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Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versão impressa ISSN 0034-7183versão On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.103 no.265 Brasília set./dez 2022

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.103i265.5190 

Resenhas

A cultura da repetência e sua reprodução no interior da escola brasileira

Frederico Alves AlmeidaI  II 
http://orcid.org/0000-0002-9044-6668

I Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail: <fredericoalves@ufmg.br>

II Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil


SÁ EARP, M. L. A cultura da repetência. Curitiba: Appris, 2021.

O recém-publicado livro da Prof.ª Dr.ª em Antropologia Maria de Lourdes Sá Earp, A cultura da repetência, é o resultado de detalhado estudo sobre o fenômeno da repetência, situação em que um estudante cursa mais de uma vez uma mesma série, o que frequentemente ocorre após decisão de seus professores em reprová-lo. A pesquisa que deu origem ao livro foi realizada em escolas públicas do Rio de Janeiro, onde a autora observou diversas classes regulares, aulas de reforço escolar e reuniões dos conselhos de classe durante dois anos letivos, além de entrevistar professores e estudantes. Dividido em capítulos que tratam de cada etapa da pesquisa, além de uma conclusão que retoma os assuntos abordados, o texto faz uma reflexão essencial sobre a reprovação e a repetência em nossas escolas.

Logo na introdução, Sá Earp afirma que a escola brasileira é excludente por um fenômeno, a cultura da repetência. Para demonstrar isso, apresenta e discute números sobre reprovação no Brasil, comparando-os com outros países. A afirmação é fortemente embasada no que Ribeiro (1991) chamou de “pedagogia da repetência”, concepção surgida a partir de novas formas de análise do fluxo escolar que revelaram o tamanho do problema no País. Para Ribeiro, há toda uma organização das escolas em função da repetência: a divisão dos tempos e espaços, a distribuição dos alunos, a linearidade dos conteúdos, a didática e a avaliação dos professores, que são executadas vislumbrando a aprovação ou a reprovação dos seus estudantes.

O primeiro capítulo do livro conta a história da repetência no Brasil, apontando as consequências de sua persistência ao longo de décadas. Reprovar um estudante fez e continua fazendo com que milhares de crianças e jovens se desinteressem pela escola, sejam novamente reprovados e acabem desistindo de estudar (Correa; Bonamino; Soares, 2014), sem que essa decisão melhore seu aprendizado, como acreditam muitos pais e educadores. Apesar disso, a repetência faz parte das práticas escolares e, para entendê-la, é preciso buscar as explicações sociais para o fenômeno. A autora lança mão de diversos conceitos sociológicos conhecidos na literatura sobre o tema, como a reprodução das desigualdades sociais em desigualdades escolares, de Pierre Bourdieu, e a ideia de estigma de Erving Goffman, que fundamentam a análise do trabalho realizado nas escolas.

Duas escolas foram selecionadas para a pesquisa. O livro descreve com detalhes as instituições cariocas, seu entorno geográfico, a comunidade escolar e o quanto são elogiadas ou rejeitadas por alunos e famílias. Também traça um perfil dos professores, alunos e outros sujeitos que participam do ambiente escolar. A análise dessa realidade revela, corroborando a pedagogia da repetência, que a organização das escolas é marcada pela situação de aprovação ou reprovação dos estudantes, algo internalizado no discurso de todos. Aponta, ainda, que usualmente os jovens são avaliados como piores ou melhores alunos, estigmatizados por essa classificação, o que se reflete em diferentes expectativas de sucesso por parte de seus professores.

Sá Earp conversou com muitos alunos, debatendo temas como realidade social, família e suas opiniões sobre a escola. É significativo o quanto a cultura da repetência está presente, já que para eles o repetente é aquele que fracassou - seja porque não foi capaz de aprender ou porque é indisciplinado e mereceu punição. Associam o insucesso a si próprios e aos colegas. Eles expressam quais seriam as características de uma boa escola e de bons professores, mas, na lógica classificatória da escola da repetência, esperam deles boas notas e a aprovação no final do ano letivo (Paro, 2001), pouco questionando o papel da escola enquanto instituição responsável por fazê-los aprender.

Em seguida, entrevistou professores sobre suas histórias de vida, as escolas em que trabalham e sobre o que pensam da prática da reprovação. A autora procurou investigar se as representações e crenças dos professores estariam relacionadas ao tipo de aula que produzem. Alguns educadores localizam o insucesso escolar na realidade social de pobreza dos alunos e suas famílias, não se vendo responsáveis pelo fracasso deles. Argumentam que o baixo aprendizado também ocorre porque esses alunos não foram reprovados nos anos iniciais de escolarização, o que poderia ter reparado as dificuldades. Para outros, a escola é lugar de seleção dos mais competentes, sendo que alguns prosseguirão e outros não; a reprovação é um meio natural de selecioná-los. Por último, professores entrevistados afirmaram que a reprovação é um instrumento pedagógico, com sua ameaça sendo utilizada para manter a disciplina e o interesse pela escola.

Observando o cotidiano das classes e a comunicação entre professores e alunos, Sá Earp percebe uma estrutura razoavelmente definida na organização dos alunos em sala de aula, base para a construção de um conceito, o centro-periferia, que permeia todo o livro. Na concepção de centro-periferia, os alunos do “centro” seriam aqueles a quem o professor dá mais atenção, dirigindo maiores esforços pedagógicos, preterindo a “periferia”. Essa ação é determinante para definir quem será mais ou menos ensinado.

Todo um ritual permite identificar o centro e a periferia: existe maior contato visual entre professor e centro; se o professor questiona algo, os alunos do centro são os que respondem rapidamente; quando surgem perguntas dos alunos, o professor demora um tempo maior respondendo aqueles do centro; a indisciplina da periferia é punida com mais rigor quando perturba a todos, porém é tolerada se não incomoda a concentração dos alunos do centro. A estrutura centro-periferia é uma tendência, podendo ser maior ou menor em diferentes turmas (até mesmo não existir). E não se refere à disposição geográfica dos alunos na sala, pois eles podem estar sentados em diferentes lugares que, ainda assim, é possível perceber o evento. Para a pesquisadora, professores esperam determinadas respostas e, à medida que a expectativa é cumprida, eles elegem os alunos do centro e da periferia, dedicando mais esforços de ensino aos eleitos e confirmando as diferenças que sua classificação inicial previa.

Na última etapa de seu trabalho de campo, a antropóloga acompanhou diversos conselhos de classe nas duas instituições. Desse evento tipicamente escolar, analisou como se dá o julgamento que os professores fazem dos alunos, que juízos e critérios justificam a decisão por aprová-los ou reprová-los. Nas reuniões dos conselhos, predominam as discussões sobre os alunos problemáticos, desordeiros, com avaliações negativas, baixo desempenho, infrequentes e que talvez receberão a sentença da retenção.

Os professores podem recomendar a reprovação por razões que vão além de notas baixas: indisciplina, desinteresse pela escola, questões associadas à saúde, dramas sociais, problemas familiares ou mesmo se os pais irão concordar com a posição de impedir que seu filho vá para a série seguinte. Muitos professores acreditam que reprovar um aluno o fará melhorar, tanto no desempenho acadêmico quanto em comportamento - a punição da reprovação funcionaria como um choque de realidade -, o que concorda com outros trabalhos sobre o tema (Ribeiro et al., 2018; Almeida; Alves, 2021). De modo oposto, o julgamento positivo e a aprovação estão relacionados a características como ser frequente ou “ter boa índole”. O julgamento realizado nos conselhos de classe é pedagógico, mas também é moral, faz parte da pedagogia da repetência e, ao mesmo tempo, contribui para cristalizá-la nas escolas.

O aprendizado insuficiente é a principal justificativa para a repetência. Todavia, a repetência não está relacionada apenas ao aprendizado, mas a uma cultura que a (re)produz. A instituição escolar organiza seu funcionamento, molda seus professores e avalia seus alunos em prol do resultado aprovação/reprovação. Os professores sabem ensinar e os alunos são capazes de aprender, mas existe uma lógica classificatória no ensino que faz com que, gradativamente, alguns alunos sejam mais ensinados do que outros. Tal classificação leva em conta aspectos como mérito, disciplina ou castigo, e o seu apogeu é a reprovação.

A repetência escolar, objeto de estudo do livro, é a principal responsável pela trajetória irregular de milhões de brasileiros. Crianças e jovens concluem etapas da educação básica em mais tempo que o previsto devido à decisão de fazê-los repetirem o ano escolar, problema atual (Soares; Alves; Fonseca, 2021) e que provoca baixo aprendizado, novas reprovações e abandono da escola, ampliando as desigualdades entre grupos socioculturais distintos. Diversos estudos que se debruçam sobre estatísticas educacionais brasileiras têm diagnosticado os prejuízos da repetência ao longo de décadas, mas poucos trabalhos se dedicam a entender como ela é produzida e por que persiste em nossa educação. A cultura da repetência, de Maria de Lourdes Sá Earp, contribui para preencher essa lacuna, mergulhando no interior da escola pública e promovendo importante discussão sobre o papel de escolas, professores e alunos enquanto sujeitos na reprodução da repetência. Por isso, a obra já é referência no estudo do tema.

Referências

ALMEIDA, F. A.; ALVES, M. T. G. A cultura da reprovação em escolas organizadas por ciclos. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 26, e260006, 2021. [ Links ]

CORREA, E. V.; BONAMINO, A.; SOARES, T. M. Evidências do efeito da repetência nos primeiros anos escolares. Estudos em Avaliação Educacional, São Paulo, v. 25, n. 59, p. 242-269, set./dez. 2014. [ Links ]

PARO, V. H. Reprovação escolar: renúncia à educação. São Paulo: Xamã, 2001. [ Links ]

RIBEIRO, S. C. A pedagogia da repetência. Revista de Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n. 12, p. 7-22, ago. 1991. [ Links ]

RIBEIRO, V. M. et al. Crenças de professores sobre reprovação escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 34, e173086, 2018. [ Links ]

SOARES, J. F.; ALVES, M. T. G.; FONSECA, J. A. Trajetórias educacionais como evidência da qualidade da educação básica brasileira. Revista Brasileira de Estudos de População, Rio de Janeiro, v. 38, e0167, p. 1-21, 2021. [ Links ]

Recebido: 05 de Dezembro de 2021; Aceito: 18 de Agosto de 2022

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