Introdução
A conclusão de um curso superior desempenha um papel importante na mobilidade e ascensão social dos indivíduos. O presente estudo se insere no contexto recente de expansão e de interiorização do ensino superior, mais especificamente na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), criada em 2009, e busca responder à seguinte questão: qual o papel desempenhado pelas características socioeconômicas e raciais dos estudantes e pelas características institucionais na conclusão do ensino superior?
Nos últimos 20 anos houve um crescimento de mais de 200% no número de matrículas e de concluintes no ensino superior, chegando em 2019 a 8.603.824 matrículas e 1.250.076 concluintes (Brasil. Inep, 2020). Destaca-se a contribuição de um conjunto de políticas públicas de promoção da expansão universitária, da ampliação do acesso e da permanência, para a diversificação de estudantes e para a interiorização da educação superior pública, a exemplo do Programa de Apoio aos Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), do Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes) e da Lei de Cotas.1
Em que pesem os avanços representados por essas medidas para o acesso e a conclusão do ensino superior, a educação básica apresenta baixas taxas de conclusão que convivem, como mostram Senkevics e Carvalho (2020), com o gargalo do acesso à universidade, indicando um deslocamento da seletividade social do ensino fundamental para a conclusão do ensino médio e para a entrada no ensino superior, que atinge principalmente os grupos desfavorecidos socioeconomicamente, negros e indígenas. “Enquanto para brancos e amarelos a maior dificuldade é ingressar no ensino superior, dado que se conclui o ensino médio, para os jovens negros e indígenas o principal obstáculo ainda é completar a educação básica” (Senkevics; Carvalho, 2020, p. 340). Assim, segundo os autores, escolarizar a população não significa necessariamente a eliminação ou redução das desigualdades de acesso e de conclusão dos diferentes níveis de ensino, uma vez que essas dinâmicas se confrontam com a estratificação social e geram resultados desiguais entre os diferentes segmentos sociais.
A literatura sobre estratificação educacional apresenta uma importante chave de leitura da desigualdade de oportunidades no acesso e conclusão do ensino superior, porque permite considerar a relação entre a origem social do estudante e o alcance educacional, assim como as desigualdades internas que se manifestam na escolha da instituição de ensino superior (IES), do curso e da modalidade de ensino, segundo características como renda, gênero e raça (Caseiro, 2016; Mont`Alvão, 2016; Brito, 2017; Salata, 2018; Carvalhaes; Ribeiro, 2019; Senkevics; Carvalho, 2020). Conforme definida por Valle Silva e Souza (1986, p. 50), a estratificação educacional “[...] diz respeito à relação entre as características de origem socioeconômica dos alunos na entrada do sistema escolar e as características individuais observáveis na sua saída, bem como os mecanismos através dos quais essa relação é estabelecida”.
Knop (2020) chama a atenção para as desigualdades horizontais ainda presentes no ensino superior e, principalmente, em cursos de maior retorno econômico em IES públicas, os quais resultam em maiores chances de conclusão entre estudantes brancos com posição socioeconômica mais vantajosa. O estudo destaca a renda familiar como um fator importante na conclusão dos cursos, para IES públicas e privadas.
Já estudos como o de Pedrosa et al. (2006), Baccaro e Shinyashiki (2014) e Ferrão e Almeida (2018) encontraram associações entre renda familiar e escolaridade dos pais no desempenho acadêmico, conclusão ou evasão de curso superior.
Por sua vez, Paula e Nogueira (2020, p. 168) chamam a atenção para a seletividade que ocorre ainda antes do acesso ao ensino superior, já que os estudantes tendem “a escolher e a ingressar em cursos e instituições compatíveis com o seu perfil social e escolar, reduzindo assim o possível efeito desses fatores sobre suas trajetórias após o ingresso”.
Fritsch, Jacobus e Vitelli (2020) analisaram o desempenho, em 2015, de uma coorte de ingressantes em 2010 em todas as IES brasileiras e mostraram que, ao final de seis anos, apenas 37,10% dos ingressantes concluem a graduação e cerca de 50% desistem.
De uma forma geral, os estudos têm mostrado que a evasão ocorre principalmente nos primeiros anos desde o ingresso (Ferrão; Almeida, 2018). Com base em dados do Censo da Educação Superior entre 1991 e 2019, Ristoff (2021) mostra que, num período de 29 anos, em média, se formaram 51% dos que ingressaram no ensino superior.
A literatura aponta algumas características associadas positiva e negativamente à conclusão de curso. No primeiro caso, destaca-se a maior persistência de mulheres. No segundo caso, estão os ingressantes em curso de segunda opção, em cursos noturnos e aqueles que conciliam trabalho com estudo e que apresentam maiores dificuldades de permanência. O desempenho antes e durante a graduação também é apontado como um aspecto relevante na conclusão do curso (Pedrosa et al., 2006; Sales Junior et al., 2016; Costa, 2018; Eller; Diprete, 2018; Fassina, 2018; Ferrão; Almeida, 2018; Costa; Picanço, 2020; Knop, 2020).
Para compreender o fenômeno da conclusão, estudos chamam a atenção para o papel da instituição que, por meio de suas políticas e da interação que estabelece com os estudantes, fomenta a sua permanência. Destacam-se, por exemplo, as políticas de assistência estudantil (apoio social) no âmbito das instituições federais de ensino superior (Ifes), por meio do Pnaes, de auxílios e de bolsas para estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica e de programas de atividades extracurriculares na forma de estágio, iniciação científica e extensão (Sales Júnior et al., 2016; Costa, 2018; Ferrão; Almeida, 2018; Heringer, 2020).
Em diálogo com essa literatura, escolhemos estudar a UFFS por se tratar de uma universidade nascida no contexto do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) e que, devido às políticas de acesso e às ações afirmativas implementadas desde sua criação em 2009, possui um perfil de estudantes formado por mais de 80% de cotistas de escolas públicas e que atendem a outros critérios da Lei de Cotas, como renda e raça/cor.
A UFFS é bastante peculiar por ser uma IES multicampos e interestadual, com unidades localizadas em municípios pequenos e médios no interior dos três estados da Região Sul, distantes em até 500 km entre si e de suas respectivas capitais. Ao todo, possui cerca de oito mil estudantes e 46 cursos de graduação, sendo quase 50% na área de licenciaturas.
Desde 2010, o Enem é utilizado como principal forma de ingresso e até 2012 adotou como ação afirmativa a bonificação da escola pública, com acréscimo de 10% na nota do exame para cada ano cursado em escola dessa natureza. Em 2013, aderiu integralmente à Lei de Cotas e manteve os altos percentuais de vagas para egressos de escola pública usando como referência para a reserva de vagas o mesmo percentual de estudantes que cursam o ensino médio em escolas públicas em cada estado, calculado com base no Censo da Educação Básica do último ano. Em 2014, a UFFS aderiu também ao Sistema de Seleção Unificada (SiSU).
A análise da conclusão de curso levou em conta a experiência de jovens das camadas populares na UFFS, vindo a somar-se, assim, a outros estudos que, como o de Zago (2006, p. 226), consideram essas experiências como casos “atípicos” ou “trajetórias excepcionais” nos meios populares. São estudos que inovam ao fugirem da tendência dominante focada no fracasso escolar desses grupos sociais. Nessa mesma linha também se situa o estudo de Aguiar Neto (2019) acerca dos alunos da escola pública que alcançaram sucesso no ensino superior em cursos de alto prestígio, considerados como casos de “exceção” ou trajetórias de sucesso “improváveis”.
Para tratar dessas questões, além desta introdução, o artigo encontra-se estruturado em mais três partes. Na seguinte, apresentaremos o método utilizado para o alcance do objetivo proposto, logo depois discutiremos os resultados deste estudo e, por último, as conclusões.
Método
Este estudo está alinhado com outros que acompanham coortes de ingressantes no ensino superior em contextos e com metodologias diferenciadas (Sales Junior, 2016; Costa, 2018; Ferrão; Almeida 2018; Costa; Picanço, 2020; Knop, 2020; Paula; Nogueira, 2020). Assim, utiliza três bases de dados de uma coorte de ingressantes na UFFS, em 2014, por meio do Enem e do SiSU, seu principal instrumento de seleção de estudantes. Essas bases de dados contêm informações socioeconômicas e raciais fornecidas pela UFFS2 e dados do Censo da Educação Superior (CES) e do Enem acessados diretamente na sala segura do Serviço de Acesso a Dados Protegidos (Sedap)3 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
A coorte de ingressantes selecionada neste estudo se justifica por corresponder ao primeiro ano de adesão ao SiSU, pois, até o ano de 2013, a UFFS adotava processos seletivos próprios, por ser o segundo ano de adesão à Lei de Cotas e pelo fato de ser uma coorte mais recente, permitindo verificar a situação de matrícula dos estudantes a partir de cinco anos após o ingresso.4
A situação de conclusão de curso dos ingressantes na UFFS é analisada com base na situação de matrícula verificada no segundo semestre de 2019, momento em que a base de dados foi gerada pela UFFS por meio do Sistema de Gestão Acadêmica (SGA). Para tanto, a variável dependente foi transformada na variável binária concluiu / não concluiu.
A categoria conclusão agrega também a situação de aluno(a) formando(a), caracterizada pelo processo de tramitação burocrática entre a finalização do curso e a formatura. Já a categoria dos que não concluíram o curso é constituída pela junção das seguintes situações de matrícula: matrícula ativa; transferência interna e externa; desistência; matrícula cancelada pela IES; jubilamento; matrícula trancada; e mobilidade.
Como a situação de conclusão de curso observada se refere ao segundo semestre de 2019, em uma situação ideal nesta coorte, seria possível verificar a integralização da carga horária de todos os cursos, exceto da turma que ingressou no segundo semestre de 2014 no curso de Medicina, cuja integralização só ocorre no primeiro semestre de 2020.
As variáveis independentes foram divididas em dois blocos: características socioeconômicas e raciais e desempenho no Enem (sexo; raça/cor; faixa etária; renda familiar; escolaridade da mãe; localização da moradia; condição de trabalho; escola pública; e nota da redação no Enem) e aspectos da instituição e do curso (turno; apoio social; e atividade extracurricular).
Para verificar o impacto dessas variáveis nas chances de conclusão dos cursos, foi utilizada a técnica estatística de análise multivariada, por meio da regressão logística, apropriada para variáveis de respostas binárias, em que a variável dependente (y) também é dicotômica e assume duas categorias 0 e 1, não concluiu / concluiu, entendidas neste estudo como expressões do fracasso e do sucesso dos estudantes, de modo a permitir estimar a probabilidade associada à ocorrência ou não desses eventos em face de um conjunto de variáveis explicativas (Power; Xie, 1999; Agresti; Finlay, 2017). O resultado dessa regressão é fornecido em logaritmo da chance, sendo então necessária uma conversão (calcular o log natural por meio do exponencial dos coeficientes do modelo) para obter as chances de o evento acontecer e de o evento não acontecer para diferentes grupos. As razões de chance podem ser lidas em termos percentuais com a aplicação da seguinte fórmula: [exp (b) -1]*100, de modo que o exp (b) é o exponencial do Beta (Power; Xie, 1999).
Para complementar os dados da UFFS e tendo o estudante como unidade de análise, buscou-se o acesso junto ao Inep a bases de dados do Enem (2013) e do CES (2014 a 2018).
A base de dados do Enem contempla informações preenchidas por estudantes no momento da inscrição para a realização do exame, cuja nota é utilizada para o ingresso na UFFS. O Enem é um exame nacional em larga escala aplicado todos os anos para avaliar o desempenho escolar de estudantes concluintes do ensino médio. O exame também é realizado por egressos do ensino médio e, a partir de 2009, passou a ser utilizado como mecanismo de seleção de ingressantes no ensino superior público e nas IES privadas. Além de dados da inscrição, essa base contém dados pessoais, escolares e notas da prova, divididas por áreas de conhecimento, e da redação, além de dados socioeconômicos, obtidos mediante questionário preenchido pelos estudantes. Nas bases de dados do Enem, utilizamos as seguintes variáveis: nota de redação no exame;5 renda familiar; escolaridade dos pais; localização de moradia; e situação de trabalho durante o ensino médio.
O Censo da Educação Superior é coletado anualmente, preenchido pelas IES e validado e divulgado pelo Inep. O Censo possui informações sobre as IES públicas e privadas, formas de organização administrativa, cursos, vagas oferecidas, número de matrículas, ingressantes, concluintes e dados acadêmicos. Neste estudo, utilizamos apenas duas variáveis referentes ao módulo aluno: apoio social (auxílios de moradia, alimentação, transporte e bolsa permanência) e atividades extracurriculares (pesquisa, estágio, monitoria e extensão). Levamos em consideração se o estudante foi atendido por alguma modalidade de apoio social e/ou participou de alguma atividade extracurricular (com ou sem bolsa) em algum momento de sua graduação (2014 a 2018) sem discriminação quanto ao tipo de atividade, valor e/ou tempo de recebimento.
A base de dados da UFFS possuía um total de 1.816 ingressantes em 2014, dos quais 1.713 ou 94,3% foram localizados nas bases de dados do Enem e 1.719 ou 94,6% nas bases do CES.
Na Tabela 1 apresentamos a variável dependente e suas respectivas frequências.
Desfecho em 2019/2022 | 2014 | |
---|---|---|
Frequência | % | |
Não concluiu (0) | 1369 | 79,9 |
Concluiu (1) | 344 | 20,1 |
Total | 1713 | 100 |
Fonte: Elaboração própria a partir das bases de dados do SGA (UFFS, [2023]) e Enem (Brasil. Inep, 2014).
Na Tabela 2, apresentamos as variáveis independentes, com suas respectivas frequências, além das categorias utilizadas nos modelos de análise multivariada.
Os dados mostram que o perfil socioeconômico e racial dos ingressantes na UFFS, em 2014, é composto em sua maioria por mulheres, de raça/cor branca, ingressantes na faixa etária até 20 anos de idade, sendo cerca da metade dos estudantes com renda familiar de até cinco salários mínimos e a maioria com pais de baixa escolaridade (57,9% das mães com até o ensino fundamental completo). A condição de trabalho durante o ensino médio também é uma característica da maioria dos ingressantes. Com relação à localização da moradia, a maioria é oriunda da zona urbana, mas com um percentual significativo de estudantes da zona rural (25,5%). Além disso, a maioria é egressa do ensino médio realizado na escola pública e com nota de redação no Enem de até 600 pontos.
Em relação às características dos cursos e à instituição, a maioria dos ingressantes cursa a graduação em apenas um dos turnos (noturno, matutino ou vespertino). Com relação ao apoio social, um percentual significativo de estudantes recebeu alguma modalidade de apoio social e teve participação em atividades extracurriculares.
Sexo x raça/cor | Frequência | % | |
---|---|---|---|
Mulher branca | 760 | 46,8 | |
Mulher negra | 165 | 10,2 | |
Homem branco | 548 | 33,7 | |
Homem negro | 151 | 9,3 | |
Faixa etária | |||
Até 20 anos | 1.055 | 61,6 | |
De 21 a 24 anos | 298 | 17,4 | |
De 25 anos ou mais | 359 | 21,0 | |
Renda familiar | |||
Nenhuma renda até 2 salários mínimos (SM) | 372 | 24,4 | |
Mais de 2 até 5 SM | 366 | 24,0 | |
Acima de 5 SM | 785 | 51,5 | |
Localização da moradia | |||
Rural | 436 | 25,5 | |
Urbana | 1.277 | 74,5 | |
Escolaridade da mãe | |||
Até 4ª série do ensino fundamental | 551 | 32,2 | |
Ensino fundamental completo | 441 | 25,7 | |
Ensino médio ou superior | 721 | 42,1 | |
Condição de trabalho do estudante no ensino médio | |||
Sim | 969 | 56,6 | |
Não | 744 | 43,4 | |
Escola pública (EP) | |||
Estudou na EP | 1.596 | 93,2 | |
Não estudou na EP | 117 | 6,8 | |
Nota da redação no Enem* | |||
Até 400 | 133 | 7,8 | |
Acima de 400 até 600 | 882 | 51,5 | |
Acima de 600 até 800 | 605 | 35,3 | |
Acima de 800 até 1.000 | 93 | 5,4 | |
Turno do curso | |||
Integral | 730 | 42,6 | |
Noturno | 739 | 43,1 | |
Matutino ou vespertino | 244 | 14,2 | |
Apoio social** | |||
Não | 1.000 | 58,2 | |
Sim | 719 | 41,8 | |
Atividade extracurricular | |||
Não | 1.105 | 64,3 | |
Sim | 614 | 35,7 |
Fonte: Elaboração própria a partir das bases de dados do SGA (UFFS, [2023]) e Enem (Brasil. Inep, 2014) e CES (Brasil. Inep, 2020).
* Na análise multivariada essa variável foi usada de forma numérica e não categórica.
** Como esta variável foi retirada da base do CES, o total está se referindo aos ingressantes da UFFS localizados nessa base. O mesmo ocorre para a variável atividade extracurricular.
A partir desse conjunto de variáveis, apresentaremos dois modelos de análise multivariada para estimar a conclusão de curso. Essas variáveis foram escolhidas com base na literatura e nos dados disponíveis e estão relacionadas a características socioeconômicas dos estudantes, ao desempenho no Enem e aos aspectos relativos à instituição e aos cursos.
O primeiro modelo tem um conjunto menor de variáveis, composto apenas por variáveis relacionadas às características socioeconômicas e de desempenho na nota de redação do Enem. As categorias sexo e raça/cor foram agregadas considerando a categorizações mulher branca, mulher negra, homem branco e homem negro.6 O segundo modelo possui um conjunto maior de variáveis, no qual adicionamos as características relacionadas à instituição e ao curso, como o turno, o apoio social e as atividades extracurriculares.
Ao testar vários modelos, verificou-se que algumas variáveis socioeconômicas perdiam a significância estatística ao serem acrescentadas outras questões institucionais. A perda de significância estatística também ocorreu quando acrescentadas variáveis institucionais relacionadas ao curso, como grau acadêmico, campus, turno e área de conhecimento. Por isso, optou-se pela inclusão de apenas uma variável relacionada ao curso (turno). O Quadro 1 apresenta as variáveis consideradas nos modelos finais.
Entre as variáveis apresentadas no Quadro 1, destacamos a utilização neste estudo de algumas ainda pouco exploradas na literatura, tais como: localização da moradia do estudante (zona urbana e rural) e sexo e raça de modo integrado, e que permitem caracterizar melhor as peculiaridades de homens e mulheres brancos(a)s e negros(as) numa perspectiva interseccional.7 Essa perspectiva, conforme Crenshaw (1989), oferece contribuições tanto teóricas quanto metodológicas para a pesquisa, uma vez que dialoga com as múltiplas experiências e manifestações da desigualdade e promove o entrelaçamento entre categorias como sexo e raça em vez de tratá-las de forma isolada.
Resultados e discussão: conclusão de curso superior
Nesta análise estamos considerando os ingressantes em 2014 de todos os cursos da UFFS que tiveram como desfecho a conclusão do curso, conforme sua condição de matrícula verificada no segundo semestre de 2019, exceto uma turma de ingressantes em Medicina (campus Passo Fundo) que ainda não havia integralizado a carga horária mínima do curso no segundo semestre de 2019. É importante destacar que, no grupo não concluinte, encontram-se os estudantes que, de alguma forma, se desvincularam do curso de origem ou que continuavam com a matrícula ativa, mesmo após o prazo mínimo de integralização de sua carga horária, o que pode indicar situações de reprovação e/ou trancamento do curso. Esses estudantes podem ainda ter um desfecho de conclusão ou mesmo de evasão do curso.
Quanto mais antiga é a coorte de ingressantes, mais fácil é a verificação da situação de conclusão. Entre os que ingressaram em 2014, o percentual de concluintes no segundo semestre de 2019 foi de 20,1%. Portanto, essa é uma das limitações deste estudo para uma coorte mais recente. Essa dificuldade foi verificada na análise dos oito cursos que, em uma situação ideal, teriam integralizado a carga horária ao final do primeiro semestre de 2019. O observado foi que parte significativa dos ingressantes ainda estava com a matrícula ativa, chegando a ultrapassar 30% em alguns cursos, como, por exemplo, Medicina Veterinária, Agronomia e Letras. Ainda assim, é possível compreender as principais características associadas à conclusão dos cursos.
A Tabela 3 apresenta os resultados dos modelos 1 e 2 de análise multivariada para estimar as chances de conclusão.
Variáveis independentes | Modelo 1 | Modelo 2 |
---|---|---|
Sexo x cor/raça: Mulher branca (cat. ref.) | ||
Mulher negra , | - 0,681 (0,232) | - 0,754 (0,260) |
Homem branco | - 0,507 (0,160)** | - 0,633 (0,181)* |
Homem negro | - 0,312 (0,320)** | - 0,290 (0,344)** |
Faixa etária: até 20 anos (cat. ref.) | ||
De 21 a 24 anos | - 0,503 (0,217)* | - 0,666 (0,250) |
De 25 anos ou mais | - 0,566 (0,201)* | - 0,919 (0,228) |
Renda familiar: nenhuma renda até 2 SM (cat. ref.) | ||
Mais de 2 até 5 SM | - 0,811 (0,198) | - 0,846 (0,222) |
Acima de 5 SM | 0,110 (1,117) | 1.114 (0,186) |
Escolaridade da mãe: até 4ª série (cat. ref.) | ||
Ensino fundamental completo | - 0,844 (0,175) | - 0,782 (0,197) |
Ensino médio ou superior | - 0,813 (0,171) | - 0,792 (0,193) |
Situação de trabalho: não | 1.073 (0,151) | 1.298 (0,170) |
Escola pública: não estudou na escola pública | - 0,852 (0,326) | - 0,908 (0,368) |
Localização da moradia: urbana | - 0,561 (0,155)** | - 0,570 (0,179)* |
Nota da redação no Enem | 1.002 (0,001)** | 1.002 (0,001)* |
Apoio Social: sim | 1.489 (0,164)* | |
Atividade extracurricular: sim | 7.558 (0,166)** | |
Turno: integral (cat. ref.) | ||
Noturno | - 0,468 (0,178)** | |
Matutino ou vespertino | 1.482 (0,224) | |
Constante | -1522** | - 2.539** |
N. casos válidos | 1419 | 1369 |
R²N | 0,1 | 0,319 |
Fonte: Elaboração própria a partir das bases de dados do SGA (UFFS, [2023]) e Enem (Brasil. Inep, 2014) e do CES (Brasil. Inep, 2020).
Notas:**Significante a 1%.
*Significante a 5%.
A O valor fora dos parênteses é o exponencial do beta (razão de chance).
B O valor entre parênteses é o erro-padrão da razão de chance.
A coorte de 2014 indica o segundo ano da aplicação da Lei de Cotas na UFFS e o primeiro ano do SISu. Nas chances de conclusão de cursos, a variável sexo x raça/cor foi estatisticamente significativa nos dois modelos. Os resultados mostram que os homens possuem menos chances de conclusão de curso, em relação às mulheres brancas, e principalmente os homens negros, com 69% (modelo 1) e 71% (modelo 2) menos chances, enquanto os homens brancos possuem, respectivamente, 49% e 37% menos chances, conforme os modelos testados. A categoria de mulheres negras não apresentou significância estatística, o que indica não haver diferenças na conclusão de cursos em relação às mulheres brancas.
Em que pese um estudo recente do IBGE (2019) constatar, com base em uma série de indicadores educacionais relacionados aos estudantes pretos e pardos, que houve melhoras nas trajetórias dos grupos de raça/cor entre 2016 e 2018, a desigualdade racial continua evidente, principalmente nos níveis mais elevados do sistema de ensino. Na educação superior, “a proporção de jovens de 18 a 24 anos de idade de raça/cor branca que frequentavam ou já haviam concluído o ensino superior (36,1%) era quase o dobro da observada entre aqueles de raça/cor preta ou parda (18,3%)” (IBGE, 2019, p. 7). Uma das condições para frequentar o ensino superior é ter completado o ensino médio. O estudo do IBGE mostra também que, em 2018, a taxa de ingresso no ensino superior era de 53,2% entre a população branca e de 35,4% entre a população preta e parda. A não continuidade dos estudos está associada à condição de trabalho, sendo a descontinuidade maior no grupo de estudantes pardos e pretos (61,8%). A taxa de conclusão do ensino médio vem aumentando desde 2016, mas de forma diferenciada, sendo menor para a população preta e parda (58,1%) e maior para a população branca (76,8%). As mulheres tendem a ter percentuais maiores de conclusão do que os homens da mesma raça/cor, mas os homens brancos possuem taxa de conclusão do ensino médio maior (72,0%) que as mulheres pretas ou pardas (67,6%).
A partir da lei de cotas, homens e mulheres negras alcançaram mais oportunidades de acesso aos diferentes cursos da UFFS, e especialmente os homens negros acessaram mais cursos de bacharelados e de maior retorno econômico, aproximando-se do acesso dos homens brancos em termos relativos. A quantidade de mulheres negras também aumentou no acesso a todos os cursos, aproximando-se do acesso das mulheres brancas (Nierotka, 2021). No entanto, apesar desses avanços, os homens negros levam mais tempo ou não concluem na mesma proporção que os demais grupos de sexo e cor, além de ingressar com mais idade no ensino superior. A idade de ingresso é, aliás, um marcador de diferença a ser considerado no desfecho da conclusão de curso.
As características socioeconômicas renda familiar, escolaridade da mãe, situação de trabalho no ensino médio e origem de escola pública não apresentaram significância estatística em nenhum dos modelos apresentados, o que pode ser explicado pelo perfil mais homogêneo de estudantes, com a maioria oriunda da escola pública, cujos pais possuem menor renda e escolarização. A condição de concluir o curso se mostrou mais associada às características como sexo x raça/cor, idade e localização da moradia.
O fato de a renda familiar e a escolaridade da mãe não apresentarem diferença nas chances de conclusão contrasta com os resultados do estudo de Knop (2020), que apontam a renda familiar como um fator importante na conclusão dos cursos, mas se aproxima de estudos como de Pedrosa et al. (2006), Ferrão e Almeida (2018) e Baccaro e Shinyashiki (2014), que também não encontraram associações entre renda familiar e escolaridade dos pais no desempenho acadêmico, na conclusão ou na evasão de curso. Paula e Nogueira (2020) oferecem uma interpretação para resultados dessa natureza. Segundo os autores, a escolha e o ingresso em cursos e instituições seriam compatíveis com o perfil social e escolar dos estudantes, e esse ajuste reduziria o possível efeito desses fatores sobre suas trajetórias após o ingresso.
A origem socioeconômica, no entanto, é ainda marcante no acesso ao ensino superior (Carvalhaes; Ribeiro, 2019; Brito, 2017; Salata, 2018), apesar das recentes políticas inclusivas. Ao comparar os setores público e privado, os achados de Brito (2017) sinalizam que as oportunidades de acesso ao ensino superior tendem a ser mais igualitárias para jovens de distintas origens sociais no setor público, sendo os padrões de estratificação por classe de origem mais pronunciados no setor privado. Segundo o autor, esse resultado pode sugerir um efeito positivo das políticas de ações afirmativas e dos maiores investimentos no setor público, considerando o período da primeira década do século 21.
O estudo de Caseiro (2016), referente ao período entre 2004 e 2014, constatou que, ainda que persistam as desigualdades estruturais no acesso ao ensino superior, a tendência é no sentido da redução das desigualdades, sendo o efeito da renda o que teve redução em todas as regiões do País no período. Para o caso da UFFS, os resultados mostram que, por meio de suas políticas mais inclusivas e ações afirmativas, foi possível romper em boa medida com barreiras socioeconômicas no acesso, contribuindo para a igualdade de oportunidades, ainda que alguns desafios se façam presentes na permanência e na conclusão dos cursos.
A faixa etária teve significância estatística apenas no modelo 1, perdendo significância estatística no modelo 2, quando foram adicionadas variáveis do curso e da instituição. Os ingressantes com mais de 21 anos de idade tiveram menos chances de conclusão de curso em relação aos ingressantes mais jovens (até 20 anos).
Com relação à localização de moradia, o estudo de Caseiro (2016) mostrou que, de um modo geral, o acesso universitário de jovens entre 18 a 24 anos que vivem nas áreas rurais cresceu proporcionalmente mais que o acesso de jovens das áreas urbanas no decênio de 2004 a 2014, principalmente nas regiões Sudeste e Nordeste.
Na UFFS, a inserção de jovens oriundos da zona rural é de mais de 25%, sendo superior à proporção da população rural da Região Sul, que, conforme o Censo do IBGE (2010), é de 15,1%, e mais condizente com o percentual de sua área de abrangência, a mesorregião Grande Fronteira do Mercosul, na qual cerca de 35% da população vive na zona rural (Demarco; Maia, 2013).
Ao ser testada, a variável localização da moradia tem se mostrado um fator explicativo relevante também para a condição de conclusão do curso: estudantes com residência na zona urbana antes do ingresso na UFFS têm cerca de 43% menos chances de concluir o curso, em comparação aos residentes da zona rural. Esse resultado também chama a atenção no sentido de problematizar o que acontece com os estudantes da zona urbana e com o processo de interiorização das universidades, que parece atrair mais os jovens da zona rural.
A maior persistência dos jovens oriundos da zona rural na UFFS pode estar associada às oportunidades que essa universidade apresenta devido à sua localização em municípios no interior dos três estados, em uma região com forte vocação agrícola, além de suas políticas de ingresso voltadas para estudantes de escolas públicas, que é o caso da maioria dos jovens da zona rural. O fato de ter um campus universitário federal e gratuito próximo da residência facilita o acesso dos estudantes por meio de transportes locados e também a permanência na residência familiar no campo ou mesmo o apoio familiar na alimentação para os que precisam migrar para a cidade dos cursos oferecidos pela UFFS (Reche, 2018). Esse é um dos achados importantes do nosso estudo, que parece traduzir os efeitos positivos da característica multicampus e da interiorização do ensino superior público, assim como a presença universitária em municípios de diferentes portes.
O estudo realizado por Trevisol e Nierotka (2016), sobre uma coorte de ingressantes na UFFS, em 2012, mostra, por exemplo, que 85,9% dos estudantes residiam na cidade do campus ou em cidades próximas, num raio de até 90 km de distância.
Enquanto o estudo de Zago (2016), que entrevistou universitários e suas famílias na região do oeste de Santa Catarina, onde se encontra localizado um dos campi da UFFS, mostra que a migração dos jovens do campo para a cidade em busca do ensino superior é incentivada pela família para romper com a tradição de baixa escolaridade dos pais e com o destino de agricultor para os filhos, num contexto de dificuldades na agricultura familiar, principalmente pelo endividamento e a falta de reconhecimento profissional. Segundo a autora, o prolongamento da escolarização de filhos de agricultores para além do ensino fundamental é relativamente recente. A persistência dos jovens da zona rural no ensino superior e, principalmente, das mulheres, deve-se em grande parte à aposta familiar e individual em uma condição de trabalho melhor em relação à experimentada por quem atua na atividade rural desde muito cedo, além de envolver aspectos relacionados à independência financeira e uma maior autonomia, sobretudo no caso das mulheres.
Outro aspecto estudado foi a relação entre o desempenho dos estudantes medido pela nota da redação no Enem e sua trajetória, em termos de conclusão, na UFFS. Essa nota é considerada uma condição de desempenho no ensino médio e, junto com os resultados das demais provas, compõe a nota geral do Enem, que é utilizada na seleção dos ingressantes na UFFS. Observou-se que a maioria dos ingressantes em 2014 tiveram nota da redação de até 600 pontos. Nos dois modelos, a nota de redação do Enem foi estatisticamente significativa: quanto maior é a nota, maior é a chance de conclusão do curso. Portanto, o desempenho desde o ensino médio é uma característica importante na trajetória acadêmica no ensino superior. Eller e Diprete (2018) mostram hiatos na conclusão de curso entre brancos e negros nos EUA, com resultados nos quais a nota antes da entrada na faculdade constituiu um dos recursos essenciais na persistência universitária.
No modelo 2, ao adicionarmos variáveis relativas à instituição e aos cursos, todas apresentaram significância estatística. Com relação ao turno do curso, os resultados mostraram que os ingressantes nos cursos noturnos possuem 53% de menos chances de conclusão, quando comparados aos cursos de turno integral.
Estudantes que foram apoiados pela assistência estudantil durante a graduação apresentaram maiores chances de concluir os cursos: os que receberam assistência estudantil apresentaram 49% mais chances de concluir o curso em relação aos que não receberam.
Da mesma forma, a participação em atividades extracurriculares teve impacto positivo nas chances de conclusão, com sete vezes mais chances em relação aos que não participaram, independentemente do recebimento ou não de bolsa. Esses resultados vão ao encontro da literatura nacional e internacional e reforçam a importância dessas políticas de permanência estudantil na trajetória de sucesso estudantil e na redução da evasão universitária. Destacamos que, além da inserção dos estudantes em atividades que podem estar relacionadas com o seu curso, o recebimento da bolsa também contribui como apoio financeiro, principalmente para estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, podendo a bolsa ser acumulada com o apoio da assistência estudantil. Heringer (2020) destaca o papel institucional no desenvolvimento de ações de permanência estudantil e que, associadas às ações afirmativas, possam promover a inclusão e a equidade e compensar as desvantagens de partida de diferentes grupos sociais. A autora considera que essas ações são multidimensionais e precisam levar em conta não apenas os aspectos materiais, mas também simbólicos, culturais e psicológicos.
Considerações finais
As análises realizadas com relação à conclusão de curso dos ingressantes na UFFS apresentam resultados convergentes com a realidade das demais IES brasileiras (Fritsch, Jacobus; Vitelli, 2020), mesmo tratando-se de uma IES nova e que nos anos analisados estava ainda em processo de implantação. Na UFFS, a oferta de curso possui uma vocação voltada para a formação de professores (cerca de 50% dos cursos são licenciaturas) e para fomentar a agricultura familiar e agroecológica na região, além do compromisso com a escola pública e a inclusão social (mais de 90% dos estudantes são egressos da escola pública). No contexto de interiorização do ensino superior público, a localização dos campi da UFFS e a oferta de cursos noturnos facilitam o acesso de estudantes trabalhadores e também da zona rural.
As conclusões a que chegamos, com a análise do papel das características socioeconômicas e raciais de estudantes e de aspectos institucionais na conclusão de curso, estão resumidas a seguir:
1) A conclusão de curso na UFFS encontra-se fortemente associada com a idade de ingresso do estudante, o tipo e o turno de curso frequentado e com as políticas de permanência estudantil. Os resultados mostraram a relevância na trajetória acadêmica dos estudantes do apoio social recebido por meio das políticas de assistência estudantil e da participação em programas de atividades extracurriculares, de forma voluntária ou com o apoio de bolsa.
2) O fato de o estudante ter cursado escola pública, ter origem popular (pais com menos escolarização e renda) e ter trabalhado durante o ensino médio não se mostra associado diretamente à conclusão de curso. Ainda que mudanças tenham ocorrido nas políticas de acesso, a UFFS manteve um perfil socioeconômico de ingressantes mais homogêneo em termos de renda familiar, origem na escola pública e escolaridade dos pais.
3) Destaca-se como um importante achado a maior persistência dos estudantes da zona rural, o que pode estar relacionado com a interiorização do ensino superior público e a forte vocação agrícola na região de localização dos campi da UFFS.
4) O desempenho anterior ao ingresso na UFFS (nota de redação no Enem) mostra-se relacionado ao aumento na conclusão de curso.
5) As mulheres, principalmente brancas, apresentaram maior persistência na trajetória acadêmica. Os homens brancos e negros concluem menos que as mulheres brancas; notadamente os homens negros apresentaram cerca de 70% menos chances de concluir quando comparados às mulheres brancas. A diferenciação entre raça/cor e sexo se mostrou evidente na coorte de 2014, com a Lei de Cotas, quando ocorreu, também, uma maior diversificação racial em todos os cursos e turnos.
Diante desses resultados, destacamos a importância do fortalecimento institucional da oferta de políticas de apoio pedagógico e de permanência estudantil, que se colocam na perspectiva de compensar possíveis desvantagens apresentadas pelos estudantes no seu ingresso e de garantir equidade não apenas no acesso ao ensino superior, mas também nas trajetórias e nos resultados dos estudantes.
O presente estudo se soma, assim, aos estudos sobre ensino superior no sentido de mostrar que, para além das desigualdades persistentes, políticas públicas e práticas institucionais de maior inclusão social podem mitigar a desigualdade de oportunidades e promover casos de sucesso entre estudantes das camadas populares no acesso e na conclusão do ensino superior público.