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Roteiro

versión impresa ISSN 0104-4311versión On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.44 no.2 Joaçaba ene./dic. 2019  Epub 30-Abr-2019

https://doi.org/10.18593/r.v44i2.19322 

Resenha

Raízes - Resistência histórica

Roots - Historical Resistance

Raíces - Resistencia histórica

IPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Professora do Departamento de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação e Graduações em Educação Física e Pedagogia, Brasil


É sempre tempo de atualizar falas que um dia fizeram sentido, por isso inicio com os dizeres esperançosos de Lennon e Ono (1971) quando poeticamente afirmaram “você pode dizer que eu sou um sonhador mas eu não sou o único”, e ainda Seixas (1974): “sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha juntos é realidade.” Raízes é fruto de um sonho pessoal de Karine Oliveira que se torna realidade quando envolve um coletivo para publicar escritos de e sobre mulheres negras, com a proposta de que elas pudessem ocupar o seu lugar de fala, como nos instiga Ribeiro (2017). A esse sonho se juntaram outras mulheres, cada uma com suas histórias de vida, afetos e desafetos, experiências boas e também ruins, diferentes processos identitários e de subjetivação. Mulheres que se transformam pela escrita, por se tornarem sujeitos de sua própria história e de tantas outras, pelo lugar que a linguagem ocupa, trazendo empoderamento com leveza, revelações, emoções e sentimentos. Mulheres que reivindicam cada vez mais o pertencimento a esta sociedade que, por muito tempo, as fez sentir como estrangeiras em seu próprio país (RIBEIRO, 2017).

Karine lançou um selo editorial com o nome de Venas Abiertas, que tem possibilitado a publicação de autores invisibilizados. O nome da editora já é resistência. Com esse apelido nos remete ao passado de colonização, não só do nosso País, mas também dos hermanos del sur.2 Para reunir as 20 escritoras as redes sociais foram fundamentais. Como um trabalho de formiguinha, uma autora foi convidando outra, e, desse modo, rapidamente o coletivo se instaurou. São mulheres diversas: com idades variadas, diferentes experiências sexuais, opções religiosas, condições sociais, culturais, envolvimento com a luta cotidiana, formação acadêmica e, ainda, de diversas regiões do País (com predominância do Sudeste e Sul, o que nos faz pensar que continuamos convivendo com uma segregação no interior de nossa sociedade). Acredito que aí reside mais uma das riquezas do livro, uma vez que externar pontos de vistas diferentes pela poiésis permite ao leitor construir um imaginário para além do que normalmente a ele é oferecido.

O título do livro é provocador. Diz ao que veio e nos mostra que é uma obra militante, envolvida na luta e causa das mulheres negras. As autoras se apoiam em Carolina de Jesus para afirmar logo na epígrafe que “Preta é minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.” Assim, nas primeiras páginas percebe-se que as escritoras negras levantarão suas vozes antes silenciadas, em um grito a ser ouvido por todos, em sinal de libertação e transformação de suas próprias vidas e daquelas que ainda virão. Por isso, é significativa a palavra RESISTÊNCIA. Roque (2002) nos convida a pensar que o prefixo “re” traz a ideia de duplicação, de dobra, algo que se repete. Segue o substantivo derivado do verbo sistere: parar, permanecer, ficar, ficar de pé, estar presente. Associa o stantia, ou estadia. Com isso, resistir é insistir em estar, em permanecer, em ficar de pé. A autora continua em suas associações e convida-nos a pensar na palavra existência: “se há uma duplicação, uma dobra, trata-se da dobra da existência, do estar pleno; pleno de seus desdobramentos e de suas séries; pleno de suas consequências, ou das sequências que serão, com nossa própria estadia neste mundo, compossíveis.” (ROQUE, 2002, p. 26).

Os argumentos da autora legitimam a palavra no título:

A resistência é a dobra da existência. E assim não precisamos mais de inimigos, ou de opositores; não somos reféns da ocupação. Opomo-nos, é verdade, mas nos opomos a conceber a vida como algo desprovido de sentido. A existência existe? A existência resiste. Pois ela só existe em constante processo de diferenciação em relação a si mesma. Ela só existe dobrando-se única condição para que existir não seja apenas o lado sombrio do ser. (ROQUE, 2002, p. 26).

A autora destaca a potência afirmativa da resistência na dinâmica criativa de nossas vidas e processos de subjetivação. Diz ela: “para que um movimento produza diferenças, é preciso que, para além de sua porção constituída, haja outra, que é constituinte do movimento e sem a qual qualquer movimento correria o risco de cristalizar-se, estagnar-se e se deixar capturar.” (ROQUE, 2002, p. 31). Entendido desse modo, considero a potencialidade criativa desta obra. Sua concepção participativa e aberta ao diferente encontra frestas por onde a luz pode penetrar e fazer história, para além das polarizações tão presentes em nossa sociedade como homens versus mulheres, brancos versus negros, ricos versus pobres, entre tantas outras.

Tudo na obra inspira e transpira o compartilhar dessa resistência. O livro é o depoimento vivo da luta dessas mulheres que envolve mais do que a própria escrita, mas também as condições para sua concretização. Seu processo de produção é o melhor exemplo de que não podemos desistir de nossos sonhos e a clareza de que, juntos, somos mais fortes.

Assim, a diagramação foi realizada pela própria Karine. A revisão dos textos, por uma das autoras. A capa, presente de Adelson Boris, amigo de Karine, traz uma imagem carregada de simbologias. Sobre um pano de fundo com o globo terrestre que se confunde com o sol e figuras geométricas que nos lembram as pinturas de carimbos africanos, salta, quase em alto relevo, uma mulher negra. O carimbo, segundo a wikipedia, vem do quimbundo"kirimbu" e significamarca. A etimologia da palavra diz que kirimbu deriva das cicatrizes e escarificações utilizadas por diversas culturas africanas como sinais de pertença a uma dada etnia ou um dado grupo clânico. No período do tráfico negreiro, homens e mulheres, antes de serem embarcados para as terras americanas, deviam receber a marca a ferro de que tinham sido pagos os impostos e taxas devidos à Coroa. O vocábulo foi incorporado à língua portuguesa, e desse tipo de instrumento, passou para outros utilizados para criar marcas com tintas personalizadas em papéis e pergaminhos (WIKIPEDIA, 2018). A mulher tem características físicas africanas, grossos lábios e nariz, pinturas no rosto que nos remetem a tribos étnicas, cabelos crespos envoltos num coque que faz alusão às casas e/ou templos, e estes estão emaranhados a um baobá, árvore africana que simboliza longevidade e maturidade, pois vive mais de 200 anos. Da orelha da mulher cai um pendente, artefato cultural muito presente como enfeite dos grupos étnicos, fincando as raízes do baobá na Mãe África e o seu sol ardente.

O convite para escrever a orelha foi aceito pela escritora negra Cidinha Silva, que destaca a convergência de investimentos para a publicação. Segundo ela, a coletânea expressa linguagens amplificadoras de lutas por meio da escrita ativista, literária possível e potente.

Duas autoras fazem a apresentação em um exercício de falar elas por elas. O título confirma, é “Nós por nós”. O prefácio foi escrito por Luana Tolentino, uma jovem negra, acadêmica, mestra em educação, militante do movimento negro. Luana traz as lembranças de sua mãe e de Carolina de Jesus para a conversa ao questionar o que levaria mulheres negras a romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita. Para responder, refresca a memória do leitor sobre o projeto de um imaginário social ainda presente para a mulher negra e as condições de produção de escritas autorais dessas filhas da diáspora africana. Reverencia outras mulheres negras também invisibilizadas em nossa sociedade, reconhecendo sua importância para estas que rompem o silêncio num ato de resistência pela palavra.

O que vemos em todo livro vai ao encontro da reflexão proposta por Fiori no prefácio do clássico de Freire A Pedagogia do Oprimido. Diz ele que o sujeito precisa “aprender a escrever a sua vida, como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se.” (FREIRE, 1987). Ou dito de outro modo, para que ao se apropriar da linguagem, da palavra, o sujeito possa estar corporalmente, consciente, lúdico e pleno no mundo. Essa plenitude é percebida, ainda, pela maneira como as autoras foram apresentadas. Uma página preta que nos remete à cor e etnia das mulheres, o nome da autora em caixa alta e uma epígrafe. Na página seguinte, uma foto e uma pequena autobiografia, com contatos nas redes sociais. Desse modo, as mulheres se empoderam, mostram sua cara, e o leitor se sente próximo de cada uma delas.

No site do Catarse elas se apresentam:

Somos mulheres negras e carregamos em nossa escrita a nossa história, a história das que vieram antes de nós e a história do nosso povo. Quando escrevemos, não são somente nossas mãos que escrevem: é nossa alma, nossos corpos, ombros, olhos, ouvidos e pés. Somos nós, inteiras, por mais que o passado negue nossa existência e o presente tente arrancar ou anular parte de nós. Quando escrevemos, são as nossas dores que deixam de ser silenciadas, são nossas lutas que gritam e chacoalham o mundo. Quando escrevemos, afirmamos os sonhos e esperanças por tanto tempo negados.

[...]

Somos mulheres negras das periferias, centros, artistas, clandestinas, universitárias, trabalhadoras, que querem um mundo onde a noite não seja sinônimo de medo e perigo, mas que haja poesia, samba, batuque, prosa, comida e ciranda até o amanhecer. Nós contamos sobre nós, mas, mais do que isso, contamos sobre o mundo porque uma coisa é certa: as mulheres negras guardam os segredos, as esperanças e a força de gerações. (BASSI, 2018).

Dizer o que mais?

Elas são jovens que veem a vida ser transformada pela potência da palavra. Estão nos slams de poesias, nos saraus, arriscando suas primeiras incursões pela escrita, por isso mesmo o cuidado de não corrigir, no livro, as letras, como se fala nas ruas. São mulheres maduras, algumas com outras obras publicadas, com seus blogs e um pouco mais de domínio técnico na escrita. Aqui também a troca é enriquecedora.

Mais uma vez o ciberespaço foi o caminho encontrado para a publicação. Num movimento que muito nos lembra a dádiva e a teoria da reciprocidade de Mauss,3 Karine criou uma página no Catarse4 onde apresentou o projeto e convidou para o financiamento coletivo aos moldes da pré-venda. Dependendo do valor que o apoiador creditou, recebeu em troca um kit, cada um deles com atrativos diferentes. A meta foi alcançada, o projeto bem-sucedido, sendo possível publicar a primeira tiragem dos exemplares.

É um livro que tem como objetivos colocar em circulação as ideias; invadir escolas, universidades, bibliotecas, movimentos sociais, padarias, supermercados, igrejas; formar leitores e leitoras; incentivar a escrita e dessacralizar a literatura, afirmando que outras leituras, para além dos cânones, são possíveis.

Os contos, crônicas, poesias, haikais trazem temas comuns, situações enfrentadas no cotidiano e que dizem sobre a condição da mulher negra. Seu corpo negro, as experiências que deixaram marcas. Denúncias, preconceitos, racismo, violências, assédios, dores, desafetos. A identidade e processos de subjetivação que passam pelo cabelo crespo,5 pela aceitação da cor da pele. Memórias, relatos de infâncias, lembranças de um tempo em que os seus foram escravizados, reflexões pertinentes aos tempos atuais. Denúncias. Anúncios. Tomada de consciência da negritude que habita a pele. Mudança da chave para superar o medo, revolucionar, resistir, fazer seu grito ser ouvido, sair da condição de vítima para a de quem sabe o que quer. Que se assume dona de seu corpo, que quer viver o amor, a alegria e o prazer, seja como e com quem for. Cumplicidade, famílias homo e heteronormativas, filhos. Corpos que vivem religiosidades e carregam a ancestralidade do povo negro.

É certo que encontramos pequenos problemas com diagramação e digitalização, perdoáveis, pela própria concepção e produção da obra.

Só resta convidar o leitor a mergulhar nos escritos dessas mulheres negras! Desejo boas leituras e reflexões a todos. Sigamos contribuindo para a construção de uma sociedade melhor, na qual o racismo, a misoginia, o facismo, enfim... tornem-se coisas do passado. Por uma vida com mais amor, mais poesias, sem medo de ser feliz!

REFERÊNCIAS

OLIVEIRA, Karine (Org.). Raízes - Resistência histórica. Antologia poética. Belo Horizonte: Ed. Venas Abiertas, 2018. 178 p. [ Links ]

REFERÊNCIAS

BASSI, K. Coletânea Raízes Resistência histórica. Escritoras Negras. Disponível em: Disponível em: https://www.catarse.me/coletanearaizes . Acesso em: 28 set. 2018. [ Links ]

WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Carimbo. Disponível em Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Carimbo . Acesso em: 30 set. 2018. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Disponível em: Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/paulofreire/paulo_freire_pedagogia_do_oprimido.pdf . Acesso em: 30 set. 2018. [ Links ]

GOMES, N. L. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolo da identidade negra. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. [ Links ]

LENNON, J.; ONO, Y. Imagine. Imagine. New York: Apple, 1971. [ Links ]

MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac e Naify, 2003. [ Links ]

RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2017. [ Links ]

RIBEIRO, D. Ser negra aqui e ser estrangeira no próprio país. Entrevista ao Jornal Estadão, 18 dez. 2017. Disponível em: Disponível em: https://agenciapatriciagalvao.org.br/wp-content/uploads/2017/12/estadao-18122017_Ser-negra-aqui-e-ser-estrangeira-no-proprio-pais-diz-Djamila-Ribeiro.pdf . Acesso em: 30 set. 2018. [ Links ]

ROQUE, T. Resistir a quê? Ou melhor, resistir o quê? Lugar Comum, n. 17, p. 23-32, 2002. Disponível em: Disponível em: http://uninomade.net/wp-content/files_mf/113003120958Resistir%20a%20qu%C3%AA%20Ou%20melhor%20resistir%20o%20qu%C3%AA%20-%20Tatiana%20Roque.pdf . Acesso em: 30 set. 2018. [ Links ]

SEIXAS, R. Prelúdio. Gita. Rio de Janeiro: Philips Records, 1974. [ Links ]

2Com a mesma proposta de reunir os coletivos a editora lançou em 2018 a obra À luta, à voz: Coletivoz Sarau de periferia. Novos projetos já estão sendo gestados. Contato: editoravenasabiertas@gmail.com

3Para Mauss (2003), a dádiva e a reciprocidade estão nas origens humanas das trocas e os princípios fundamentais da organização, da lógica econômica e social das sociedades.

4https://www.catarse.me/coletanearaizes

5Sobre o cabelo crespo e a identidade negra ver escritos de Gomes (2008).

1 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo; Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais; ORCID: 0000-0003-3075-4906e; Lattes: 8204363161954095.

Endereços para correspondência: Rua Madureira, 507, Aparecida, 31235-100, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; vaninhanoronha@gmail.com

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