SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.103 número264Educação da infância e combate ao racismo: a implementação da Lei n° 10.639/2003 na percepção de professores e professorasDesenvolvimento do pensamento algébrico e estudo de padrões e regularidades com crianças: perscrutando possibilidades para educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versão impressa ISSN 0034-7183versão On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.103 no.264 Brasília maio/ago 2022

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.103i264.5108 

Estudos

Autismo na escola: da construção social estigmatizante ao reconhecimento como condição humana

Autism at school: from a stigmatizing social construction to the recognition as a human condition

Autismo en la escuela: de la construcción social estigmatizante al reconocimiento como condición humana

ISecretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE/SP). São Paulo. São Paulo. Brasil. E-mail: <regiavs@gmail.com>.

IIDoutora em Educação pela Universidade Nove de Julho (Uninove). São Paulo, São Paulo, Brasil.

IIIUniversidade do Porto (U.P). Porto, Porto, Portugal. E-mail: <eunice@fpce.up.pt>.

IVDoutora em Ciências da Educação pela Universidade do Porto (U.Porto). Porto, Porto, Portugal.

VUniversidade Nove de Julho (Uninove). São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: <jason@uninove.br>.

VIDoutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, São Paulo, Brasil.


Resumo:

Este artigo, de natureza teórica, apresenta argumentos que corroboram o reconhecimento do autismo como condição humana em contraposição à sua representação como um conjunto de déficits estigmatizantes. Para tanto, reúne fundamentos nos estudos sobre a condição humana e o pensamento alargado de Hannah Arendt; as apreciações acerca de comunicação entre diferenças e justiça social que emergem da obra de Iris Young; a perspectiva relacional e humanizante presente na obra de Paulo Freire; e a compreensão de dentro do próprio autismo apresentada por Temple Grandin. Constata-se que colocar em prática uma escuta educativa, implicada em compreender o autismo como condição humana, tanto quanto a análise - crítica, constante e conjunta - de discursos que negam a capacidade de pessoas autistas de participar em condições de igualdade da vida social, cultural e política, pode consolidar o verdadeiro encontro, aprendizado e crescimento humano na pluralidade.

Palavras-chave: autismo; condição humana; construção social do autismo; escuta educativa

Abstract:

This theoretical article presents arguments to corroborate the recognition of autism as a human condition in opposition to how it is presented as a set of stigmatizing deficits. To this end, this article is supported by Hannah Arendt’s studies of the human condition and the extended thought; the appreciation of communication between differences and social justice that emerge from Iris Young’s work; the relational and humanizing perspective present in Paulo Freire's work; and Temple Grandin's understanding of autism from within. It is observed that putting into practice an educational listening, involved in understanding autism as a human condition, as much as the analysis - critical, constant and joint - of discourses that deny the ability of autistic people to equal participation in social, cultural and political life, can consolidate a true encounter, learning and human growth in plurality.

Keywords: autism; educational listening; human condition; social construction of autism

Resumen:

Este artículo, de carácter teórico, presenta argumentos que corroboran el reconocimiento del autismo como condición humana frente a su representación como un conjunto de déficits estigmatizantes. Para ello, reúne fundamentos en los estudios sobre la condición humana y el pensamiento ampliado de Hannah Arendt; las apreciaciones de la comunicación entre diferencias y justicia social que surgen del trabajo de Iris Young; la perspectiva relacional y humanizadora presente en la obra de Paulo Freire; y la comprensión desde adentro del autismo presentada por Temple Grandin. Se observa que poner en práctica una escucha educativa, involucrada en la comprensión del autismo como condición humana, así como el análisis -crítico, constante y conjunto- de discursos que niegan la capacidad de las personas autistas de participar en condiciones de igualdad en la vida social, cultural y política, puede consolidar el verdadero encuentro, aprendizaje y crecimiento humano en la pluralidad.

Palabras clave: autismo; condición humana; construcción social del autismo; escucha educativa

Introdução

A discussão sobre o autismo ocorre há várias décadas e a novidade deste ensaio está na sua localização como condição humana. A referida discussão tornou-se notável a partir do artigo publicado na revista Nervous Child, no qual o psicanalista Leo Kanner (1943) descreveu, clinicamente, as variáveis que observou no repertório de oito meninos e três meninas. De acordo com Kanner, essas 11 crianças apresentavam extrema limitação no relacionamento com outras pessoas e com objetos, reação de horror a ruídos altos, desordens no desenvolvimento da linguagem, atos repetitivos e estereotipados. Peculiaridades que eram governadas pelo desejo de mesmice e solidão. A narrativa médico-clínica de Kanner foi apenas uma das inúmeras tentativas de

classificar o autismo que, tendo por base comportamentos denominados “normais” , para além de proporcionar a compreensão do autismo como um conjunto de déficits, corroborou a construção social dele como uma condição inferior (Macedo, 2017).

Questionando tais preceitos e tendo em conta que, como todo ser humano, pessoas autistas possuem fragilidades, áreas de força e o direito de expor suas impressões sobre determinado fato ou acontecimento (Maleval, 2017), refutamos a apresentação do autismo como “transtorno”, “deficiência”, “necessidade educacional especial” e/ou “distúrbio”. Adotamos, aqui, a compreensão do autismo como condição na perspectiva de Arendt (2000, 2005, 2007) da condição humana, ou seja, afiançamos ser o autismo uma das muitas condições que informam a vida das pessoas autistas - a par de gênero, idade, estatuto socioeconômico, regionalidade, entre outras -, intervindo no que cada pessoa está sendo e no que pode vir a ser (Ortega, 2009; Freire, 2014b).

Destacamos que garantir essa compreensão implica a assunção da tonalidade ética diante de um quadro no qual a interação social precisa ser reformulada; a habilidade para iniciar ou manter uma conversação assume contornos particulares; e as diferentes formas de adesão às rotinas e de expressão apresentam modalidades muito individualizadas (Macedo, 2017).

Ademais, considerando o fato de a construção social do autismo como deficiência falhar, por não dar relevo aos diversos graus de autonomia das pessoas autistas (Macedo, 2017); por não capturar nem refletir a experiência dessas pessoas mediante seu conhecimento e sua visão de mundo (Santos, 2020); e por não reconhecer as barreiras que lhes são impostas pela sociedade (Hamilton, 2019), sublinhamos a importância da escola no exercício de abertura à compreensão da pessoa autista como ser em processo de construção na pluralidade. Essa importância se justifica na medida em que, nesse espaço plural, a convivência, a escuta e o diálogo, quando exercitados em um movimento ético e solidário, podem não só somar esforços valiosos no sentido de desafiar os nossos pré-conceitos e visões naturalizadas sobre o autismo, como promover o questionamento acerca da divisão convencional entre o “nós” - não autistas - e o “eles” - autistas (Macedo, 2017).

Visando, portanto, transcender a construção do autismo como deficiência e fundamentar seu reconhecimento como condição humana, reunimos argumentos em um conjunto de contributos teóricos cujo trabalho destaca questões sobre alteridade e intolerância, acentua a reflexão referente a falsas neutralidades e imparcialidades, bem como o direito à voz de outras razões que não as hegemônicas . Dentre eles destacam-se, centralmente, os estudos de Arendt (2000, 2005, 2007), Freire (1983, 2014a, 2014b, 2015), Grandin (2011), Grandin e Panek (2017) e Young (1990, 2000, 2011). Assim sendo, o presente ensaio encontra suporte nos campos da Educação e da Sociologia, no esforço de recusar a ação unilateral - por mais generosa que seja - sobre a alteridade.

Os estudos de Arendt sustentam a discussão sobre a condição humana e o pensamento alargado. As teorias de Young, acerca da comunicação democrática e natureza da justiça, amparam o debate sobre a premência de perceber-se as pessoas jovens autistas nos seus próprios termos. De Freire, tomamos de empréstimo a perspectiva relacional e humanizante. A visão de Grandin sobre o autismo, embasada em pesquisa científica e vivência pessoal, ultrapassa as análises limitadas ao comportamento e, ao propor um olhar para a pessoa autista sem as lentes oriundas de discursos estigmatizantes , tenciona as amarras que conduzem à desumanização.

De par com esses estudos, este ensaio foi organizado em cinco partes correlacionadas com base no objetivo central: apresentar argumentos que corroboram o reconhecimento do autismo como condição humana.

Na primeira parte, por considerar a necessidade de introduzir maior reflexão como característica comum na atualidade, em particular quando nos deparamos com as dificuldades que temos para nos comunicar com as pessoas autistas, faz-se uma incursão no pensamento de Hannah Arendt acerca da condição humana e do pensamento alargado, menos para esmiuçar esses conceitos , mais para estabelecer relação com o autismo como condição.

Tendo em conta o fardo de opressão que é destinado às pessoas autistas, em grande medida decorrente de discursos que acentuam a dicotomia nós-cidadãos, eles-restantes, na segunda parte, os estudos de Iris Young sobre comunicação entre diferenças e justiça social iluminam os desafios e projeções de pessoas autistas, colapsados por exploração, marginalização, falta de poder, violência e imperialismo cultural, ou, como essa autora denomina, as faces da opressão.

Na terceira parte, por um lado, destacamos a escola como locus privilegiado de comunicação intersubjetiva plural, democrática e isonômica, portanto, espaço de alargamento do pensamento; por outro, reiteramos a importância de, nesses espaços, questionar visões que corroboram práticas de discriminação negativas e narrativas estigmatizantes. Nesse enquadramento, a perspectiva relacional e humanizante de Paulo Freire coloca-se como a mais indicada para promover uma melhor compreensão de caminhos capazes de assegurar relações humanas e éticas no encontro entre as pessoas que vivenciam e as que não vivenciam o autismo como condição.

A obra de Temple Grandin, na quarta parte, soma-se a esse aporte teórico, trazendo uma compreensão do interior do autismo e, ao mesmo tempo, convidando-nos a sair de nós mesmos em direção a outro modo de ser, de tal forma que, no retorno para si, o pensamento sobre essa condição tenha se alargado.

Na última parte, focalizando as pessoas jovens autistas como sujeitos capazes de autonomeação e voz e acentuando a educação como fenômeno que, não se podendo restringir a um fazer burocrático sem força para mudar a realidade, só faz sentido no diálogo e na relação de alteridade (Freire, 2014b), apresentamos a síntese e o entrecruzamento das perspectivas desses teóricos. Sem a pretensão de esgotar o assunto, destacamos a potência das visões de mundo de pessoas autistas para o (re)pensar analítico de situações que envolvem a presença e a aprendizagem da incomensurável diferença (Stoer; Magalhães, 2005) nos espaços de escolarização, bem como para a construção de outras narrativas mais criativas, colaborativas, autênticas e condizentes com a perspectiva da escuta educativa e da compreensão humana.

Situando o autismo como condição humana com Hannah Arendt

À luz das experiências e dos temores que assombraram uma sociedade pós-Segunda Guerra Mundial, Hannah Arendt, em sua obra A condição humana, propôs a reflexão sobre as atividades humanas, apresentando uma compreensão da natureza dos (mal)feitos de um pensamento hegemônico que, diante do alto desenvolvimento da técnica e da Ciência, rompeu com a natureza, acreditando poder tudo (Arendt, 2007, 2009; Ricoeur, 1969).

Tendo como fio condutor de sua investigação a análise histórica e como tema central a pergunta “o que estamos fazendo?” (Arendt, 2007, p. 13), na referida obra, essa pensadora política ressalta o fato de os seres humanos poderem ultrapassar as condições de vida que, na sua chegada ao mundo, foram-lhes asseguradas e, a despeito da variabilidade de sua origem, iniciar algo novo. Sem desconsiderar a alienação das pessoas na Era Moderna, enfatiza ser a reflexão acerca do que o ser humano é capaz de (re)produzir, mais que um problema científico, um problema político, afinal,

[...] se o sentido da política é a liberdade, então isso significa que nós, nesse espaço, e em nenhum outro, temos de fato o direito de ter a expectativa de milagres. Não porque acreditemos (religiosamente) em milagres, mas porque os [...] [seres humanos] , enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível, e realizam-no continuamente, quer saibam disso, quer não. (Arendt, 1993, p. 122).

Desse modo, Arendt (2007, 2009) não apenas nos instiga a pensar na dignidade que pode se fazer presente a cada recomeço, como destaca a grandiosidade da esfera pública, na qual cabe assumir o cuidado com a vida para a consolidação de um mundo mais ético e solidário. Mundo esse em que, na pluralidade, ou na convivência humana por meio do discurso e da ação, a singularidade se constitui em sua dignidade, humanidade e realização da liberdade. No que tange às pessoas autistas, não é diferente, “[...] sem o necessário, nem a vida, nem a boa vida é possível” (Arendt, 2007, p. 94).

Tendo isso em conta e o fato de que tudo o que, espontaneamente, adentra esse mundo, “ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana” (Arendt, 2007, p. 17), alinhavamos a proposta de visão do autismo como uma das muitas condições que informam a vida das pessoas autistas. Ressaltamos que a defesa do autismo como condição, à luz da conceitualização de Arendt (2005, 2007), conforma-se com a abertura à compreensão do ser humano como ser em processo de construção na pluralidade - tal como se encontra cada um de nós na sua especificidade - e resulta, também, em oportunidades para desenvolver uma forma de pensamento mais alargado. Essa forma de pensamento, nas palavras de Arendt (2007, p. 371),

[...] resulta, primeiramente de uma abstração das limitações que se juntam contingentemente a nosso próprio juízo, da desconsideração de suas condições subjetivas privadas que a tantos impõem limites; isto é, da desconsideração daquilo que normalmente chamamos de interesse próprio e que, segundo Kant, não é esclarecido ou capaz de esclarecer, mas é, na verdade, limitador.

Ou seja, o pensamento alargado, em situações de opressão, permite o deslocamento de uma apreensão subjetiva para uma compreensão o mais objetiva possível, conforme Macedo, Clough e Araújo (2014). Como acentuam os autores, com suporte em Arendt, a aproximação a um pensamento alargado, que emerge de um cruzamento de subjetividades como a objetividade possível, decorre da saída de uma perspectiva egocêntrica de heteronomeação estigmatizante e corresponde à abertura à condição humana. Abertura que, por ser capaz de lidar com particularidades em uma relação dialógica e plural, promove o questionamento de estereótipos e preconceitos profundamente enraizados acerca do autismo.

No caso da escola, espaço pré-político de diálogo e formação humana, no que lhe concerne, faz-se mister o cuidado para que ações educativas não sejam submetidas à conformação de concepções homogeneizantes - conformação implicada com o apagamento da compreensão ética e política dos assuntos humanos. Eis uma das razões para acreditar que sua proposta pedagógica deve contemplar a (re)construção de narrativas emancipadoras, cuja potência se encontra na capacidade de fortalecer a responsabilidade e o vínculo de pertencimento que une os seres humanos entre si e ao mundo, bem como na possibilidade de uma transformação social baseada no reconhecimento da dignidade e da grandeza da pluralidade humana (Torres, 2015).

O oposto, ou seja, o não reconhecimento do direito e da dignidade de pessoas autistas, aponta a necessidade de questionamento constante das estruturas de poder dominantes e das relações que, na sociedade contemporânea, tendem a reforçar o preconceito e a segregação (Hamilton, 2019), tornando difíceis ações de resiliência e a participação de pessoas autistas em condições de igualdade na vida social e política, na sala de aula e no mundo (Cortesão, 1998).

Além disso, sem colocar em prática uma “ética da responsabilidade” , a ação no espaço escolar pode corroborar a não realização do potencial educacional de crianças, jovens e adultos - incluindo os(as) que vivenciam o autismo como condição - e, do mesmo modo, reproduzir a percepção dessas pessoas como incapazes. Nesse caso, configura-se a irresponsabilidade diante do singular vulnerável, o que cabe evitar, como argumentamos.

Tendo em vista o inadiável compromisso com a renovação de um mundo sustentado no irredutível valor de toda pessoa (Arendt, 2000), o desafio que se coloca é o de pensar a diversidade não a partir de um discurso político e/ou científico sobre ela; mas, com ela, reconhecendo, com a devida humildade, não haver o que alimente a dicotomia nós/eles (Stoer; Magalhães, 2005). Reafirmamos que é nestes termos que devem ser colocados os direitos das pessoas autistas: em equilíbrio com o direito e a dignidade de todas as pessoas que conformam esse mundo marcado pela diversidade.

Estando na lacuna entre o passado e o futuro, no que concerne à visão do autismo como condição humana, lembramos ser imprescindível equacionar, constantemente, a resposta que podemos dar à questão “o que estamos fazendo?” e, ao mesmo tempo, assumir a responsabilidade de iniciar algo novo, com tudo o que carrega a liberdade: a imprevisibilidade, a irreversibilidade, mas também a possibilidade de atribuir às relações mais humanidade.

Por ora, fica o desafio de, assumindo uma racionalidade ética sensível e o compromisso de colocar-se por meio da imaginação próximo do lugar da outra pessoa, considerar a possibilidade de o “parece-me” egocêntrico dar margem ao “parece-me” de todos os demais, inclusive das pessoas jovens autistas. Com esse escopo, avançamos com a análise das concepções sobre comunicação democrática e natureza da justiça, defendidas por Iris Young. Seguimos, assim, desvelando os processos de opressão e dominação, de modo a iluminar os desafios e projeções de pessoas autistas, colapsados pela dificuldade de diálogo e por formas de injustiça a que estão muitas vezes sujeitos.

Ultrapassando a ideia do outro generalizado e abstrato com Iris Young

Assumindo o desafio de caminhar no sentido da compreensão das sensações e dos sentimentos das pessoas autistas, como mencionado anteriormente, recorremos à obra de Iris Young, referência nos estudos da política contemporânea, da democracia, da ética e do feminismo. A proposta teórica dessa cientista política, na medida em que questiona a perspectiva de um(a) outro(a) generalizado(a) e abstrato(a) e expõe elementos cruciais relacionados à localização e ao pertencimento no mundo, dá expressão às energias utópicas circunscritas ao presente texto, no qual defendemos a percepção do autismo como a condição humana de sujeitos em busca de reconhecimento e espaço de humanização.

O direcionamento de sua investigação fundadora para demandas socialmente geradas na atualidade - natureza da justiça e comunicação democrática - levaram Young a questionar discursos e posturas que, ao privilegiarem a homogeneidade no lugar da especificidade e da diferença, acentuaram a dicotomia nós-cidadãos, eles-restantes (Young, 1990). No seu entender, há 30 anos, “as teorias sociais que constroem a noção de opressão como um fenômeno unificado deixam de lado tanto certos grupos oprimidos quanto formas relevantes segundo as quais a opressão se manifesta” (Young, 1990, p. 63, tradução nossa).

Adicionalmente, por rejeitar “[...] os esforços para se construir um sistema normativo universal isolado de uma sociedade particular” (Young, 1990, p. 5, tradução nossa), a proposta de Young (1990, 2000), contrapõe-se ao assimilacionismo. À vista disso, reafirma e reifica o fato de pessoas como as autistas - denominadas minorias - não precisarem abandonar a especificidade de suas experiências para articular publicamente suas demandas por justiça.

Para Young (1990), os ideais normativos usados para avaliar uma realidade devem estar enraizados na vivência e na reflexão sobre a realidade em questão, aflorar de tensões próprias da realidade e atender a um interesse emancipatório. No caso do autismo, como coloca Jared Blackburn (1999), os ideais normativos, ao desconsiderarem as vivências e reflexões de pessoas autistas, de forma arrogante, estabelecem uma divisão arbitrária e conjuntural das experiências de vida em válidas (a dos neurotípicos) e não válidas (as das outras pessoas). Partindo dessa constatação, Blackburn (1999, tradução nossa), de maneira irônica, estabelece critérios diagnósticos para o que denomina “Transtorno de Personalidade Normal”:

A. Egocentrismo (pelo menos um dos seguintes): 1. Perspectiva egocêntrica (por exemplo, não percebe que os outros podem ter uma perspectiva diferente); 2. Egomania (por exemplo, atos ou conversas como se fossem melhores, ou mais importantes que os outros); 3. Egoísmo: cobiça marcada e/ou atitude dominadora. B. Falta de originalidade (pelo menos um dos seguintes): 1. Segue rigidamente tradições ou rituais sociais; 2. É frequentemente “passageiro”, segue as últimas modas ou “loucuras” inventadas ou postas por outros; 3. Muitas vezes demonstra uma “mentalidade de rebanho” (por exemplo, sem pensar segue um grupo de referência social ou um grupo local de amigos, muitas vezes por “pressão”). C. Falta de simpatia: 1. Cruel ou insensível ao sentimento dos outros (por exemplo, se engaja em provocar ou ridicularizar os outros, joga “piadas práticas” potencialmente prejudiciais em vítimas inocentes que provavelmente não se divertem); 2. Muitas vezes manipulativo (por exemplo, usa os outros como ferramentas para atingir objetivos próprios, trata os outros como objetos que podem ser adquiridos para sua própria satisfação, usa a desonestidade como uma maneira conveniente de alcançar objetivos sociais).

A colocação desse indivíduo autista, doutor em física, que aqui trouxemos ao diálogo pelo caráter transgressivo do pensamento que nos apresenta, possibilita a reflexão acerca da fragilidade de discursos normativos que, irrefletidamente, desconsideram outros modos de experienciar e perceber o mundo.

Retornando a Young (1990, p. 5-6, tradução nossa), assinalamos que a reflexão normativa nem de longe pode, ignorando um “[...] grito de sofrimento ou aflição, ou a uma experiência própria de angústia”, abrir espaços para a perpetuação de estigmas. Em outros termos, ainda que as injustiças sociais atinjam tanto pessoas individualmente quanto as identificadas com grupos oprimidos, não se pode perder de vista a maneira diferenciada como o poder é exercido e como alcança grupos e indivíduos. Deve-se, portanto, visando garantir a expressão das denominadas minorias em uma sociedade de massa, olhar atentamente a dinâmica dos processos sociais e dos engendramentos limitantes aí produzidos (Forst, 2007).

Cabe destacar que, ao designarem terminologias discriminatórias capazes de sustentar o preconceito em relação às diferenciações nas formas de comunicação, expressão, socialização e adesão à rotina, comuns às pessoas autistas (Hamilton, 2019), ideais hegemônicos e normas culturais dominantes falham em reconhecer o autismo como uma entre as muitas condições intersecionadas que podem constituir a vida do ser humano. Como resultado desse processo de rotulagem homogeneizadora, essas pessoas vivenciam, no dia a dia, experiências de restrição material e imaterial que, sistematicamente, afetam seu autodesenvolvimento.

Outrossim, no interior do grupo que partilha o autismo como condição, o entrecruzamento das referidas diferenciações com desvantagens sociais, questões relacionadas a gênero, etnia, religiosidade, aptidão física e/ou cerebral, dentre outras, resulta na intensificação da opressão que, como denomina Young (1990), pode ser exercida por meio de cinco formas - ou faces -, nomeadamente: exploração, marginalização, falta de poder, violência e imperialismo cultural.

Podendo ser observada tanto em contextos de cuidado como em espaços públicos, onde a desvalorização de alguém ou de grupos, de alguma forma, beneficia outrem, a exploração é uma modalidade de opressão fortemente marcada por estruturas simbólicas, na qual devem ser consideradas a apropriação de energias e, mais amplamente, questões afetivas e valorativas (Young, 1990).

No caso de crianças e jovens autistas de classes desfavorecidas, quando seus familiares e/ou responsáveis percebem essas pessoas como incapazes de conviver e aprender e o trabalho como uma forma de ocupar o tempo e/ou garantir um ofício, grandes são as chances de, nos primeiros anos de escolarização, terem seu potencial pouco - ou nada - valorizado e, assim, passarem não só a acumular experiências de reprovação, repetência e fracasso escolar (Alberto; Sousa, 2008), como também serem incentivadas a trabalhar. Acerca da inserção precoce de crianças e jovens autistas em atividades pouco - ou nada - qualificadas, essa é capaz de, ao mesmo tempo, promover a exploração deles, reduzir suas oportunidades de estudar e aprender e limitar as possibilidades de terem assegurada uma condição cidadã mais digna e socialmente participativa (Alberto; Sousa, 2008).

A marginalização, mais que impossibilitar a participação em instâncias representativas do Estado, atravanca a expressão e as formas de sociabilidade. O grupo de pessoas autistas é um exemplo de como essa modalidade de injustiça pode impedir a expressão de pontos de vista e, até mesmo, levar indivíduos à falta de perspectiva de vida.

A falta de poder, por sua vez, representa um impedimento institucional à capacidade de iniciativa, autonomia e emancipação. Essa face da opressão divide os seres humanos entre aqueles que determinam o que deve ser feito e os vistos como não qualificados, ou “[...] aqueles sobre os quais o poder é exercido” (Young, 1990, p. 56, tradução nossa).

No caso das pessoas autistas, a questão da falta de poder é exacerbada, já que a ausência ou a redução da fala pode ser interpretada como incapacidade de compreensão e de participação na tomada de decisão.

Envolvendo, sistematicamente, desde a humilhação e a estigmatização até práticas de eliminação física, a violência pode ser motivada por sentimentos como repulsa ou profundo ódio contra um grupo ou uma pessoa (Young, 1990). Kedar (2012), ao rememorar sua experiência em escolas do sistema regular de ensino, exemplifica como essa quarta face da opressão, apesar de impossibilitar o autodesenvolvimento de quem a sofre, pode, em razão de contextos históricos e sociais, ser possível e até tolerada. No seu entender, os profissionais da educação:

[...] poderiam se orgulhar de apoiar uma pessoa com diferenciações que está tentando conseguir uma vida boa. Em vez disso, eles veem a pessoa com o que denominam deficiência como um aborrecimento que deveria sair de seu imaculado campus. (Kedar, 2012, p. 141, tradução nossa).

De acordo com Young (1990), diante da dificuldade que temos em distinguir as razões, os sentimentos e/ou os desejos que corroboram a violência, cabe-nos lembrar que, no contexto do confronto com o poder, deve-se colocar em primeiro plano o reconhecimento das e o apreço pelas diferenças, mesmo que o consenso e a partilha não sejam objetivos atingíveis. Ou seja, cabe cuidar para não hierarquizar e/ou silenciar as vozes das diferentes diferenças (Moraes, 1994).

O imperialismo cultural, tendo na sua base um projeto normalizador, opera nas identidades das pessoas oprimidas, marcando-as de forma negativa e, destarte, assegurando sua visibilidade por meio de estereótipos que eclipsam sua expressão epistêmica e cultural (Young, 1990). Com referência a essa face da opressão, Grandin (2011) rememora que professores e funcionários empenhados em normalizá-la só conseguiram desencorajá-la. Contudo, as pessoas que observavam suas excentricidades e, tendo-as em conta, procuraram motivá-la a estudar contribuíram para que seus talentos fossem desenvolvidos (Grandin, 2011). Nos seus dizeres,

[...] as pessoas que me foram de maior ajuda foram sempre aquelas mais criativas e não convencionais. [...] A psicóloga do ensino médio queria eliminar minhas fixações por coisas como portas ao invés de tentar entendê-las e usá-las como estímulo à aprendizagem. O professor Carlock, um dos meus professores de Ciências, foi quem se tornou meu mentor mais importante no ensino médio [...] o professor Carlock pegou meus interesses e os usou como motivações para trabalhos escolares. (Grandin, 2011, p. 122-123).

A fala de Grandin ilustra a importância de revisão de ações e narrativas que reiteram a visibilidade do autismo por meio de estereótipos e que, justificando o imperialismo cultural, anulam a possibilidade de a atividade docente se colocar como ponte na travessia da curiosidade ingênua para a curiosidade crítica (Freire, 2015).

Em contraposição às faces da opressão, Young (1990) assinala o fato de práticas contestatórias poderem ressignificar os atributos que são impostos às denominadas minorias. Essas práticas são designadas por essa filósofa de política da diferença. De acordo com Young (1990), colocar em prática uma política da diferença corresponde a considerar a importância de a diferença colocar-se como parte fluida e relacional dos processos sociais. Nessa perspectiva, pessoas jovens autistas, não tendo que se sujeitar a uma forma de ser hegemônica, podem ter “[...] sua diferença reconhecida e respeitada, ainda que não inteiramente compreendida pelos demais” (Young, 1990, p. 119, tradução nossa).

Na educação, esse processo no qual pessoas se colocam como autores relacionais deve vigorar, por exemplo, na elaboração de currículos capazes de refletir a natureza multicultural, multinacional e multilíngue presente na sociedade, tanto quanto na construção de programas capazes de proporcionar a conscientização sobre os danos do preconceito e da discriminação negativa. Com isso, em espaços educativos, uma política da diferença fortalece arenas de comunicação, nas quais todos podem expor e reformular suas visões sobre estruturas que negam ou desvalorizam as diferenças, promovendo a superação de injustiças (Young, 1990, 2001).

Os estudos de Young permitem-nos reforçar a convicção de que a participação de autistas em interações comunicativas de maneira fluida e relacional, com vistas à autodeterminação e ao desenvolvimento de suas capacidades expressivas, afetivas, intelectuais e laborais, é fundamental. Afinal, como aponta Freire (2015), a despeito de sermos todos seres condicionados, somos capazes de transcender o próprio condicionamento. E isso “[...] não significa negar os condicionamentos genéticos, culturais, sociais a que estamos submetidos. Significa reconhecer que somos seres condicionados, mas não determinados” (Freire, 2015, p. 20, grifo nosso).

Enfatizando a perspectiva relacional e humanizante da educação com Paulo Freire

Como Arendt (2005, 2007), Freire (1983, 2014a) desconstrói a possibilidade de o ser singular bastar-se. Segundo esse autor, sendo singular, a pessoa afirma-se na pluralidade, no contato com a outra pessoa, com os desafios do mundo e, mais que estar no tempo e no espaço, pode, ao expressar suas respostas aos desafios mundanos, alterar a si e a realidade (Freire, 2014a). Nas suas palavras,

existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e com ele. E é essa capacidade ou possibilidade de ligação comunicativa do existente com o mundo objetivo, contida na própria etimologia da palavra, que incorpora ao existir o sentido de criticidade que não há no simples viver. Transcender, discernir, dialogar (comunicar e participar) são exclusividades do existir. O existir é individual, contudo, só se realiza em relação com os outros existires. Em comunicação com eles. (Freire, 2014a, p. 57).

Reconhecendo que estar no mundo corresponde a estar em relação; que todo ser humano é finito, incompleto e inacabado; e que, acreditar e exercitar o ser mais , decorre da implicação amorosa com os outros e com o mundo (Freire, 2014a, 2015), podemos afirmar que pessoas autistas no espaço plural podem responder, cada uma à sua medida, aos inúmeros desafios do existir e realizar a vocação natural de integrar-se, superando o simples ajustamento ou acomodação (Freire, 2014a). Em outras palavras, à luz do pensamento freiriano, a compreensão do autismo como condição humana corresponde à certeza de que, ao se defrontarem com nosso interesse e disposição em compreender suas modalidades de expressão, comunicação e socialização, as pessoas que vivenciam o autismo como condição podem transpor uma situação-limite, realizando o seu inédito viável . Afinal, encontros que envolvem uma comunicação problematizadora, dinâmica e dialética, sustentados na não aceitação de que o futuro está determinado e na coragem de manter ativas a palavra e a ação das diferentes diferenças, tomados como responsabilidade e compromisso, proporcionam condições solidárias para ir constituindo-se a passagem da situação de desumanização - ser menos - para a de humanização - ser mais (Freire, 2014a, 2014b). E é nessa perspectiva que o existir/agir humanamente, na ótica freiriana, é aqui compreendido.

Com relação à escola, enquanto espaço público, logo, político, deve ser um local no qual impera o compromisso com a superação de formas de opressão e o entendimento da “[...] prática educativa como um exercício constante em favor da produção e do desenvolvimento da autonomia de educadores e educandos” (Freire, 2015, p. 142). Um esforço que deve ser tanto maior quanto maior a situação de vulnerabilidade das pessoas em processo de escolarização. Pois, afastando-se do assistencialismo que adestra o olhar para a não percepção de realidades opressoras e do ativismo sem sentido, o ensinar-aprender, ao mesmo tempo que se alinha ao compromisso responsável com o existir da outra pessoa e com as suas visões de mundo, reconhece a exigência ontológica de todo ser de mover-se no sentido de, cotidianamente, transformar o impossível de hoje no possível de amanhã (Mafra, 2016).

Ou seja, ao mesmo tempo que nos comprometemos com a construção de espaços de conhecimento emancipador, cabe-nos o compromisso com a outra pessoa e o mundo; cabe-nos encharcar as instituições de ensino-aprendizagem de humanidade e, assim, garantir o reconhecimento do autismo como condição humana de pessoas autistas como sujeitos e não objetos da história.

Reafirmando a busca coletiva e autêntica do ser mais como imprescindível para que se transcenda a construção social do autismo como deficiência - repleta de equívocos, desconhecimento e estereótipos - e afiançando serem os encontros aprendentes com pessoas autistas uma oportunidade única para aprendermos sobre nós mesmos(as) e para investirmos na nossa humanização (Macedo, 2017), veremos a seguir que questionar barreiras capazes de sustentar as faces da opressão, subverter narrativas e práticas que rejeitam formas não padronizadas de comunicação e assegurar, no exercício da docência, o direito das pessoas autistas à participação em interações comunicativas é mais que possível, é uma via de aprendizado para todos(as), em particular, para quem aceita se deixar surpreender.

Alargando o pensamento sobre o autismo com Temple Grandin

Conforme mencionado anteriormente, propomos, neste artigo, um processo de escuta educativa que, no encontro com pessoas autistas, corresponde a considerar, para além dos comportamentos, sua história pessoal, suas emoções, seus sentimentos, suas reações, enfim, tudo o que as afeta (Amatuzzi, 2008; Santos, 2020).

No sentido de qualificar esse processo de escuta, proporcionando um alargamento do pensamento sobre essa condição, neste tópico, promovemos a compreensão do interior do autismo num diálogo com o olhar de Temple Grandin. Lembrando que essa autora, pelo pioneirismo e pela extensão de sua obra, ao falar de si, numa abordagem sociológica autobiográfica, diz muito sobre o autismo e sua história.

Grandin escreveu inúmeros artigos e livros, nos quais, ao narrar suas percepções e seus sentimentos, derruba a noção de que pessoas autistas vivem “em seu próprio mundo”, não compreendendo o que se passa ao redor. Com forte relevo para a educação e a escuta educativa de pessoas autistas, o contributo de Grandin alerta-nos para a necessidade de diferenciação pedagógica na abordagem às pessoas que vivenciam essa condição, tendo em conta que, por essas escutas, podemos perceber quais os contornos que essa diferenciação poderá assumir.

Tendo recebido o diagnóstico de autismo quando tinha quatro anos, vivenciou-o na infância por meio de comportamentos perturbadores e aparentemente incapacitantes. Na juventude, em meio à dificuldade de entender o que lhe fugia à lógica e de fazer amizades, encontrou um professor que acreditou em seus talentos e os estimulou, propondo estratégias para desenvolvê-los (Donvan; Zucker, 2017). Esse olhar e essa escuta contribuíram, significativamente, para que ela chegasse à vida adulta realizada acadêmica e profissionalmente.

Sobre o fato de as pessoas observarem no autismo apenas o que lhe é externo, Grandin e Panek (2017, p. 112) deixam as questões: “Você quer saber como é o comportamento visto de fora? Ou quer saber como a experiência é percebida de dentro? Quer a descrição de um conjunto de sintomas - um diagnóstico? Ou a fonte de um sintoma particular - uma causa?”

Com essas perguntas, Grandin e Panek instigam-nos a ver que, além do visível, há uma série de questões sensoriais, físicas, cognitivas e emocionais, dentre outras inerentes à condição humana, ao conviver e ao aprender, que não podem ser ignoradas.

Apoiando-se em dados clínicos e científicos, afirma que o que faz pessoas autistas, como ela, sentirem-se - em maior ou menor grau - incapazes de filtrar estímulos externos se encontra no cérebro. Sendo essa incapacidade, para muitas pessoas autistas, avassaladora.

Sobre os problemas do processamento auditivo, Grandin (2011, p. 75) recorda: “[...] barulho alto causava dor. Eu tinha um enorme medo de balões estourando, pois, o barulho era como uma explosão dentro de minha mente. Ruídos menores, que a maioria das pessoas consegue ignorar, me deixavam dispersa”. Com relação às diferenciações no processamento auditivo, Grandin e Panek (2017) pontuam inúmeras, dentre as quais: há pessoas autistas que não conseguem compreender algumas consoantes; para outras, pequenos sons podem ter grande intensidade; há aquelas que repetem palavras sem saber seu sentido por considerar a sonoridade agradável; também há pessoas que sofrem por confundir estímulos visuais com os auditivos.

Abraços sempre a incomodaram (Grandin, 2011). Nos seus dizeres, abraços se assemelhavam a:

[...] uma onda marítima enorme e dominadora de estímulo e eu reagia como um animal selvagem. Ser tocada me despertava reação de fuga; mudava meu disjuntor. Eu ficava sobrecarregada e tinha que escapar e frequentemente o fazia dando empurrões repentinos. (Grandin, 2011, p. 70).

Sobre essas reações, a autora explica que, para pessoas autistas, mesmo as que procuram estimulação, é mais fácil tolerar o toque se iniciado pela própria pessoa.

Com relação a odores e sabores, para algumas pessoas autistas certos cheiros são insuportáveis e a textura e/ou o barulho de alguns alimentos podem causar aversão (Grandin; Panek, 2017). Outro aspecto apontado por Grandin como algo que pode levar à sensação dolorosa de crise se refere à necessidade de processar estímulos provenientes de diferentes vias. Exemplificando, prestar atenção simultaneamente ao que é dito, às mudanças do tom de voz, aos significados das palavras, às expressões faciais, além dos gestos, pode levar a pessoa autista a tapar os ouvidos, reagir de forma inesperada, conseguir prestar pouca atenção ao que é dito e/ou dar as costas ao falante (Grandin, 2011).

Em se tratando de reações como medo, agressividade ou comportamentos incompreensíveis por parte de autistas não verbais, Grandin (2011) assinala que, dentre as possíveis causas, deve-se observar se o comportamento diferente ocorreu após uma mudança de ambiente. Nesse caso, cabe investigar se há uma razão sensorial ou se decorre de uma condição dolorosa que a pessoa não consegue explicar; não sendo nenhuma das hipóteses anteriores, vale observar se a pessoa autista está tentando se comunicar ou chamar a atenção (Grandin, 2011).

Considerando que todas as pessoas, inclusive as autistas, têm diferenciações a serem trabalhadas e, ao mesmo tempo, interesses, pontos fortes, esperanças a serem identificadas e consideradas, cabe aos envolvidos no processo de escolarização questionar: quais são suas histórias, seus saberes, seus sonhos? (Santos, 2020).

Grandin e Panek (2017, p. 210-211) não ignoram que “ainda há um longo caminho a percorrer. A ignorância e as interpretações incorretas sempre são difíceis de superar quando passam a fazer parte do sistema de crenças de uma sociedade”. Contudo, como lembra Arendt (2008, p. 6), “[...] mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação”.

Cientes de que nem todas as pessoas autistas são como Grandin, cuja condição econômica e social, somada ao pensamento visual e ao aguçado olhar científico, contribuíram para que se tornasse uma personagem célebre, lembramos que, mesmo as que precisam de cuidados constantes, difundem um saber que vai muito além do que a Ciência pode dizer dessa condição (Maleval, 2017). Logo, todas as pessoas que vivenciam o autismo como condição podem ter uma vida mais feliz e produtiva se, no lugar de um trabalho focado em déficits, houver a preocupação em ouvir seus testemunhos, reconhecer seus saberes e cultivar seus pontos fortes.

Considerações finais

Avaliando que a construção social do autismo como um conjunto de déficits falha em reconhecer as potencialidades das pessoas autistas, impedindo-as não só do exercício de direitos e liberdades fundamentais, como também de demonstrarem seus talentos e capacidades, objetivamos, no presente texto, lançar luz na percepção do autismo como condição humana de diversidade. Mais que colocar em xeque princípios de redução, homogeneização e/ou dissimulação da diferença, defendemos a abertura à história do outro, a suas emoções, sentimentos e reações, por meio de uma escuta qualificada, compreensiva e acolhedora ou, dito de outro modo, uma escuta educativa.

À luz do que temos afirmado, defendemos, portanto, que nos cabe compreender a forma como pessoas autistas se sentem, (re)conhecer suas potencialidades e investigar que tipos de instrumentos precisamos providenciar para garantir a comunicação recíproca e o progresso - delas e nosso - como seres humanos e na relação social. Essa ideia é reforçada por Grandin que, advogando de dentro do autismo, elucida o fato de pessoas que vivenciam essa condição terem potencialidades, curiosidades, ideias, desejos, sonhos e anseio por conviver e aprender, como qualquer outra.

Na contramão das narrativas excludentes, os depoimentos de Grandin se colocaram como um convite ao pensamento alargado. Essa escritora e cientista nos permitiu argumentar que, antes de traduzir comportamentos observáveis como sintomas de uma não adaptação ou de uma incapacidade de (con)viver, cabe-nos buscar a autoridade fundada no saber da outra pessoa, por meio de uma escuta qualificada, implicada em compreender as expressões de pessoas autistas em suas diferentes manifestações e num enquadramento de humanização.

Sendo cada pessoa autista, na especificidade de sua condição, dotada de uma visão de mundo particular, constituída de saberes válidos e valiosos a serem conhecidos e reconhecidos como condição para uma proposta educativa libertadora, reforçamos a convicção de que sua participação em interações comunicativas, com vistas à autodeterminação e ao desenvolvimento de suas capacidades expressivas, afetivas, intelectuais e laborais, é uma possibilidade de aprendizado para todos(as). Young, ao apresentar uma política da diferença na qual grupos em desvantagem se colocam como parte fluida e relacional dos processos sociais, sustenta essa convicção, convidando-nos a um ato de escuta dialético, no qual, a princípio, se não conseguirmos compreender as diferenças, podemos ao menos reconhecê-las e nos deixar surpreender, já que todas as pessoas trazem consigo leituras da realidade e possibilidades criativas capazes de contribuir para ampliar nossa limitada percepção do que vem a ser linguagem, conversação como performance e política da civilidade.

Reafirmamos que o autismo, longe de ser um transtorno, uma deficiência, uma doença, enfim, uma tragédia pessoal, é uma condição humana, cuja dificuldade de ser e (con)viver, para além dos desafios e especificidades de cariz mais pessoal, decorre das barreiras atitudinais e de conjunturas macroestruturais enfrentadas cotidianamente pelas pessoas cujo autismo informa suas vidas. Além disso, lembrando que a ignorância e as interpretações incorretas, quando passam a fazer parte do sistema de crenças de uma sociedade, são sempre difíceis de superar, sublinhamos a urgência de um exercício reflexivo, ético e intenso, enquanto antídoto à negação do direito de participação de pessoas autistas na esfera comum.

Diante do exposto, finalizamos assinalando que romper com construções sociais estigmatizantes implica um alargamento do pensamento, isto é, uma revisão do modo como nos comunicamos e interagimos com as tantas outras formas de estar num mundo pautado pela diversidade, o que inclui a neurodiversidade. No caso da escola e em relação ao autismo como condição, romper com as referidas construções corresponde à capacidade de compreender as pessoas autistas fazendo uma aproximação aos seus próprios termos.

Colocando em prática uma escuta educativa, implicada em compreender a experiência de quem vivencia o autismo como condição humana, tanto quanto a análise - crítica, constante e conjunta - de discursos que negam a capacidade de pessoas autistas de participar em condições de igualdade na vida social, cultural e política, podemos não apenas contribuir para o nosso processo de humanização, num movimento ético e solidário mais profundo, como consolidar o verdadeiro encontro, aprendizado e crescimento humano na esfera pública.

Referências

ALBERTO, M. F. P.; SOUSA, O. M. C. G. Trabalho precoce e processo de escolarização de crianças e adolescentes. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 4, p. 713-722, out./dez. 2008. [ Links ]

AMATUZZI, M. M. Por uma psicologia humana. 2. ed. Campinas: Alínea, 2008. [ Links ]

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. [ Links ]

ARENDT, H. A dignidade da política: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993. [ Links ]

ARENDT, H. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará , 2000. [ Links ]

ARENDT, H. Trabalho, obra, ação. Tradução de Adriano Correia. Cadernos de Ética e Filosofia Política, São Paulo, v. 2, n. 7, p. 175-201, 2005. [ Links ]

ARENDT, H. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. [ Links ]

ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. [ Links ]

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Coleção Debates. Política, 64). [ Links ]

BLACKBURN, J. Personality disorders: 301.666 normal personality disorder. In: ENGDAHL, E. DSN-IV: the Diagnostic and Statistical Manual of 'Normal' Disorders. [S.l.]: Institute for the Study of the Neurologically Typical, 1999. Disponível em: <Disponível em: https://erikengdahl.se/autism/isnt/dsn-npd.html >. Acesso em: 19 jul. 2020. [ Links ]

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 jul. 2015. Seção 1, p. 2. [ Links ]

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2009. [ Links ]

CORTESÃO, L. O arco-íris na sala de aula? Processos de organização de turmas: reflexões críticas. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 1998. (Coleção Cadernos de Organização e Gestão Curricular). [ Links ]

DONVAN, J.; ZUCKER, C. Outra sintonia: a história do autismo. São Paulo: Companhia das Letras , 2017. [ Links ]

DUNKER, C.; THEBAS, C. O palhaço e o psicanalista: como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo: Planeta, 2019. [ Links ]

FLEISCHMANN, A.; FLEISCHMANN, C. Carly’s voice: breaking through autism. New York: Simon e Schuster, 2012. [ Links ]

FORST, R. Radical justice: on Iris Marion Young’s critique of the “distributive paradigm”. Constellations: International Journal of Critical and Democratic Theory, Oxford, v. 14, n. 2, p. 260-265, June 2007. [ Links ]

FREIRE, P. Extensão ou comunicação? 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1997. [ Links ]

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 36. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014a. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 58. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2014b. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2015. [ Links ]

GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2013. [ Links ]

GRANDIN, T. Mistérios de uma mente autista. Belo Horizonte: Clube de Autores, 2011. [ Links ]

GRANDIN, T.; PANEK, R. O cérebro autista: pensando através do espectro. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2017. [ Links ]

GRANDIN, T.; SCARIANO, M. M. Emergence: labeled autistic. New York: Warner Books, 1996. [ Links ]

GRANDIN, T.; SCARIANO, M. M. Uma menina estranha: autobiografia de uma autista. São Paulo: Companhia das Letras , 2002. [ Links ]

HAMILTON, L. Disability as a social construction: investigating how autism is represented in the mainstream media. Prism: Casting New Light on Learning, Theory and Practice, [S.l.], v. 2, n. 2, p. 20-38, 2019. [ Links ]

KANNER, L. Autistic disturbances of affective contact. Nervous child, [S.l.], n. 2, p. 217-250, 1943. Disponível em: <Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/1943-03624-001 >. Acesso em: 11 fev. 2020. [ Links ]

KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1980. [ Links ]

KEDAR, I. Ido in Autismland: climbing out of autism’s silent prison. Canada: Smashword, 2012. [ Links ]

MACEDO, E. Cidadania em confronto: educação de jovens elites em tempo de globalização. Porto: LivPsic, 2009. (Coleção Ciências da Educação, 3). [ Links ]

MACEDO, E. Aprender a aprender com pessoas autistas: olhar a experiência a partir de incidentes críticos. In: SEMANA DA MULHER, 13., 2017, Marília. . Mulheres e gênero: olhares sobre a educação, mídia, saúde e violência. Marília: Unesp, 2017. Palestra pública. [ Links ]

MACEDO, E. Vozes jovens entre experiência e desejo: cidadania educacional e outras construções. Porto: Afrontamento, 2018. (Coleção Ciências da Educação, 35). [ Links ]

MACEDO, E.; CLOUGH, N.; ARAÚJO, H. C. Ser ‘sujeito inteiro’ em educação: possibilidades de cidadania educacional. In: MACEDO, E. (Coord.). Fazer educação, fazer política: linguagem, resistência e ação. Porto: LivPsic , 2014. p. 79-92. (Coleção Querer Saber, 5). [ Links ]

MAFRA, J. F. Paulo Freire, um menino conectivo: conhecimento, valores e práxis do educador. São Paulo: BT Acadêmica; Brasília: Liber Livro, 2016. [ Links ]

MALEVAL, J. C. O autista e a sua voz. São Paulo: Blucher, 2017. [ Links ]

MORAES, M. C. M. Desrazão no discurso da história. In: HÜHNE, L. M. (Org.). Razões. Rio de Janeiro: Uapê, 1994. p. 177-203. [ Links ]

ORTEGA, F. Deficiência, autismo e neurodiversidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 67-77, fev. 2009. [ Links ]

RICOEUR, P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1969. [ Links ]

SANTOS, R. V. Razões autistas na escola: um espectro de saberes em uma condição singular. 2020. 324 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Nove de Julho, São Paulo, 2020. [ Links ]

STOER, S. R.; MAGALHÃES, A. A diferença somos nós: a gestão da mudança social e as políticas educativas e sociais. Porto: Afrontamento , 2005. [ Links ]

TORRES, M. I. B. Discapacidad: una construcción narrativa excluyente. Equidad y Desarrollo, [S.l.], v. 1, n. 24, p. 165-183, jul./dic. 2015. [ Links ]

VASQUES, C. K.; BAPTISTA, C. R. Os desafios da escolarização de sujeitos com transtornos globais do desenvolvimento. In: MELETTI, S. M. F.; KASSAR, M. C. M. (Org.). Escolarização de alunos com deficiência: desafios e possibilidades. Campinas: Mercado das Letras, 2013. p. 271-288. [ Links ]

YOUNG, I. M. Justice and the politics of difference. New York: Princeton University, 1990. [ Links ]

YOUNG, I. M. Inclusion and democracy. New York: Oxford University, 2000. [ Links ]

YOUNG, I. M. Comunicação e o outro: além da democracia deliberativa. In: SOUZA, J. (Org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. p. 365-386. [ Links ]

YOUNG, I. M. Responsibility for justice. New York: Oxford University , 2011 [ Links ]

Recebido: 09 de Setembro de 2021; Aceito: 28 de Março de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons