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Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versão impressa ISSN 0034-7183versão On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.104  Brasília  2023  Epub 12-Set-2023

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.5565 

ESTUDOS

Pedagogas iniciantes e a multidisciplinaridade nos anos iniciais do ensino fundamental

Novice educators and multidisciplinarity in the early years of basic education

Pedagogas iniciantes y la multidisciplinariedad de la enseñanza en la escuela primaria

Letícia Oliveira SouzaI  II 
http://orcid.org/0000-0002-5078-0362

Giseli Barreto da CruzIII  IV 
http://orcid.org/0000-0001-5581-427X

I Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: <leticiaoliveira.s.aufrj@gmail.com>;

II Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

III Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: <giselicruz@ufrj.br>;

IV Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.


Resumo:

O artigo apresenta resultados de uma pesquisa sobre a inserção profissional de professoras que atuam com a multidisciplinaridade nos anos iniciais do ensino fundamental. Ainda, objetiva compreender como professoras licenciadas em pedagogia e em situação de inserção profissional em turmas dos anos iniciais do ensino fundamental mobilizam os saberes profissionais para atender às especificidades da docência multidisciplinar. Metodologicamente, orientou-se pela pesquisa com narrativa, por meio de entrevistas com sete professoras licenciadas em pedagogia. As narrativas, postas em diálogo teórico com Cruz, Farias e Hobold, Cochran-Smith, Pugas e Shulman, possibilitaram constatar que: i) a inserção das professoras enfrenta dificuldades de diferentes ordens ; ii) o acolhimento ao iniciante é uma prática negligenciada; iii) o contexto institucional somado à gravidade da pandemia de covid-19 tensionaram a docência das iniciantes; iv) o tratamento do conteúdo representa o fator de maior dificuldade para o ensino multidisciplinar na organização do trabalho pedagógico; v) o uso dos livros didáticos e das apostilas mostra-se basilar para a docência; e vi) a interdisciplinaridade aparece como caminho pedagógico.

Palavras-chave: inserção profissional docente; pedagogos iniciantes; ensino multidisciplinar; saberes profissionais; pesquisa narrativa

Abstract:

The study presents the results of a research on the professional insertion of teachers working with multidisciplinarity in the early years of basic education. The objective is to understand how teachers with a degree in pedagogy and in a situation of professional insertion in classes in the early years of primary schools mobilize professional knowledge to meet the specificities of multidisciplinary teaching. This study was directed, methodologically, by a narrative research, through interviews with seven teachers licensed in pedagogy. These narratives, when set up in theoretical dialogue with Cruz, Farias e Hobold, Cochran-Smith, Pugas and Shulman made it possible to verify that: I) several hardships affect the insertion of female teachers; II) welcoming novice educators is a neglected practice; III) the institutional context in addition to the severity of the Covid-19 pandemic strained their teaching practice; IV) handling the contents, in the pedagogical work organization, represents the most difficult factor for multidisciplinary teaching; V) the use of textbooks and handouts are essential for teaching; VI) interdisciplinarity emerges as a pedagogical path.

Keywords: professional teacher insertion; novice educators; multidisciplinary teaching; professional knowledge; narrative research.

Resumen:

El artículo presenta resultados de una investigación sobre la inserción profesional de docentes que actúan con la multidisciplinariedad en los primeros años de la enseñanza fundamental. También tiene como objetivo comprender cómo profesoras licenciadas en pedagogía y en situación de inserción profesional en las clases primarias movilizan saberes calificados para atender las especificidades de la enseñanza multidisciplinaria. Metodológicamente, se orientó por un análisis narrativo, por medio de entrevistas con siete profesoras licenciadas en pedagogía. Las narrativas, puestas en diálogo teórico con Cruz, Farias y Hobold, Cochran-Smith, Pugas y Shulman, permitieron comprobar que: i. dificultades de diferentes órdenes afectan a la inserción de las profesoras; ii. el acogimiento al iniciante es una práctica marcada por la negligencia; iii. el contexto institucional más a la gravedad de la pandemia de COVID-19 tensionaron la docencia de las iniciantes; iv. el tratamiento del contenido representa el factor de mayor dificultad para la enseñanza multidisciplinaria en la organización del trabajo pedagógico; v. el uso de los libros didácticos y de los manuales es fundamental para la docencia; vi. la interdisciplinariedad aparece como camino pedagógico.

Palabras clave: inserción profesional docente; pedagogos iniciantes; enseñanza multidisciplinaria; saberes profesionales; análisis narrativo.

Introdução

O processo de inserção na carreira docente é marcado por tensões, desafios e dificuldades distintas com acentuadas reverberações no desenvolvimento profissional. Sobre isso, os estudos de Day (2001), Marcelo (2009), Cochran-Smith (2012) e Alarcão e Roldão (2014) indicam que, no percurso de formação e durante a trajetória de atuação, constituir-se, tornar-se e ser professor abarcam histórias, conhecimentos, processos e rituais que corroboram com a construção do eu profissional e, consequentemente, com a compreensão de identidade profissional, sempre contínua, nunca definitiva.

Tal como apontam estudos de Cochran-Smith e Lytle (1999), Cochran-Smith (2012), Alarcão e Roldão (2014), André (2018), Cruz e Lahtermaher (2022), o início da carreira é marcado por processos decisivos para a permanência do professor na profissão e são fundamentais para seu desenvolvimento profissional docente. O “choque de realidade” experimentado na chegada do novo professor à escola (Veenman, 1984) e o desafio de viver um período profissional demarcado pela sobrevivência e descoberta da/na profissão (Huberman, 1995) fazem com que as dificuldades sejam de ordens distintas.

No caso dos licenciados em pedagogia, a abrangência da formação e dos contextos de atuação profissional demarca a necessidade da mobilização de diferentes estratégias para o exercício da docência. A pedagogia, como ciência da e para a educação, busca referências em diferentes campos epistemológicos para a construção de seu conhecimento e intervenção educacional (Cruz, 2011; Saviani, 2008).

Em vista disso, o foco deste artigo recai sobre a inserção de pedagogas iniciantes que exercem a função docente na educação básica, mais especificamente nos anos iniciais do ensino fundamental, cuja especificidade do ensino é de natureza multidisciplinar. A docência nessa etapa mobiliza diferentes áreas disciplinares (língua portuguesa, matemática, ciências, geografia e história), ocorrendo com mais força a necessidade de interlocução entre os saberes pedagógicos e disciplinares (Pugas, 2013), tanto na formação quanto na atuação profissional. Os professores formados em pedagogia que atuam com a multidisciplinaridade nos anos iniciais do ensino fundamental são convocados a mobilizar diferentes conhecimentos profissionais, além dos disciplinares, para o seu fazer docente. As matérias, os currículos, os contextos, os estudantes, a comunidade, entre outros, marcam os saberes que caracterizam a ação pedagógica no ensino de distintas disciplinas.

Assim, neste artigo, busca-se relacionar a inserção profissional e a docência de licenciados em pedagogia em turmas dos anos iniciais do ensino fundamental, no sentido de perscrutar como se desenvolve o início da carreira desses profissionais. De que modo pedagogos iniciantes que exercem a função docente na educação básica mobilizam saberes profissionais para atender às exigências do ensino multidisciplinar?

O objetivo consiste em compreender como professores licenciados em pedagogia e em situação de inserção profissional em turmas dos anos iniciais do ensino fundamental mobilizam os saberes profissionais para atender à especificidade da docência multidisciplinar.

Inserção profissional docente: o início da carreira

A inserção docente é caracterizada pela transição de estudante para professor e marcada por dificuldades e tensões inéditas para o iniciante. É nesse momento que o docente vive, em meio à socialização profissional, a busca pela sua identidade. Compreende-se como processo de inserção profissional o momento em que o docente licenciado conclui a formação inicial e adentra à carreira como responsável e protagonista do ensino em sala de aula.

Há uma necessidade epistemológica e investigativa em torno da formação de professores em estreita relação com o desenvolvimento profissional, que entrelaça o processo de subjetivação docente no decorrer da iniciação e inserção profissional, bem como posteriormente, com a formação continuada. Assim, compreendemos:

[...] o desenvolvimento profissional [docente] como um processo a longo prazo, no qual se integram diferentes tipos de oportunidades e experiências, planificadas sistematicamente para promover o crescimento e desenvolvimento do docente.” (Marcelo, 2009, p. 7).

Tal compreensão não se limita a um momento, a uma formação ou a um período de vida, pois abarca o desenvolvimento das distintas ações que investem, de alguma maneira, na profissionalidade do professor. Vale destacar que, segundo Nóvoa (2017), é importante entender a disposição pessoal como parte da reflexão sobre a formação docente. Os processos de autoconhecimento e autoconstrução de cada sujeito estão atrelados à sua profissionalidade. Para o autor, “[...] nas profissões do humano há uma ligação forte entre as dimensões pessoais e as dimensões profissionais. No caso da docência, entre aquilo que somos e a maneira como ensinamos” (Nóvoa, 2017, p. 1121).

Como marcas constitutivas do desenvolvimento profissional docente, destacamos a iniciação à docência, a inserção profissional e a indução docente. A iniciação à docência caracteriza-se como o primeiro investimento formativo sistemático na profissão, em suas compreensões teórico-práticas, período em que a pessoa inicia os estudos e as experiências no âmbito da formação de professores . As disciplinas, os cursos, os estágios supervisionados, as práticas de ensino, entre outras ações durante a formação inicial, são caminhos que intencionalmente contribuem para o vir a ser, o tornar-se professor.

Distintamente, a inserção profissional corresponde aos primeiros anos da profissão, ao longo dos quais o iniciante se insere no campo como profissional, como professor protagonista, responsável diretamente pelo seu trabalho, buscando “[...] incorporar, compreender e se integrar de maneira mais densa à cultura docente, à cultura escolar e se familiarizar com os códigos e normas da profissão” (Cruz; Farias; Hobold, 2020). É durante os primeiros anos na docência que o professor iniciante se vê diante de aprendizados intensos.

Já a indução docente refere-se ao acompanhamento formativo do professor iniciante durante a sua inserção profissional. Quando a inserção é acompanhada, monitorada, supervisionada e/ou assistida, chama-se de indução docente, uma vez que o professor recém-formado é amparado por um acompanhamento importante para sua atuação (Alarcão; Roldão, 2014; Marcelo; Vaillant, 2017).

Tal compreensão não pode ser reduzida a uma ação única e pessoal por parte do iniciante ou às boas intenções das pessoas do contexto de trabalho, de modo que “a indução representa o investimento de formação intencional e sistemática em torno de professores iniciantes ou principiantes durante a sua inserção profissional” (Cruz; Farias; Hobold, 2020). As propostas intencionais de orientação, atenção, supervisão, formação, acolhimento e acompanhamento do iniciante em seu exercício profissional podem contribuir para a redução das dificuldades do início da carreira e para um começo menos traumático. Em muitos casos, o início é determinante para a permanência ou não dos professores na profissão (Marcelo; Vaillant, 2017).

Desse modo, revela-se a importância de dar atenção aos processos de inserção docente, uma vez que, no desenvolvimento profissional de aperfeiçoamento contínuo, esse momento pode facilitar ou inibir a construção da identidade do profissional no início de carreira. Assim, é um período permeado por tensões, em que “[...] os jovens professores em situação de inserção profissional experimentam, portanto, as dificuldades inerentes ao movimento de deixar a condição de estudante para a de professor” (Cruz, 2019, p. 105).

Na relação entre aprendizagem da docência e inserção profissional, pode-se entender que o processo de desenvolvimento e consolidação de conhecimentos e saberes profissionais não é dado ou definido, mas construído com parcerias, orientações e formações que colaboram para a identificação e socialização profissional. O professor iniciante vive gradualmente a construção e o reconhecimento de sua responsabilidade no ambiente de trabalho, além de lidar com as dificuldades do seu fazer profissional e com questões pessoais, como insegurança e altas expectativas sobre si.

Pedagogia: a docência e o ensino multidisciplinar

O entrelaçamento entre a pedagogia, como campo de saber e fazer diante da educação, e a epistemologia da pedagogia, considerando sua abrangência profissional na formação e na atuação docente, dirige-nos às compreensões em torno da docência em sua multidimensionalidade. Sendo assim, entender a pedagogia atrelada à docência em suas concepções para a formação e atuação profissional envolve destacar e enfatizar os saberes profissionais que caracterizam a profissionalidade do professor.

A problemática que caminha com a pedagogia, na qualidade de campo de construção de conhecimento e intervenção educacional, é o dilema em torno da própria definição sobre a pedagogia e seu saber específico (Saviani, 2008; Cruz, 2011). Ao longo dos anos, diferentes compreensões sobre a pedagogia foram construídas e constituídas: como única ciência da educação; ciência da educação sem considerar o termo pedagogia; ciência da educação excluindo a pedagogia; parte das ciências da educação.

Nosso entendimento é que, tendo a educação como objeto, a pedagogia constitui-se campo de conhecimento voltado para reflexão e ação sistemáticas sobre o fenômeno educativo, na interação com diferentes áreas de conhecimentos, “[...] consolidando-se como um campo de estudos com identidades e problemáticas específicas” (Cruz, 2011, p. 206).

A docência, sobretudo desde as Diretrizes Curriculares do Curso de Pedagogia (Brasil. CNE. CP, 2006), assume lugar de vértebra na formação do pedagogo. A relação entre pedagogia e docência é necessária para a formação de professores e pedagogos no curso de pedagogia, especialmente pela amplitude da atuação profissional. Mesmo com a abrangência formativa do curso, a docência passa a ser entendida para além das ações em sala de aula, ou seja, como concepção de trabalho pedagógico e ação educativa, mediante processos intencionais de produção e articulação de conhecimentos de diferentes ordens.

A formação do pedagogo é marcada pela diversidade do seu campo de atuação: na docência da educação infantil, o que abarca a creche e a pré-escola; nos anos iniciais do ensino fundamental (1º ao 5º ano de escolaridade); no ensino médio, na modalidade de formação de professores (curso normal em magistério); nas modalidades da educação escolar (educação especial, educação inclusiva, educação de jovens e adultos, educação quilombola, educação rural etc.); na gestão educacional escolar; e em outros espaços de educação formal ou não formal (museus, empresas, hospitais, organizações não governamentais, bibliotecas etc.).

O ensino está no cerne da docência, e a docência, no cerne da pedagogia. Trata-se de um objeto naturalmente complexo e multidimensional, que se torna ainda mais quando a ênfase reside na multidisciplinaridade. Para Shulman (2014) e Shulman e Shulman (2016), a profissão docente tem o desafio de, no ato de formar e durante o trabalho profissional, realizar a combinação entre diferentes conhecimentos que considerem a complexidade do ensino e da educação. É nessa perspectiva que o ensino, especificidade da função docente, tem caráter profissional, uma vez que envolve diferentes complexidades e dimensões.

Em defesa da profissionalização do ensino, os autores destacam a aprendizagem docente com base em diferentes comunidades, contextos e conhecimentos, tanto nos níveis individuais quanto nos comunitários e institucionais. De acordo com as investigações desenvolvidas por Shulman e Shulman (2016), o ato de ensinar está intimamente relacionado com os diferentes domínios por parte do professor, perante seu contexto e sua relação com os sujeitos reais na sala de aula, em que o domínio do conteúdo, por si só, não garante aprendizados para o educando.

No campo da atuação profissional, na primeira etapa do ensino fundamental, defende-se que o currículo deve ser construído de forma integrada. Algumas disciplinas instituídas no planejamento curricular convergem para o desenvolvimento dos conhecimentos e das habilidades de alfabetização, leitura e escrita, matemática, ciências naturais, história e geografia, cuja classe é designada, geralmente, a um professor que trabalhará os conteúdos em perspectiva multidisciplinar. Isto é, a função docente nos anos iniciais do ensino fundamental tem exigências em torno do trabalho de diferentes disciplinas/áreas de conhecimento.

Assim sendo, a multidisciplinaridade é entendida como o ensino de mais de uma área disciplinar por um mesmo docente, mediante mobilização e interlocução entre os saberes pedagógicos e disciplinares de cada área. Para Pugas (2013), embora todos os conhecimentos mobilizados no curso de pedagogia possam ser nomeados de pedagógicos e disciplinares, os saberes disciplinares são aqueles associados ao trabalho didatizado, com conteúdo de ensino relacionado ao saber a ser ensinado nos anos iniciais do ensino fundamental, ao passo que os demais conhecimentos mobilizados nesse currículo são pedagógicos.

Dessa forma, a multidisciplinariedade caracteriza o trabalho de docentes formados em pedagogia, seja por meio de diretrizes e referenciais curriculares, seja mediante múltiplas linguagens e conhecimentos para o ensino na educação infantil ou nos anos iniciais do ensino fundamental. O professor pedagogo, assim, é desafiado pela dinâmica e pela organização curricular a se apropriar dos conhecimentos necessários para o ensino em uma perspectiva de diálogo multidisciplinar.

Além das dificuldades inerentes à inserção profissional docente, a multidisciplinaridade apresenta-se como mais um desafio para o professor, tanto para conhecer todas as matérias a serem ensinadas (conteúdos) como para se apropriar do conhecimento pedagógico geral e mobilizar o conhecimento pedagógico do conteúdo (Shulman; Shulman, 2016). Ensinar, assim, não se traduz apenas em saber o conteúdo ou ter o conhecimento especializado da disciplina, pois envolve diferentes conhecimentos, principalmente fazer com que o conteúdo seja aprendido por alguém (Roldão, 2007). Não há checklist que garanta o aprendizado.

Percurso teórico-metodológico

Diante da discussão desenvolvida, a questão que norteou esta investigação foi: como pedagogos iniciantes que exercem a função docente na educação básica mobilizam saberes profissionais para atender às exigências do ensino multidisciplinar?

Firmamos, então, como objetivo, compreender como professores licenciados em pedagogia e em situação de inserção profissional em turmas dos anos iniciais do ensino fundamental mobilizam os saberes profissionais para atender à especificidade da docência multidisciplinar.

O trabalho foi desenvolvido e ancorado na pesquisa com narrativa (Galvão, 2005; Clandinin; Connelly, 2015) como concepção teórico-epistemológica. Nesse sentido, em uma abordagem qualitativa, a pesquisa narrativa favorece a compreensão e interpretação das dimensões pessoais e humanas, em um caráter social, pessoal e temporal, de modo ampliado, e não fechado ou recortado (Galvão, 2005), o que contribuiu para a construção de conhecimento em torno das narrativas, dos sujeitos, dos processos de formação, da inserção e da atuação profissional.

Não se trata apenas de um método de pesquisa, mas sobretudo de uma compreensão em torno dos sujeitos, das relações e do movimento analítico. Consideramos, em diálogo com Galvão (2005), a narrativa como: método de investigação em educação, processo de reflexão pedagógica e processo de formação.

Então, encontra-se presente, durante todo processo de pesquisa, uma perspectiva formativa para o investigador e para o sujeito que, ao narrar sobre si mesmo, elabora e reflete sobre suas experiências, trajetórias, concepções e atuações no campo educacional. Isto é, a narração promove ao narrador a relação entre memórias de vida, trajetórias e atuação profissional (Clandinin; Connelly, 2015).

Esta pesquisa vincula-se a uma investigação interinstitucional que realizou núcleos de pesquisa-formação em três estados do Brasil , a saber: Ceará (CE), Rio de Janeiro (RJ) e Santa Catarina (SC). Os professores participantes da pesquisa-formação foram selecionados por meio de edital, com base nos seguintes critérios: i) ser efetivo de uma das unidades educacionais da Secretaria de Educação; ii) estar lotado em sala de aula no exercício da docência; iii) atuar na educação básica; e d) ter, no máximo, cinco anos de exercício no magistério, considerando toda sua trajetória profissional.

Diante do grupo de participantes da pesquisa-formação (aproximadamente 50 professores), para alcançar os sujeitos formados especificamente em cursos de pedagogia, enviamos um formulário on-line, a fim de identificar quais professores participantes da pesquisa-formação eram pedagogos por formação, atuavam nos anos iniciais do ensino fundamental e quantos tinham interesse em participar desta pesquisa. Obtivemos aproximadamente 18 respostas, considerando os participantes dos três núcleos (Ceará, Rio de Janeiro e Santa Catarina).

Entre tais respondentes, sete atendiam aos critérios para a realização das entrevistas: eram formados em pedagogia; atuavam nos anos iniciais do ensino fundamental e aceitaram participar da pesquisa. Os demais professores foram desconsiderados, tendo em vista a atuação em outra etapa de ensino e/ou a formação em cursos de história, letras, ciências biológicas e normal (nível médio).

Assim, foi possível reunir um grupo de sete entrevistadas, todas mulheres, entre as quais uma professora participante do Grupo-Formação/Ceará (GF/CE), cinco do Grupo-Formação/Rio de Janeiro (GF/RJ) e uma do Grupo-Formação/Santa Catarina (GF/SC).

Todas as entrevistas foram marcadas previamente com cada docente, de acordo com suas disponibilidades e preferências com relação à data e ao horário. Cabe ressaltar que, no início de 2020, devido à proliferação da covid-19, que causou uma pandemia, a Organização Mundial de Saúde e o Ministério da Saúde brasileiro decretaram ações para a proteção, diminuição e prevenção do vírus. Diante das medidas preventivas de isolamento e distanciamento social, as entrevistas foram realizadas de modo individual e virtual (on-line), por meio da plataforma Zoom (videoconferência).

As entrevistas foram norteadas considerando um roteiro, de modo a propor questões que tenham relação com o narrado e com a pesquisa (Moura; Nacarato, 2017), tendo como base os seguintes eixos:

Fonte: Elaboração própria

Quadro 1 Eixos norteadores para as entrevistas 

Todas as sete entrevistas foram transcritas cautelosamente, com a finalidade de construir textos fidedignos às falas das professoras. Além disso, as docentes puderam escolher seus codinomes ou, quando submeteram livre escolha, preservaram a letra inicial do nome. Para a construção das análises em torno dos aspectos específicos que constituem a inserção profissional docente e a mobilização dos saberes profissionais no ensino multidisciplinar de professoras formadas em cursos de pedagogia, foram construídos quadros sintéticos analíticos com a relação entre objetivo, eixo e narrativas. Nesse movimento de análise, foi possível destacar similaridades e singularidades das narrativas.

As professoras entrevistadas são formadas em pedagogia: Jaque, uma participante do núcleo de pesquisa-formação GF/CE (rede municipal de educação de Itaitinga-CE); Bia, Lua, Cris, Carla e Julia, cinco participantes do GF/RJ (pertencentes à rede municipal de educação do Rio de Janeiro e à de Niterói-RJ); e Jéssica, do GF/SC (rede municipal de educação de Gaspar-SC). Tornou-se importantíssimo ter, pelo menos, uma participante de cada grupo de formação, assim, a pesquisa possui representantes de diferentes contextos, redes de ensino, culturas e territórios.

Percebe-se que seis docentes terminaram a graduação em pedagogia e, em um período curto (até dois anos depois de formadas), inseriram-se na carreira. Sobre o tempo de atuação docente, este varia de até dois anos (três professoras) a quase cinco anos (quatro professoras) de experiência com regência em sala de aula.

Além disso, o vínculo efetivo com as redes de ensino se estabelece por meio de concurso, exceto no caso de Jéssica (docente de Gaspar-SC), que é a única vinculada por meio de contrato (acordo coletivo de trabalho - ACT). Apesar de todas atuarem na educação básica e no ensino fundamental, as nomenclaturas para o cargo são diferentes, de acordo com cada sistema de ensino, a saber: professor de ensino fundamental I (atuação do 1º ao 5º ano), professor I (educação infantil e ensino fundamental) e professor de leitura.

As docentes efetivas têm 40 horas de carga horária de trabalho semanal. Percebe-se que três professoras da rede municipal do Rio de Janeiro trabalham com uma turma em turno único, favorecendo a permanência em um único ano de escolarização no ensino fundamental. No caso das outras professoras, duas trabalham com duas turmas, uma com três turmas e uma com oito turmas (por ser professora de leitura). Somente duas entrevistadas atuaram apenas em um mesmo ano de escolaridade, as demais atuaram do 1º ao 5º ano, inclusive na educação especial/inclusiva.

Professoras iniciantes: inserção profissional docente de pedagogas

O momento de entrada na escola marca a inserção profissional e o choque de realidade vivido pelo iniciante (Veenman, 1984). O início expõe o professor às diferenças entre suas concepções idealizadas sobre a escola e o cotidiano com distintas demandas e urgências. Diante das dificuldades enfrentadas pelos novatos, Alarcão e Roldão (2014) as caracterizam em ordens “científico-pedagógicas, burocráticas, emocionais e sociais”. Nas duas últimas, questões de ordem mais intrapessoal e interpessoal são evidenciadas. Já nas dificuldades burocráticas, há uma caracterização de conhecimentos funcionais sobre o trabalho docente (em ordem macro e micro). As dificuldades científico-pedagógicas são aquelas que, significativa e/ou razoavelmente, interferem na relação entre professor e estudantes.

A entrada na escola aconteceu no segundo semestre do ano letivo para cinco professoras, o que afetou diretamente a relação e a construção de identificação com a instituição escolar. Mesmo no caso das outras duas professoras, que entraram no início do ano, houve referência à falta de orientação para o trabalho inicial, cujas turmas, geralmente, eram as que sobravam, porque ninguém escolheu ou porque professores anteriores desistiram.

A inserção docente das professoras aconteceu em distintos contextos. Em relação às diferentes redes de ensino, as entrevistadas descreveram os modos de organização, as propostas curriculares e as informações particulares de cada contexto (que são apresentadas ou não às professoras). No que tange às instituições escolares, de maneira geral, comentaram sobre a equipe gestora e os docentes, as especificidades da escola e as relações com a comunidade. Sobre a pandemia, a ambiência com os recursos tecnológicos, o esforço para a mobilização do ensino remoto e a relação com os estudantes e as suas famílias foram temas recorrentes nas narrativas.

Vale destacar que, mesmo situadas em diferentes regiões do Brasil, seis professoras afirmaram que ingressaram em escolas com contextos de vulnerabilidade, com situações de violência e/ou desigualdade social (principalmente no acesso aos direitos sociais). Cris foi a única que não caracterizou sua escola como perigosa ou em contexto de vulnerabilidade social, porém destacou questões relacionadas às dificuldades de relação com os familiares.

As entrevistadas comunicaram que o início na docência se deu mediante iniciativas individuais de professoras e/ou gestoras. Nem sempre o processo de recepção, entrada e conhecimento sobre a escola obedeceu a uma perspectiva gradual. As docentes que, de alguma maneira, foram recepcionadas destacaram acontecimentos pontuais. Ou seja, a coordenação apresentava a escola no primeiro dia e, a partir de então, as professoras buscavam saber sobre as demais informações (currículos, planejamentos, reuniões etc.) e aproximar-se de colegas de equipe (professores ou gestão).

Conforme alertam Alarcão e Roldão (2014), os processos de acolhimento por parte da gestão, dos professores e da comunidade amenizam as tensões vividas no início da docência. Ao pensar a acolhida para o processo de inserção e identificação profissional do professor, é preciso possibilitar ao iniciante meios de inserir-se como parte de um novo corpo docente. Para Lahtermaher (2021, p. 56-57):

Essa passagem “de fora para dentro” é um momento fundamental no processo de inserção profissional e precisa de um acompanhamento intencional e formativo. Ainda que iniciativas de acolhimento aconteçam, como apresentação da escola, reunião de apresentação dos novos professores, passagem das turmas, não são suficientes ao longo do tempo para que esses profissionais se sintam parte da instituição

O acolhimento, segundo Lahtermaher (2021), precisa ultrapassar as iniciativas afetivas pessoais, de modo a garantir que o professor iniciante se insira na profissão sem muitos traumas que impactem a própria vida profissional. A autora expõe a diferença entre acolhimento afetivo e acolhimento profissional, defendendo que as ações precisam contribuir para o conhecimento do contexto profissional, das normas e dos valores da escola, isto é, para uma contextualização do exercício profissional docente.

Segundo as professoras, elas sonharam, desejaram e se realizaram com a inserção na escola, momento marcado como o início de ter “a própria turma”. Contudo, mesmo com o desejo pela docência, os sentimentos de insegurança, desespero, ansiedade, nervosismo, susto, preocupação, incapacidade, choro constante e desestabilidade emocional são evidenciados pelas narradoras. O desespero, o choro, a preocupação, o sentir-se assustada e a insegurança foram citados frequentemente nas narrativas docentes.

Podemos perceber, também, algumas problemáticas tensas para as professoras: diferença de organização de cada escola, modos de ordenação, falta de materiais, pouca impressão/xerox das atividades escolares para cada professor, infraestrutura, saber com quem buscar uma informação, quando acionar os órgãos públicos, entre outras.

Alarcão e Roldão (2014) caracterizam as dificuldades científico-pedagógicas como aquelas que envolvem a gestão do ensino, os problemas de indisciplina e desmotivação, a diferenciação de ritmos de aprendizagem, a gestão do currículo, o relacionamento com os alunos e a avaliação.

Ao se pensar nas aulas, algumas questões emergem, apontando dificuldades para começar. Bia narra que “quando eu assumi minha turma, eu acho que eu demorei a me localizar, assim, de como planejar, de entender que eu era responsável por aquela rotina, então, assim, eu tive muita dificuldade nisso, no particular. Mas no público ainda mais”. Lua também destaca sobre sua chegada na escola:

Além de ser um lugar novo, com pessoas novas, você não sabe qual é o tipo de metodologia que a Prefeitura acredita, porque, assim, ninguém te dá uma orientação sobre isso. É muito sobre o que você acha, o que você acredita, o que você, enfim, entende por educação, por alfabetização. Você vai lá e pronto. (Lua, Entrevista, 2021)

Relacionado a isso, as entrevistadas se perguntam sobre o que fazer, o que ensinar, como aplicar, como fazer um bom plano dar certo, o que fazer com os alunos, por onde começar, o que ensinar primeiro, o que ensinar depois, o que mostrar para as crianças e como lidar com o conteúdo. No que tange às relações professor-aluno, professor-comunidade e professor-professor, as professoras demonstram necessidade e interesse em criar confiança, vínculo e afetividade com os estudantes e com as famílias.

Com base nisso, consideraremos, no próximo tópico, as implicações relacionadas à docência multidisciplinar e a mobilização de saberes profissionais para o ensino de diferentes disciplinas nos anos iniciais da educação básica.

Docência multidisciplinar e saberes profissionais

Além das dificuldades mencionadas, para o ensino multidisciplinar, nossas entrevistadas narraram suas dúvidas em torno da organização do ensino disciplinar (utilizar temas, conteúdos e/ou projetos?), do recorte temporal (separar as disciplinas por dias, horas ou momentos?), das propostas curriculares das redes ou das escolas (atender ao que está programado ou criar novas sistematizações?), da união ou separação das disciplinas (interdisciplinar ou disciplinar?), da diferenciação das necessidades de cada ano escolar (o que é específico do 1º ao 3º ano, diferentemente do 4º e do 5º anos?), da construção de saberes significativos mediante as especificidades das áreas (trabalhar conceitos linguísticos e matemáticos, por exemplo, de maneira densa ou de modo geral?), entre outras.

No que tange à formação profissional, Pugas (2013) reconhece os fluxos de cientificidades mobilizados no curso de pedagogia, com base nos conhecimentos pedagógicos (vinculados às ciências da educação) e nos conhecimentos disciplinares, com origem nas áreas de saberes para as disciplinas escolares na educação básica. Embora a formação no curso de pedagogia busque relacionar saberes e fazeres básicos sobre e para a educação, bem como aprofundar, diversificar e integrar estudos e práticas, há conhecimentos que decorrem de necessidades específicas da ação pedagógica.

A multidisciplinaridade, então, requer a mediação entre os saberes pedagógicos e disciplinares (Pugas, 2013). O ensino de mais de uma área disciplinar por um mesmo docente incorpora uma outra dimensão, tanto para o exercício da docência quanto para o enfrentamento das dificuldades da inserção profissional. Essa multidimensionalidade demonstra a necessidade das professoras em conhecer e entender as especificidades das disciplinas.

Atentas às demandas dos diferentes saberes disciplinares, as entrevistadas demonstraram preocupação em trabalhar considerando as dificuldades das crianças, em seus diferentes níveis e modos de aprendizagem. Mesmo no início, buscando “dar conta” de todos os conteúdos programados, desejam recorrer a diferentes materiais, planejamentos e experiências com significação e relação de conceitos com a vida, bem como aos contextos das crianças. Além disso, buscam o interesse e a atenção dos estudantes para determinados conteúdos e assuntos, seja por uma exigência institucional, seja por uma necessidade da turma.

Cris reflete sobre seus primeiros fazeres, comparando-os com o ensino que desenvolve recentemente. As noções de tempo, prática e sentido da ação pedagógica perpassam seu entendimento sobre ensinar. A entrevistada demonstra grande preocupação em “dar conta dos conteúdos”. Para isso, explicita que “preciso da relação”, “me aproximar deles”, “entender o contexto”, bem como a busca por aproximar os temas, de modo a conversar mais com a realidade e a compreensão dos estudantes.

Vale destacar que as especificidades do ensino de diferentes disciplinas não aparecem, primeiramente, de forma declarada, como uma dificuldade do início da carreira. Porém, podemos depreender que a multidisciplinaridade se relaciona com as indagações a respeito do próprio processo de ensinar nos primeiros anos do ensino fundamental, especificamente quando as entrevistadas se indagam sobre como ensinar, por onde começar, o que fazer etc.

Conforme temos evidenciado, para as professoras em inserção na profissão, tais questões se entrelaçam com a própria falta de acolhimento e informação de acesso às concepções curriculares das instituições escolares e das respectivas redes de ensino, além das demandas específicas dos saberes disciplinares (língua portuguesa, matemática, ciências, geografia e história).

A docência multidisciplinar organiza-se de distintos modos. Quando a escola já tem uma separação dos professores para cada matéria (duas professoras), o foco está na disciplina. Nesse e nos demais casos (quando o próprio docente constrói suas propostas curriculares), as entrevistadas buscam considerar a interdisciplinaridade por meio da: i) relação entre os conteúdos (uso de apostilas, livros, saber todos os conteúdos e como relacioná-los); ii) relação entre temáticas; e/ou iii) busca pela criação de projetos com a turma/escola. Nessa direção, a professora Julia exemplifica os diferentes recursos e caminhos para o trabalho multidisciplinar.

Trabalhei com eles com linha do tempo, no início, para entender quem eram eles. Fiz um gráfico da turma, pra trabalhar várias coisas: idade, peso, local de moradia. Elas me deram as informações, né, das datas de nascimento, e aí eu fiz um gráfico antes de começarem as aulas. (Julia, Entrevista, 2022)

No caso de Jaque, os conhecimentos matemáticos e linguísticos prevalecem. A professora declara que seu grande interesse de atuação é a matemática e a leitura: “eu sou apaixonada por matemática, pelo concreto, por mexer na cabecinha deles, fazer eles pensarem, eu gosto muito dessa área. Mas também sou apaixonada por contação de história, por leitura”.

Para Bia e Carla, o trabalho multidisciplinar é organizado de diferentes maneiras. Bia destaca que “a gente poderia ensinar de uma outra forma, de uma forma melhor, com calma, construindo aquilo com a criança [...] eu acho que o ensino das ciências, história, geografia é algo muito rico, mas que acaba sendo trabalhoso”. Carla, na mesma direção, salienta que tenta “construir um projeto, sem fazer essa segmentação de disciplinas. Você consegue dialogar. [...] Então, tem certas horas que dá pra dialogar as disciplinas. Mas certa hora nem tanto. Os maiores, eles já têm essa coisa de fragmentar”.

Assim, o trabalho interdisciplinar é uma compreensão que fortalece as concepções das professoras. Jéssica, também, salienta gostar de trabalhar interdisciplinarmente, porque observa que “enriquece bastante”, mas deixa claro que “tem alguns conteúdos que você acaba trabalhando separado, por questão da importância dele, e realmente precisa. Mas, sempre que possível, eu trabalhava de forma interdisciplinar”.

Além disso, o foco na alfabetização em conceitos específicos e na realização das propostas da escola é priorizado pelas professoras, entre os quais, muitas vezes, sobressaem a língua portuguesa e a matemática, ou a alfabetização em si. Para Lua, a centralidade nos processos de alfabetização faz com que suas práticas sejam pensadas e organizadas em torno da leitura, da escrita e do raciocínio matemático. Contou-nos que seu grande desafio é tornar possível o diálogo entre todas as disciplinas e o alfabetizar. Para isso, a literatura infantil e os projetos institucionais são aportes essenciais para essa relação.

Na escuta de nossas entrevistadas, foi possível identificar as seguintes fontes para o ensino multidisciplinar: documentos curriculares da escola (projetos institucionais, organização das disciplinas e dos horários), índices escolares, avaliações (institucionais e nacionais), livros didáticos (inclusive referências, exemplos e palavras-chave contidos nos livros), apostilas municipais (inclusive os links disponíveis para demonstração), internet, vídeos do YouTube, cadernos e planejamentos de outras professoras, conversas com colegas de profissão, plano de curso anual com habilidades, literatura infantil, escolarização na educação básica, cursos específicos, apostilas e artigos da graduação, e formação continuada.

Notamos que os referenciais da formação inicial, nas pós-graduações e em cursos específicos, são basilares para os saberes e fazeres pedagógicos na concepção das pedagogas. Além disso, o livro didático é um recurso utilizado por todas as professoras como norteador dos saberes disciplinares ao longo do ano, visto que organiza as disciplinas de acordo com alguma lógica/parâmetro de cada área específica de conhecimento. Assim, aparece como recurso predominante para o ensino, sendo utilizado de diferentes maneiras.

Cris, Bia e Julia buscam as referências dos livros para subsidiar a criação de seus materiais e o desenvolvimento das aulas, assim como Carla, que busca selecionar e organizar os conteúdos com base nos sumários e nas referências. Bia ressalta, ainda, que iniciou o trabalho com tal material no segundo trimestre, uma vez que as crianças “[...] estavam tendo consciência e lendo um pouco mais, porque é muito difícil para elas”.

Quando questionadas como trabalham com a docência multidisciplinar, entre as exigências institucionais, predominam o desejo pela interdisciplinaridade e a busca por contextualizar os conteúdos. Assim, prevalece, nas narrativas, a ideia de integração disciplinar, com o objetivo de desenvolver uma perspectiva interdisciplinar de ensino. Em contrapartida, há um dificultador na organização dos conteúdos disciplinares, tendo em vista a multiplicidade e, ao mesmo tempo, a especificidade de cada área.

As professoras entrevistadas refletiram sobre o que ensinar, quando ensinar, para quem ensinar, por que ensinar e como ensinar. Relacionadas a isso, as dimensões técnica, humana e política da Didática Fundamental (Candau, 1983) são evidenciadas nas narrativas docentes, desde a organização do tempo, do tema, dos recursos e da proposta de aula, até as relações com os estudantes.

As relações com os estudantes e os pares também se sobressaem como compreensão fundamental para as professoras, desejosas de criar vínculos com as crianças e suas famílias. Dessa forma, sentem a necessidade de entender os contextos, as culturas, quem são os sujeitos e suas individualidades para a realização do trabalho pedagógico em sala.

Sendo assim, diante das diferentes disciplinas, das demandas de ensino, dos diferentes níveis e modos de aprendizado, dos vários planejamentos para uma turma, entre outras questões, quais são os saberes profissionais mobilizados pelas professoras iniciantes que atuam com o ensino multidisciplinar? É nessa perspectiva que as professoras iniciantes enfrentam as dificuldades que caracterizam a inserção na docência e buscam, em diferentes fontes e práticas, a mobilização de saberes profissionais. À vista desses esforços, podemos destacar, conforme o Quadro 2, os movimentos individuais (para estudos, formações e autoanálises) e coletivos (conversas, planejamentos e estudos) com base nas narrativas.

Fonte: Elaboração própria com base nas narrativas produzidas durante a pesquisa

Quadro 2 Caminhos para o enfrentamento e a mobilização de saberes 

Ademais, nossas entrevistadas encontram na autoanálise e na autorreflexão meios para fortalecer suas disposições para o ensino. Também, mesmo que individualmente, identificamos a mobilização em torno de formações como caminhos para refletir e construir suas práticas profissionais.

Lua reflete que “o principal é você se apoiar nas pessoas que estão ali com você, porque são pessoas, tão passando por aquilo [...] continuam passando por situações que eles não têm resposta pra tudo e que eles tentam criar estratégias”. Desse modo, valoriza o processo de aprender “com a vivência dos outros, aprendendo com a sua própria vivência, criando estratégias pra conseguir caminhar e sobreviver”.

Para Jaque, com uma gestão que muito lhe cobrava resultados, seu fazer profissional buscou como fonte, especialmente, a afetividade, na relação com os familiares das crianças e nas provas internas e externas. Foi a partir disso que criou propostas e projetos particulares para suas turmas, indo ao encontro das necessidades do grupo.

De modo geral, percebemos que as concepções já instituídas nas escolas em que as professoras se inserem marcaram diretamente as fontes e as práticas de ensino das entrevistadas. Contudo, não determinam seus fazeres, uma vez que conseguem realizar distintos movimentos, buscar caminhos, temáticas, materiais e projetos outros. Ressignificar as compreensões e os fazeres constituídos nos contextos escolares é uma estratégia de enfrentamento e mobilização difícil para os professores iniciantes, uma vez que, nessa condição, estão se familiarizando com a cultura escolar.

As professoras formadas em pedagogia se inseriram nos contextos escolares diante do ineditismo, das dificuldades e das incertezas do início. Quando encontram dificuldades para o ensino multidisciplinar, buscam nas formações e na interdisciplinaridade o caminho para sanar suas questões. É no enfrentamento das dificuldades e na mobilização de saberes profissionais, com especial foco nos saberes disciplinares para o ensino da multidisciplinaridade, bem como nas formações, que elas buscam modos de exercer e permanecer na docência.

Considerações finais

Por meio da pesquisa com narrativa, o presente estudo buscou compreender como professores licenciados em pedagogia e em situação de inserção profissional em turmas dos anos iniciais do ensino fundamental mobilizam os saberes profissionais para atender à especificidade da docência multidisciplinar.

A análise concluiu, no tocante à inserção docente, que as dificuldades emocionais, organizacionais, sociais e científico-pedagógicas afetam diretamente o início da carreira das professoras. O contexto institucional e a gravidade da pandemia da covid-19 tensionaram a docência das iniciantes, que se depararam com distintos modos de organização, propostas curriculares e informações particulares. A falta de orientação, informação e acolhimento gerou maior tensão para as iniciantes, seja no que concerne às relações com os colegas, com os estudantes e/ou com a comunidade. E, no contexto pandêmico, somou-se o esforço para a mobilização do ensino remoto e para a ambiência com os recursos tecnológicos.

Sobre as concepções, fontes e práticas do ensino multidisciplinar, foi possível depreender que a organização do trabalho pedagógico, o tratamento do conteúdo e a mobilização de diferentes saberes representam os fatores de maior dificuldade para o ensino das disciplinas de língua portuguesa, matemática, ciências, história e geografia. As participantes compreendem as especificidades disciplinares e destacam o desafio de conhecer e entendê-las para ensinar.

A discussão sobre saberes profissionais nos permitiu depreender que as entrevistadas enfrentaram as dificuldades e mobilizaram conhecimentos por meio da participação em programas de formação continuada (cursos e grupos específicos, nova graduação, especialização, mestrado, formação e comissões da rede de educação), da experiência como estudantes na educação básica e da troca com amigos, parentes e colegas de profissão.

Nesse sentido, a pesquisa indica que a inserção profissional de licenciados em pedagogia merece atenção, além da evidente necessidade de orientação e acompanhamento às pedagogas iniciantes, em turmas dos anos iniciais do ensino fundamental, de modo a amenizar as próprias tensões da inserção profissional, em favor da aprendizagem da docência, da formação entre pares, do compromisso com a formação de professores e com os conhecimentos da profissão.

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Recebido: 19 de Dezembro de 2022; Aceito: 17 de Abril de 2023

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