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Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versão impressa ISSN 0034-7183versão On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.103 no.264 Brasília maio/ago 2022

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.103i264.4964 

Estudos

Leitura, compreensão e produção de textos na educação infantil: o que prescrevem os currículos de seis países?

Reading, comprehension and production of written texts in early childhood education: What do the curricula of six countries prescribe?

Lectura, comprensión y producción de textos en la educación infantil: ¿Qué prescriben los currículos de seis países?

Artur Gomes de MoraisI  II 
http://orcid.org/0000-0002-2325-0315

Alexsandro da SilvaIII  IV 
http://orcid.org/0000-0002-1943-8227

IUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: <agmorais59@gmail.com>.

IIDoutor em Psicologia pela Universitat de Barcelona (UB). Barcelona, Catalunha, Espanha.

IIIUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE). Caruaru, Pernambuco, Brasil. E-mail: <alexsandro.silva2@ufpe.br>.

IVDoutor em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, Pernambuco, Brasil.


Resumo:

Neste artigo, analisa-se o que os currículos de seis diferentes países prescrevem, atualmente, sobre o ensino de leitura, compreensão e produção de textos escritos durante a etapa de educação infantil. Para tanto, realizou-se uma pesquisa documental que teve como corpus os documentos curriculares nacionais do Brasil, de Portugal, do Canadá - Quebec, da França, do México e da Espanha, os quais foram tratados por meio da análise temática categorial de conteúdo. Os resultados evidenciaram que existe, em todos os currículos examinados, um compromisso com o letramento das crianças menores de 6 anos. Sem assumir o ensino de estratégias de compreensão de leitura e de produção de textos escritos específicas, os documentos prescrevem a promoção do interesse por ler e escrever textos, as habilidades de recontar histórias e de manusear suportes de escrita. Também defendem a produção de textos coletivos, tendo o professor como escriba, além das tentativas infantis de escrita individual, mesmo que notadas com grafias ainda não convencionais.

Palavras-chave: currículo; educação infantil; letramento

Abstract:

This article analyzes what the curricula of six different countries prescribe, nowadays, on the teaching of reading, comprehension and production of written texts during the early childhood education. To this end, a documentary investigation was carried out that had as a corpus the national curricular documents of Brazil, Portugal, Canada - Quebec, France, Mexico and Spain, which were treated through the categorical thematic analysis of content. Results demonstrated that, in all the curricular documents examined, there is a commitment to the literacy of children under six years of age. Not assuming the teaching of reading comprehension strategies nor the production of specific written texts, the documents prescribe the promotion of interest in reading and writing texts, the skills of retelling stories and handling writing aids. They also defend the production of collective texts, with the teacher playing the role of scribe, in addition to children’s attempts at individual writing, even if they are written in non-conventional symbols.

Keywords: curriculum; early childhood education; literacy

Resumen:

En este artículo se analiza lo que los currículos de seis países diferentes prescriben, actualmente, sobre la lectura, comprensión y producción de textos escritos durante la etapa de la educación infantil. Para ello, se realizó una investigación documental que tuvo como corpus los documentos curriculares nacionales de Brasil, Portugal, Canadá -Quebec, Francia, México y España-, que fueron tratados por medio de análisis temático categorial de contenido. Los resultados evidenciaron que existe, en todos los currículos examinados, un compromiso con la literacidad de los niños menores de seis años. Sin asumir la enseñanza de estrategias de comprensión de lectura o de producción de textos específicos, los documentos prescriben la promoción del interés por leer y escribir textos, las habilidades de recuento de historias y de manejo de soportes de escritura. También defienden la producción de textos colectivos, teniendo al docente como escriba, además de los intentos de escritura individual de los niños, aunque anotados con grafías no convencionales.

Palabras clave: currículo; educación infantil; literacidad

Introdução

Neste artigo, relatamos uma pesquisa, de natureza documental, que teve como objetivo examinar o que os currículos de seis países de línguas românicas (português, francês e espanhol), situados na Europa ou no continente americano (Brasil, Portugal, França, Canadá - Quebec, Espanha e México), prescrevem, atualmente, sobre o ensino de leitura, compreensão e produção de textos escritos durante a etapa de educação infantil.

Inicialmente, faremos uma revisão de como, há quase quatro décadas, quando ainda não usávamos o termo “letramento” nem o seu conceito, descobríamos que o fato de a criança vivenciar práticas nas quais compartilhava com adultos a leitura e a escrita de textos favorecia sua imersão no mundo da escrita. Em seguida, após situar nossa compreensão sobre currículos, examinaremos o que documentos brasileiros, anteriores à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), vinham prescrevendo para o tratamento das práticas letradas na etapa de educação infantil, tanto em nível nacional como municipal.

Posteriormente, descreveremos a metodologia adotada e os seis currículos examinados. As evidências decorrentes de nossas análises serão, então, apresentadas em blocos que especificam e discutem: i) os gêneros textuais prescritos pelos documentos para leitura na educação infantil; ii) as habilidades e os conhecimentos a serem promovidos em relação à leitura e à compreensão de textos escritos na educação infantil; iii) os gêneros e as práticas de escrita de textos a serem vivenciados com as crianças nessa etapa da escolarização básica.

Em nossas considerações finais, além de discutirmos as convergências e as singularidades dos currículos investigados, examinaremos como, no caso brasileiro, as recentes prescrições decorrentes da Política Nacional de Alfabetização (PNA), imposta pelo Ministério da Educação (MEC), em 2019, podem representar um retrocesso ao que vinha sendo debatido e praticado tanto nas instâncias de pesquisa como nas instituições que acolhem crianças menores de 6 anos de idade.

Marco teórico

Para fundamentarmos teoricamente este estudo, dividimos esta seção em duas partes: “Efeitos da vivência de práticas de letramento antes da entrada no ensino fundamental”; e “Os currículos e as prescrições de documentos brasileiros a respeito da leitura e da escrita de textos na educação infantil”.

Efeitos da vivência de práticas de letramento antes da entrada no ensino fundamental

Desde o início dos anos de 1980, dispomos de evidências de que a participação em situações de leitura de textos que circulam socialmente constitui uma condição fundamental para o sucesso no processo de alfabetização. No mundo anglo-saxão, autores como Scollon e Scollon (1981), Heath (1982) e Wells (1986) produziram evidências que atestaram o quanto a vivência precoce de experiências de letramento, no contexto familiar, geraria efeitos positivos no desempenho das crianças na escola. Estudos como os dos autores mencionados demonstraram que o fato de uma criança compartilhar com um adulto a leitura de contos de fadas ou de outras narrativas fazia com que ela (a criança), mesmo ainda não alfabetizada, incorporasse a linguagem própria de gêneros escritos do universo infantil, o que lhe permitiria melhor atender às expectativas escolares com relação à compreensão e à escrita de textos, logo após a etapa de alfabetização inicial.

No Brasil, na mesma década, investigações pioneiras também produziram evidências nessa direção. Em um estudo de caso intitulado Descobrindo a língua escrita antes de aprender a ler: algumas implicações pedagógicas, Rego (1985) demonstrou que, mesmo ainda não tendo alcançado uma hipótese alfabética de escrita, Fabiana - a criança por ela acompanhada - já era capaz de inventar textos adequados, ao tentar ler as manchetes de um jornal ou uma página do livro de receitas da mãe. De modo semelhante, mesmo sem ainda poder escrever convencionalmente, a criança produzia poesias com rimas, ao querer escrever um poema para sua mãe, ou inventava histórias de ficção que já revelavam um domínio da macroestrutura textual das histórias infantis e a busca de um léxico e de uma sintaxe próprios daqueles gêneros escritos.

Em um estudo de caso longitudinal, divulgado inicialmente em 1990, Mayrink-Sabinson (1998) evidenciou que a convivência em um ambiente letrado e a participação em eventos de letramento mediados ativamente pelos adultos propiciava, desde muito cedo, a incorporação de usos e de funções da língua escrita por Lia, a criança cujo percurso foi acompanhado na investigação. Com pouco menos de 2 anos, Lia, por exemplo, rabiscava com uma caneta uma folha de papel, enquanto estava com o telefone de brinquedo no ouvido. Aos 2 anos e 7 meses, em outra situação relatada, a menina, ao brincar com a mãe de dar remédio ao seu urso de pelúcia, fazia de conta que lia uma bula de remédio, usando como suporte um toquinho de madeira que estava à sua disposição.

Em uma época na qual ainda não usávamos o termo e o conceito de letramento, despertávamos, portanto, para a necessidade de a escola investir na exploração de textos no ano dedicado à alfabetização e mesmo na pré-escola, como designávamos a etapa de educação infantil. Assim, há mais de 30 anos, Soares (1988) já alertava para a desaprendizagem das funções e das características da escrita provocada pelos pseudotextos apresentados às crianças nas cartilhas. Muitos pesquisadores e educadores passaram, então, a defender um ensino de língua por meio de textos (Geraldi, 1984) e, especialmente, no caso da alfabetização, de textos infantis da esfera literária (Rego, 1988).

Desde então, parece ter se constituído certo consenso quanto à relevância da participação de crianças pequenas em eventos e práticas de letramento antes de saberem ler e escrever de modo convencional. Nesse sentido, a participação em rodas de leitura, em que o professor lê em voz alta histórias e outros gêneros textuais, e a vivência de situações de produção coletiva de textos, tendo o professor como escriba, tendem a ser propostas já bem frequentes nas salas de aula da educação infantil. O que parece constituir objeto de divergência nesse campo é a necessidade ou não do desenvolvimento de estratégias ou habilidades de compreensão leitora e de produção de textos com crianças menores de 6 anos, assim como de situações de reflexão sobre as palavras e as suas unidades internas.

Kleiman (2009), por exemplo, defende explicitamente o trabalho sistemático com projetos de letramento na educação infantil, ao mesmo tempo que propõe o desenvolvimento de experiências informais e assistemáticas de ensino e de aprendizagem do que designa como “código”. Nos cadernos da coleção Leitura e escrita na educação infantil, incorporada como material de formação continuada no âmbito do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) - educação infantil, percebemos a presença intensa de discussões em torno do letramento, mas não no que diz respeito à apropriação da notação alfabética (Brasil. MEC, [2016]).

O que currículos e outros documentos curriculares reguladores brasileiros anteriores à BNCC prescreviam com relação à leitura e à escrita de textos na educação infantil? Na próxima subseção, voltaremos nosso olhar para esse aspecto, com o objetivo de contextualizar, no âmbito nacional, o que tem sido proposto em nosso País.

Os currículos e as prescrições de documentos brasileiros a respeito da leitura e da escrita de textos na educação infantil

O termo “currículo”, cuja definição não é simples de precisar (Lopes; Macedo, 2013), corresponde sempre a uma seleção operada no interior da cultura de uma determinada sociedade, realizada com base em um conjunto maior de possibilidades (Forquin, 1993). Essas escolhas constituem, portanto, os saberes considerados legítimos para integrarem, em determinado contexto sócio-histórico e geográfico, o currículo escolar, de modo a refletir os interesses hegemônicos daqueles que ali detinham o poder de decidir ou de influenciar a definição de “o que ensinar”.

Além do documento formal instituído pelos ministérios ou departamentos da educação e pelas redes municipais e estaduais de ensino com a prescrição do que deve ser ensinado nas escolas (o chamado currículo prescrito), a noção de currículo engloba também as experiências de ensino e de aprendizagem vividas por estudantes e docentes no cotidiano escolar (o currículo vivido ou o currículo em ação). Neste artigo, usaremos o termo currículo em seu sentido mais estrito de documento curricular prescrito pelas instâncias oficiais às escolas de uma cidade, estado ou país, considerando que temos como foco de análise os currículos nacionais de seis diferentes países, incluindo o Brasil.

Nos 20 anos que antecederam a implantação da BNCC, em 2017, tivemos dois documentos nacionais que prescreviam o ensino a ser praticado na educação infantil: o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil - RCNEI (Brasil. MEC, 1998) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI (Brasil. MEC, 2010).

No terceiro volume do RCNEI, na seção dedicada à “linguagem oral e escrita”, ressalta-se a importância de a escola propiciar um ambiente letrado, que favoreça o contato das crianças com o mundo da escrita. Ao mesmo tempo que defende o direito de as crianças produzirem escritas não convencionais, naquela etapa da escolarização, o documento, na seção relativa ao grupo de 4 a 6 anos de idade, destina dois tópicos aos temas “práticas de leitura” e “práticas de escrita”. Ali se defende a leitura de diferentes gêneros textuais nas rodas de conversa, bem como o reconto de histórias. Os docentes são chamados a assumir o papel de escribas de textos produzidos coletivamente com o grupo-classe e a estimular as crianças a produzirem textos individuais, mesmo que ainda de modo não convencional (Brasil. MEC, 1998).

No final da década seguinte, as DCNEI, implementadas a partir do Parecer CNE/CEB nº 20, de 11 de novembro de 2009, explicitam que:

[...] a linguagem escrita é objeto de interesse pelas crianças. Vivendo em um mundo onde a língua escrita está cada vez mais presente, as crianças começam a se interessar pela escrita muito antes que os professores a apresentem formalmente. Contudo, há que se apontar que essa temática não está sendo muitas vezes adequadamente compreendida e trabalhada na educação infantil. O que se pode dizer é que o trabalho com a língua escrita com crianças pequenas não pode decididamente ser uma prática Mecânica desprovida de sentido e centrada na decodificação do escrito. Sua apropriação pela criança se faz no reconhecimento, compreensão e fruição da linguagem que se usa para escrever, mediada pela professora e pelo professor, fazendo-se presente em atividades prazerosas de contato com diferentes gêneros escritos, como a leitura diária de livros pelo professor, a possibilidade da criança desde cedo manusear livros e revistas e produzir narrativas e ‘textos’, mesmo sem saber ler e escrever. (Brasil. MEC. CNE, 2009, p. 15-16).

Como observam Brandão e Leal (2013), o tom desse documento é de aceitação e promoção de práticas vinculadas ao letramento e de ressalva ao ensino da escrita alfabética, sobre o qual as DCNEI optam por focalizar apenas o que não deve ser feito na escola. Entendemos que esse documento assume uma posição de não priorização da língua escrita como objeto de conhecimento, que é tratada no conjunto de linguagens, sem assumir nenhum lugar de destaque, apesar de as crianças estarem imersas no mundo da escrita e se interessarem, desde cedo, pelos seus usos e funções sociais e por sua notação.

Brandão e Leal (2013) analisaram os currículos de nove capitais brasileiras, relativos à educação infantil, visando identificar o que propunham sobre o ensino do sistema alfabético e sobre as práticas de leitura e produção de textos. As autoras constataram que sete das nove propostas municipais orientavam os professores a promoverem situações de contato com a leitura e a estimularem o gosto e o interesse por ler e preconizavam situações de reconto ou conversas acerca dos textos lidos. Oito currículos sugeriam aos docentes que diversificassem os gêneros textuais e os suportes usados em tais ocasiões. Também verificaram que sete currículos orientavam os professores a atuarem como escribas de textos produzidos coletivamente com seus alunos.

De modo geral, as autoras perceberam que havia menos ênfase sobre o ensino da escrita alfabética do que sobre a promoção de práticas letradas com gêneros textuais escritos. Os documentos oscilavam entre a perspectiva de “alfabetizar letrando” (cinco dos nove currículos) e a posição que defende um “letramento sem letras” (três dos nove currículos), identificadas alguns anos antes por elas (Brandão; Leal, 2010). Além disso, havia um currículo que assumia a perspectiva de “preparação para a alfabetização”, por meio de atividades motoras e discriminação perceptiva.

Na seção a seguir, descreveremos a metodologia adotada na investigação, que, como já dissemos, objetivou analisar o que os currículos de seis diferentes países prescrevem, atualmente, sobre o ensino de leitura, compreensão e produção de textos escritos durante a etapa de educação infantil.

Metodologia

Considerando o documento como produto do contexto sócio-histórico no qual ele foi fabricado (Le Goff, 1990), realizamos uma pesquisa documental que teve como corpus, tal como já dito, seis currículos de seis países diferentes (Brasil, Portugal, Canadá - Quebec, França, México e Espanha) onde se falam línguas românicas (português, francês e espanhol). Em pesquisas dessa natureza, a geração dos dados consiste “[...] em reunir os documentos, em descrever ou transcrever eventualmente seu conteúdo e talvez em efetuar uma primeira ordenação das informações para selecionar aquelas que parecem pertinentes” (Laville; Dionne, 1999, p. 168). Neste estudo, realizamos também, quando necessário, a tradução de trechos dos documentos selecionados.

No Quadro 1, sintetizamos uma descrição dos seis currículos que compuseram o corpus da pesquisa, detalhamos como a educação infantil era tratada em cada um deles e explicitamos alguns aspectos de sua organização geral. Buscamos também identificar os componentes específicos que enfocam o ensino e o aprendizado da leitura, da compreensão e da produção de textos escritos em tais documentos.

Fonte: Elaboração própria

Quadro 1  Breve descrição dos seis currículos analisados em sua organização geral e específica para o ensino de leitura e de produção de textos 

Os dados gerados por meio da pesquisa documental foram tratados por intermédio da análise temática categorial de conteúdo (Bardin, 1979). Ao levarmos em conta o objetivo da investigação, elencamos três grandes categorias analíticas: i) os gêneros textuais prescritos pelos documentos para leitura na educação infantil; ii) as habilidades e os conhecimentos a serem promovidos com relação à leitura e à compreensão de textos escritos na educação infantil; iii) os gêneros e as práticas de escrita de textos a serem vivenciados com as crianças nessa etapa da escolarização básica.

Objetivando maior exaustividade e rigor na categorização dos dados, os documentos foram analisados por dois pesquisadores independentes. Nos casos de divergência, que foram inferiores a 10% das categorizações realizadas, chegou-se a um consenso entre os dois ou se recorreu ao julgamento de um terceiro pesquisador da área.

Análises de resultados

Nesta seção, dividimos a análise dos resultados em dois momentos: as práticas de leitura de textos e a promoção da compreensão leitora; e as práticas de produção de textos escritos e os gêneros textuais que as crianças são convidadas a produzir.

As práticas de leitura de textos e a promoção da compreensão leitora

Que gêneros e portadores textuais as crianças deveriam explorar na educação infantil, em situações de leitura, segundo os currículos analisados? No Quadro 2, sintetizamos os dados referentes aos portadores e aos gêneros citados pelos documentos dos seis países.

Fonte: Elaboração própria

Quadro 2  Portadores e gêneros textuais propostos para leitura nos seis currículos analisados 

Como podemos observar no Quadro 2, são sugeridos diferentes portadores de texto nas situações de leitura, sendo o livro o único suporte citado por todos os currículos. O cartaz é mencionado por três currículos, enquanto os rótulos aparecem em dois. Com relação aos gêneros, percebemos uma diversidade maior, além da predominância de gêneros da esfera literária, como história, conto, fábula, lendas e poemas, bem como exemplares da tradição oral, como canções, cantigas de roda e parlendas. Ao lado dos textos literários, identificamos também gêneros como receitas, instruções, relatos, convites e notícias, que foram citados, cada um, por apenas um currículo. Em alguns currículos, encontramos, por vezes, não propriamente gêneros, mas, sim, categorias mais amplas (textos literários, documentais, informativos) ou tipos textuais (narração, descrição). Entre os currículos analisados, a BNCC é o que propõe um conjunto mais diversificado de gêneros e de portadores textuais, seguida pelo Decreto espanhol.

Com relação às práticas de leitura propostas, encontramos, na BNCC, a prescrição de algumas habilidades que visam motivar as crianças bem pequenas e as pequenas a participarem de situações de leitura ou de, autonomamente, interessarem-se por diferentes suportes textuais: “(EI01EF02) demonstrar interesse ao ouvir a leitura de poemas e a apresentação de músicas”; “(EI01EF03) demonstrar interesse ao ouvir histórias lidas ou contadas, observando ilustrações e os movimentos de leitura do adulto-leitor (modo de segurar o portador e de virar as páginas)” (Brasil. MEC, 2018, p. 49); e “(EI03EF08) selecionar livros e textos de gêneros conhecidos para a leitura de um adulto e(ou) para sua própria leitura (partindo de seu repertório sobre esses textos, como a recuperação pela memória, pela leitura das ilustrações etc.)” (Brasil. MEC, 2018, p. 50). Além de evidenciar o papel do adulto como leitor-modelo, também se sugere que as crianças bem pequenas já venham a acompanhar “(EI02EF03) [...] a direção da leitura (de cima para baixo, da esquerda para a direita)” e que, mesmo as menores, sejam estimuladas a “(EI01EF05) imitar as variações de entonação e gestos realizados pelos adultos, ao ler histórias e ao cantar” (Brasil. MEC, 2018, p. 49).

No que diz respeito à compreensão de leitura, vemos, na BNCC, um menor investimento. Além de esperar-se que as crianças possam “(EI02EF05) relatar [...] histórias ouvidas” (Brasil. MEC, 2018, p. 49) - não explicitando se são relatos de textos lidos ou contados pelo adulto -, preconiza-se que os meninos e as meninas da última faixa etária possam “(EI03EF04) recontar histórias ouvidas [...], definindo os contextos, os personagens, a estrutura da história” (Brasil. MEC, 2018, p. 49), também sem definição quanto ao formato das histórias ouvidas (contadas ou lidas). Cabe ressaltar que a discussão introdutória do campo de experiência “escuta, fala, pensamento e imaginação”, que aparece antes da listagem de habilidades ou objetivos a ele concernentes, não aprofunda razões para a promoção da leitura e da compreensão de textos nem apresenta sugestões de atividades que as promovam.

As Orientações Curriculares de Portugal dedicam nada menos que oito páginas de seu texto à discussão e à prescrição de práticas ligadas ao letramento. Ao começar a enfocar a abordagem à escrita, esse currículo esclarece que “não se trata de uma introdução formal e ‘clássica’, mas de facilitar a emergência da linguagem escrita através do contacto e uso da leitura e da escrita, em situações reais e funcionais associadas ao quotidiano da criança” (Portugal, 2016, p. 66). Assim, a “[...] apropriação das funções da leitura e da escrita vai-se processando gradualmente, em contexto e através de uso” (Portugal, 2016, p. 67). Isso é exemplificado por meio de propostas que incluem também o uso das tecnologias da informação e comunicação (TICs):

[...] procurar com as crianças informações em livros ou na internet, cujo texto o(a) educador(a) vai lendo e comentando, de modo que as crianças interpretem o sentido, retirem suas ideias fundamentais e reconstruam a informação [...]. (Portugal. MEC, 2016, p. 68).

Os docentes são ainda estimulados, na leitura de uma história, a “[...] partilhar com as crianças as suas estratégias de leitura [...], por exemplo, ler um título para que as crianças possam dizer do que trata a história, propor que prevejam o que vai acontecer a seguir, identificar os nomes e as atividades das personagens [...]” (Portugal. MEC, 2016, p. 70). Como singularidade, no conjunto de currículos analisados, observamos que o documento português é o único a propor aos educadores “[...] envolve[r] as famílias nas práticas de leitura desenvolvidas no jardim de infância, incentivando a sua colaboração” (Portugal. MEC, 2016, p. 70).

Na França, o Programme de l’école maternelle assume que o desafio da escola é:

[...] habituar as crianças à recepção da linguagem escrita, a fim de que compreendam seu conteúdo. O ensino toma como tarefa a leitura e anima as trocas que se seguem à escuta [dos textos lidos]. A progressão reside essencialmente na escolha de textos mais e mais longos e distanciados da linguagem oral; se a literatura infantil tem aí um lugar de destaque, os textos documentais não devem ser negligenciados. (France, 2015, p. 8, tradução nossa).

Também orienta os docentes da educação infantil, afirmando que “[...] as crianças descobrem [as funções da escrita] utilizando diversos suportes (livros variados, cartazes, cartas, mensagens eletrônicas ou telefônicas, rótulos etc.) relacionados com as situações de sala ou os projetos [didáticos] que os tornam necessários” (France, 2015, p. 8, tradução nossa). A meta é que, ao final da educação infantil, as crianças possam “compreender textos escritos somente por meio de sua escuta” (France, 2015, p. 10, tradução nossa). Não há no documento, contudo, a discriminação de diferentes estratégias de compreensão leitora a serem promovidas antes dos 6 anos de idade.

O Programme da região de Quebec, no Canadá, no início da sua seção “Familiarizar-se com a escrita” (Canadá, 2017, p. 31, tradução nossa) sugere ao professor que observe se a criança “demonstra interesse por livros e histórias”, por “folhear livros página por página” e por “fazer de conta que lê, utilizando as ilustrações ou recordando uma história que já foi lida para ela”. Ao lado de objetivos mais gerais, como “descobrir para que servem a leitura e a escrita”, há indicações de que a criança deverá conversar sobre uma história lida e “encontrar o começo de um livro e seu título”, além de “reconhecer que alguns termos são ligados aos livros (por exemplo: uma página, um título, uma capa, um autor, um ilustrador)”.

No caso do Decreto da Espanha, ao enfocar, especificamente, o ensino das crianças de 4 e 5 anos, no segundo ciclo da educação infantil, o currículo espanhol assume que, nessa etapa, espera-se que:

Meninos e meninas descubram e explorem os usos da leitura e da escrita, despertando e afiançando seu interesse por elas. A utilização funcional e significativa da leitura e da escrita na sala de aula os levará, com uma intervenção educativa adequada, a iniciar-se no conhecimento de algumas das propriedades do texto escrito e de suas características convencionais, cuja aquisição se completará no primeiro ciclo da educação primária. (Comunidad de Madrid. Consejería de Educación, 2008, p. 12, tradução nossa).

No que concerne aos objetivos previstos, tanto na seção que remete à “aproximação da escrita”, em geral, como naquela que se refere à “aproximação da literatura”, encontramos prescrições de tipo atitudinal como:

[...] compreender, reproduzir e recriar alguns textos literários, mostrando atitudes de valoração, deleite e interesse para com eles [...];

[...] interesse e atenção à escuta de narrações, explicações, instruções ou descrições lidas por outras pessoas [...];

[...] e utilização da biblioteca com respeito e cuidado, valoração da biblioteca como recurso informativo de entretenimento e deleite (Comunidad de Madrid. Consejería de Educación, 2008, p. 13-14, tradução nossa).

Outros objetivos do Decreto espanhol remetem à compreensão leitora ou ao uso dos suportes de escrita e seus modos de manuseio:

[...] escuta e compreensão de contos, relatos, lendas, poesias, rimas ou adivinhações, tanto tradicionais como contemporâneas, como fonte de prazer e de aprendizagem [...].

[...] uso, gradualmente autônomo, de diferentes suportes da língua escrita como livros, revistas, periódicos, cartazes ou rótulos. (Comunidad de Madrid. Consejería de Educacíon, 2008, p. 14).

O tom geral, ao tratar da compreensão de leitura, é também amplo e sem especificações, como nesse último objetivo.

Por fim, ao examinar a Propuesta Curricular mexicana, encontramos uma série de objetivos vinculados ao letramento das crianças da etapa pré-escolar. Nesse documento, na seção temática “Uso da biblioteca”, propõe-se levar as crianças menores de 6 anos tanto a “explorar os acervos e selecionar textos para acompanhar a leitura feita por pessoas à sua volta” como “promover a manipulação e ‘leitura’ autônoma de livros”. No âmbito da familiarização e compreensão, encontramos ainda objetivos como: “predizer o conteúdo de textos literários e informativos a partir dos indicadores textuais do portador” e “expressar opiniões sobre as histórias e os textos literários” (México, 2016, p. 71-74, tradução nossa).

No campo formativo que trata de “Língua materna e literatura - línguas de origem”, a Propuesta Curricular mexicana também traz uma série de objetivos que remetem ao letramento nas diversas línguas indígenas do país. Nessa seção do documento, os docentes são chamados a favorecer nas crianças a visão de que seu país é uma nação multilíngue. Para tanto, também nas diversas línguas dos povos originais, deverão ser praticados na educação infantil objetivos como “identificar situações de escrita em casa e na comunidade”; “seguir ou dar instruções para elaborar um convite ou um livro”; “antecipar títulos e conteúdos de um texto”; e “explorar em vídeos e livros se há outras culturas que fazem algo parecido” (México, 2016, p. 82-88, tradução nossa).

As práticas de produção de textos escritos e os gêneros textuais que as crianças são convidadas a produzir

Na BNCC, encontramos a indicação de um objetivo de aprendizagem que envolve a produção coletiva de textos escritos (reconto de história), tendo o professor como escriba, além de três objetivos de aprendizagem relacionados à escrita espontânea de textos pelas crianças: “(EI03EF01) expressar ideias, desejos e sentimentos sobre suas vivências, por meio da linguagem oral e escrita (escrita espontânea), de fotos, desenhos e outras formas de expressão”; “(EI03EF05) recontar histórias ouvidas para produção de reconto escrito, tendo o professor como escriba” (Brasil. MEC, 2018, p. 49); “(EI03EF06) produzir suas próprias histórias orais e escritas (escrita espontânea), em situações com função social significativa”; e “(EI03EF09) levantar hipóteses em relação à linguagem escrita, realizando registros de palavras e textos, por meio de escrita espontânea” (Brasil. MEC, 2018, p. 50). Não há, porém, nenhum desdobramento desses objetivos em orientações didáticas para o(a) professor(a).

As Orientações Curriculares de Portugal também propõem, mesmo que de modo amplo, objetivos de aprendizagem relacionados tanto à produção de textos escritos, tendo o adulto como escriba, quanto à escrita espontânea de textos pela criança. Uma das aprendizagens a serem promovidas, segundo o documento, consiste em usar a leitura e a escrita com diferentes funcionalidades nas atividades, rotinas e interações com outros” (Portugal, 2016, p. 68). Essa aprendizagem poderia ser observada, por exemplo, quando a criança:

[...] utiliza e(ou) sugere a utilização da linguagem escrita no seu dia a dia, em tarefas diversas, com funções variadas, quer solicitando o apoio de um adulto quer de modo autônomo, mesmo sem saber ler e escrever [ou] pede aos adultos que lhe leiam ou escrevam numa situação concreta, para responder a uma necessidade. (Portugal, 2016, p. 68).

O documento curricular de Portugal explicita ainda como o(a) educador(a) pode promover essas aprendizagens:

[...] usando diversas formas de utilização da escrita (realização de cartazes informativos construídos e ilustrados com as crianças, escrita em conjunto de cartas com diversas finalidades e para diferentes destinatários etc.) [...];

[...] lendo e falando sobre as notícias do jornal e da televisão e escrevendo notícias relatadas pelas crianças, de forma a levá-las a perceberem e a utilizarem a função informativa da linguagem escrita e a compreenderem as especificidades da estrutura deste tipo de texto [...];

[...] envolve as crianças na escrita de avisos e mensagens para as famílias (visitas de estudo, atividades, acontecimentos etc.); lê e escreve com e para as crianças, utilizando diferentes tipos de texto, ilustrando assim como se pode usar a leitura e a escrita [...];

[...] cria oportunidades para a criança ‘imitar’ a escrita e a leitura da vida corrente, através da introdução de material diversificado de leitura e de escrita em diferentes áreas da sala. (Portugal, 2016, p. 69).

No Programme de l’école maternelle da França, a meta é a de que, ao final da educação infantil, as crianças possam “participar oralmente da produção de um escrito”, além de “saber que não se escreve como se fala” (France, 2015, p. 11, tradução nossa). Entre os objetivos visados, prescrevem-se os seguintes: “começar a produzir escritos e descobrir o seu funcionamento” e “começar a escrever autonomamente”. Com relação ao primeiro objetivo, que se relaciona à produção coletiva de textos tendo o professor como escriba, o documento propõe que:

É o professor quem decide quando as crianças estão prontas para assumir uma parte das atividades que os adultos realizam com a palavra escrita. [...] Esse apoio parcial é feito na produção [coletiva do texto] e, em grande parte, com a ajuda de um adulto. (France, 2015, p. 9, tradução nossa).

O Programme da França menciona também que “qualquer produção de escritos requer diferentes etapas e, portanto, tempo antes de ser bem-sucedida” (France, 2015, p. 9, tradução nossa). Entre essas etapas, duas são explicitadas: a elaboração oral preliminar do texto, que “[...] permite a tomada de consciência das transformações necessárias de um enunciado oral em frases a serem escritas”, e o ditado do texto oral ao adulto, que é “a escrita em si” (France, 2015, p. 9, tradução nossa). Não há, todavia, explicitação das operações de revisão e de reelaboração de textos produzidos.

Quanto ao segundo objetivo, que se refere às escritas não convencionais de textos pelas próprias crianças, o documento francês assume que: “no final da educação infantil, as crianças começam a ter recursos para escrever, e o professor incentiva-as a fazê-lo ou valoriza suas tentativas espontâneas de escrita” (France, 2015, p. 9, tradução nossa). Nesse sentido, propõe que:

As primeiras tentativas de escrita permitem ao professor ver que as crianças começam a compreender a função e o funcionamento da escrita, mesmo que só aos poucos elas aprendam as suas regras. Ele [o professor] comenta esses textos com seus autores (o que eles queriam dizer, o que escreveram - o que evidencia que eles já têm conhecimento sobre textos escritos), depois escreve [o texto] em francês escrito padronizado, destacando as diferenças [entre as duas versões]. (France, 2015, p. 11, tradução nossa).

O Programme de l’éducation préscolaire de Quebec, Canadá, sugere, no componente “Familiarizar-se com a escrita”, que o professor observe se a criança, sozinha ou com um pouco de ajuda, “[...] escreve uma palavra ou uma história à sua maneira (rabiscos, símbolos ou letras misturadas)” (Canadá, 2017, p. 61, tradução nossa). Ao lado desse objetivo, que se refere à escrita espontânea de textos, propõe, como pista de intervenção, que com ajuda do adulto a criança seja convidada a “[...] participar da escrita de histórias coletivas ou individuais (ditar [o texto] ao adulto)” (Canadá, 2017, p. 61, tradução nossa). Não há, porém, no documento, indicação mais detalhada das práticas de produção coletiva de textos tendo o adulto como escriba nem de escrita não convencional pelas próprias crianças.

No Decreto de Madrid, Espanha, que diz respeito ao segundo ciclo da educação infantil, não aparecem, especificamente, objetivos ou conteúdos relativos à produção de textos escritos. Menciona-se apenas o amplo objetivo: “iniciar-se nos usos sociais da leitura e da escrita, explorando seu funcionamento e valorizando-os como instrumento de comunicação, informação e diversão” (Comunidad de Madrid. Consejería de Educación, 2008, p. 19, tradução nossa). No que concerne aos conteúdos previstos na seção “Aproximação à língua escrita”, encontramos apenas duas indicações que se relacionam à escrita de textos, sendo uma de natureza procedimental e a outra, atitudinal: “uso da escrita para cumprir propósitos reais” e “gosto por produzir mensagens com traços cada vez mais precisos e legíveis” (Comunidad de Madrid. Consejería de Educación, 2008, p. 20, tradução nossa). Não há, portanto, nesse documento, investimento no eixo da produção de textos escritos, sejam eles notados pelas próprias crianças, sejam eles produzidos tendo o professor como escriba.

Por fim, na Propuesta mexicana, encontramos diversos objetivos relacionados à produção de textos escritos na etapa pré-escolar. Na seção temática “Produção e correção de textos”, propõe-se como objetivo: “construir textos coletivos, com a ajuda da educadora, experimentando diversos recursos linguísticos e gráficos” (México, 2016, p. 72, tradução nossa). Na seção “Ler, compartilhar, produzir e interpretar narrações”, encontramos como objetivos: “elaborar uma narrativa e ditá-la à educadora” e “revisar as narrativas e corrigi-las coletivamente” (México, 2016, p. 72, tradução nossa). No âmbito da análise de meios de comunicação diversos - impressos (como revistas e periódicos) e digitais (como blogs e redes sociais) -, observamos, ainda: “criar coletivamente, com o apoio da professora, convites, circulares e textos simples para convidar os pais para um evento escolar” e “elaborar um pôster para promover esse evento” (México, 2016, p. 74, tradução nossa).

Além daqueles relativos à produção e à revisão coletiva de textos, tendo a professora como escriba, localizamos também, na Propuesta mexicana, um objetivo envolvendo a escrita espontânea de textos, que aparece na seção “Produção de uma diversidade de textos com fins pessoais”: “expressar, por meio de desenhos e tentativas de escrita, a relação do aluno com o ambiente imediato” (México, 2016, p. 74, tradução nossa). No campo formativo que se refere à “Língua materna e literatura - línguas de origem”, a Propuesta indica, na seção “Produção e interpretação de textos escritos”, os seguintes objetivos relacionados à escrita de textos nas diferentes línguas dos povos originais: “produzir um livro com texto e imagens”; “produzir um convite”; e “corrigir textos” (México, 2016, p. 78, tradução nossa). Tal como no caso da leitura de textos, pareceu-nos que as prescrições explicitadas nesse campo voltado às línguas indígenas assumiam um tom mais difuso, sem explicitar, na maioria das vezes, gêneros textuais ou procedimentos didáticos.

No tocante aos gêneros textuais que as crianças são convidadas a produzir, percebemos que os documentos curriculares analisados tendiam, muitas vezes, a não os delimitar, usando, de modo genérico, o termo “textos” em vez de nomear os gêneros a serem produzidos. Ao lado de alguns gêneros (histórias, cartas, notícias, avisos, convites, circulares), foram citados também mensagens e narrações, que não constituem propriamente gêneros de texto. No caso de produções espontâneas individuais, os currículos que estimulavam a produção de escritas ainda sem convencionalidade tendiam a tratar, conjuntamente, as tentativas de escrever palavras, frases e textos.

Considerações finais

Ao tentarmos construir uma visão final do que é prescrito nos seis currículos por nós examinados, chegamos à conclusão de que, sim, existe em todos eles um compromisso com a promoção do letramento das crianças ao final da educação infantil. Ressaltamos que foram enormes as variações no investimento que fazem em detalhar e argumentar, com os educadores que utilizarão aquelas prescrições, as razões para envolver as crianças em um variado universo de gêneros, suportes e práticas com textos escritos. Houve documentos em que tais propostas apareceram como objetivos listados em textos curtos e outros em que eram apresentadas em dezenas de páginas. Apesar disso, todos os seis currículos tenderam a priorizar:

  1. o desenvolvimento de atitudes de curiosidade, interesse e prazer no uso de textos literários ou não;

  2. a progressiva apropriação de conhecimentos sobre as funções, os usos e os modos de manuseio do conjunto de textos e suportes explorados;

  3. a contextualização da presença dos textos - lidos para a turma ou escritos pelas próprias crianças - no conjunto de situações didáticas vividas no quotidiano da sala de aula;

  4. o desenvolvimento de práticas de produção coletiva de textos, tendo o professor como escriba, e a escrita espontânea de textos pelas crianças (à exceção do Decreto espanhol, que não explicita claramente essas duas modalidades de escrita).

Com relação à promoção da compreensão de leitura entre crianças menores de 6 anos, cabe ressaltar que todos os currículos analisados tendiam a não especificar um ensino sistemático de estratégias de compreensão de leitura, preconizando como estratégia didática, sobretudo - ou exclusivamente -, a conversa acerca dos textos ou o reconto das narrativas ficcionais lidas pelo adulto. Apenas nos casos de Portugal e do México, encontramos uma breve menção à estratégia de antecipação (predição) do conteúdo do texto a ser lido. Essa opção é feita apesar de dispormos de uma ampla literatura acumulada, desde os anos de 1990, sobre a adequação e a possibilidade de desenvolver-se um ensino voltado à exploração de estratégias de compreensão de leitura específicas ainda durante a educação infantil (Solé, 1998; Fontes; Cardoso-Martins, 2004).

Lembramos que, no caso da BNCC brasileira, o problema da não especificação de competências de compreensão leitora a serem ensinadas permanece no que é prescrito para os dois primeiros anos do ensino fundamental. Como observam Morais, Silva e Nascimento (2020), é só a partir do terceiro ano dessa etapa que a BNCC preconiza o aprendizado de habilidades como inferir e identificar a ideia central de um texto.

No que diz respeito à produção de textos escritos antes do ensino fundamental, percebemos que os currículos analisados assumem que as crianças menores de 6 anos são capazes de produzir textos escritos, seja com a mediação do(a) professor(a), seja escrevendo de próprio punho produções não convencionais. Desse modo, reconhecem, em maior ou menor grau, que a escrita de textos constitui uma meta a ser atingida na educação infantil, conforme salientado em orientações oficiais brasileiras destinadas a professores dessa etapa (Girão; Brandão, 2011).

Contudo, os currículos tendiam a não demonstrar atenção, no caso da produção compartilhada, com a indicação de objetivos e/ou orientações relacionados às operações de planejamento, revisão e reelaboração dos textos produzidos. No que tange à revisão e à reelaboração, a exceção é a Propuesta do México, que aponta objetivos com relação a esses aspectos. Além disso, o fato de a escrita de textos aparecer preconizada em objetivos que previam, conjuntamente, a produção de rabiscos, palavras ou textos parece indicar uma priorização da expressão espontânea, em lugar de um ensino mais sistematizado da produção escrita de certos gêneros textuais antes do ensino fundamental.

Em uma época na qual discutimos a multimodalidade dos gêneros textuais e a sua presença em todos os componentes curriculares da educação escolar, outros dois aspectos nos chamaram atenção. Por um lado, a baixa ocorrência de sugestões de consulta e de leitura de textos disponíveis nas diferentes tecnologias da informação a que muitas crianças hoje têm acesso ou mesmo ao registro de textos escritos ou multimodais usando tais tecnologias. Por outro, pareceu-nos ainda predominar um tratamento pouco multidisciplinar da leitura e da produção de textos, já que, ao examinarmos o que era prescrito em outros campos de experiências (ou componentes curriculares), mesmo naqueles ligados aos mundos da natureza e sociedade, não encontrávamos sistematicamente propostas de ler-se e produzir-se textos ao promover a curiosidade e os conhecimentos infantis naqueles domínios.

Quarenta anos após pesquisadores terem evidenciado que a participação em situações de leitura e produção de gêneros escritos de circulação social favorece a alfabetização e a apropriação da linguagem escrita pelas crianças da educação infantil, vimos que, nos documentos curriculares dos diferentes países que analisamos, aquelas descobertas têm sido incorporadas pelo campo educacional e transformadas em prescrição oficial para o tratamento da modalidade escrita da língua na etapa anterior ao ensino fundamental.

No atual contexto brasileiro, as pressões, a partir de 2019, do MEC e de certos grupos de empresários pela imposição da PNA (Brasil. MEC, 2019) podem constituir um retrocesso com consequências, a nosso ver, nada louváveis. Por um lado, os métodos fônicos preconizados por tal política adiam a experiência das meninas e dos meninos da educação infantil com a leitura e a produção de textos reais, em nome de um precoce ensino repetitivo e controlado das relações entre fonemas e grafemas. Por outro, o reducionista conceito de “literacia familiar”, baseado na PNA e em seu correlato programa “Conta pra mim”, parece querer transferir para as famílias - o homeschooling - a responsabilidade de propiciar às crianças pequenas a vivência de situações de leitura e de conversa sobre textos que, do ponto de vista literário, são muito pobres, porque são marcados por um viés moralista e reescritos por escritores não profissionais. Além de descumprir as prescrições da BNCC, tal retrocesso atingiria, mais uma vez, os filhos das camadas populares, aqueles que mais dependem da escola para poder viver significativas oportunidades de letramento. Concluímos ressaltando que nada semelhante foi por nós encontrado na BNCC nem nos currículos dos outros cinco países que examinamos.

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Recebido: 04 de Junho de 2021; Aceito: 14 de Fevereiro de 2022

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