SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.103 número265Cultivando a memória, o Inep reexamina periodicamente sua identidadeInep durante a gestão de Anísio Teixeira (1952-1964) índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versão impressa ISSN 0034-7183versão On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.103 no.265 Brasília set./dez 2022

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.103i265.5242 

SEÇÃO COMEMORATIVA

De questões do Enem a aulas com modelagem matemática: o caminhar para uma educação matemática crítica

From Enem questions to mathematical modeling classes: moving towards a critical mathematics education

Desde preguntas del Enem hasta clases de modelación matemática: el viaje hacia la educación matemática crítica

Emerson TortolaI  II 
http://orcid.org/0000-0002-6716-3635

Karina Alessandra Pessoa da SilvaIII  IV 
http://orcid.org/0000-0002-1766-137X

I Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Toledo, Paraná, Brasil. E-mail: <emersontortola@utfpr.edu.br>;

II Doutor em Ensino de Ciências e Educação Matemática pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Londrina, Paraná, Brasil.

III Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: <karinapessoa@gmail.com>;

IV Doutora em Ensino de Ciências e Educação Matemática pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Londrina, Paraná, Brasil.


Resumo:

Este artigo objetiva investigar como questões do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) constituintes da área de conhecimento “Matemática e suas Tecnologias” podem ser implementadas em sala de aula considerando uma perspectiva de educação matemática crítica subsidiada pela modelagem matemática. Para isso, foram examinadas, com o apoio da análise de conteúdo, as 45 questões que compuseram a edição 2021 - aplicação regular, a fim de identificar as temáticas abordadas e os objetivos para a atividade matemática requerida na resolução. Três categorias foram construídas, as quais estão associadas a ambientes de aprendizagem sistematizados por Ole Skovsmose. Cada categoria foi interpretada à luz de discussões teóricas e experiências de modelagem matemática presentes na literatura, observando aspectos que podem suscitar debates alinhados à educação matemática crítica. Observamos potencialidades em todos os cenários, em alguns mais que em outros, para o encaminhamento de atividades de modelagem matemática, desde que professor e alunos assumam diferentes posicionamentos no fazer matemática. Porém, nem todos os temas mostraram-se profícuos para promover discussões alinhadas à educação matemática crítica, sendo necessário que o professor fomente tais discussões e complemente ou oriente o aluno a fazê-lo em busca de mais informações.

Palavras-chave: educação matemática; atividades de modelagem; cenários para investigação; Enem.

Abstract:

This paper aims to investigate how questions from the Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) of the area of “Mathematics and its Technologies” can be implemented in the classroom considering a critical mathematics education perspective supported by mathematical modeling. For this, all forty-five questions from the 2021 edition - regular application were analyzed, with the support of content analysis, in order to identify the themes addressed and the objectives for the mathematical activity the resolution demanded. Three categories were constructed, which are associated with learning environments systematized by Ole Skovsmose. Each category was interpreted in the light of theoretical discussions and experiences of mathematical modelling presented in the literature, observing aspects that can raise debates aligned with the critical mathematics education. In all scenarios - in some more than others - potentialities for the forwarding of mathematical modelling activities have been observed, provided teachers and students take different positions in doing mathematics. However, not all topics proved fruitful in promoting discussions aligned with critical mathematics education, which demands that the teacher encourages such discussions and complements or guides students to do so in the search of more information.

Keywords: mathematics education; modeling activities; landscapes of investigation; Enem.

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo investigar cómo las preguntas del Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), que constituyen el área de conocimiento “Matemáticas y sus Tecnologías”, pueden ser implementadas en clase desde una perspectiva de educación matemática crítica sustentada en la modelación matemática. Para ello, se analizaron, con el apoyo del análisis de contenido, las cuarenta y cinco preguntas que componen la edición 2021 - aplicación regular, con el fin de identificar los temas abordados y los objetivos de la actividad matemática requeridos en la resolución. Se construyeron tres categorías, las cuales están asociadas a ambientes de aprendizaje sistematizados por Ole Skovsmose. Cada categoría fue interpretada a la luz de discusiones teóricas y experiencias de modelación matemática presentes en la literatura, observando aspectos que pueden suscitar debates en línea con la educación matemática crítica. Observamos potencialidades en todos los escenarios - algunos más que otros - para el desarrollo de las actividades de modelación matemática, desde que el profesor y los estudiantes tomen diferentes posiciones en la práctica de las matemáticas. Sin embargo, no todos los temas demostraron ser fructíferos para promover discusiones alineadas con la educación matemática crítica, siendo necesario que el docente fomente este tipo de discusiones y complemente o oriente al alumno para que lo haga en busca de más información.

Palabras clave: educación matemática; modelización matemática; escenarios de investigación; Enem.

Introdução

O compromisso social da escola transcende sua estrutura disciplinar e vai além do ensino dos conteúdos elencados no currículo. Espera-se que a escola contribua com a formação de cidadãos críticos, pensantes, capazes de questionar e transformar o meio em que vivem (Brasil. MEC, 2013; Freire, 1996). Nesse contexto, vislumbra-se a matemática como um meio de pensar, analisar e argumentar a respeito de determinadas questões da sociedade, auxiliando o indivíduo em suas percepções sobre o mundo, suas tomadas de decisão e suas ações (Barbosa, 2004; Skovsmose, 2007).

Quando a matemática é entendida dessa maneira, seu ensino e sua aprendizagem alinham-se às ideias da educação matemática crítica, uma perspectiva que questiona uma educação pautada no ensino da matemática sem reflexão ou que se preocupa apenas em abordar os conteúdos elencados no currículo. Tece críticas, ainda, sobre o ensino dessa disciplina baseado exclusivamente na apresentação de definições e exemplos descontextualizados ou na exposição de exemplos que, embora contextualizados, correspondem a contextos desconhecidos pelos alunos, quando não tratam de situações inimagináveis por eles. Ambos os casos são preocupantes e retratam o entendimento de muitos professores a respeito da educação matemática de seus alunos. Diante desse entendimento, vale a pena (re)pensar o papel do ensino e da aprendizagem da matemática nas escolas.

De acordo com o artigo 22 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, “a educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (Brasil, 1996, p. 27836). Dessa forma, não faz sentido ignorar a diversidade de situações nas quais a matemática pode auxiliar na compreensão, bem como a multiplicidade de maneiras pelas quais ela pode ser empreendida.

Nessa perspectiva, seu ensino deve contemplar diferentes abordagens e possibilidades de empreendimentos, como ponderou Skovsmose (2000), ao caracterizar distintos cenários ou ambientes de aprendizagem para aulas de matemática, dentre os quais chamamos atenção para aqueles em que ela é utilizada de maneira investigativa, particularmente na análise e na interpretação de situações com as quais convivemos, direta ou indiretamente.

Um exemplo desse modo de trabalhar a matemática, utilizando-a para abordar situações em geral, é a modelagem matemática, uma alternativa pedagógica que tem sido amplamente discutida e disseminada no âmbito científico e escolar (Almeida; Silva; Vertuan, 2012), pautada na problematização, na investigação (Barbosa, 2004) e na criatividade (Wessels, 2014).

Com a modelagem, podem-se abordar diferentes temas e problemas da realidade - ou provenientes dela -, prezando pela confiabilidade dos dados e pela sua coleta. Isso significa que para resolver um problema, além de usar matemática - por meio de conteúdos já conhecidos ou que virão a ser apreendidos - o modelador deve buscar conhecer e entender a situação que o originou, pois somente assim poderá definir hipóteses que direcionarão a abordagem matemática e a dedução de um modelo matemático que expresse, descreva e/ou explique a situação-problema, permitindo formular entendimentos a seu respeito e fazer previsões que auxiliem na sua solução.

Desenvolver atividades de modelagem, todavia, requer do professor um planejamento que difere dos habituais, uma vez que essas atividades têm como premissa o engajamento dos alunos, compartilhando com o docente a responsabilidade por seu encaminhamento e prezando pelo desenvolvimento da autonomia e da comunicação (Tortola; Silva, 2021). Desse modo, é natural que, ao se disporem a trabalhar alinhados a essa perspectiva, os professores, em busca de ideias, consultem a princípio os materiais que têm à disposição, como livros didáticos ou questões de avaliações em larga escala, como as do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que por ser amplamente difundido, inclusive com o apoio de políticas públicas, tem implicações no trabalho desenvolvido pelo professor em sala de aula.

O Enem foi instituído em 1998 e, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), tem como objetivo avaliar o desempenho escolar dos estudantes ao término da educação básica (Brasil. Inep, [s.d.]). Desde 2009, o Exame passou a ser utilizado como mecanismo de acesso à educação superior, o que lhe atribuiu um peso ainda maior no que tange à formação dos alunos.

As questões, contextualizadas inclusive em dados reais, podem servir de inspiração para os professores, que podem adaptá-las e trabalhá-las em uma perspectiva mais alinhada a seus objetivos. Contudo, ao tomar essas questões como ponto de partida para o desenvolvimento de atividades de modelagem, é preciso desafiar sua aparente neutralidade e abrir os olhos para as diferentes possibilidades de seu uso, as quais, precisamos reconhecer e admitir, não estão livres da influência de interesses sociais e políticos (Borba; Skovsmose, 2013).

Diante do exposto, neste artigo, temos por objetivo investigar: como questões do Enem constituintes da área de conhecimento “Matemática e suas Tecnologias” podem ser implementadas em sala de aula considerando uma perspectiva de educação matemática crítica subsidiada por atividades de modelagem matemática?

Fundamentamo-nos nos pressupostos da pesquisa qualitativa e pautamo-nos nas orientações metodológicas da análise de conteúdo (Bardin, 2011) para examinar os enunciados das 45 questões da edição 2021 - aplicação regular, visando identificar as temáticas abordadas e as discussões associadas, bem como os objetivos para a atividade matemática requerida na resolução.

Abordamos, inicialmente, algumas ideias a respeito da modelagem matemática, da educação matemática crítica e da articulação entre elas. Na sequência, apresentamos as opções metodológicas que nos encaminham para a análise das questões que compõem a região de inquérito. Por fim, discorremos a respeito de potencialidades e possibilidades para o uso dessas questões em sala de aula na perspectiva da educação matemática crítica, subsidiadas pela modelagem matemática, e tecemos nossas considerações finais.

Modelagem matemática e educação matemática crítica

Para caracterizar a modelagem matemática, Barbosa (2004) pauta-se na ideia de ambiente de aprendizagem, apresentada por Skovsmose (2000), que diz respeito a todas as condições de aprendizagem disponibilizadas aos alunos, incluindo o ambiente físico, os recursos didáticos, os objetivos e as opções metodológicas do professor. Nesse entendimento, todos são responsáveis pela constituição do ambiente de aprendizagem. Todavia, no contexto da modelagem, cabem ao professor e aos alunos papéis distintos daqueles geralmente desempenhados, em que se sobressaem aulas centradas na exposição do conteúdo e na resolução de exercícios.

Em ambientes de aprendizagem constituídos por atividades de modelagem, os alunos são convidados a problematizar e a investigar, por meio da matemática, situações com referência na realidade (Barbosa, 2004) ou, como descreve Lingefjärd (2006, p. 96, tradução nossa), a “observar um fenômeno, conjecturar relações, aplicar análises matemáticas (equações, estruturas simbólicas etc.), obter resultados matemáticos e (re)interpretar o modelo”. Nesses ambientes, imperam a relação dialógica e a comunicação, uma vez que se tem como pressuposto a participação do aluno como corresponsável pela atividade (Tortola; Silva, 2021).

Um dos argumentos utilizados por Barbosa (2004), que sustenta sua defesa pelo uso da modelagem em práticas de sala de aula, é a compreensão da função sociocultural da matemática, que coloca ênfase no conhecimento reflexivo com o propósito de analisar o papel da matemática nas práticas sociais. Essa perspectiva vem enviesada no que se chama de perspectiva sociocrítica (Barbosa, 2003; Kaiser; Sriraman, 2006).

Tal perspectiva contribui para desafiar o que Borba e Skovsmose (1997) denominam “ideologia da certeza”, colocando lentes críticas sobre as aplicações da matemática e trazendo para discussão sua veracidade e confiabilidade. Além disso, “reivindica a necessidade de encorajar o pensamento crítico sobre o papel da matemática na sociedade, sobre o papel e a natureza de modelos matemáticos e sobre a função da modelagem matemática na sociedade” (Kaiser; Sriraman, 2006, p. 306, tradução nossa).

É nesse contexto que Barbosa (2004, p. 2) propõe a modelagem como uma atividade capaz de “potencializar a intervenção das pessoas nos debates e tomadas de decisões sociais que envolvem aplicações da matemática”, o que contribui para “alargar as possibilidades de construção e consolidação de sociedades democráticas”.

É a expressão dessas e de outras preocupações a respeito da educação matemática que constitui a educação matemática crítica. Pensar a modelagem matemática nessa perspectiva se aproxima, portanto, de pensar a perspectiva sociocrítica da modelagem (Barbosa, 2003, 2006), uma vez que possibilita questionar o uso da matemática para interpretar situações do mundo real, explorar seu poder crítico e argumentativo e fazer reflexões que podem envolver, inclusive, as injustiças sociais, como pondera Skovsmose (2017, p. 22):

[...] auxiliando os estudantes, e também estudantes em posições confortáveis, a desenvolver uma consciência crítica que os apoie em aprofundar o conhecimento e a compreensão dos contextos sociopolíticos de suas vidas.

Na literatura, existem pesquisas que apregoam articulações entre modelagem matemática e educação matemática crítica. No âmbito da educação básica, os autores, de forma geral, argumentam pelo uso da modelagem como forma de introduzir interesses da educação matemática crítica nas aulas de matemática (Rocha; Bisognin, 2009; Almeida; Silva, 2010; Freitas, 2013; Silva; Silva, 2019). Em nossa pesquisa, entretanto, o foco está em questões presentes no Enem e que têm potencial para serem discutidas por meio de atividades de modelagem matemática considerando aspectos da educação matemática crítica, conforme anunciamos a seguir.

Aspectos metodológicos: sobre o movimento analítico

Ao analisar questões do Enem e do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), Andrade e Freitag (2021) evidenciaram que ambas as provas têm em comum a função de diagnóstico. As autoras, todavia, ponderam que essa função deve levar em consideração “captar toda a amplitude de conhecimento do estudante” (Andrade; Freitag, 2021, p. 199).

Entendemos, assim como as autoras a que nos referimos, que há uma necessidade de nos atentarmos para aspectos relativos ao desenvolvimento cognitivo de alunos quando se envolvem com questões que articulem ambientes de aprendizagem. No entanto, esse desenvolvimento cognitivo está atrelado a algo além do que uma prova escrita é capaz de possibilitar. Diferentemente de Andrade e Freitag (2021), nosso foco é evidenciar como questões do Enem constituintes da área de conhecimento “Matemática e suas Tecnologias” podem ser implementadas em sala de aula considerando uma perspectiva de educação matemática crítica subsidiada por atividades de modelagem matemática.

Nesta investigação, dirigimos nossa atenção para as questões 136 a 180 do Caderno 5 Amarelo do Enem 2021 - aplicação regular1, relacionadas à área “Matemática e suas Tecnologias”, as quais analisamos a fim de identificar: (i) as temáticas abordadas, para fomentar uma possível discussão crítica a ser desenvolvida a partir da problematização e investigação da temática via modelagem matemática; e (ii) os objetivos para a atividade matemática requerida na resolução, de modo a pensar como esses podem ser contemplados na modelagem. Para isso, subsidiamo-nos nas orientações metodológicas da análise de conteúdo.

A análise de conteúdo é “um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais sutis e em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a ‘discursos’ (conteúdos e continentes) extremamente diversificados” (Bardin, 2011, p. 15). Esses “discursos” dizem respeito a todos os tipos de mensagem, que submetidos a descrições sistemáticas, qualitativas ou quantitativas podem revelar compreensões cujas interpretações vão além de uma leitura comum.

Em geral, a análise dos dados, amparada pela análise de conteúdo, ocorre por meio de três polos procedimentais, os quais Bardin (2011) denomina pré-análise; exploração do material; e tratamento dos resultados, inferência e interpretação.

Neste estudo, iniciamos a pré-análise com uma “leitura flutuante” das 45 questões, a fim de conhecê-las e deixar que nossas primeiras impressões tomassem forma. Em cada questão, destacamos trechos do enunciado que indicam (i) as temáticas abordadas e (ii) os objetivos para a atividade matemática requerida na resolução, mediante os quais formulamos nossas primeiras hipóteses e definimos os encaminhamentos para a exploração e o tratamento do material.

Para a exploração do material, enumeramos, codificamos e categorizamos as unidades de registro, que consistem nos trechos destacados dos enunciados e revelam o “segmento de conteúdo considerado unidade de base, visando a categorização e a contagem frequencial” (Bardin, 2011, p. 134). Noventa unidades de registro foram identificadas, duas para cada questão, uma de cada tipo: (i) ou (ii). Cada questão foi tomada como unidade de contexto, uma vez que:

[...] serve de unidade de compreensão para codificar a unidade de registro e corresponde ao segmento da mensagem, cujas dimensões (superiores às da unidade de registro) são ótimas para que se possa compreender a significação exata da unidade de registro. (Bardin, 2011, p. 134).

Visando à categorização, observamos algumas aproximações e diferenças nos enunciados. No que se refere às temáticas abordadas (i), evidenciamos três contextos de referência: (1) estritamente matemático; (2) associado a situações criadas para contextualizar a atividade matemática requerida, ou seja, o que se esperava em termos matemáticos para resolver a questão; e (3) associado a informações e dados referenciados em fontes como jornais, revistas etc., com base em situações da realidade.

Em relação aos objetivos para a atividade matemática requerida (ii), observamos uma certa regularidade na forma como os enunciados direcionaram para a resolução. Em linhas gerais, podemos dizer que ao final de cada enunciado foram sintetizadas as informações matemáticas da questão e uma tarefa a ser resolvida foi indicada. Essa tarefa precisava ser reconhecida para então ser realizado um cálculo, uma interpretação de gráfico, uma transformação de linguagens etc., dada a natureza objetiva das questões.

Diante do exposto, codificamos as unidades de registro de modo a indicar a questão de origem (136 a 180) e o tipo de seu conteúdo - (i) para indicar temáticas abordadas e (ii) para indicar objetivos da atividade matemática requerida para a resolução. Além disso, para as unidades de registro do tipo (i), acrescentamos entre parênteses uma indicação do contexto de referência da temática abordada (1, 2 ou 3), a fim de iniciar um movimento de categorização. Por exemplo, o código U161.i(1) diz respeito à unidade de registro da questão 161 que indica a temática da questão, referente a um contexto estritamente matemático. Já a unidade de registro U161.ii diz respeito à unidade de registro da questão 161 que indica os objetivos da atividade matemática requerida. A Figura 1 apresenta um exemplo desse movimento de codificação.

Fonte: Elaboração própria, com base no Caderno 5 Amarelo - Enem 2021 (Brasil. Inep, 2021, p. 51-52).

Figura 1 Codificação das unidades de registro 

Ao constatar que as aproximações e diferenças observadas permeiam todo o material, alguns agrupamentos se delinearam a partir dos contextos de referência (1), (2) e (3) das temáticas abordadas nas questões (i) e dos objetivos da atividade matemática requerida para a resolução (ii). Porém, ao buscar na literatura elementos que sustentassem teoricamente esses agrupamentos e contribuíssem para sua consolidação como categorias, percebemos uma forte aproximação com os ambientes de aprendizagem sistematizados por Skovsmose (2000), especificamente os alinhados ao paradigma do exercício, o que se justifica pela natureza objetiva das questões, ou seja, “existe uma, e somente uma, resposta correta” (Skovsmose, 2008, p. 16), sem espaço para investigação.

De acordo com Skovsmose (2000), o paradigma do exercício é aquele que ainda predomina em sala de aula, geralmente associado às práticas tradicionais, que podem ser ilustradas pela exposição do conteúdo, resolução de exemplos e proposição de exercícios de treinamento. O autor contrapõe esse paradigma com os cenários para investigação, que se caracterizam pelo suporte oferecido a um trabalho de investigação, e convidam os alunos a formular questões e procurar explicações em busca de respostas. Combinando a distinção entre esses dois paradigmas de práticas de sala de aula, do exercício, e os cenários para investigação e a distinção entre três tipos de referências, à matemática pura, à semirrealidade e à realidade, o autor sistematizou uma matriz com seis tipos diferentes de ambientes de aprendizagem, conforme demonstra o Quadro 1.

Fonte: Skovsmose (2008, p. 23).

Quadro 1 Matriz dos ambientes de aprendizagem 

As categorias construídas se sustentam nos ambientes de aprendizagem (1), (3) e (5), alinhados ao paradigma do exercício e que fazem referência à matemática pura, à semirrealidade e à realidade, respectivamente, de modo que cada questão pode ser classificada de acordo com as características apresentadas por eles. O Quadro 2 traz a classificação das questões, que se sustenta nas duas unidades de registro codificadas para cada uma delas.

Fonte: Elaboração própria.

Quadro 2 Classificação das questões do Caderno 5 Amarelo (Enem 2021) 

Mediante a categorização efetuada, dedicamo-nos ao tratamento dos resultados, ou seja, para cada categoria realizamos um movimento descritivo e interpretativo de modo a compreender o contexto da temática abordada (i) e a atividade matemática requerida (ii) no grupo de questões que a constitui, o que nos permite fazer inferências, fundamentadas nos dados e em assertivas teóricas, e caminhar para a educação matemática crítica subsidiada pela modelagem matemática.

O caminhar para a educação matemática crítica por meio de atividades de modelagem matemática

Amparados na metáfora de que existe um caminho “somente quando houve um movimento ou pelo menos a perspectiva de movimento” (Colapietro, 2004, p. 21, tradução nossa), trazemos uma perspectiva para a implementação de questões do Enem em sala de aula. Todavia, nossa intenção está respaldada na educação matemática crítica por meio da modelagem matemática que leva em consideração a integração entre as condições sociais, políticas, culturais e econômicas do aluno e como ele pode interpretá-las para solucionar um problema.

Nesse contexto, identificamos nas 45 questões analisadas, na área de conhecimento “Matemática e suas Tecnologias”, da prova do Enem, edição 2021 - aplicação regular, três cenários que podem ser associados aos ambientes de aprendizagem sistematizados por Skovsmose (2000), em relação ao paradigma do exercício: (1) com referência à matemática pura; (3) com referência à semirrealidade; e (5) com referência à realidade.

Esses ambientes sustentam os agrupamentos das questões, consolidando-os em três categorias. Essas categorias, contudo, servem como ponto de partida para a discussão pretendida neste artigo, de modo que ao submetê-las à análise, fundamentada nos dados e em assertivas teóricas, partimos em direção à educação matemática crítica subsidiada pela modelagem matemática, ou seja, vislumbramos a reformulação desses ambientes de aprendizagem, em busca de um movimento em direção ao ambiente de aprendizagem (6) pontuado por Skovsmose (2000), que diz respeito a um “cenário para investigação” com referência na realidade.

Um cenário para investigação é aquele que convida os alunos a formular questões e a procurar explicações. O convite é simbolizado pelo “O que acontece se...?” do professor. O aceite dos alunos ao convite é simbolizado por seus “Sim, o que acontece se...?”. Dessa forma, os alunos se envolvem no processo de exploração. O “Por que isto?” do professor representa um desafio e os “Sim, por que isto...?” dos alunos indicam que eles estão encarando o desafio e estão procurando explicações, o cenário de investigação passa a constituir um novo ambiente de aprendizagem. No cenário de investigação os alunos são responsáveis pelo processo (Skovsmose, 2000, p. 71).

Dessa forma, os cenários para investigação se contrapõem aos cenários alinhados ao paradigma do exercício e, segundo Skovsmose (2000, p. 66):

[...] mover-se do paradigma do exercício em direção ao cenário para investigação pode contribuir para o enfraquecimento da autoridade da sala de aula tradicional de matemática e engajar os alunos ativamente em seus processos de aprendizagem.

Além disso, “mover-se da referência à matemática pura para a referência à vida real [realidade] pode resultar em reflexões sobre a matemática e suas aplicações” (Skovsmose, 2000, p. 66).

Assim como ressalta Skovsmose (2000), não estamos defendendo que esse ambiente seja a única alternativa para o paradigma do exercício ou que os exercícios sejam abandonados em sala de aula, mas estamos interessados nesse movimento que sinaliza um caminhar em direção à educação matemática crítica, por meio da modelagem. Na sequência, descrevemos cada categoria e discutimos possíveis encaminhamentos para que esse movimento possa ocorrer.

Ambiente de aprendizagem 1: com referência à matemática pura e alinhado ao paradigma do exercício

Nesse ambiente de aprendizagem, predominam os exercícios cujo contexto de referência repousa na própria matemática, ou seja, os enunciados contemplam informações e/ou explicações sobre um determinado conteúdo ou algoritmo e requerem uma aplicação da ideia abordada. Quando se cita algum tipo de aplicação, ela se dá no âmbito da própria matemática. O Quadro 3 aponta as questões que se classificam nesse ambiente, com uma descrição da atividade matemática requerida.

Fonte: Elaboração própria.

Quadro 3 Classificação das questões do Caderno 5 Amarelo no ambiente 1 

São questões que, segundo Skovsmose (2000), assemelham-se aos exercícios propostos frequentemente nas aulas de matemática, como aqueles que predominam nas páginas dos livros didáticos. Nesse sentido, talvez seja o caminho que os professores mais se desafiam a trilhar, em busca de respostas para a questão que é feita com frequência pelos alunos a respeito das aplicações dos conteúdos matemáticos: onde vou usar isso na minha vida?

Há, porém, que se considerar que existe uma diferença entre aplicações e modelagem matemática. De acordo com Blum (2002), enquanto as aplicações buscam um contexto para o qual um conteúdo pode ser utilizado, a modelagem parte de um problema do mundo real, ou definido a partir dele, e busca na matemática meios para responder esse problema. Trata-se de encaminhamentos com direções distintas, mas que podem se complementar, uma vez que, ao conhecer aplicações para determinados conceitos, os professores podem, com base em um conteúdo definido de antemão, procurar situações-problema que os abarquem e propô-las de maneira investigativa.

Para abordar a questão 137, por exemplo, cuja atividade matemática requer adicionar números escritos na base binária, ao invés de disponibilizar o algoritmo e suas regras de imediato, o professor pode buscar na área da informática ou da programação - como citado no enunciado - situações em que a adição de números nessa base é necessária. Dependendo dos conhecimentos dos alunos, eles podem ser desafiados até mesmo a programar! O importante nesse contexto é que uma investigação matemática seja introduzida ou incentivada.

Com fundamento em Cifuentes e Negrelli (2011), que abordam a possibilidade de atividades de modelagem se pautarem em investigações a partir de problematizações da matemática, o problema pode surgir da própria discussão a respeito da base binária, na qual os alunos podem ser desafiados a investigar como realizar a adição - e até mesmo outras operações - em tal base. Nessa perspectiva, o algoritmo dado inicialmente pode ser obtido como modelo matemático, resultado da modelagem, funcionando assim como uma teoria matemática, com regras a serem seguidas nesse contexto. Investigações semelhantes podem ser realizadas para outras bases. Será possível generalizar? Será possível indicar um algoritmo para a soma de números em uma base qualquer?

Questões como essas, relativas à generalização, podem também ser propostas na abordagem do item 179, referente à escrita de potências da constante de proporcionalidade, resultante da divisão de um segmento de reta em duas partes na proporção áurea. Será possível escrever uma generalização para a enésima potência?

Na questão 161, cuja intenção é escrever uma expressão algébrica da posição de uma massa presa a uma mola - a partir de um gráfico que descreve o movimento periódico de uma mola, em função do tempo -, poderíamos, ao contrário do que sugere o exercício, considerar a influência de forças externas na coleta de dados, o que modificaria o comportamento da posição da massa em função do tempo e, consequentemente, o modelo matemático que o descreve. Será que ainda assim o fenômeno apresentaria um movimento periódico? Será que esse movimento ainda poderia ser descrito por meio de uma função trigonométrica? Uma coleta de dados pode ser planejada e realizada com os alunos.

Ambiente de aprendizagem 3: com referência à semirrealidade e alinhado ao paradigma do exercício

Esse ambiente de aprendizagem contempla exercícios contextualizados em situações criadas especificamente para abordar determinadas ideias e conceitos matemáticos. Ainda que tratem de temáticas que podem ser associadas à realidade - frequência cardíaca máxima (141), volume de uma caneca de sopa (147), imposto devido (154), consumo de suplementos alimentícios (159), entre outras -, não há necessariamente uma preocupação com a viabilidade e a pertinência dos dados. As situações são artificiais, como explica Skovsmose (2000). O Quadro 4 mostra as questões que se classificam nesse ambiente, com uma descrição da atividade matemática requerida.

Fonte: Elaboração própria.

Quadro 4 Classificação das questões do Caderno 5 Amarelo no ambiente 3 

Esse tipo de exercício também é observado com frequência na sala de aula e nos livros didáticos e, de acordo com Skovsmose (2000), têm-se estabelecido padrões específicos sobre como operar numa dada semirrealidade. Se o aluno questiona o contexto do problema, ou algo que não diz respeito à resolução matemática, “o professor provavelmente considerará que o aluno está tentando obstruir a aula de matemática” (Skovsmose, 2000, p. 74). Isso porque existem certos “acordos” de como operar no paradigma do exercício e, tratando-se de uma semirrealidade, considera-se que ela “é totalmente descrita pelo texto do exercício; nenhuma outra informação é relevante para a resolução do exercício; mais informações são totalmente irrelevantes; o único propósito de apresentar o exercício é resolvê-lo” (Skovsmose, 2000, p. 74).

Nesse sentido, para mover-se em direção a um cenário investigativo do tipo (6), o professor precisa transpor a semirrealidade em direção à realidade, ou seja, o contexto das informações passa a ser importante e discuti-lo pode auxiliar na compreensão do problema, inclusive novos problemas - interessantes para os alunos e para o professor - podem surgir. Com isso, a modelagem se mostra como uma possibilidade de “criação de conhecimentos matemáticos, isto é, de novas maneiras de modelar os sistemas estudados” (Chevallard; Bosch; Gascón, 2001, p. 56, grifo dos autores). Nesse caso, o professor pode aproveitar os contextos das questões, adaptando-os e atualizando as informações. A coleta de novos dados pode ser feita por ele ou pelos alunos, e o problema pode ser proposto a partir da discussão do contexto.

Na questão 150, por exemplo, que aborda a organização de roupas em uma mala de viagem, pode-se propor que os alunos investiguem nos sites de companhias aéreas a política de despacho de bagagem e que aqueles que já viajaram de avião comentem a respeito dessa experiência. Com a pesquisa, os alunos podem identificar as condições que regulamentam o despacho, como limite de peso e dimensões da mala, inclusive para bagagens de mão. Eles, provavelmente, vão confirmar a informação disponibilizada a respeito da gratuidade para bagagens com até dez quilos, a partir daí uma coleta de dados pode ser realizada a fim de consultá-los sobre o que eles levariam na mala: camisetas, calças, sapatos... Outra variável pode ser discutida: o tempo de estadia, mas não necessariamente ela precisa ser considerada uma variável; uma simplificação pode ser feita de modo que os alunos estipulem a priori esse período. O problema da atividade pode ser instrumentalizado a partir da pergunta: como você organizaria sua mala? Uma variedade de respostas passa a ser possível. Lidar com a diferença de massas de um mesmo tipo de item pode conduzir os alunos a simplificações, como utilizar a média aritmética das massas como representativa de tal item. Uma função de muitas variáveis, por exemplo, pode ser escrita como um modelo matemático e investigações pontuais, como a quantidade máxima de camisetas a ser colocada na mala - conforme sugere o enunciado da questão - podem ser propostas. A exploração e a interpretação do modelo matemático podem encaminhar para a necessidade de uma validação, a qual pode ser proposta de modo que os alunos sejam desafiados a organizar uma mala com a configuração indicada e medir sua massa para confirmar se sua resposta atende o limite máximo.

Já a questão 170 pode inspirar uma investigação a respeito dos níveis dos reservatórios de água da cidade em que residem os estudantes. Uma coleta de dados pode ser feita considerando um período, um ano por exemplo, e um gráfico pode ser construído com os alunos, de maneira que regularidades possam ser observadas: qual é a época do ano em que o consumo de água é maior? Será que é possível conjecturar uma tendência de aumento ou redução dos níveis de água? Os dados coletados são suficientes ou novos dados são necessários? Nesse contexto, comparações como a sugerida pelo enunciado podem ser facilmente propostas. Um consumo médio de água na cidade pode ser inferido, diariamente, mensalmente ou anualmente - o que fizer mais sentido para a discussão -, além de outras investigações que surjam por interesse dos envolvidos.

Há, porém, que se reconhecer que em algumas questões o movimento para um cenário com referência na realidade parece ser mais complexo que em outras. Na questão 136, por exemplo, há toda uma discussão a respeito do sistema de numeração romano e as atividades matemáticas requeridas são a conversão para o sistema indo-arábico e a realização de uma subtração. Entretanto, como abordar isso por meio da modelagem matemática? Talvez em uma perspectiva próxima à sugerida para a abordagem da questão 137, a respeito da base binária, ou a partir da busca por situações e/ou documentos em que operações com os números romanos são requeridas. Por outro lado, em questões como a 141, que aborda a frequência cardíaca máxima, parece que já há uma boa estrutura no enunciado, que facilita o encaminhamento da atividade por meio da modelagem. Há informações reais, há uma organização dos dados, há um modelo matemático. A análise desse modelo, em termos de uma idade qualquer, poderia conduzir à construção de um gráfico e a uma coleta para a validação.

Ambiente de aprendizagem 5: com referência à realidade e alinhado ao paradigma do exercício

O contexto de referência advindo da realidade oferece “uma condição diferente para a comunicação entre o professor e os alunos, uma vez que agora faz sentido questionar e suplementar a informação dada pelo exercício” (Skovsmose, 2000, p. 75). Nesse ambiente de aprendizagem, as informações dos exercícios são oriundas de fontes reais. O Quadro 5 revela as questões que se classificam nesse ambiente, com uma descrição da atividade matemática requerida.

Fonte: Elaboração própria.

Quadro 5  Classificação das questões do Caderno 5 Amarelo no ambiente 5 

As temáticas presentes nas questões podem ser encaminhadas em sala de aula por meio de atividades de modelagem matemática, visto que podem partir de uma situação-problema da realidade e ser desenvolvidas sob um viés matemático (Almeida; Silva; Vertuan, 2012). Todavia, cabe ao professor fazer um planejamento considerando cada uma dessas temáticas, uma vez que, assim como em outras provas de larga escala, nas questões do Enem o foco está “na aplicação de conteúdos matemáticos, nas práticas de modelagem matemática o foco está na produção e análise de um modelo matemático que permita a obtenção dessa resposta a partir de instrumentos matemáticos” (Tortola; Almeida, 2013, p. 636).

Com o intuito “de encorajar o pensamento crítico sobre o papel da matemática na sociedade” (Kaiser; Sriraman, 2006, p. 306, tradução nossa), a temática da questão 166 (Figura 2) tem potencial para desencadear uma discussão acerca do crescimento da ingestão de medicamentos para depressão. No planejamento, o professor pode solicitar aos alunos que complementem as informações pesquisando dados mais recentes, inclusive considerando o período pandêmico, e a situação-problema pode ser encaminhada no sentido de se fazer uma previsão do volume de vendas na atualidade, em que os alunos e o professor definem hipóteses com base nos dados coletados.

Fonte: Caderno 5 Amarelo - Enem 2021 (Brasil. Inep, 2021, p. 53)

Figura 2 Questão 166 

Tratar a temática depressão e uso de medicamentos pode proporcionar o desenvolvimento de outras atividades de modelagem pelos alunos, orientados pelo professor, como o decaimento da concentração de determinado componente químico no organismo, associado a conteúdos da disciplina de química. O que pode estar em foco, para além das discussões da matemática, são aquelas empreendidas acerca do uso em demasia desses medicamentos, oportunizando percepções dos alunos sobre o mundo (Barbosa, 2004).

O enunciado da questão 164 já permite fazer uma projeção sobre a demografia médica para o ano de 2020. Enquanto uma atividade de modelagem, o encaminhamento pode partir do quadro apresentado na questão (Figura 3) e, por meio de uma análise, os próprios alunos chegarem à hipótese de que “a variação do número de médicos e o da população brasileira de 2010 para 2020 será a média entre a variação de 1990 para 2000 e a de 2000 para 2010”. No entanto, outras hipóteses podem ser elaboradas pelos alunos em grupos.

Fonte: Caderno 5 Amarelo - Enem 2021 (Brasil. Inep, 2021, p. 52).

Figura 3 Quadro presente na questão 164 

Discussões sobre medidas públicas para ampliar a demografia médica podem ser abarcadas na sala de aula com os alunos, considerando a espera por atendimentos em hospitais e outros estabelecimentos de saúde, principalmente, no contexto público. Isso permite que os alunos desenvolvam “uma consciência crítica que os apoie em aprofundar o conhecimento e a compreensão dos contextos sociopolíticos de suas vidas” (Skovsmose, 2017, p. 22), inserindo-os no debate, conforme almeja a educação matemática crítica.

Uma coleta de dados empíricos para o desenvolvimento de uma atividade de modelagem pode ser empreendida com a temática da questão 172 (Figura 4). O professor pode planejar com os alunos uma pesquisa na própria escola em que, divididos em grupos, fazem um levantamento do tempo de leitura dos colegas da própria sala de aula e de outras turmas com o intuito de evidenciar o tempo de leitura, por faixa etária.

Fonte: Caderno 5 Amarelo - Enem 2021 (Brasil. Inep, 2021, p. 57).

Figura 4  Questão 172 

Para a coleta de dados, os alunos podem fazer uso de um questionário com perguntas previamente elaboradas, de forma presencial ou por meio de uma coleta eletrônica. Com isso, podem confrontar as informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com o que vivem na realidade da escola, na faixa etária de 10 a 24 anos, visto que na questão 172 são apresentadas informações coletadas em quatro estados e no Distrito Federal. O confronto das informações possibilita aos alunos empreender uma discussão sobre a representatividade dos dados da pesquisa e analisar se essas informações fazem parte da realidade que os circunda. Um aspecto inerente a essa abordagem diz respeito aos “interesses por detrás do assunto” (Skovsmose, 2001, p. 19).

Por meio da atividade de modelagem, os dados podem ser apresentados em forma de tabelas e gráficos com a intenção de abranger, caso necessário, discussões sobre promover momentos de leitura na escola, equipar a biblioteca com livros e pedir aos alunos que façam leituras periódicas. Formar cidadãos leitores também é um dos objetivos da formação escolar. Com isso, por meio da atividade de modelagem, os alunos podem realizar intervenções na escola e auxiliar em “tomadas de decisões sociais que envolvem aplicações da matemática” (Barbosa, 2004, p. 2).

A coleta e o tratamento dos dados, sob a orientação do professor, promovem “a autonomia na resolução de problemas matemáticos característicos da realidade e a apreciação crítica do uso da matemática nessas situações, o que se reflete na atuação do sujeito na sociedade” (Tortola; Almeida, 2013, p. 624).

O que ponderamos é que mesmo que as atividades do ambiente 5 correspondam ao paradigma do exercício, em sala de aula, podem ser configuradas como atividades de modelagem (ambiente 6), desde que o professor se encoraje em elaborar um planejamento de implementação com os alunos.

À guisa de conclusão, a fim de contemplar o caminhar para a educação matemática crítica, por meio da modelagem matemática, retomamos a metáfora inicial de Colapietro (2004) a respeito do caminho: só existe um caminho quando há um movimento ou a perspectiva de movimento.

As discussões empreendidas sinalizam que esse movimento deve ser conjunto, pois mesmo que o professor tenha sensibilidade em reconhecer potencialidades nas questões do Enem para configurar atividades de modelagem, os alunos precisam aceitar o convite e se engajar para que o caminho exista.

O caminhar para a educação matemática crítica, portanto, requer que o professor reconheça, como adverte Skovsmose (2008), a natureza crítica da educação matemática e, por conseguinte, leve em consideração a integração entre as condições sociais, políticas, culturais e econômicas dos estudantes e como eles podem interpretá-las para solucionar um problema subsidiado em procedimentos matemáticos.

Vemos na modelagem matemática potencial para o professor envolver os alunos em debates sociais associados ao meio em que vivem ou introduzi-los a novas questões, contribuindo para a ampliação da sua realidade, uma vez que em atividades de modelagem imperam a relação dialógica e a comunicação, tendo o aluno como corresponsável pela atividade (Tortola; Silva, 2021), oportunizando o engajamento de todos os estudantes no debate, inclusive os que são ou se sentem marginalizados em sala de aula.

Considerações finais

Alinhar-se a uma perspectiva crítica de educação matemática requer reconhecer, como indica Skovsmose (2001, p. 30), que:

[...] os conteúdos do currículo são determinados, não primariamente por causas reais que tenham a ver com a estrutura lógica do currículo, mas com forças econômicas e políticas ligadas a relações de poder na sociedade.

Nesse sentido, é preciso superar a ingenuidade de pensar a escola como um lugar que se resume a uma agenda curricular a cumprir e pensá-la como um ambiente de aprendizagens cujas discussões podem funcionar como uma extensão das relações sociais existentes (Skovsmose, 2001), uma vez que se espera que a escola contribua para a formação de cidadãos críticos, pensantes, capazes de questionar e transformar o meio em que vivem (Brasil. MEC, 2013; Freire, 1996).

Nesse contexto, “aquele que ensina matemática se vê levado a reformular os conhecimentos matemáticos que ensina em função dos tipos de problemas que seus alunos devem aprender a resolver” (Chevallard; Bosch; Gascón, 2001, p. 56, grifo dos autores). Uma alternativa para essa reformulação é a modelagem matemática que, além de potencializar a inserção dos alunos nos debates sociais, possibilita sua intervenção e ação a partir de decisões pautadas em argumentos matemáticos.

Todavia, trabalhar com a modelagem matemática em sala de aula requer do professor e do aluno (re)posicionamentos no sentido de agir, envolver-se e engajar-se. Considerando as análises que empreendemos sobre as questões do Enem edição 2021 - aplicação regular, assumimos que o professor pode fazer uso de materiais que estão à sua disposição para desenvolver um planejamento que considere a implementação de atividades de modelagem em sala de aula, e cabe a ele convidar seus alunos a problematizar e a investigar, por meio da matemática, situações com referência na realidade (Barbosa, 2004) de forma crítica.

As análises que realizamos nesta investigação revelaram que questões classificadas como de ambiente 3 - com referência à semirrealidade - são as mais recorrentes na prova. Embora algumas delas tenham potencialidades para serem desenvolvidas como atividades de modelagem, como na temática relativa à mala de viagem, aspectos da educação matemática crítica necessitam de um esforço por parte do professor para serem debatidos. Por outro lado, as questões situadas no ambiente 5 - com referência à realidade - apresentam possibilidades de serem abarcadas por discussões de cunho crítico, quando desenvolvidas como atividades de modelagem, visto que os dados podem ser complementados pelos alunos ou mesmo reestruturados para uma coleta empírica, de forma que possam estabelecer contrapontos com as informações presentes nas questões do Enem e aquelas que estão em sua realidade. Evidenciamos que as questões do ambiente 1 da edição 2021 do Enem não apresentam aspectos explícitos que permitam abordar discussões críticas, cabendo ao professor fomentar debates que vão além do contexto apresentado.

Implementar atividades de modelagem matemática em sala de aula é prerrogativa do professor, que pode buscar na literatura apoio sobre como fazê-lo. Ainda que dúvidas persistam quanto à prática da modelagem, corroboramos com a professora pesquisadora Lourdes Maria Werle de Almeida, em entrevista ao número temático Modelagem matemática no contexto da sala de aula, que sugere aos professores: “Quem vai dizer se o que você fez é modelagem matemática, é você mesmo! Aprendemos a fazer modelagem matemática! Aprendemos a dar aula usando modelagem matemática” (Almeida, 2021, p. 28). Além disso, complementamos essa assertiva considerando aspectos relativos à educação matemática crítica.

Referências

ALMEIDA, L. M. W. Entrevista: um caminho para a prática de sala de aula e para a pesquisa sob o olhar da professora Lourdes Maria Werle de Almeida. [ Entrevista cedida a] Karina Alessandra Pessoa da Silva e Ana Paula dos Santos Malheiros. RPEM: Revista Paranaense de Educação Matemática, Campo Mourão, v. 10, n. 23, p. 13-29, set./dez. 2021. [ Links ]

ALMEIDA, L. M. W.; SILVA, A. Por uma educação matemática crítica: a modelagem matemática como alternativa. Educação Matemática Pesquisa, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 221-241, 2010. [ Links ]

ALMEIDA, L. M. W.; SILVA, K. P.; VERTUAN, R. E. Modelagem matemática na educação básica. São Paulo: Contexto, 2012. [ Links ]

ANDRADE, S. R. J.; FREITAG, R. M. K. Objetivos educacionais e avaliações em larga escala na trajetória da educação superior brasileira: Enem, Enade e a complexidade cognitiva na retenção do fluxo. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 102, n. 260, p. 177-204, jan./abr. 2021. [ Links ]

BARBOSA, J. C. Modelagem matemática e a perspectiva sócio-crítica. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISAS EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 2., 2003, Santos. Anais… Santos: SBEM, 2003. p. 1-13. [ Links ]

BARBOSA, J. C. Modelagem matemática: o que é? Por quê? Como? Veritati, Salvador, n. 4, p. 73-80, 2004. [ Links ]

BARBOSA, J. C. Mathematical modelling in classroom: a socio-critical and discursive perspective. ZDM: Mathematics Education, [S.l.], v. 38, n. 3, p. 293-301, June 2006. [ Links ]

BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011. [ Links ]

BLUM, W. ICMI Study 14: applications and modelling in mathematics education: discussion document. Educational Studies in Mathematics, New York, v. 51, n. 1, p. 149- 171, July 2002. [ Links ]

BORBA, M. C.; SKOVSMOSE, O. The ideology of certainty in mathematics education. For the Learning for Mathematics, Kingston, v. 17, n. 3, p. 17-23, Nov. 1997. [ Links ]

BORBA, M. C.; SKOVSMOSE, O. A ideologia da certeza em educação matemática. In: SKOVSMOSE, O. Educação matemática crítica: a questão da democracia. Campinas: Papirus, 2013. p. 127-148. (Coleção Perspectivas em Educação Matemática). [ Links ]

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Seção 1, p. 27833. [ Links ]

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Brasília, DF, [s.d.]. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/enem >. Acesso em: 21 set. 2022. [ Links ]

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Exame Nacional do Ensino Médio: prova de Ciências da Natureza e suas Tecnologias: prova de Matemática e suas Tecnologias. Brasília, DF, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://download.inep.gov.br/enem/provas_e_gabaritos/2021_PV_impresso_D2_CD5_ampliada.pdf >. Acesso em: 21 set. 2022. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília, DF: MEC, 2013. [ Links ]

CHEVALLARD, Y.; BOSCH, M.; GASCÓN, J. Estudar matemáticas: o elo perdido entre o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001. [ Links ]

CIFUENTES, J. C.; NEGRELLI, L. G. O processo de modelagem matemática e a discretização de modelos contínuos como recurso de criação didática. In: ALMEIDA, L. M. W.; ARAÚJO, J. L.; BISOGNIN, E. (Org.). Práticas de modelagem matemática na educação matemática: relatos de experiências e propostas pedagógicas. Londrina: Eduel, 2011. p. 123-140. [ Links ]

COLAPIETRO, V. The routes of significance: reflections on Peirce’s Theory of Interpretants. Cognitio, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 11-27, jan./jun. 2004. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 36. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. [ Links ]

FREITAS, W. S. A matematização crítica em projetos de modelagem. 2013. 260 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013. [ Links ]

KAISER, G.; SRIRAMAN, B. A global survey of international perspectives on modelling in mathematics education. ZDM: Mathematics Education , [S.l.], v. 38, n. 3. p. 302-310, June 2006. [ Links ]

LINGEFJÄRD, T. Faces of mathematical modeling. ZDM: Mathematics Education , [S.l.], v. 38, n. 2, p. 96-112, Apr. 2006. [ Links ]

ROCHA, K. L. S.; BISOGNIN, E. A modelagem e a educação ambiental na prática de sala de aula. In: CONFERÊNCIA NACIONAL SOBRE MODELAGEM EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 6., 2009, Londrina. Anais... Londrina: UEL, 2009. p. 1-12. [ Links ]

SILVA, R. M.; SILVA, K. A. P. Atividade de modelagem matemática com alunos em vulnerabilidade social: uma análise a partir dos diálogos. Educação Matemática em Revista, Brasília, DF, v. 24, n. 64, p. 88-100, set./dez. 2019. [ Links ]

SKOVSMOSE, O. Cenários para investigação. Tradução de Jonei Cerqueira Barbosa. Bolema: Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, v. 13, n. 14, p. 66-91, 2000. [ Links ]

SKOVSMOSE, O. Educação matemática crítica: a questão da democracia. 4. ed. São Paulo: Papirus, 2001. (Coleção Perspectivas em Educação Matemática). [ Links ]

SKOVSMOSE, O. Educação crítica: incerteza, matemática, responsabilidade. Tradução de Maria Aparecida Viggiani Bicudo. São Paulo: Cortez, 2007. [ Links ]

SKOVSMOSE, O. Desafios da reflexão em educação matemática crítica. Tradução de Orlando de Andrade Figueiredo e Jonei Cerqueira Barbosa. Campinas: Papirus , 2008. [ Links ]

SKOVSMOSE, O. O que poderia significar a educação matemática crítica para diferentes grupos de estudantes? RPEM: Revista Paranaense de Educação Matemática , Campo Mourão, v. 6, n. 12, p. 18-37, jul./dez. 2017. [ Links ]

TORTOLA, E.; ALMEIDA, L. M. W. Reflexões a respeito do uso da modelagem matemática em aulas nos anos iniciais do ensino fundamental. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos , Brasília, DF, v. 94, n. 237, p. 619-642, maio/ago. 2013. [ Links ]

TORTOLA, E.; SILVA, K. A. P. Sobre modelos matemáticos nos anos iniciais: das pesquisas às práticas. Em Teia: Revista de Educação Matemática e Tecnológica Iberoamericana, Recife, v. 12, n. 3, p. 1-26, 2021. [ Links ]

WESSELS, H. Levels of mathematical creativity in model-eliciting activities. Journal of Mathematical Modelling and Application, Blumenau, v. 1, n. 9, p. 22-40, 2014. [ Links ]

1Na edição de 2021, o Enem teve a aplicação regular da prova nos dias 21 e 28 de novembro de 2021, tanto no formato impresso quanto no digital. Particularmente, nessa edição, por conta da pandemia de covid-19, houve uma “reaplicação” da prova nos dias 9 e 16 de janeiro de 2022.

Recebido: 15 de Dezembro de 2021; Aceito: 14 de Julho de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons