Introdução
Um dos desafios impostos à prática da leitura literária em sala de aula é a conciliação dos objetivos escolares associados à aprendizagem da leitura com a promoção de experiências autênticas de leitura. É comum observar contextos escolares conduzidos ou determinados por questionários e exames que restringem a experiência leitora a uma única possibilidade de resposta. Entretanto, ainda que a leitura escolar seja, e deva ser, distinta da leitura realizada em espaços privados, sabe-se que a interação com o texto literário, independentemente do ambiente em que ela ocorra, suscita emoções, identificações e/ou juízos, ou seja: o contato com o texto implica um contato do aluno-leitor consigo e com a sua forma de ver o mundo. Cabe perguntar se as práticas escolarizadas têm se atentado a esse processo.
Na academia francesa, a discussão tem ganhado evidência desde 2001, por meio da reivindicação pedagógica do conceito de “sujeito leitor” e da introdução da noção de “leitura cursiva/subjetiva” nos programas curriculares (videRouxel; Langlade; Rezende, 2013). Já em países como Brasil e Portugal, a questão da leitura pessoal nas escolas faz-se presente de forma menos sistemática, estando dispersa em documentos oficiais de educação. Nos dois países, dados emergentes de análises focadas no tipo de mediação de leitura promovida por manuais de português alertam, entre outros aspectos, quanto ao fato de ser escassa, nesses materiais, a abertura à expressão do aluno-leitor, o que aponta para a falta de estímulo à apreciação/fruição estética, bem como para certa tendência à anulação da réplica e autonomia de leitura (por exemplo, Marcuschi, 1996; Dionísio, 2000; Grijó; Paulino, 2006; Martins; Sá, 2010; Diniz, 2012; Vale, 2014).
Na esteira de tais dados indiciários, este artigo visa contribuir para a ampliação e a atualização desse debate no Brasil e em Portugal, países de língua portuguesa onde o tema da subjetividade do ato de ler em contexto escolar demanda sistematização e aprofundamento. O objetivo de pesquisa a que este artigo se reporta fundamenta-se na busca de respostas para as seguintes perguntas: com que frequência a leitura pessoal é solicitada pelos livros escolares de português de 4º ano da escolaridade básica mais adotados no Brasil e em Portugal? Como é feita a abordagem desse tipo de leitura?
Esclarecemos que a escolha de livros do 1º ciclo justifica-se pelo fato de considerarmos especialmente adequado priorizar anos escolares que demandam certa conjugação do viés lúdico da atividade leitora característica dos anos iniciais - o qual propicia, a priori, o exercício subjetivo e criativo - à complexidade interpretativa esperada em níveis mais avançados, que, por sua vez, pode colocar em risco o espaço dedicado à leitura pessoal. Com base nesse critério, compuseram a triagem do corpus de pesquisa exemplares brasileiros e portugueses de livros de português do 4º e do 5º anos, havendo sido selecionados títulos do 4º ano em razão da atualidade das edições desses se comparados aos exemplares do 5º ano aos quais tivemos acesso.
Registra-se, também, que, ao optarmos pela análise de manuais, não se ignora que seu uso é condicionado à especificidade do contexto de ensino e submetido ao papel criativo e à agência do professor (Santos; Leite, 2020). No entanto, reconhece-se igualmente o controle curricular exercido por esses materiais (Apple, 1995), uma vez que neles se encontra a “transcrição do que era [ou é] ensinado, ou que deveria ser ensinado, em cada momento da história da escolarização” (Munakata, 2016, p. 123). Trata-se, pois, de um instrumento que presta testemunho sobre as culturas escolares passadas e vigentes.
A leitura subjetiva na leitura escolar
O sujeito-leitor em sala de aula
Ao longo da segunda metade do século 20, foram desenvolvidas diferentes teorias sobre a dimensão pública e individual da recepção da obra literária, as quais passaram a integrar o debate sobre o papel do leitor (por exemplo, Jauss, 1978; Picard, 1986; Eco, 1994; Iser, 1996; Barthes, 2004). Esses subsídios vêm sendo apropriados por pesquisadores da didática da literatura no ensino básico. No século 21, destacam-se, especialmente, os estudos franceses que, em consonância com um ou mais nomes dessas correntes, têm buscado definir e (re)instituir a leitura subjetiva em sala de aula.
De acordo com Rouxel (2012a, 2012b, 2013) - que investiga o processo de (re)introdução da dimensão subjetiva no sistema escolar francês -, a leitura subjetiva caracteriza-se pelo investimento pessoal do leitor em sua experiência com o texto, sendo esse investimento inerente à leitura literária, o que inclui aquela praticada na escola. Tal vertente baseia-se em uma concepção de leitura como ato de comunicação entre texto e leitor, que abrange não apenas processos cognitivos, mas, também, socioemocionais.
Uma das principais implicações de se pensar essa expressão da subjetividade leitora no contexto escolar é o inevitável questionamento ao modelo de leitura usualmente privilegiado nas escolas. É comum que predomine, em diferentes contextos de ensino-aprendizagem, uma leitura de viés analítico “que se quer, ao mesmo tempo, erudita, objetiva e neutra”, restrita com frequência a fins avaliativos (Rouxel, 2012a, p. 14). Questioná-la não significa preconizar o fim do estudo formal do texto literário ou de práticas leitoras voltadas para a aprendizagem de saberes, mas, sim, considerar que:
Ainda que [a leitura analítica] vise à objetividade na descrição de determinados fenômenos textuais, ela não pode conduzir à exclusão de toda expressão singular da subjetividade do leitor. Ao contrário […] convém instituir a subjetividade do leitor, tendo consciência de seus limites. (Rouxel, 2012b, p. 278).
Como se infere, o acolhimento de leituras pessoais postula que essas sejam articuladas/somadas, e não sobrepostas, à prática de leitura analítica. Para compreender essa proposta, cabe recuperar as observações de Rouxel (2013) acerca da distinção entre interpretação e utilização do texto literário elaborada por Eco (1994). Segundo a pesquisadora (Rouxel, 2013, p. 159), “não somente as duas abordagens não são excludentes, como suas fronteiras são, às vezes, tênues também”. Eco (1994, p. 14-16) afirma que a atividade de interpretar está para o leitor-modelo, que responde e segue corretamente as regras do “bosque narrativo” (texto), assim como o utilizar está para o leitor-empírico, que, guiado por “devaneios”, por um uso mais livre e imaginativo, encara o texto como um “jardim particular”, como “um receptáculo de suas próprias paixões”. Atenta às ocorrências de sala de aula, Rouxel (2013, p. 164) questiona as eventuais hierarquizações das ações descritas pelo autor, contestando a ideia de redução da “utilização do texto ao meramente subjetivo (solipsismo e outras variantes) ou à falta de interpretação, como Umberto Eco tenta fazer”. Acerca disso, a pesquisadora assinala que
A interpretação visa, em verdade, a um consenso sobre um significado. Por sua vez, a utilização remete a uma experiência pessoal, que pode ser igualmente compartilhada. No espaço intersubjetivo da sala de aula, a experiência do outro me interessa […]. A experiência conjunta da interpretação do texto e de sua utilização por um leitor põe em tensão duas formas de se relacionar com o texto e com o outro e confere intensidade e sentido à atividade leitora. (Rouxel, 2013, p. 161-162).
Entende-se, pois, ser adequado possibilitar que o aluno-leitor encare o texto literário também como um “jardim particular”, já que, com frequência, o ato de interpretar e de utilizar ocorrem simultaneamente. Com isso, é favorecido o desenvolvimento daquilo que Rouxel (2012b, p. 280-281) denomina de “didática da implicação” do aluno no texto lido, a qual não contraria a necessidade de “distanciamento crítico” do leitor, mas inspira novas perspectivas de avaliação do ato interpretativo:
[...]antes de estigmatizar como insuficientes ou como erros de leitura os transbordamentos de subjetividade, podemos interpretá-los como indícios de uma relação viva com o texto, a qual pode nutrir o processo de elaboração semântica e orientar o procedimento interpretativo (Rouxel, 2012b, p. 280).
Ao retornarmos aos contributos de teorias da recepção da obra literária, percebe-se que a dualidade dos movimentos de distanciar-se e de implicar-se é associada à atividade leitora em geral, independentemente de fins didático-pedagógicos, como nos mostram as teorias de Iser (1996) e Picard (1986), por exemplo. Com base nesses autores, o crítico literário Jouve (2004) - também inserido nos debates contemporâneos do sistema educacional francês - esclarece que as contradições ou os equívocos decorrentes da implicação do leitor tornam-se um importante convite à observação (autodistanciamento) e à reflexão de seu percurso interpretativo. Portanto, é possível entender que a mediação escolar de leituras subjetivas se alinha à busca por um equilíbrio entre o “distanciamento crítico”, que o estudo sistemático da literatura demanda, e uma “didática da implicação” do sujeito leitor em sua experiência literária.
A título de síntese, é válido mencionar que tal perspectiva de didática da literatura ecoa preceitos pedagógicos de dialogicidade e intersubjetividade já bastante difundidos no Brasil e em Portugal. À luz de Freire (1987), por exemplo, pode-se afirmar que a valorização da dimensão subjetiva da leitura coloca em xeque um modelo “bancário” de educação literária escolar, que confunde ensino/mediação de leituras com “narração” de conteúdos. Nesse modelo, conforme aponta Freire (1987), apenas o professor (e, por que não, na esteira dele, o livro didático) é reconhecido como voz autorizada/sujeito da enunciação, sendo os alunos seus espectadores/“objetos”. Sob esse prisma, infere-se que superar essa condição no contexto da formação de leitores literários significa justamente estabelecer o aluno-leitor como sujeito-leitor, permitindo-lhe exercer sua criatividade e entender sua experiência de leitura dentro, e não fora, das “relações dialéticas” com o mundo referenciadas por Freire (1987).
Perspectivas veiculadas por documentos oficiais
No campo das investigações sobre materiais didáticos, verifica-se certo consenso quanto a “a análise dos manuais escolares não pode[r] abstrair-se dos contextos legislativos e normativos que [os] regulamentam ou que regulamentam a sua concepção, produção, difusão, financiamento e utilização” (Choppin, 2008, p. 12). No estudo a que este artigo se refere, admite-se que tal relação dos livros escolares com seus contextos legislativos/normativos é marcada sobretudo pelo movimento de tradução, visto que os manuais são objetos (artefatos) que fornecem respostas aos programas e discursos curriculares em curso.
Em diálogo com Ball, Maguire e Braun (2016, p. 14-15), entende-se que analisar as relações estabelecidas entre documentos curriculares e práticas didático-pedagógicas exige extrapolar a ideia de “implementação” à medida que a atuação das políticas nas escolas ocorre de forma “coletiva e colaborativa”. Trata-se de uma atividade coletiva/cooperativa não apenas no sentido de se promover um “trabalho em equipe”, mas que se faz presente também “na interação e inter-relação entre os diversos atores, textos, conversas, tecnologias e objetos (artefatos) que constituem respostas em curso à política” (Ball; Maguire; Braun, 2016, p. 14-15). Observam-se, assim, processos de caráter dinâmico, e não linear, por meio dos quais as políticas educacionais tornam-se “interpretadas, traduzidas, reconstruídas e refeitas em diferentes, mas semelhantes configurações”, e não simplesmente “implementadas” (Ball; Maguire; Braun, 2016, p. 18).
Diferentemente de um exercício de interpretação, que, no campo das políticas em educação, é associado sobretudo ao ato de explicar o teor dos documentos oficiais, tal como as interpretações que os diretores partilham com os membros de sua comunidade escolar (Ball; Maguire; Braun, 2016, p. 76-77), a tradução implica uma articulação da política com a prática. Ela envolve invenção/criatividade e conformidade diante desses documentos, ou seja, enquanto a interpretação se refere a “estratégias”, a tradução engloba “táticas” (Ball; Maguire; Braun, 2016, p. 72-73).
É nesse sentido que reconhecemos o livro escolar como um tradutor dos textos e das políticas curriculares, uma vez que suas sequências didáticas cumprem o papel de articular política educacional e prática pedagógica. Não se trata de negar que interpretação e tradução atuam em conjunto, podendo inclusive imbricar-se, mas, sim, de chamar a atenção para o lugar ocupado pelo livro escolar nos caminhos que ligam políticas e escolas.
Comparativamente, nota-se que tanto Brasil quanto Portugal possuem políticas que regulam a adoção, a avaliação e/ou a produção de livros escolares em nível nacional1, as quais, embora sigam critérios distintos, têm em comum o fato de serem orientadas por documentos curriculares e de referência. E, em maior ou menor medida, tais textos norteadores contemplam a questão da experiência pessoal de leitura e, também, da mediação e do compartilhamento dessa experiência em sala de aula, incentivando, portanto, práticas leitoras de viés subjetivo.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do ensino fundamental brasileiro, espera-se que os alunos sejam “capazes de expressar seus sentimentos, experiências, ideias e opiniões, bem como de acolher, interpretar e considerar os dos outros, contrapondo-os quando necessário” (Brasil. MEC, 1997, p. 33). Com base em uma concepção de leitura como “prática social”, os PCN esclarecem que:
Uma prática constante de leitura na escola deve admitir várias leituras, pois outra concepção que deve ser superada é a do mito da interpretação única, fruto do pressuposto de que o significado está dado no texto. O significado, no entanto, constrói-se pelo esforço de interpretação do leitor, a partir não só do que está escrito, mas do conhecimento que traz para o texto. É necessário que o professor tente compreender o que há por trás dos diferentes sentidos atribuídos pelos alunos aos textos […]. Há textos nos quais as diferentes interpretações fazem sentido e são mesmo necessárias: é o caso de bons textos literários. (Brasil. MEC, 1997, p. 43).
Com a aprovação, em 2018, da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Brasil2, a qual dialoga com os documentos que a precedem e os atualiza, as dimensões do ato de ler que propiciam a expressão subjetiva em sala de aula continuam a ser observadas. É enfatizado, por exemplo, que os exercícios de “justificação, análise, articulação” compareçam ao lado do exercício de “apreciação e valorações estéticas, éticas, políticas e ideológicas” (Brasil. MEC, 2018, p. 75). Para o ensino de português no ensino fundamental, a BNCC menciona, ainda, a importância de os alunos estabelecerem “relações entre o texto e conhecimentos prévios, vivências, valores e crenças” (Brasil. MEC, 2018, p. 74). Quanto à lista de “competências específicas de Língua Portuguesa para o ensino fundamental”, o viés técnico da leitura é extrapolado ao ser proposta a valorização da literatura como forma de acesso “às dimensões lúdicas, de imaginário e encantamento, reconhecendo o [seu] potencial transformador e humanizador” (Brasil. MEC, 2018, p. 87).
No que se refere ao ensino de português, no 1º ciclo do ensino básico, em Portugal, é preciso considerar o documento Aprendizagens Essenciais - 4º ano - Português (Portugal. DGE, 2018), responsável por traduzir os conhecimentos, as capacidades e as atitudes a serem desenvolvidos nesse ano escolar. Em seu texto introdutório, é expresso o objetivo de que, ao longo do 1º ciclo e com base na literatura de referência, os alunos desenvolvam “capacidades de apreciação” (Portugal. DGE, 2018, p. 3). Especificamente para o 4º ano, é apontada uma prática de ensino que desenvolva a “educação literária com a criação de uma relação afetiva e estética com a literatura” (Portugal. DGE, 2018, p. 4). Ademais, são referidas diretrizes que vão especialmente ao encontro da questão da subjetividade leitora por envolverem o exercício da criatividade, da antecipação e da manifestação de opinião, e das percepções pessoais, nomeadamente quando é mencionado: “expressar reações de leitura de modo criativo”, “antecipar o(s) tema(s) com base em noções elementares de género […] em elementos do paratexto e nos textos visuais (ilustrações)” e “manifestar ideias, sentimentos e pontos de vista suscitados por histórias ou poemas ouvidos ou lidos” (Portugal. DGE, 2018, p. 9).
Vale destacar, também, que, em Portugal, conforme a legislação, a partir de 2017, o currículo da escolaridade obrigatória de 12 anos passou a ser organizado de modo a contemplar as competências definidas no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (Portugal, 2017). Uma análise dessas competências, com as quais o currículo deve se articular, permite concluir que quatro delas dão atenção a aspectos relacionados com a experiência pessoal dos alunos, a saber: “D - Pensamento crítico e pensamento criativo”, “E - Relacionamento interpessoal”, “F - Desenvolvimento pessoal e autonomia” e “H - Sensibilidade estética e artística” (Portugal. DGE, 2018, p. 5). Como se infere, a elas estão associadas, ainda no conjunto de aprendizagens essenciais para o 4º ano, estratégias de ensino propícias ao exercício da leitura subjetiva, de que são exemplos:
- compreensão de narrativas literárias com base num percurso de leitura que implique imaginar desenvolvimentos narrativos a partir de elementos do paratexto e da mobilização de experiências e vivências; […] mobilizar conhecimentos sobre a língua e sobre o mundo para interpretar expressões e segmentos de texto; justificar as interpretações; […] - criação de experiências de leitura (por exemplo, na biblioteca escolar) que impliquem […] exprimir reações subjetivas de leitor. (Portugal. DGE, 2018, p. 9-10).
A título de complementação, no caso de Portugal, também merece menção o protagonismo exercido pelo Plano Nacional de Leitura (PNL), criado em 2006, sobretudo em virtude dos textos orientadores por ele publicados. Em um dos trabalhos sobre a educação literária divulgados pelo PNL (Portugal. PNL. DGE, 2022, p. 2-3), é admitida, por exemplo, a “necessidade de conjugar a experiência individual perante uma obra literária com o domínio das convenções da comunicação literária que permitirão ao leitor aceder ao texto literário na sua plenitude”, assim como é referida a falha da escola em assegurar a fruição do texto literário.
Nota-se, portanto, que os documentos oficiais e de auxílio publicados no Brasil e em Portugal reconhecem, em alguma medida, a importância de as práticas escolares promoverem a expressão pessoal de leitura. Com base na premissa de que a manifestação da subjetividade do sujeito-leitor é (ou deveria ser) constitutiva do ato de ler, este estudo apresenta o modo como os livros escolares adotados nos dois países atendem a esse pressuposto.
Corpus e metodologia
Corpus do estudo
Integram o corpus de pesquisa dois manuais escolares de português, um publicado no Brasil e o outro em Portugal, pertencentes ao 4º ano de escolaridade da educação básica. A seleção desses dois livros, em detrimento de outros títulos do mesmo ano escolar, está relacionada com o fato de serem essas as obras mais adotadas pelas escolas brasileiras e portuguesas em edições recentes das políticas de livros escolares dos dois países, a saber, em específico: na ocasião do Programa Nacional do Livro Didático de 2019, no Brasil, e no contexto da listagem de manuais certificados e disponíveis para adoção no ano letivo 2021/2022, em Portugal. Esses manuais são: Ápis - Língua Portuguesa, da Editora Ática (LEBR - Livro Escolar Brasileiro)3 e Alfa Português 4, da Porto Editora (LEPT - Livro Escolar Português)4.
Visando explorar a formação do leitor literário com base nas perguntas de compreensão e de interpretação textual que são feitas aos alunos, foram escolhidos para recorte de análise seções e/ou capítulos norteados por textos poéticos e narrativos. No sumário do LEBR, verifica-se que três de oito unidades priorizam o exercício da leitura literária, ao passo que, no sumário do LEPT, é requerido o trabalho com os textos literários, em suas especificidades, em todas as dez unidades. O primeiro livro organiza-se de acordo com diferentes gêneros textuais (fábula, notícia, carta etc.); o segundo orienta-se pelo calendário escolar, sendo cada unidade correspondente ao conteúdo estipulado para um mês de trabalho com os alunos (de setembro a junho), para o qual há sempre a indicação, em destaque, de subseções reservadas a exercícios de leitura literária.
Considerando, portanto, que, nos dois casos, as divergências dos projetos editoriais de cada livro trazem implicações ao número de seções e de capítulos estruturados/protagonizados por textos literários, critérios de triagem de dados tiveram que ser adotados, dos quais são exemplos as escolhas descritas a seguir.
Especificando, no caso do LEBR, foram analisadas as atividades de leitura literária inscritas na “Unidade 1 - Fábula em prosa e em verso” (Trinconi; Bertin; Marchezi, 2017, p. 16-43), na qual o trabalho com o gênero fábula é estruturante. Desse modo, integraram o corpus todas as seções que remetem à compreensão dos dois textos que orientam tal unidade, no caso, a fábula “A cigarra e as formigas” em prosa e em verso. Quanto ao LEPT, não foi possível limitar o corpus a uma única unidade, pois seu projeto editorial consiste em distribuir as atividades de leitura literária ao longo de todas as unidades. Pensando a necessidade de assegurar certa afinidade e simetria entre o teor e o volume de dados a serem comparados, selecionamos as subseções do LEPT igualmente dedicadas ao gênero fábula e/ou à contraposição de textos narrativos e poéticos, cuja soma de exercícios se aproximasse do número total de solicitações interpretativas mapeadas no LEBR.
Com base no critério enunciado, constituíram o corpus de pesquisa as atividades de leitura centradas nos seguintes textos do LEPT: “Aprender a estudar” (Lima et al., 2020, p. 10), poema que introduz o estudo do gênero poético; “Um grande poder” (Lima et al., 2020, p. 12), que introduz o tipo textual em prosa; “Um ouriço a ouriçar” (Lima et al., 2020, p. 158), representativo do gênero fábula; e o conjunto dos poemas “Formiguinha descalça”, “A serpente” e “Boa noite, passarinho”, que dão continuidade ao estudo da fábula (Lima et al., 2020, p. 160).
Com base nesse recorte, foi definido um número aproximado de exercícios a serem analisados em cada coleção: ao todo, 34 solicitações interpretativas do LEBR e 39 do LEPT.
Procedimento metodológico
O estudo seguiu uma análise de conteúdo (Bardin, 1991; Mayring, 2019) de viés qualitativo e quantitativo, abrangendo as etapas de sistematização, classificação e análise de dados. Para a sistematização e a categorização, deu-se continuidade à adaptação feita por Sá (2019, 2023) dos critérios de análise elencados por Dionísio (2000). Em seu estudo, Sá (2019, 2023) propõe categorias para se aferir a presença/ausência da leitura pessoal em manuais brasileiros dos anos finais, as quais consideramos igualmente úteis à análise comparativa de manuais dos anos iniciais.
Em consonância com subsídios da análise do discurso em sala de aula, Dionísio (2000) denomina as perguntas de compreensão textual presentes em livros escolares de solicitações interpretativas (SI) e as eventuais frases que possam acompanhá-las, de enquadradores discursivos (ED). No primeiro caso, inscrevem-se, portanto, os questionários, ou seja, os enunciados que “provoca[m] uma resposta por parte do aluno” (Dionísio, 2000, p. 180), que solicitam a realização de tarefas como ler, escrever, falar etc.; no segundo, os enunciados que não exigem ação por parte do leitor, sendo eles “de natureza primordialmente informativa, e por isso preferencialmente realizados por asserções” (Dionísio, 2000, p. 122), a partir das quais se tem “o quadro no qual se vai orientar a interacção (evidentemente virtual) sobre os textos” (Dionísio, 2000, p. 153).
Para esclarecimento, apresenta-se um exemplo retirado do LEBR no qual os enunciados correspondentes às SI são destacados por meio do uso de bold e os que se referem a ED, pelo uso de underlined:
8. Nas fábulas, geralmente a moral tem a intenção de ensinar alguma coisa. Neste poema, o poeta fez diferente. Leia. A moral dessa historinha? Faça a sua; eu faço a minha. a) O que esses dois versos podem significar? (Trinconi; Bertin; Marchezi, 2017, p. 24, grifos nossos).
Interessou aos fins do estudo a que se reporta este artigo proceder a subcategorizações relativas apenas às SI. As ocorrências de ED foram analisadas qualitativamente caso a caso, quando relevantes. Os casos de SI foram organizados em subcategorias, por serem esses os dados que melhor permitem verificar em que medida os exercícios de interpretação dão espaço a expressões pessoais de leitura. Para tanto, recorremos, conforme mencionado, à apropriação que Sá (2019, 2023) faz das classificações de Dionísio (2000): de um lado, é feito o registro das SI identificadas como solicitações analíticas, isto é, das perguntas que solicitam operações restritas à materialidade textual, nas quais se inscrevem as ações de “identificação”, “inferência”, “síntese”, “justificação” e “classificação”; de outro, são mapeadas as SI identificadas como solicitações cursivas, que investem numa relação dialógica entre texto e aluno-leitor, por meio da solicitação de ações de “juízo de valor”, “mobilização” (de conhecimentos e/ou de experiências prévias do aluno-leitor) e “opinião”5.

Fonte: Elaborado pelo autor com base nas categorias de Sá (2019, 2023)
Figura 1 Tipos de solicitações interpretativas
O modo como são formulados os enunciados das perguntas e, sobretudo, os verbos que os determinam, como identificar, concordar, classificar, entre outros, costumam evidenciar, sem significativas ambiguidades, o tipo de solicitação de ação colocada pelos livros escolares. Durante as análises, mais do que organizar tais ocorrências em categorias, foram analisados qualitativamente seus sentidos e o papel por eles desempenhado nas sequências didáticas.
Apresentação e interpretação dos dados
Os dados do estudo são apresentados na sua relação com as perguntas de investigação.
Frequência com que a leitura pessoal do aluno-leitor é solicitada pelos livros escolares de português do 4º ano da escolaridade básica adotados no Brasil e em Portugal
A Tabela 1 sistematiza, para cada manual escolar selecionado para o estudo, o tipo de solicitação, assim como o total de solicitações encontrado.
Tabela 1 Frequência de cada tipo de solicitação
Dados quantitativos | |||
---|---|---|---|
Coleção didática | Solicitações interpretativas (SI) | Solicitações analíticas (SA) | Solicitações cursivas (SC) |
LEBR | 34 | 26 (76,47%) | 8 (23,52%) |
LEPT | 39 | 28 (71,79%) | 11 (28,20%) |
Total | 73 | 54 (73,97%) | 19 (26,02%) |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Nota: LEBR - Livro Escolar Brasileiro; LEPT - Livro Escolar Português.
Das 73 solicitações interpretativas mapeadas e analisadas, foram identificadas 19 do tipo cursiva. Não se constatou discrepância quantitativa significativa entre as duas obras didáticas: no manual brasileiro, de 34 solicitações, 26 são SA e 8 SC; no manual português, de 39 solicitações, 28 são SA e 11 SC. Em termos quantitativos, destaca-se a baixa incidência de perguntas abertas relativas à leitura pessoal, a saber, apenas 26,02% do total de perguntas que integram o corpus de pesquisa.
A análise qualitativa dos dados tornou relevante a verificação do eixo de ensino no qual as SC estavam presentes (eixo da escrita ou da oralidade)6 e do lugar que ocupavam na sequência didática (antes ou após a leitura do texto). A Tabela 2 organiza quantitativamente essas ocorrências.
Tabela 2 Frequência de solicitações cursivas por eixo de ensino e localização
Solicitações cursivas por eixos de ensino e localização | |||
---|---|---|---|
Coleção didática | Solicitações cursivas no eixo da escrita | Solicitações cursivas no eixo da oralidade | Solicitações cursivas de antecipação de leitura/pré-leitura |
LEBR | 3 (37,5%) | 5 (62,5%) | 0 |
LEPT | 5 (45,45%) | 6 (54,54%) | 4 (36,36%) |
Total | 8 (42,10%) | 11 (57,89%) | 4 (21,05%) |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Nota: LEBR - Livro Escolar Brasileiro; LEPT - Livro Escolar Português.
De acordo com a leitura da tabela, se, por um lado, a tendência - de ambas as coleções, mas sobretudo do LEBR - por inserir as SC no eixo da oralidade ganha mais importância na análise qualitativa, por outro, a frequência de perguntas de viés subjetivo na etapa de pré-leitura merece destaque no que tange à discrepância numérica: todas as quatro SC de pré-leitura identificadas no corpus pertencem ao LEPT, não havendo solicitações desse tipo no LEBR. Ou seja, enquanto o manual brasileiro não recorre ao exercício subjetivo de pré-leitura, no manual português, esse tipo de questão totaliza 36,36% das SC. Por sua vez, ao considerarmos a totalidade dos dados analisados, nota-se que somente 21,05% das questões de leitura pessoal localizam-se antes da leitura do texto.
Abordagem da leitura pessoal no corpus analisado
A primeira diferença a ser ressaltada entre as SC do LEBR e do LEPT é a ausência, no primeiro, e a presença, no segundo, de SC de pré-leitura. Como mencionado, os documentos regulatórios de ambos os países enfatizam, em alguma medida, a importância de atividades de antecipação e/ou ativação de conhecimentos prévios, o que pode explicar o papel exercido pelas seções “Para Iniciar” e “Antes de Ler”, presentes, respectivamente, no manual brasileiro e no manual português. No entanto, no primeiro caso, todas as solicitações da referida seção foram contabilizadas como analíticas, por demandarem ações que não tocam o plano subjetivo, a saber: “Primeiro, observe a ilustração e leia silenciosamente o texto” (Trinconi; Bertin; Marchezi, 2017, p. 18); “Compare [a próxima versão] com a que você leu”; e “Por ser um poema, ensaie [a leitura] com os colegas” (Trinconi; Bertin; Marchezi, 2017, p. 21).
Vale mencionar que, na seção “Para iniciar”, vinculada a um dos textos do LEBR, chega-se a antecipar ao aluno-leitor que, posteriormente, será solicitado que ele aponte de qual dos textos lidos ele mais gostou. Foi referido: “Você vai ler […]. Depois vai escolher o de que mais gostou” (Trinconi; Bertin; Marchezi, 2017, p. 18). Trata-se, portanto, de um enunciado que funciona como um enquadrador discursivo, e não como uma solicitação interpretativa.
Já no manual português, de um total de 11 SC, 4 estão presentes na seção “Antes de ler” e solicitam, cada qual a seu modo, que o aluno-leitor acione as suas visões e/ou vivências antes de iniciar a leitura, como mostram os excertos:
[LEPT1] 7 Lê apenas o título do texto e dialoga com os teus colegas sobre o significado que a expressão tem para cada um. (Lima et al., 2020, p. 10).
[LEPT2] O texto refere-se a um grande poder que os seres humanos possuem. Que poder será esse? Tenta adivinhá-lo entre os poderes seguintes: o poder de amar, o poder de sonhar, o poder da vontade, o poder de pensar. (Lima et al., 2020, p.12).
[LEPT3] Pensa nestes três animais: uma formiga, uma serpente e um pássaro. Apresenta à turma o que sabes sobre cada um deles. (Lima et al., 2020, p. 160).
[LEPT4] De qual [dos três animais] gostas mais [formiga, serpente ou pássaro]? De qual gostas menos? Justifica as tuas preferências. (Lima et al., 2020, p. 160).
As ações que exigem o acesso ao repertório e às expectativas do aluno-leitor estão presentes em enunciados que apontam para: expressar o significado que o título tem para si; escolher um poder entre uma gama de poderes, visando formular hipóteses com base na palavra-chave do título; compartilhar o que se sabe sobre determinados animais que integram o texto a ser lido; e, por fim, refletir previamente sobre gostos pessoais. No entanto, se, por um lado, a presença desse tipo de pergunta na seção intitulada “Antes de ler” sugere que a SC é valorizada pela coleção portuguesa, por outro, é importante considerar que, em termos de sequência didática, a recuperação de tais impressões iniciais do aluno-leitor só ocorre em relação à LEPT4, em uma das perguntas feitas posteriormente à leitura:
[LEPT5] Na tua opinião, a poetisa gosta dos três animais da mesma forma? Justifica a tua opinião e verifica as semelhanças e as diferenças dos gostos da autora com os teus apresentados em Antes de ler… (Lima et al., 2020, p. 161).
A questão LEPT5 propõe que o aluno-leitor confronte seu gosto pessoal com elementos textuais que possam expressar as preferências destacadas pelo eu lírico. É feita, portanto, uma ponte entre leitura subjetiva e leitura analítica. Trata-se de uma articulação igualmente possível de ser realizada com as demais SC de “Antes de ler”, mas que, por alguma razão, se limita à LEPT4.
Pensando tal exercício de retomada, a LEPT5 é também um caso interessante para se discutir a formulação dos enunciados de SC: de início, ao focar no gosto da “poetisa”, a pergunta volta-se apenas à análise de elementos textuais, ou seja: ainda que haja a expressão “na sua opinião” (a priori um marcador de subjetividade), é a questão subsequente - “verifica as semelhanças e as diferenças dos gostos da autora com os teus” - que efetiva o convite à expressão subjetiva de leitura.
Essa observação é importante, pois foi encontrado no LEBR um exemplo no qual o marcador de opinião se limita, na prática, à introdução de uma solicitação analítica, não havendo uma pergunta complementar, e do tipo cursiva, conforme visto na LEPT5, tal como mostra o excerto: [LEBR1] “a) Em sua opinião, qual das personagens [cigarra ou formiga] queria prevenir-se para o futuro?” (Trinconi; Bertin; Marchezi, 2017, p. 24). Nesse caso, o marcador de opinião é seguido somente de uma questão que requer a análise do texto - a saber, a compreensão de qual das personagens se preocupa com o futuro -, e não o trabalho com leituras pessoais. Esse tipo de incongruência entre marcas do enunciado e solicitação interpretativa levanta interrogações para os trabalhos futuros.
Em relação aos aspectos comuns, notou-se que o questionamento dos gostos do aluno-leitor se repete nos questionários de compreensão textual de ambas as coleções, conforme mostram os exemplos:
[LEPT6] De qual dos poemas gostas mais? Escreve algumas frases que justifiquem a tua resposta, onde incluas as palavras sonoridade, rima e sentimento. (Lima et al., 2020, p. 161).
[LEBR2] De que texto você mais gostou? Da fábula ou do poema? Escreva as razões de sua escolha. (Trinconi; Bertin; Marchezi, 2017, p. 26).
Apesar de pertencerem a coleções distintas, os dois exemplos supracitados apresentam formulações em certa medida similares: a pergunta sobre o gosto do aluno-leitor é seguida da exigência de justificação das respostas. Embora haja exceções, foi constatado que a maioria das SC identificadas no corpus reivindica algum tipo de embasamento da opinião pessoal. Em geral, as SC de questionamento de gostos ou de opinião são trabalhadas de forma crítico-reflexiva, não sendo entendidas como perguntas cujas respostas possam ser arbitrárias.
O único aspecto destoante entre a LEPT6 e a LEBR2 que demanda atenção é a presença, na primeira, de uma instrução complementar quanto ao uso das palavras “sonoridade, rima e sentimento” na resposta a ser dada pelo aluno-leitor. Como se infere, há certo condicionamento/limitação da resposta pessoal que justifica algumas reflexões, por exemplo: e se as justificações inicialmente formuladas pelo aluno-leitor não tivessem relação com as palavras exigidas? Em que esse tipo de orientação interfere, positiva ou negativamente, na expressão subjetiva de leitura? Trata-se de ocorrência única no corpus, a ser especialmente considerada por estudos futuros.
Outro padrão de enunciado diz respeito às SC que sugerem o compartilhamento oral das respostas pessoais, a fim de promover o diálogo em sala de aula. Esse comando pode ser verificado não somente nas supracitadas LEPT1 e LEPT3, mas, também, em exercícios do manual brasileiro, tal como: [LEBR3] “Conversem sobre essas frases [elencadas anteriormente], que representam a moral [da fábula lida] para cada autor, e deem sua opinião: com qual das ideias para a fábula vocês concordam e de qual vocês discordam?” (Trinconi; Bertin; Marchezi, 2017, p. 29). Dessa forma, quando trabalhada no eixo da oralidade, a leitura subjetiva é sobretudo alvo de debate e de compartilhamento, indo ao encontro daquilo que, conforme referenciado anteriormente, Freire (1987) e Rouxel (2013), cada qual a seu modo e com sua finalidade, entendem ser o caráter intersubjetivo da comunicação realizada em sala de aula. Nesse sentido, o eixo da oralidade parece favorecer o trabalho com SC crítico-reflexivas.
A respeito das SC inscritas no eixo da escrita, destacam-se aquelas que não se limitam a pedir que sejam registradas por escrito justificações de gostos e opiniões, mas que propõem um exercício de escrita criativa, como: [LEBR4] “Imaginem e criem um final, um desfecho diferente desses que leram…” (Trinconi; Bertin; Marchezi, 2017, p. 33). Tanto no LEBR quanto no LEPT foram encontradas SC desse teor, que convidam o aluno-leitor a expressar a sua criatividade e a exercitar sua autoria com base na experiência integral de leitura ou na seleção de excertos ou elementos do texto lido. Nota-se, assim, uma articulação entre leitura subjetiva e escrita criativa que incentiva o exercício da autonomia à medida que torna o aluno-leitor em aluno-autor.
Nessa reflexão, vale ainda a pena referir especificidades encontradas em ambos os manuais escolares. Conforme exposto, o LEBR não propõe solicitações interpretativas de antecipação de leitura. No entanto, a única ocorrência de SC situada imediatamente após o texto a ser lido, isto é, uma SC dá início ao questionário de leitura, foi identificada no manual brasileiro: [LEBR5] “1. Qual foi sua primeira impressão ao ler o texto? Converse com os colegas” (Trinconi; Bertin; Marchezi, 2017, p. 24). Com exceção desse caso, a primeira questão lançada pelos questionários, tanto do LEBR quanto do LEPT, correspondeu sempre a uma solicitação do tipo analítica, e não cursiva. Considerando a sequência didática proposta por esses livros, percebe-se que, em linhas gerais, após a leitura do texto, é priorizada a leitura de viés analítico, restrita à materialidade textual, e não a mediação da experiência e da impressão pessoal de leitura.
Também foi observada ocorrência única de SC que explora a eventual identificação pessoal do aluno-leitor com personagens ou fenômenos presentes na narrativa, como mostra o excerto: [LEPT7] “4. E tu, já alguma vez foste [tal qual a personagem] atacado pelo ‘monstro da preguiça’? Se sim, quando?” (Lima et al., 2020, p. 13). Com exceção desse caso, as demais SC de compreensão textual restringem-se a questões envolvendo opiniões, concordância/discordância e expressão de gosto. Cabe investigar, em estudos futuros, se a questão da fruição e apreciação estéticas são suficientemente trabalhadas quando se prioriza esse tipo de SC em detrimento de SC de identificação.
Considerações finais
Os resultados apontam que os livros escolares analisados neste artigo traduzem (Ball; Maguire; Braun, 2016) as respectivas diretrizes e orientações de documentos educacionais do Brasil e de Portugal acerca da mediação de leituras subjetivas no ensino básico de cada país, embora seja baixa, no corpus explorado, a incidência desse tipo de exercício de leitura. Nos manuais do 4º ano de escolaridade investigados, as solicitações interpretativas abertas à expressão da leitura pessoal corresponderam a apenas 26,02% das atividades de compreensão textual. Em certa medida, esse dado corrobora aquilo que vem sendo advertido, nos últimos anos e sob diferentes prismas, por estudos sobre livros escolares dos dois países no que diz respeito à falta de voz e de agência do aluno-leitor (por exemplo, Grijó; Paulino, 2006; Martins; Sá, 2010).
Em linhas gerais, verificou-se que é preponderante, no corpus analisado, a solicitação de ações interpretativas atreladas à expressão de gosto, de concordância/discordância ou de opinião. Trata-se, de modo geral, de exercícios que não se limitam à colocação da pergunta, mas que demandam, também, a justificação das respostas, isto é, o embasamento das visões pessoais do aluno-leitor. Nesse sentido, as questões de viés pessoal identificadas e analisadas neste artigo acabam por exigir não apenas a exposição da subjetividade, mas, também, um trabalho de reflexão e de argumentação em torno dela. Em termos qualitativos, isso parece favorecer tanto a formação para a autonomia quanto o conhecimento mais aprofundado de si e do próprio percurso interpretativo. Por isso, o fato de haver, no livro brasileiro, casos isolados de solicitações cursivas nas quais a ação de justificação não é enfática e explicitamente postulada (por exemplo, a LEBR3, anteriormente citado) chama a atenção para a eventual falta de um padrão editorial na formulação dos enunciados, verificando-se ora solicitações cursivas justificadas, ora solicitações cursivas sem justificação.
Ainda acerca da formulação dos enunciados, uma solicitação cursiva presente no manual brasileiro (ocorrência na LEBR1 anteriormente citada) impôs reflexões sobre os critérios de classificação de dados inicialmente adotados. Trata-se de um caso no qual a expressão “na sua opinião”, usualmente indicativa de mediação da leitura pessoal, é acompanhada de uma solicitação interpretativa centrada na materialidade textual, sem efetiva abertura à expressão da subjetividade. Tal quebra coesiva - constituída pela presença do marcador “opinião” numa questão alheia à expressão de opinião, já observada por Sá (2023) em manuais brasileiros do ensino médio - alerta quanto ao fato de que a análise da modalização discursiva adotada pelos manuais escolares pode não ser suficiente para a aferição da presença/ausência do exercício de leitura pessoal.
Foi rara a presença de solicitações fundadas na reflexão sobre a eventual identificação com acontecimentos ou personagens, o que suscita reflexões sobre a abrangência da mediação da experiência leitora, uma vez que a identificação/não identificação é pouco explorada. Igualmente, houve apenas uma ocorrência de solicitação cursiva situada na abertura dos questionários de compreensão textual (ocorrência na LEBR5). A tendência observada é de dar início à compreensão textual com solicitações interpretativas centradas exclusivamente na materialidade textual, para só depois inserir perguntas de recorte subjetivo. Ou seja, verificou-se, no corpus analisado, que, imediatamente após a leitura, o aluno não é convidado a se expressar.
Ainda em relação à sequência didática, notou-se uma discrepância significativa entre o livro brasileiro e o livro português no que diz respeito ao lugar reservado a questões de viés subjetivo. Somente no manual de Portugal foram encontradas solicitações cursivas de pré-leitura, atreladas à elaboração de inferências e antecipação de leitura. No livro brasileiro, a seção de pré-leitura compõe-se por enquadradores discursivos e por solicitações interpretativas, que foram classificadas como analíticas por focarem no modo como a respectiva leitura deve ser realizada (silenciosa, coletiva etc.), e não na perspectiva pessoal de leitura.
Quanto aos eixos de ensino, o eixo da oralidade destacou-se por promover o reconhecimento da sala de aula como espaço de intersubjetividade (Freire, 1987; Rouxel, 2013), por ser frequente a recomendação de que as respostas pessoais sejam discutidas entre os alunos. Nesse sentido, os manuais investigados vão ao encontro do incentivo ao compartilhamento e à confrontação de leituras previsto nos documentos oficiais tanto do Brasil quanto de Portugal. No eixo da escrita, por sua vez, ressalta-se a atenção a solicitações cursivas baseadas no exercício da escrita criativa, o que, em princípio, dá margem ao exercício da autonomia por meio da atividade de autoria. As possíveis relações que podem ser estabelecidas entre leitura subjetiva e escrita criativa são um ponto de investigação que carece de aprofundamento.
Entende-se, portanto, que o estudo fornece indícios e sugere algumas respostas acerca do modo como os livros escolares do Brasil e de Portugal têm trabalhado a dimensão subjetiva da leitura, assim como seus resultados abrem portas para novas investigações. São exemplos de aspectos que merecem ser analisados de forma aprofundada por estudos futuros: os efeitos da modalização e da padronização discursiva dos enunciados que dão forma às solicitações de expressões pessoais de leitura; as consequências pedagógicas do lugar onde são situadas as perguntas de viés subjetivo na sequência didática; as especificidades do papel desempenhado pelos eixos da escrita e da oralidade na mediação desse tipo de leitura; a razão da baixa incidência de solicitações cursivas a despeito da abertura dada pelos documentos de referência, entre outros.
Trata-se de pesquisas em aberto que podem ser desenvolvidas não apenas em nível de análise documental, mas que, à luz de Ball, Maguire e Braun (2016), podem, e talvez devam, articular-se a análises empíricas do uso que é feito desses questionários de leitura no contexto de sala de aula, a fim de que os indícios da cultura escolar fornecidos pelos livros escolares possam ser confirmados ou contestados. Assim, somar-se-á o estudo da tradução desempenhada por livros escolares à observação da interação e da ação docente diante desses materiais, de modo a alcançar um melhor entendimento da forma “coletiva e colaborativa” (Ball; Maguire; Braun, 2016, p. 15) com que as políticas educacionais atuam nas escolas.