas, o que iria facilitar sua gradual fusão e integração.

Até a primeira guerra mundial, a relativa estagnação econômica da sociedade brasileira pôde mantê-la dentro dêsse dualismo educacional, com o ensino público primário para uma substancial percentagem da população (pràticamente para tôda a classe média nascente), o ensino médio vocacional e, dentro dêle, as escolas normais para as mulheres de classe média que começavam a desejar trabalhar, e o ensino secundário acadêmico e o superior para a elite e pequena parcela da classe média, devido à existência daquelas poucas instituições públicas dêsse ensino. O povo, pròpriamente dito, não chegava a ter ou a poder freqüentar a escola, mas educava-se pela vida e suas formas de trabalho elementar. As escolas vocacionais masculinas davam sua pequena contribuição ao trabalho qualificado, anteriormente de tipo artesanal e com sistema próprio de aprendizado direto no ofício.

É esta situação que entra em crise após a primeira guerra mundial, com o encerramento da fase semicolonial de produção de matéria-prima e importação de bens de consumo e o início do processo de industrialização e modernização da sociedade brasileira. Retomou-se o fervor do início da república pela educação do povo e pela sua formação para o trabalho especializado de sua nova fase de vida.

O aspecto que assumiu, entretanto, o movimento foi o de expandir as oportunidades educativas a maior número de pessoas do modo que fôsse possível. A educação seria um bem absoluto, importando, acima de tudo, distribuí-lo mais amplamente, conforme poderemos ver na análise que se segue.

2 - Popularização do ensino primário

Na década dos 20, desperta um dos governos estaduais ̶ muito significativamente o do Estado de S. Paulo, o mais avançado no processo de industrialização ̶ e promove reforma radical do ensino primário, a fim de estendê-lo a tôdas as crianças e não apenas à camada social média e alta.

A reforma reduziu o curso primário, em primeira tentativa, a dois anos e, finalmente, em face de crítica e protestos, a quatro anos de estudo nas cidades e três anos na zona rural e, na década seguinte, a mudança passou a refletir-se na formação do magistério primário, com a criação das chamadas escolas normais regionais, com um curso de formação do magistério reduzido apenas ao primeiro ciclo do curso secundário.

Afastava-se o país do modêlo anterior de escolas primárias com cursos elementares e complementares de 6 a 8 anos de estudos e escolas normais com o seu curso equivalente, em extensão, ao da escola secundária, passando a adotar uma política de educação popular reduzida, com professôres também de preparo reduzido.

Em países de cultura transplantada, como são os da América latina, é curioso observar o reflexo de idéias em curso no desenvolvimento educacional europeu. Podemos, no Brasil, acompanhar as fases do debate educacional que dominou, na própria Europa, o desenvolvimento da educação.

Esse debate compreendia a disputa e conflito entre três correntes diversas e mesmo opostas, representadas, para usar a terminologia de Raymond Williams, pelo "educador público", que defendia para todos uma educação completa e adaptada à nova sociedade industrial e científica; pelo "industrial trainer", que se batia pelo treino para o nôvo trabalho industrial sem outras considerações e, por fim, pelos "velhos humanistas", que julgavam se deveria voltar aos métodos de educação clássica, única suscetível de formar o homem, habitualmente entendido como o "gentleman".

Essas posições refletem-se no Brasil. O "educador público" domina, no período da implantação da república, as primeiras décadas do nôvo regime quanto à filosofia do ensino primário, normal e vocacional dos sistemas estaduais de educação; os "velhos humanistas'' dominam no ensino secundário acadêmico e no superior do sistema federal de educação (foi mantido o latim, como língua fundamental de educação, até os meados do século XX); o "industrial trainer” é a influência dominante no movimento iniciado na década dos 20 em S. Paulo, a que venho chamando de “popularização" do ensino, com o programa mínimo de educação primária e o relêvo com educação vocacional ou técnica para os níveis posteriores.

A idéia de treinamento para o trabalho, aliada à extensão do ensino a todos, resultou na prática, em um programa de menos educação a maior número de alunos. Além da redução de curso primário, logo surgiu, para ampliar a matrícula, a inovação dos turnos escolares, ou seja, o funcionamento da escola em vários turnos, com redução do dia escolar, e, por fim, a redução do período de formação dos professôres. Era a chamada democratização do ensino, que passou a ser concebida como a sua diluição e o encurtamento dos cursos. Longe iam as idéias dos primórdios da República, em que se sonhava um sistema escolar estendido a todos, mas com os mesmos padrões da educação anterior de poucos. A despeito da tremenda expansão do conhecimento humano, um paradoxal imediatismo escolar reduziu a duração dos cursos e do dia escolar, a fim de oferecer a maior número de alunos uma educação primária reduzida ao mínimo. A essa expansão do ensino primário, pela compressão dos cursos, seguiu-se a expansão do ensino médio e do secundário acadêmico, pela improvisação de escolas secundárias sem formação adequada de professôres. A filosofia de educação mínima a maior número de alunos estendeu-se do ensino primário aos demais níveis do ensino, com o que se iniciou o processo de ruptura da dualidade do sistema histórico de escolas para a classe popular e escolas para as classes média e superior.

3 - A dualidade do sistema escolar e a formação do magistério

O movimento de popularização do ensino primário foi, dêste modo, o início de uma expansão educacional em todos os níveis, que iria progressivamente destruir a dualidade do sistema educacional brasileiro. Até então, essa dualidade, que se institucionalizara com o Ato Adicional à Constituição do Império em 1834, pelo qual se atribuíra a educação primária às províncias, e a secundária e superior ao Govêrno Central, fôra substancialmente mantida. A educação brasileira compreendia, conforme já referimos, dois sistemas: o de escolas secundárias acadêmicas, preparatórias para a escola superior e escolas superiores, subordinado ao contrôle federal e destinado às classes média e superior; e o da escola primária, seguida de escolas vocacionais, subordinado ao contrôle estadual e destinado às classes média inferior e trabalhadora. O primeiro formava a chamada elite nacional, o segundo, os quadros de ocupações de nível médio e inferior. Os dois sistemas eram separados e independentes. Embora, como também já referimos, a escola primária e a escola normal tivessem, devido à própria escassez e à composição social do magistério primário, conquistado prestígio de escolas de classe média, a dualidade, pelo menos legal, dos dois sistemas, conservou-se até a década dos 20. Com a redução do ensino primário a 4 anos de estudo e a legislação federal de 1930 fixando o início do curso secundário aos 11 anos de idade, os dois sistemas encontraram um ponto de interseção.

À expansão do ensino primário promovida pela redução do curso seguiu­se a expansão do ensino secundário acadêmico por pressão das classes sociais emergentes da sociedade em desenvolvimento. Essa expansão se efetivou pela improvisação de escolas privadas, a que o Govêrno Federal concedeu a necessária equiparação, rompendo assim a política de limitação dêsse ensino aos poucos destinados a constituir a elite social. O currículo continuava de elite, uniforme, rígido e dificultoso, mas as facilidades de equiparação reduziram êsses obstáculos a simples formalidades a serem nominalmente atendidas. Tornando assim fácil a sua expansão, o sistema federal de ensino, ̶ sem perder os privilégios de promoção social, passou a estender-se, incluindo os próprios sistemas estaduais, que buscaram também equiparar-se ao sistema privilegiado, ou seja, o federal. Essa fusão dos dois sistemas processou-se lenta e gradualmente, tendo sido estimulada pela maior centralização de podêres no govêrno federal, durante o período ditatorial que, pràticamente, se prolongou de 1930 a 1946. O sistema estadual ficou, em essência, reduzido ao ensino primário, passando o sistema pós-primário ao contróle legal do gôverno federal.

A escola normal de formação do magistério primário foi a que encontrou maiores dificuldades para se deixar assimilar pelo sistema federal, por não manter êste sistema escolas dêsse tipo. Como porém o seu curso era pós-primário e se estendia por sete anos, as escolas normais equipararam o ciclo inicial de 4 anos ao primeiro ciclo ginasial de contrôle federal, mantendo vocacional apenas o segundo ciclo. Êste ciclo vocacional foi então considerado como paralelo aos cursos técnicos das escolas federais, embora estas não mantivessem essa modalidade de curso. Como a pressão social para a fusão dos dois sistemas continuasse forte, uma lei federal em 1946, promulgada no período ditatorial, revogou o dualismo educacional, dispondo indiscriminadamente sôbre todo o sistema educacional, desde o primário até o superior. Na década de 50, uma lei federal completou a integração, dispondo sôbre a equivalência de todos os cursos médios, que passaram a dar direito a acesso ao ensino superior. Neste grupo de cursos médios, incluía-se o curso normal. Estava, dêste modo, dado o passo para a sua descaracterização como curso vocacional de habilitação ao magistério primário. Êste curso passa também agora a ser uma modalidade de curso para acesso à úniversidade (Faculdade de Filosofia). Perde-se a antiga unidade de propósito e a perfeita caracterização de escola vocacional. O mesmo sucedeu também com as escolas normais regionais de 4 anos de estudos, que adaptaram seu currículo ao do primeiro ciclo de curso secundário, considerando-se equivalentes a ginásios.

Deu-se, na realidade, uma integração dos cursos normais no sistema de educação secundária do país, fazendo-se as escolas normais um dos modos de educação secundária para acesso ao ensino superior. Era natural que se deixassem dominar mais pelo caráter de educação preparatória do que pela da formação vocacional do mestre, pois os alunos já agora desejavam também a nova oportunidade que a mudança lhes acenava, além da habilitação ao magistério.

A despeito disto, contudo, as escolas normais não passaram ao contrôle do govêrno federal, que não dispunha de escola padrão dêste tipo a que as escolas estaduais pudessem ser “equiparadas”, continuando a sua fiscalização no âmbito estadual, o que, cumpre acentuar, lhes conferia a liberdade de constituição e organização regional, sem a rigidez e uniformidade do regime de concessão e autorização federal.

Esta circunstância, que poderia parecer favorável, iria, devido à pressão pela integração dos dois sistemas dar lugar à proliferação dessas escolas menos pelo propósito de preparar professôres do que pelo de oferecer uma modalidade de curso secundário equivalente ao do curso padrão federal cuja demanda se fazia cada fez mais incoercível ante a aspiração dominante por ensino que levasse ao acesso às escolas caracterizadamente de classe superior, ou seja, à universidade. A redução do curso da escola primária, por outro lado, também concorria para criar êsse ímpeto de expansão, pois o curso primário se fizera completamente inadequado ao preparo para as ocupações mais elementares. Tal redução não se deveria ter feito sem o complemento da transformação do curso secundário de primeiro ciclo em curso de cultura comum, destinado a dar livre acesso ao aluno primário, para os estudos necessários à qualificação para o trabalho em uma sociedade em vias de industrialização. O dualismo anterior do sistema baseava-se numa escola primária de sete e oito anos de estudo, suficiente para o preparo básico. Agora, terminado o curso primário deficiente de apenas 4 anos e meio dia escolar de dois turnos, o aluno se defrontava-se com o curso secundário, dominantemente acadêmico e necessàriamente seletivo. Êste caráter seletivo o tornou particularmente atraente, desenvolvendo-se tôda sorte de pressões sociais para sua expansão de qualquer modo e por todos os meios. Uma das formas que tomou essa expansão foi a da proliferação dos cursos normais de primeiro ciclo, o que se confirma com esse exemplo do Estado do Paraná, que, por um só ato, criou certa vez quase uma centena de cursos normais regionais.

Torna-se necessário recordar que, conforme já referimos, na sistemática da educação brasileira, só a escola primária era dominantemente pública e, na primeira fase da vida republicana, isto é, até 30, também a escola normal e as escolas técnico-profisionais. Quanto ao ensino secundário acadêmico, sob contrôle federal, de caráter eminentemente seletivo, destinado à elite social, o Estado se limitava a manter uma ou poucas escolas públicas, consideradas “modêlo”, deixando livre à iniciativa particular a sua expansão em instituição privada sob fiscalização federal.

Com a integração do ensino normal a essa sistemática do ensino federal, a expansão dêsse ensino no campo privado acompanhou a tendência já estabelecida de atribuir à escola pública a função de simples modêlo para a expansão privada. As escolas privadas de ensino normal entraram a proliferar, do mesmo modo por que havia proliferado o ensino secundário. Essa proliferação se fêz mais fácil na medida em que seu ensino passou a ser de tipo acadêmico, dispensado aparentemente equipamento e especialização dos professôres. A adoção do currículo federal pelas escolas normais levava-as a se considerarem "acadêmicas", o que, numa grosseira corrupção do conceito de acadêmico, significava ensino verbalístico por meio de simples memorização de textos.

4 - Expansão educacional e consciência nascente da importância da formação do professor

As pressões da sociedade em desenvolvimento, desinteressada das velhas preocupações do ''humanismo clássico” e, igualmente, das lúcidas antecipações do “educador público”, preocupado êste, sobretudo, na elaboração de um humanismo científico, conduziram o país a buscar no “industrial trainer”, conforme já referimos, uma liderança pragmática e de certo modo neutra para a sua expansão educacional.

O imediatismo dessa posição acabou por justificar, além da escola primária de 4 anos, a escola média improvisada, o ensino superior de segunda ordem em intensa proliferação, e a descaracterização do ensino vocacional de formação do magistério.

Contudo, não nos iludamos. Apesar da expansão, o sistema escolar continua a se destinar a poucos, que, por isto mesmo, continuam "privilegiados", embora a escola já não seja a mesma da velha educação humanista, que visava a prepará-los apenas para continuarem a compor a elite nacional. Adotou-se, assim, a política do "industrial trainer", sem abandonar as "vantagens" do sistema humanístico e seletivo anterior.

Sob o impulso dessas fôrças de expansão, desapareceu, pràticamente, o dualismo educacional. O sistema educacional integrou-se e expandiu-se tremendamente. Entre 7 e 14 anos mais de 9 milhões de crianças freqüentam a escola primária, cêrca de 2 milhões a escola média e a matrícula do ensino superior também cresce aceleradamente.

Nesta situação, sobremodo confusa, o problema da formação do magistério faz-se o problema máximo da educação brasileira.

Sòmente pela reformulação integral dos moldes e padrões da formação do magistério será possível injetar na expansão desordenada do sistema escolar as fôrças de revisão, reforma e correção que se impõem para a sua gradual reconstrução.

Será o nôvo professor que irá dar consistência e sentido às tendências de popularização da educação primária e do primeiro ciclo da escola média; que irá tornar possível e eficiente o curso de colégio, com suas preocupações de dar cultura técnica, cultura preparatória ao ingresso na universidade e cultura geral de natureza predominantemente científica; e que irá preparar a transformação da universidade para as suas novas funções de introduzir a escola pós-graduada para a formação dos cientistas e a formação do magistério superior, tendo em vista as transformações em curso no sistema escolar, sem esquecer que lhe caberá, inevitàvelmente, uma grande responsabilidade na difusão da nova cultura geral que a atual fase de conhecimentos humanos está a exigir.

Sòmente agora começa a surgir a consciência de que a chave para essa expansão da educação formal, cuja necessidade para o desenvolvimento econômico, social e político acabou por ser reconhecida, está num grande movimento de formação de professôres, em nível superior, para todos os níveis de ensino, inclusive o primário, de um sistema contínuo de educação, que vai da escola primária à universidade.

Considerados os desenvolvimentos recentes, não faltaram esforços para ampliar a formação de professôres primários, bem como certa consciência da necessidade de aperfeiçoamento de professôres improvisados que a expansão determinara e, às vêzes, embora acidentalmente, ensaiou-se a formação especializada de professôres de ciência. A percepção contudo de que urgia não sòmente criação de oportunidades esporádicas de treinamento mas também a reformulação de todo o problema de formação do magistério, em face da transformação educacional, desde a fase primária até a superior, não chegou a se efetivar sobretudo, não se percebeu que a formação do professor secundário de acompanhar, senão antecipar, a formação do professor primário e a formação do professor secundário, a universidade teria de assumir responsabilidade principal. Com essa nova função dominante, sem perder suas preocupações pela formação dos profissionais liberais e pelas novas ocupações de caráter técnico e científico da sociedade em vias de modernização, a universidade teria de se fazer a instituição, por excelência, de formação e professôres, primeiro os seus próprios, pela escola pós­graduada, e depois dos professôres das escolas secundárias e das escolas normais para a grande expansão e conseqüente mudança, radical mudança, do sistema educacional. Não aos ministérios de educação, mas às universidades, caberia o estudo e a crítica dos sistemas escolares em expansão, a formação em massa dos professôres necessários para conduzir a reformulação do ensino médio, e dos professôres do ensino normal para a preparação em grande número do professor primário.

Dominava, entretanto, a universidade brasileira a tradição arraigada de pura e simples formação do profissional liberal. O médico, o advogado e, por último, o engenheiro, eram suas preocupações maiores e quase exclusivas. No mesmo espírito, outras escolas se lhe acresceram, mas sempre com o mesmo caráter de formação profissional.

5 - As Faculdades de Filosofia e a formação do magistério

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, criada na década de 30 exatamente para enfrentar êsse problema na diversificação e expansão dos sistemas escolares, deveria transformar­se na grande escola de formação do professor e de estudo dos problemas de currículo e organização do nôvo sistema escolar. Mas a duplicidade dos propósitos de preparar o professor secundário e, ao mesmo tempo, os especialistas e pesquisadores das diversas disciplinas, sem falar no propósito implícito de difundir a cultura geral, antes reservada ao ensino secundário acadêmico e seletivo, tragado na voragem da expansão tumultuosa dêste ensino, levou a Faculdade de Filosofia a buscar sua distinção no preparo dos especialistas e pesquisadores em ciências e humanidades, ficando residual a função do preparo dos professôres secundários. Pouco importa que a maioria das Faculdades de Filosofia não cheguem senão a essa função residual. A gravidade está em que esta função não é a que atribui às Faculdades de Filosofia a sua distinção e o seu orgulho. O espírito de estrita especialização acadêmica que as caracteriza não se coaduna com a formação do nôvo professor secundário para o primeiro ciclo de ensino médio de cultura comum, nem mesmo para o professor do segundo ciclo de ensino médio de caráter técnico, ou preparatório, e sòmente em pequena parte, de cultura geral acadêmica.

É fácil perceber o sentido que orientou o desenvolvimento das Faculdades de Filosofia. Criada, inicialmente, com o propósito de alargar o campo dos estudos universitários, além das áreas restritas da formação do profissional liberal, deveria ela ministrar a cultura básica para os cursos profissionais, formar os professôres de tipo acadêmico e preparar os "scholars" das suas respectivas disciplinas. Vê-se que sua conceituação não compreendia a formação do professor secundário para a nova escola secundária moderna, estendida a todos os alunos e compreendendo uma variedade de currículos destinados à cultura comum, ao treinamento para o trabalho de nível médio e só parcialmente à formação preparatória acadêmica para a universidade.

O melhor que ela poderia fazer seria preparar aquele professor secundário de cultura acadêmica, o que, de algum modo, estará fazendo com os alunos que não se revelem dotados para a especialização alta, graças à qual se farão candidatos ao magistério superior. Por terem nascido marcadas por esse espírito acadêmico de cultura especializada nas diversas disciplinas, e não pelo espírito vocacional pròpriamente dito, as Faculdades de Filosofia não·se revelaram capazes de ministrar a cultura básica para as profissões liberais nem a cultura dominantemente eclética e prática para os novos cursos secundários. Igualmente, não se revelaram capazes de preparar o professor para os cursos normais, de tipo vocacional, reduzindo-se neste campo à formação em certa especialização pedagógica de validade duvidosa para as disciplinas de pedagogia das escolas normais, recebendo os demais professôres da escola normal preparo especializado de tipo acadêmico.

Veja-se bem que estou usando para o têrmo acadêmico o conceito de ensino do saber pelo saber, apto a desenvolver uma certa capacidade para a futura especialização. A cultura acadêmica forma o "intelectual”, o que representa hoje uma especialização, sem dúvida também vocacional, embora se prefira considerá-la cultura geral.

Nem o curso secundário de hoje, nem o curso normal, são cursos acadêmicos, mas vocacionais, práticos e de cultura aplicada. O curso secundário, quando preparatório para a universidade, pode assumir o caráter estritamente acadêmico para os alunos que se destinem à especialização acadêmica.

O caráter, pois, que as Faculdades de Filosofia assumiram no curso de sua evolução, afastou-as do estudo e da preocupação pelos problemas do magistério secundário e do primário e limitou-as à formação, quando muito dos especialistas nas disciplinas literárias e científicas, tendo mais vista o ensino superior do que o ensino nas escolas de cultura prática de nível secundário ou cultura vocacional das escolas normais.

Os departamentos de educação nessas escolas de filosofia, por terem propósitos vocacionais, são, porque menos acadêmicos, os de menor prestígio, havendo forte pressão para se fazerem também departamentos acadêmicos para ensinar pedagogia.

Resultaram de tudo isto, como dizemos a princípio, a deterioração generalizada das escolas normais e a confusão de objetivos da escola secundária, transformada, sob o impacto de sua expansão, em escolas de cultura comum e prática, mas conservando seus professôres de formação vagamente acadêmica. Uma das conseqüências talvez inesperada dêsse estado de coisas é a complacência com que o país recebe o fato de serem em quase 50% leigos, ou seja, não-diplomados, os professôres primários, e não chegarem a 30% os professôres secundários diplomados pelas Faculdades de Filosofia.

A situação está a exigir profunda transformação dos cursos das Faculdades de Filosofia, pela adoção de currículos especiais para a preparação de grande variedade de professôres secundários do 1º e 2ºciclos e pela criação da escola pós-graduada de educação para a formação pedagógica, após os cursos de bacharelado, do professor já para os cursos médios, já para as escolas normais. Estas escolas normais deverão constituir estabelecimentos de nível de colégio, com curso de 3, 4 ou 5 anos de estudo para a formação do professor primário do curso elementar de 4 anos e complementar de 2 anos, ora em vias de serem instituídos. Impõe-se que se façam escolas tìpicamente voca­ cionais, que integrem os sistemas estaduais de educação, dentro de sua tradição original. Êste é hoje o problema máximo da reconstrução educacional do Brasil. Não se trata de mais uma reforma por ato legislativo, tão do gôsto do país, mas de longo e difícil processo de estudo, revisão e reformulação do conteúdo dos cursos, de elaboração de novos livros de fontes e de texto, de novos tipos de currículos e de descoberta dos métodos novos exigidos para a eficiência dos novos e variados programas, que a expansão desordenada e acidental do sistema escolar, hoje integrado, criou e que se está tentando executar sem os instrumentos necessários e sem a formação adequada dos novos professôres para a escola primária reduzida ao nível elementar, e para a escola média compreensiva e complexa, com os seus cursos diversificados de educação comum, educação vocacional e educação preparatória à universidade.

A unificação do sistema educacional brasileiro encontrou na Lei de Diretrizes e Bases o seu reconhecimento, pois outra coisa não significam os dispositivos que transferem aos Estados a competência de organizá-lo e administrá-lo em sua totalidade, ficando o sistema federal limitado à ação supletiva nos estritos limites das deficiências locais. Sòmente nos Territórios ficou com o Govêrno Federal a atribuição de organizar todo o sistema público. Como o sistema de ensino superior vem constituindo a parte dominante da ação supletiva federal, a atuação dêsse sistema federal sôbre o sistema dos Estados deve manifestar-se pela formação do professor de nível médio e superior.

Estando as escolas normais de formação do magistério primário ainda em nível médio, a sua organização, administração e fiscalização competem aos Estados, ficando-lhes assegurado o caráter regional, sem perda de seus aspectos nacionais, pela formação em nível superior do professor de curso normal.

*Estudo especial apresentado ao Conselho Federal de Educação. Publicado originalmente na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v.46, n.104, p.278-287, out./dez.1966. Foi mantida a ortografia e a estrutura gramatical do original.

Recebido: 02 de Julho de 2022; Aceito: 18 de Julho de 2022

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