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Roteiro

versão On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.44 no.3 Joaçaba jan./dez 2019  Epub 01-Out-2019

https://doi.org/10.18593/r.v44i3.20305 

Artigos de Demanda Contínua

O precariado professoral e as tendências de precarização que atingem os docentes do setor público

The professoral precarious and the predictional trends achieved by teachers of the public sector

El precariado profesoral y las tendencias de precarización que alcanzan los docentes del sector público

Amanda Moreira da Silva1I 
http://orcid.org/0000-0001-9416-0619

Vânia Cardoso da Motta2II  , Professora Associada
http://orcid.org/0000-0001-7946-928X

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professora adjunta.

2Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação, Professora Associada


Resumo:

O artigo indica que está em curso um novo tipo de precarização do trabalho docente na educação básica que exige distinguir suas particularidades, seu movimento e sua direção. É fruto de uma pesquisa de doutorado recém-concluída que analisa como as mudanças que perpassam o mundo do trabalho, no âmbito do movimento geral do capital e de reestruturação produtiva, atingem a classe trabalhadora brasileira e penetram no âmbito da educação escolar, sobretudo no setor público, trazendo implicações diversas nas condições de trabalho dos professores. Para a análise empreendida, em um primeiro momento fizemos uma revisão do conceito sociológico de precariado, trazendo o debate existente entre diferentes abordagens analíticas e, posteriormente, fizemos algumas reflexões de como esse conceito pode nos ajudar a pensar as formas e tendências de precarização do trabalho docente surgidas nos últimos anos que atingem o professorado brasileiro do setor público.

Palavras-chave: Precarização do trabalho docente; Expropriação; Precariado.

Abstract:

The article indicates that a new kind of precariousness of the teaching work in basic education is under way that demands to distinguish its peculiarities, its movement and its direction. Is the result of a recent doctoral research that analyzes how the changes that permeate the world of work within the general movement and of productive restructuring capital reach the Brazilian working class and penetrate the scope of school education, especially in the public sector, bringing implications in teachers' working conditions. For the analysis undertaken, at first we did a review of the sociological concept of precariousness, bringing the debate between different analytical approaches, and later we made some reflections on how this concept can help us to think about the forms and tendencies of precariousness of the teaching work that have arisen in the last years that reach the Brazilian professorship of the public sector.

Keywords: Precariousness of teaching work; Expropriation; Precarious.

Resumen:

El artículo indica que está en curso un nuevo tipo de precarización del trabajo docente en la educación básica que exige distinguir sus particularidades, su movimiento y su dirección. Es fruto de una investigación de doctorado recién concluida que analiza cómo los cambios que atravesan el mundo del trabajo, en el marco del movimiento general del capital y de reestructuración productiva, alcanzan a la clase trabajadora brasileña y penetran en el ámbito de la educación escolar, sobre todo en el sector público, implicaciones diversas en las condiciones de trabajo de los profesores. Para el análisis emprendido, en un primer momento hicimos una revisión del concepto sociológico de precariado, trayendo el debate existente entre diferentes abordajes analíticos y posteriormente hicimos algunas reflexiones de cómo ese concepto puede ayudarnos a pensar las formas y tendencias de precarización del trabajo docente surgidas en los últimos años que afectan al profesorado brasileño del sector público.

Palabras clave: Precarización del trabajo docente; Expropiación; Precariado.

1 INTRODUÇÃO

O processo de reestruturação produtiva, em curso a partir da década de 1970 nos países centrais e desde o final da década de 1980 no Brasil, tem causado alterações significativas na organização do trabalho, conforme apontam estudos acerca das mudanças contemporâneas no mundo laboral (ALVES, 2000, 2009, 2011, 2013; ANTUNES, 2013; FONTES, 2017; POCHMANN, 2016). Nesse contexto, há o predomínio da flexibilização dos contratos trabalhistas que, em muitos casos, tem gerado precarização das condições de trabalho. Tal situação afeta a classe trabalhadora como um todo (dos mais qualificados aos não qualificados), situados em setores privados ou públicos, sobretudo os professores, centralidade desta análise.

Este artigo parte do pressuposto de que o trabalho docente, embora não esteja diretamente vinculado ao setor produtivo e possua especificidades, não está dissociado das relações sociais capitalistas, com isso, apresenta características comuns a outras atividades do mundo do trabalho. Portanto, precarização, flexibilização, trabalho temporário e formas atípicas de atividade laboral, que se intensificam com a reestruturação produtiva, são características pertinentes, inclusive, ao trabalho docente.

No âmbito da educação básica pública, demonstramos elementos que nos ajudam a compreender a nova configuração do trabalho docente, trabalho este que se insere no atual estágio de “crise estrutural do capitalismo” (MÉSZÁROS, 2009), em que emerge o regime de acumulação flexível (HARVEY, 1992), em um processo de reestruturação produtiva que influencia todas as esferas sociais. Para isso, tomamos como marco os processos de Reforma do Aparelho de Estado (BRESSER-PEREIRA, 1995) - que ressignificou o direito à educação pública como um “serviço não exclusivo do Estado” - e o contexto de reformas na educação pública nas últimas três décadas no Brasil, que cunha acentuada privatização do espaço escolar e mercantilização de produtos e serviços.

Nesse contexto vem se constituindo um novo tipo de precarização do trabalho docente que exige distinguir suas particularidades, seu movimento e sua direção. Portanto, nossa proposta aqui foi analisar, diante do movimento geral do capital, como as mudanças que perpassam o mundo do trabalho atingem a classe trabalhadora brasileira e penetram no âmbito da educação escolar, sobretudo no setor público, trazendo implicações diversas nas condições de trabalho dos professores. Para a análise empreendida, em um primeiro momento fizemos uma revisão do conceito sociológico de precariado, trazendo o debate existente entre diferentes abordagens analíticas, e, posteriormente, fizemos algumas reflexões de como esse conceito pode nos ajudar a pensar as formas de precarização dos docentes instáveis e as tendências surgidas nos últimos anos (2016-2017) que atingem o professorado brasileiro do setor público.

2 EXPROPRIAÇÃO EM ESCALA MUNDIAL: O PRECARIADO

Inicialmente destacamos que nossa intenção aqui não é abandonar o conceito de proletariado em Marx, ao contrário, por considerarmos a importância de tratar da parte sem negar o todo, buscamos entender as particularidades concretas no movimento do capital e suas expressões na formação social brasileira. Para isso, consideramos importante investigar as formas particulares de precarização do trabalho no século XXI, no sentido de entender as heterogêneas condições de vida presentes, trazendo novas problemáticas para compreender como vem se configurando a “superpopulação relativa” ou o “exército industrial de reserva” (EIR)3 (MARX, 2011a, 2011b) perante a nova organização do trabalho que compõe o regime de acumulação flexível (HARVEY, 1992).

A partir de meados da década de 1970, na temporalidade histórica da crise estrutural do capital, ocorreu a implosão do fordismo-keynesianismo, que, somado à austeridade neoliberal, explicitou com vigor o colapso do WelfareState e a crise do emprego com a ampliação da precariedade salarial no “núcleo orgânico” do sistema mundial do capital. Corrói-se, dessa maneira, o lastro de compatibilidade entre capitalismo e bem-estar social. Desde então, uma parcela ampla de trabalhadores assalariados não consegue se inserir no mercado de trabalho com o mínimo de garantias trabalhistas, sendo excluídos da cidadania salarial. Ao mesmo tempo, intensificou-se e ampliou-se, de modo exacerbado, a manipulação da vida social, tanto no consumo quanto na produção de mercadorias (CASTEL, 1998).

Nesse contexto, Castel (1998) trata de um fenômeno que se manifesta com intensidade e amplitude nos países centrais e se vincula historicamente à etapa de crise estrutural do capitalismo e à hegemonia do capital financeiro. Seria uma crise de mobilidade social que se manifesta pela primeira vez na história da Europa moderna, em que a geração de filhos de trabalhadores assalariados estáveis não consegue manter, pelo menos, o padrão de vida dos pais.

Para alguns intelectuais europeus, como Robert Castel, com o modelo fordista-keynesiano do pós-guerra, o proletariado teria se transformado no salariato, sujeito de direitos portador de cidadania. No entanto, com a crise do Estado de bem-estar social e o declínio da relação salarial fordista a partir de meados da década de 1970, teria surgido uma “nova” classe social (CASTEL, 1998), e esta seria o precariato. Assim, o termo descritivo “precariado” foi usado pela primeira vez por sociólogos franceses nos anos 1980 para descrever os trabalhadores sazonais; mas a noção de “precariado” se popularizou entre os estudiosos do tema no início dos anos 1990, a fim de descrever o amplo contingente de trabalhadores temporários e sem segurança de vínculo laboral.

Castel, nas Metamorfoses da questão social, ao tratar do declínio da “sociedade salarial” e do surgimento de uma “nova questão social” está se referindo ao contexto europeu, especialmente o francês. Ele entende que o problema não é apenas o da constituição de uma “periferia precária”, mas também o da “desestabilização dos estáveis”, tendo a precarização do trabalho como um processo central. Sua preocupação principal é entender o contemporâneo, identificando similitudes e diferenças entre as antigas situações de vulnerabilidade das massas e a instabilidade do presente. Ou, mais precisamente, “as relações existentes entre a precariedade econômica e a instabilidade social” (CASTEL, 1998, p. 25), buscando detectar os processos que as engendram.

Para o sociólogo francês, não se trataria de uma questão de pauperismo, mas, sim, de precarização, uma vez que, se a “zona de vulnerabilidade”, que associa precariedade do trabalho e fragilidade relacional não for controlada ou reduzida, continuará colocando em risco a coesão social. Além das críticas que possam ser feitas ao autor,4 não há dúvidas que ele coloca questões importantes para o estudo da realidade contemporânea, em vista do movimento geral do capital, da relação de interdependência no mercado internacional e da hegemonia dos grandes centros econômicos.

Castel (1998), de forma pioneira, e Standing (2014), em tempos mais recentes, partem de um mesmo diagnóstico político e compartilham de uma mesma compreensão sociológica. Ao mesmo tempo, ambos têm um olhar que recai sobre os países de capitalismo avançado, restando pouco espaço para analisar as relações trabalhistas nos contextos dos países periféricos, que, certamente, apresentam “condições estruturais mínimas e [...] forma residual do ‘modo de ser burguês.’” (FERNANDES, 1981, p. 69, grifo do autor). Portanto, na leitura desses dois autores evitamos generalizações conceituais em vista de que nosso objeto de estudo está situado em um país em que a “sociedade salarial” não existiu plenamente, como o caso do Brasil, e em uma região, latino-americana, onde a experiência do WelfareState foi (se existiu) muito limitada. Desse modo, ratificamos que a contribuição dos autores citados anteriormente, embora seja importante para nos apropriarmos do movimento geral do capital no tocante à precarização do trabalho, não se aplica da mesma forma para a situação brasileira.

Um autor que traz uma contribuição importante para a análise do conceito de precariado na especificidade da formação social brasileira é Ruy Braga. Ao tratar da expansão do capitalismo nos países centrais e na periferia, e referir-se ao “fordismo periférico”, o sociólogo afirma que:

Trata-se de considerar a existência de um sistema social articulado de relações e produção capitalistas, semicapitalistas e pré-capitalistas, dominadas pelo mercado mundial. Em poucas palavras, o mercado mundial estrutura-se por meio da combinação de economias e nações capitalisticamente desenvolvidas e capitalisticamente subdesenvolvidas em um sistema multilateral autocondicionante. Nesse sistema social dominado pela mundialização das trocas mercantis, a formação do fordismo periférico representou uma das principais mediações históricas entre os países capitalistas avançados e os países capitalistas subdesenvolvidos. (BRAGA, 2012, p. 21).

Com Ruy Braga percebemos que as tentativas de compreender a formação de classes no Brasil são ainda embrionárias, mas é quase unânime entre pesquisadores do campo o entendimento de que os trabalhadores brasileiros lutam por efetivar direitos enquanto os dos países centrais se mobilizam para conservar direitos sociais. Se a precariedade parece estar se transformando em um lugar comum da organização do trabalho (CASTEL, 1998), ameaçando décadas de institucionalização de direitos sociais nos países capitalistas avançados, a verdade é que aqui ela nunca deixou de ser regra.

A classe trabalhadora brasileira sempre foi precarizada, fruto das particularidades do capitalismo dependente brasileiro que reproduz uma precarização constante como forma de acumulação do capital. Aqui, conforme esclarece Fernandes (1981), o caráter de dependência ao mercado internacional se realiza em relações de dominação do trabalho interna e externa, articuladas, de forma que conjugam crescimento econômico dependente com miséria e exclusão despótica, além da ausência de direitos. A formação da superpopulação relativa - que é inerente à acumulação do capital como forma de extrair mais valor por meio do rebaixamento do valor da força de trabalho vivo - tem dimensões muito mais alargadas e implicações mais profundas dado ao grande segmento da classe trabalhadora pauperizada.

Conforme afirma Braga (2014, p. 1), analisando a exploração do trabalho na contemporaneidade:

A ausência de um sentido de carreira, de identidade profissional segura e de direitos trabalhistas, são traços que,grosso modo, sempre estiveram presentes na própria definição da força de trabalho fordista no Brasil. E estas características continuam presentes nos dias de hoje. Apenas para efeitos comparativos, entre 2003 e 2010, um período marcado por flagrante crescimento econômico com formalização do emprego, a atual taxa de informalidade do trabalho no Brasil ainda é de 44%. Vale lembrar que, no sul da Europa, mesmo após cinco anos de forte crise econômica, esta taxa gravita em torno de 20%.

Na defesa de que o EIR é uma condição permanente do movimento do capital, buscando pensar o capitalismo na periferia Ruy Braga, no seu livro A política do Precariado: do populismo à hegemonia lulista, traz uma definição aproximada àquela de Guy Standing. Todavia, o sociólogo brasileiro critica alguns pontos da visão do economista inglês, salientando que o precariado não é exterior à relação salarial que caracteriza o modo de produção capitalista. Isto é, na visão de Braga (2012) o precariado pertence, sim, à classe social do proletariado, constituindo, desse modo, o “proletariado precarizado”.

A necessidade de definir os limites gerais do precariado faz com que o autor os diferencie dos “setores profissionais”, ou seja, aqueles grupos mais qualificados, melhor remunerados e, por isso mesmo, tendencialmente mais estáveis, da classe trabalhadora. Em suma, Braga (2012, p. 19), à luz da lei geral de acumulação do capital, identifica o precariado “com a fração mais mal paga e explorada do proletariado urbano e dos trabalhadores agrícolas, excluídos a população pauperizada e o lumpemproletariado, por considerá-la própria à reprodução do capitalismo periférico.”

Alves (2013), que também busca definir o conceito, enxerga o precariado como uma camada social da classe do proletariado e também não a isola no plano categorial, como faz Standing (2014); portanto, não vê o precariado como uma “nova classe social”. No entanto, o autor é um dos adeptos de que, no século XXI, o proletariado como classe social amplia-se e diversifica-se, cada vez mais, no plano sociológico. Ao buscar uma definição, afirma que o precariado é constituído pela “camada social de trabalhadores jovens-adultos altamente escolarizados, desempregados ou possuindo vínculos de trabalho precários.” (ALVES, 2013, p. 199).

Segundo o autor, o precariado se distingue de outras camadas sociais da classe do proletariado, como, por exemplo, “a camada social dos trabalhadores assalariados ‘estáveis’, em sua maioria organizada em sindicato ou organizações profissionais e que tem acesso a benefícios e direitos trabalhistas, além de perspectiva de carreira profissional e consumo.” (ALVES, 2013, p. 199, grifo do autor). Ao fazer uma delimitação precisa, o autor afirma que o conceito de precariado implica o cruzamento das determinações de ordem geracional, educacional e salarial, sendo desse modo constituído por:

[...] jovens-adultos na faixa etária dos 20-40 anos, altamente escolarizados e “pobres” na acepção convencional, isto é, objetivamente inseridos em estatutos salariais precários. Portanto, eles são jovens-adultos, cultos e pobres: eis os traços distintivos dos homens e mulheres assalariados que constituem a camada social do precariado. Por serem jovens-adultos altamente escolarizados, eles possuem uma carga de expectativas, aspirações e sonhos de realização profissional e vida plena de sentido. (ALVES, 2013, p. 200).

Para Alves (2013, p. 205), “o precariado tornou-se alvo privilegiado da manipulação insana e sutil que visa reciclar expectativas frustradas de carreira profissional.” Segundo o autor, na contemporaneidade há uma ânsia do capital “pela juventude que trabalha, tendo em vista que os jovens operários e empregados têm uma plasticidade adequada às novas habilidades emocionais (e comportamentais) do novo mundo do trabalho.” (ALVES, 2007, p. 91).

Partindo das colocações postas até aqui, nesta primeira parte do artigo, buscamos analisar as obras e as teses de alguns autores que têm em comum o tema do precariado, assim como o surgimento do conceito na realidade europeia e a concepção dos autores brasileiros que têm utilizado o termo. Apesar das diferentes realidades observadas, das diversas filiações teóricas, políticas e metodológicas de tais autores, constatamos - com o respaldo dos argumentos - que entre as muitas formas como é definido, o precariado está longe de ser homogêneo. Desse modo, fica difícil a apropriação de uma das visões por julgá-la mais correta e apropriada para traçar um delineamento das especificidades de nosso País.

Assim, tomamos de empréstimo a sociologia europeia francesa e inglesa (especialmente Castel e Standing), assim como a concepção de autores que discutem o conceito de precariado em condições mais aplicáveis à realidade brasileira. Nos apoiamos especialmente em Braga (2012) e Alves (2013), que, embora não tenham análises necessariamente confluentes, nos oferecem elementos cruciais para a caracterização do conceito; o primeiro por ver o “proletariado precarizado” como parte da superpopulação relativa ou exército industrial de reserva (MARX, 2011a, 2011b) e caracterizá-lo como os trabalhadores mais explorados, com salários mais baixos e semi-qualificados; e o segundo por fazer um corte sociológico geracional e identificar o precariado enquanto uma “camada social”, uma fração de classe do proletariado. Em suma, tanto o precariado como “proletariado precarizado” (BRAGA, 2012) quanto como uma “camada social do proletariado” (ALVES, 2013) nos trouxe elementos importantes para pensar o trabalho docente e o que estamos chamando de precariado professoral, conforme é desenvolvido a seguir.

3 PRECARIADO PROFESSORAL: A MASSA FLUTUANTE DE PROFESSORES INSTÁVEIS

Ainda que a abordagem a respeito da precarização do trabalho docente seja alvo de diversas pesquisas nos últimos anos (OLIVEIRA, 2004; SILVA, 2017, 2018; SOUZA, 2012, 2013) destacamos que essa precarização não é homogênea, ao contrário, ela apresenta muitas diferenças, sobretudo entre aqueles que atuam no setor público. A precarização perpassa o setor estável do professorado nas redes públicas de educação básica sob as mais diferentes nuances e perspectivas, no entanto, ela é ainda mais intensa nos estratos de trabalhadores docentes que vivenciam as condições mais desprovidas de direitos e em condições de instabilidade cotidiana, dada pelo trabalho temporário, contratos de tempo parcial, por hora, entre outros. Sob essa condição da precarização, o estranhamento assume a forma ainda mais intensificada e mesmo brutalizada, pautada pela perda (quase) completa da dimensão de como se constitui o trabalho docente.

As políticas governamentais dos anos 1990, as reformas educacionais e a privatização acentuada vêm contribuindo para exacerbar a expropriação do trabalho docente. Nesse contexto, as formas de contratação precárias por meio do trabalho de tempo parcial, contratos atípicos com benefícios e salários inferiores, foram se infiltrando furtivamente nas redes públicas (SOUZA, 2012; SOUZA; ABREU, 2016; GOMES, 2017).

Mais recentemente, as tentativas de terceirização, pejotização,5 implantação de Organizações Sociais (OS), uberização,6 entre outros meios, ampliaram-se e intensificaram-se no setor público, como constatamos adiante. No geral, todas essas formas e tendências de precarização acabam expandindo, ou pretendendo aumentar o contingente de trabalhadores sem direitos, diferentemente do que caracteriza a relação salarial relativamente segura presente no setor público.

Souza e Abreu (2016) analisam as formas de ingresso na carreira docente no Brasil, por meio dos estatutos e planos de carreira vigentes. Os autores indicam que ocorre uma espécie de caos, pois, ao mesmo tempo que existem legislações nacionais e documentos que tentam resguardar a carreira dos professores, propondo medidas para a sua valorização, permite-se a diversidade na forma e nos critérios de ingresso na carreira docente, já que no País não existe uma carreira única nacional. E isso representa uma fragilização das relações de trabalho, por meio dos vínculos empregatícios instáveis.

No nosso entendimento, esse processo vem criando um precariado professoral crescente. Chamamos de precariado professoral por considerarmos que uma grande parte dos professores possui uma condição diferenciada dos demais docentes que atuam no setor público. Portanto, a necessidade de definir os limites gerais do precariado nos obriga a diferenciá-los dos professores efetivos, ou seja, aqueles grupos concursados, que possuem os direitos trabalhistas, por isso mesmo, tendencialmente mais estáveis, da classe professoral.

Os vínculos atípicos que têm surgido nos últimos anos e se alastraram a partir da década de 1990 nos levaram a identificar o precariado professoral como uma camada do professorado composta por profissionais que vivem sob condições degradantes, aliando sobrecarga profissional, falta de perspectiva de uma carreira com acréscimos salariais ou licenças especiais decorrentes do tempo de serviço, baixa remuneração, insegurança, desamparo, ausência de salário no período de férias, em que não vigora o contrato, falta de reconhecimento e valorização social.

Mas o que nos leva a aplicar a noção de precariado professoral? Será que esse conceito de precariado é necessário para a análise que empreendemos? Acreditamos que a resposta é sim, em vista de encaminhamentos de políticas públicas da educação brasileira que apontam a tendência a intensificar a precarização do trabalho docente, alargando e estendendo as contratações temporárias, eventuais ou em tempo parcial de professores, utilizando-se da terceirização, pejotização e uberização dos contratos de trabalho.

Existem alguns grupos (cada vez maiores) que poderiam constituir o que denominamos de precariado professoral, tendo em mente que nem todos eles se encaixam ali harmoniosamente. A característica identificadora não é, necessariamente, suficiente para indicar que uma pessoa está na condição de precariado. Aliás, conforme demonstramos quando revisamos o conceito, não há uma ideia homogênea a respeito de sua composição, porém, a maioria das pessoas que se encontra em empregos temporários está perto de estar no precariado porque tem baixas rendas comparadas com outros que fazem um trabalho similar e têm oportunidades mínimas em termos ocupacionais. No nosso entendimento, o precariado experimenta a totalidade da força da flexibilidade salarial. Seus salários são mais baixos, mais variáveis e mais imprevisíveis. “A norma para o precariado envolve um ambiente de trabalho em qualquer lugar, a qualquer momento, quase todo o tempo.” (STANDING, 2014, p. 198).

Identificamos o precariado professoral como a fração mais mal paga e explorada dos professores brasileiros, em geral certificada, em sua maioria jovem, em busca de um primeiro emprego no magistério público, em início de carreira ou ainda não formados e que desenvolvem vínculos de trabalho precários; distinto do professorado estável-formal7 que tem organização sindical e possui acesso a benefícios e direitos trabalhistas, além da perspectiva de carreira profissional (SILVA, 2018).

O precariado professoral vem constituindo uma fração ampla e crescente do professorado brasileiro. Essa camada de trabalhadores possui uma alta taxa de rotatividade, condições degradantes de trabalho, baixos salários, ausência de direitos, vivem em situação de insegurança social e econômica, não possuem identidades ocupacionais, são constantemente atraídos e expelidos das redes públicas e vivem constantemente preocupados com seus rendimentos, que podem não existir mais a qualquer momento. Desse modo, o precariado professoral é constituído pelas diversas formas de vínculos precários que já existem nas redes públicas, como os temporários e os eventuais.

O número de professores cujos empregos estão rotulados como temporários tem crescido enormemente em tempos de flexibilização do trabalho docente. “Atualmente existem pelo país 249.782 professores na situação de temporários, que correspondem a 35%, aproximadamente 1/3 de professores em relação aos professores efetivos existentes [nos estados].” (GOMES, 2017, p. 64). Esse tipo de vínculo está previsto em lei, no entanto, tem sido utilizado de forma ampla e crescente pelas redes públicas de ensino de forma a contrariar o seu real objetivo: o de atender à necessidade temporária de excepcional interesse público.

O aumento dos contratos temporários nas redes públicas de ensino, chegando em alguns estados a ultrapassar o número de trabalhadores efetivos (GOMES, 2017; SILVA, 2018), tem vindo acompanhado do rebaixamento do valor-mercadoria-trabalho docente, perda de garantias trabalhistas e previdenciárias que tem gerado um quadro de instabilidade e precariedade do emprego no magistério público.

O precariado professoral também é constituído pelos professores eventuais: aqueles cuja contratação informal está aquém da precarização situacional do professor temporário que é admitido por contrato. Além da falta de garantia no emprego e da remuneração insegura, os docentes eventuais carecem de uma identidade baseada no trabalho. O trabalho docente que se concretiza no ensino é expropriado brutalmente, afinal o papel desses professores é manter as turmas realizando atividades previstas em um plano de substituição para professores eventuais, cobrindo as faltas de professores de qualquer disciplina, configurando uma força de trabalho pronta para ser utilizada na exata medida pelo Estado, ou seja, um trabalho intermitente.

A socióloga Aparecida Neri Souza, da Faculdade de Educação da Unicamp, afirma que “os professores eventuais não têm aulas e/ou classes atribuídas, mas sim uma vaga em uma escola, para substituírem faltas de professores.” (SOUZA, 2012, p. 7-8). Eles só são chamados quando têm trabalho e não sabem quanto vão ganhar no final do mês. Como recebem mediante as aulas dadas, não há garantias sequer que sua remuneração atingirá o piso salarial da categoria. A autora caracteriza a situação dos professores eventuais como de “total desprofissionalização”, pois, além de serem ignorados pelos sindicatos, o próprio governo paulista8 omite a sua existência nas estatísticas, visto que “não há dados disponíveis sobre a quantidade de professores eventuais” (SOUZA, 2012, p. 8) já que não possuem vínculo de emprego.

Esse precariado professoral composto pelos docentes temporários e eventuais pode se agravar caso se concretizem as novas tendências que apareceram nos últimos anos (2016-2017), como a terceirização, a pejotização e a uberização, sobre as quais discorremos a seguir.

4 TENDÊNCIAS DE PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE: TERCEIRIZAÇÃO, PEJOTIZAÇÃO E UBERIZAÇÃO

Apresentamos aqui algumas tendências que apareceram nos últimos anos no que tange ao trabalho docente nas redes públicas. São exemplos de iniciativas do poder público de inserir novos mecanismos de contratação de docentes que ultrapassam os limites colocados pelos professores temporários e eventuais, conforme já destacamos. São meios de expropriação do trabalho docente que ultrapassam o limite do que já consideramos inaceitável.

Muitas dessas iniciativas que destacamos a seguir não foram materializadas em razão dos impedimentos dos meios judiciais, por meio da resistência dos trabalhadores da educação por meio dos seus sindicatos ou, ainda, em virtude da resistência dos estudantes mobilizados. No entanto, colocam-se como tendências muito possíveis de serem implementadas em um futuro próximo caso não haja a necessária contestação de tais medidas.

Essas tendências vêm se afirmando pela justificativa de que o País passa por uma crise econômica, com isso os poderes públicos das redes estaduais e municipais devem cumprir com mais rigor a Lei de Responsabilidade Fiscal (BRASIL, 2000).9 Assim, recorrem à terceirização da educação, evitando abrir concursos e tentando privatizar algumas unidades escolares e até as redes como um todo, por meio da gestão privada em convênios com Organizações Sociais (OS). E sob o frágil e insustentável argumento de que a contratação de uma OS garantirá a excelência na educação pública, alguns governos vêm tentando impor a transferência da gestão de escolas públicas para entidades privadas, muitas delas sem idoneidade, experiência ou capacidade em gestão pública (GAWRYSZEWSKI; MOTTA; PUTZKE, 2017).

Em estados como Goiás e Paraíba as tentativas de implantação das Organizações Sociais encontram-se em estágio avançado. O que podemos destacar é que tanto os editais goianos quanto os paraibanos, divulgados em 2016 e 2017, representam um grave acinte à Constituição Federal (BRASIL, 1988) e à Lei n. 9.394/1996 (BRASIL, 1996). Terceirizar a educação, como pretendem e já começaram a fazer esses governos é, primariamente, atestar a imperícia de quem a gerencia. No entanto, o cerne da questão aponta para a falta de compromisso com a lógica social pública, com um modelo de gestão, de trabalho e de educação que combata as desigualdades sociais e dê lugar a um modelo de gestão que privilegia o lucro e esquece as pessoas e seus direitos, transformando a educação em um nicho de mercado sustentado com recursos públicos.

Caso haja a concretização da admissão de professores via OS, abrem-se novas formas de precarização e desvalorização do trabalho docente, despertando discussões jurídicas sobre a viabilidade desse tipo de contratação. Além de confrontar os preceitos constitucionais, com esse tipo de contrato a partir do convênio com as OS seria criada uma categoria de professores totalmente distinta dos concursados. Afinal, com as OS, os funcionários deixam de ser servidores públicos e passam a ser empregados sob o Regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sem direito à estabilidade, ao piso salarial e a planos de carreira.

Além desses projetos em curso, não podemos deixar de destacar um edital lançado em abril de 2017 - coincidentemente ou não, logo após a aprovação da Lei da Terceirização10 - que incentiva a contratação de pessoas com CNPJ.11 O Prefeito do Município de Angelina, localizado na região metropolitana de Santa Catarina, Gilberto Orlando Dorigon (PMDB), resolveu inovar no processo de contratação de servidor para o cargo de professor para dar aulas em duas escolas de ensino fundamental, por meio de publicação de edital12 que lançou o pregão presencial n. 018/2017, tipo de licitação de “menor preço global”.

Trata-se de um tipo de contratação classificada na Lei n. 10.52013 como leilão invertido feito em sessão pública. No dia, hora e local estipulado no preâmbulo do edital n. 018/2017, “os proponentes deveriam estar representados por agentes credenciados, com poderes para formular lances, negociar preços e praticar todos os atos inerentes ao certame.” (ANGELINA, 2017, p. 2). Alguns itens do edital previam que, em caso de empate das melhores propostas ou menor preço, todos os proponentes com o mesmo preço seriam convidados a participar dos lances verbais, ou seja: seria realizado um leilão às avessas, em que seria contratado um professor que oferecesse a força de trabalho pelo menor preço.

O edital referiu-se à contratação pela Prefeitura de prestação de serviços de Instrutor de Atividades Físicas, com carga horária semanal de 20 horas e valor máximo mensal de R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais), com vigência do contrato até o fim do período letivo de 2017, podendo ser prorrogado conforme Lei n. 8.666/93.14 Claramente um caso de “pejotização”. Conforme evidenciado no edital: “as pessoas físicas deverão apresentar os documentos que sejam possíveis e compatíveis com a sua condição, [...] em caso de serem declarados vencedores, terão até 30 (trinta) dias para constituírem empresa jurídica.” (ANGELINA, 2017, p. 3).

Segundo Felipe Boselli, presidente da Comissão de Licitações e Contratos da subseção de Santa Catarina da Ordem de Advogados do Brasil, a medida caracteriza fraude ao concurso público, precarização da atividade e tentativa de fugir das obrigações trabalhistas. Ele exemplifica que nessa modalidade o profissional teria que pagar tributos que chegam a 30% do valor, ou seja, se recebesse R$ 1,2 mil, na prática, ficaria apenas com R$ 840, menos do que um salário mínimo e bem abaixo do piso da categoria, além de abrir mão dos direitos trabalhistas (WEISS, 2017).

O edital em questão referiu-se ao professor como instrutor, mas é preciso esclarecer que, independentemente do título sob o qual o profissional é contratado, é a realidade do contrato de trabalho que define a função de magistério e, por consequência, a categoria diferenciada de docente. Esse tipo de edital foi uma clara tentativa de “pejotização” que buscou contratar ilicitamente um professor como PJ para atuar no serviço público, o que caracteriza fraude ao concurso público, precarização do trabalho e que recorre ao pregão para descumprir os direitos trabalhistas.

Destacamos, por fim, uma tendência que alguns pesquisadores (POCHMANN, 2016; FONTES, 2017), ao discutirem as novas formas de precarização do trabalho, vêm defendendo: que a empresa Uber se tornou uma chave para analisar as transformações contemporâneas do mundo do trabalho. O aplicativo popularizou uma forma de contratação no mundo dos transportes individuais e tem se alastrado em alguns países. “Seu enorme impacto já gerou novos termos, como a ‘uberização das relações de trabalho’ e um verbo, ‘uberizar’.” (FONTES, 2017, p. 54, grifo do autor).

Para Pochmann (2016), há uma grande possibilidade de isso se generalizar para todos os demais setores de atividade econômica. O autor refere-se à “uberização” como a emergência de um novo padrão de organização do trabalho - após o fordismo e o toyotismo - caracterizado pela autonomização dos contratos de trabalho e que, dependendo da resistência dos movimentos contestatórios, pode se generalizar. “É o trabalhador negociando individualmente com o empregador a sua remuneração, seu tempo de trabalho, arcando com os custos do seu trabalho.” (POCHMANN, 2016, p. 17). Na constatação de Pochmann (2016, p. 17): “isso está ganhando uma dimensão crescente nos serviços, mas não deve ficar circunscrito a eles.”

Na educação pública podemos traçar algumas aproximações com projetos que colocam professores que atuam no setor público imersos nessa tendência, pois assistimos recentemente a uberização tentando se inserir por meio das relações contratuais. Em Ribeirão Preto, município do interior de São Paulo, o prefeito Duarte Nogueira (PSDB) pretende implantar um projeto que tem gerado ampla resistência entre os profissionais da educação daquele Município. Segundo notícia veiculada no site do partido em tom de propaganda, o projeto cria um sistema de trabalho cuja ideia é: “Pagar por aulas avulsas aos docentes, sem ligação com o município, sempre que faltarem profissionais na rede municipal de ensino. Apelidado de ‘Uber da Educação’ ou ‘Professor Delivery’, a proposta busca resolver o problema da falta de docentes nas escolas.” (PREFEITURA, 2017, p. 1, grifo do autor).

Apesar de ser divulgado como uma grande ideia para a educação para suprir a falta de professores efetivos, esse projeto se assemelha muito ao dos professores eventuais. As diferenças seriam apenas os meios e instrumentos utilizados para a convocação para o trabalho, que, nesse caso, em razão da proposta de utilização de novas tecnologias, apresenta ares de modernização.

De acordo com o projeto, o professor não teria vínculo empregatício com a prefeitura e o acionamento se daria por aplicativos, mensagens de celular ou redes sociais. Após receber a chamada o professor teria 30 minutos para responder se aceita a tarefa e uma hora para chegar à escola. Caso contrário, outro seria acionado em seu lugar. (PREFEITURA, 2017, p. 1).

A Secretária Municipal de Educação, Suely Vilela, defendeu a importância do projeto e afirmou que o objetivo é “solucionar a grave situação de ausências de professores em sala de aula, motivadas por faltas ou licenças-saúde, em período inferior a 30 dias.” (MOREIRA, 2017). O projeto, segundo ela, foi submetido à consulta da comunidade escolar e está em fase de análise das sugestões enviadas à Secretaria. O projeto teve parecer contrário do Conselho Municipal de Educação, que afirmou que “a alternativa terá lacunas do ponto de vista qualitativo e criará regime laboral precário.” (MOREIRA, 2017). Apesar disso, o órgão recomendou apenas estudos mais aprofundados antes do envio da matéria à Câmara. Os profissionais da educação continuam resistindo, promovendo debates, cuja repercussão tem tomado proporções nacionais.

Esse é o retrato do que estamos definindo de precariado professoral diante de uma formação social, a brasileira, que se constitui em condições sociais periféricas em meio a um processo de desmonte da esfera pública.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao discutirem a “nova morfologia do trabalho” (ANTUNES, 2013), a “precarização estrutural do trabalho” (MÉSZÁROS, 2009) e as formas de precarização que emergem dos processos sociais que surgem na nova temporalidade histórica do capital, alguns autores, dentre os quais destacamos Castel (1998), Standing (2014), Alves (2013) e Braga (2012), resguardadas a heterogeneidade de análise e as diferentes realidades observadas, trazem o conceito de “precariado” para caracterizar uma multidão que vive em situação de insegurança social e econômica.

Em razão disso, realizamos uma breve revisão bibliográfica do conceito, pois este assumiu um destaque entre as categorias mais utilizadas para projetar essas mudanças recentes no mundo do trabalho. Assim, verificamos que, tendo em vista seu incontornável peso social, o precariado esteve presente desde a década de 1970 na agenda de pesquisas da sociologia do trabalho na Europa e mais recentemente também na realidade brasileira, com vários estudiosos que se dedicaram à investigação dos meandros da relação entre a insegurança social e as relações de produção.

Esse debate nos remeteu ao entendimento de que o avanço da expropriação e da precarização a passos largos em todo o mundo não é uma novidade. Ele expressa o que Marx definiu como “Lei geral de acumulação do capital”, pois a precariedade laboral é um traço ineliminável de mercantilização do trabalho. No entanto, o crescimento da superpopulação relativa, merece uma atenção específica, visto que se trata da necessidade de entender o movimento do capital no contexto das políticas neoliberais, da mundialização do capital,que impulsiona com vigor a deterioração das condições gerais de vida e de trabalho da classe trabalhadora.

É necessário entender que nessa superpopulação relativa se encontram os segmentos intermitentes, aqueles que estão sujeitos às oscilações cíclicas e eventuais de absorção e repulsa do trabalho dada a dinâmica de mercado. E nela inclui-se a parcela de trabalhadores ativos com ocupações irregulares e eventuais: os precarizados, temporários, com jornada máxima e mínimo salário.

Nesse contexto, buscamos apontar a forma como as recentes mudanças no mundo do trabalho afetam as instituições escolares, apontando para uma expropriação acentuada e constituindo o trabalho docente sob uma precarização crescente nos aspectos concernentes às relações de emprego. Esse cenário deteriorado se intensifica ainda mais com os vínculos de trabalho dos professores não efetivos, como os temporários, os eventuais ou em tempo parcial, mas também pela possibilidade da terceirização, pejotização e uberização.

Assim, ao analisarmos algumas formas de expropriação que rondam a profissão docente no tempo presente, identificamos diversas frações do professorado que atuam no setor público. Por certo, há alguns setores mais precarizados que outros, porém cada qual com um tipo específico de precarização. Nesse sentido, demonstramos parte da atual onda de precarização do trabalho docente, dado que o poder público faz o uso da força de trabalho fora das condições contratuais e salariais determinadas pelo estatuto dos servidores públicos.

As formas existentes de precarização do trabalho docente, junto às tendências que têm surgido nos últimos anos, nos levaram a identificar esses professores como o precariado professoral, pois são profissionais que vivem sob condições degradantes e aliam sobrecarga profissional, falta de perspectiva de uma carreira com acréscimos salariais ou licenças especiais decorrentes do tempo de serviço, baixa remuneração, insegurança, desamparo, ausência de salário no período de férias, em que não vigora o contrato, falta de reconhecimento e valorização social. Contudo, o medo do desemprego e a necessidade de assegurar a sobrevivência faz com que esses profissionais acabem por aceitar as situações mencionadas.

Este artigo provém de uma pesquisa que também indica que a precarização e a expropriação atingem todas as categorias sociais do mundo do trabalho e não apenas o precariado. No âmbito das redes públicas de ensino, identificamos que os docentes estáveis do setor público também passam por um processo de precarização objetiva e subjetiva que torna seu vínculo empregatício constantemente ameaçado. Todavia, essa abordagem não foi objeto de reflexão neste texto. Aqui sinalizamos a importância de problematizar a composição do precariado professoral em meio ao projeto de desmonte da esfera pública na educação e de expropriação do trabalho docente.

Por fim destacamos que, tendo em vista a precariedade intrínseca ao trabalho docente nas redes públicas de educação estaduais e municipais, o vínculo efetivo do professor é fundamental - e o mínimo a ser garantido - para o processo de formação continuada, motivação e pertencimento que torna a carreira docente portadora de sentido.

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3Na obra O Capital, Marx (2011b) desenvolve a Lei geral de acumulação do capital e identifica uma superpopulação relativa que denomina de exército industrial de reserva (EIR). Trata-se da massa de trabalhadores desempregados ou que se sucumbiram perante a nova divisão social do trabalho, mas que exerce uma funcionalidade na dinâmica da acumulação do capital. Para Marx (2011b, p. 743): “Todo trabalhador dela faz parte durante o tempo em que está desempregado ou parcialmente empregado” e o “exército” de trabalhadores é ampliado pelo “trabalho excessivo da parte empregada da classe trabalhadora.” (MARX, 2011b, p. 738).

4Netto (2001 apud MOTTA, 2012, p. 246, grifo nosso) faz a seguinte observação sobre a concepção de Castel: “inexiste qualquer ‘nova questão social’. O que devemos investigar é, para além da permanência de manifestações ‘tradicionais’ da ‘questão social’, a emergência de novas expressões da ‘questão social’ que é insuprimível sem a supressão da ordem do capital.”

5Uma transferência dos contratos de trabalhos assalariados para os de Pessoa Jurídica (PJ). Trata-se de um desvirtuamento, pois se propõe a desvincular o trabalhador de sua qualidade de empregado, com as garantias mínimas existentes, para, então, submetê-lo a ser contratado na qualidade de prestador de serviços, como pessoa jurídica, na maioria das vezes, sem direitos trabalhistas.

6Alguns autores, entre eles Slee (2017) e Fontes (2017) estão chamando de “uberização”, fenômenos associados, complementares e concorrentes, destinados às formas de extração de mais-valia mediante a da exploração baseada em um controle político e ideológico de novo tipo sobre a força de trabalho. São reestruturações que se inserem na própria dinâmica do capitalismo do século XXI por meio de formas que reduzem os custos da força de trabalho, ampliam a precarização das profissões e a intensificação do trabalho de forma perversa, pois se baseiam na dificuldade da condição de reprodução do trabalhador, fazendo com que se submeta a qualquer forma de ocupação que gere renda para sua subsistência.

7Para demonstrar as “múltiplas formas de precarização” existentes nas redes públicas municipais e estaduais de educação básica, Silva (2018) tratou da precarização que atinge o “professorado estável-formal”. Resgatamos esse estudo no sentido de demonstrar que a precarização acentuada não atinge somente aquela camada que denominamos de precariado professoral, ela também desestabiliza os estáveis, flexibiliza o trabalho, corrói carreiras e leva a um alto índice de afastamento por doenças psíquicas no corpo docente concursado.

8A Rede Estadual de São Paulo foi pioneira nesse tipo de contrato precário; todavia, a contratação de professor eventual não se resume a essa Rede de Ensino. Em 2017, a Prefeitura de Petrolina, por meio do Credenciamento n. 006/2017, previu a contratação de professores eventuais, e conforme o edital: “A remuneração de cada contratado será de acordo com os dias comprovadamente trabalhados e oficialmente encaminhados ao setor competente” e “o contratado poderá trabalhar em regime de itinerância de acordo com a necessidade do contratante.” (PETROLINA, 2017, p. 6).

9A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101, de 04 de maio de 2000) estabelece, em regime nacional, parâmetros a serem seguidos relativos ao gasto público de cada ente federativo brasileiro. Na prática impõe restrições orçamentárias aos estados e municípios, afetando a aplicação de recursos em diferentes esferas do serviço público.

10Lei n. 13.429/2017 (BRASIL, 2017), que libera a terceirização para todas as atividades de empresas, que poderá na avaliação de especialistas, “levar à redução de concursos públicos na área da educação e fortalecer a administração de escolas por Organizações Sociais (OS), que poderão também cuidar da contratação de professores.” (TOKARNIA, 2017).

11Trata-se de um fenômeno que vem ocorrendo, geralmente em atividades tidas como intelectuais. É uma forma de tentar camuflar o vínculo empregatício entre empregado e empregador, valendo ressaltar a vulnerabilidade do trabalhador como elemento a ser considerado na aceitação dessas situações.

12O edital foi retirado da página da Prefeitura dias depois de ter sido divulgado.

13Lei que institui, no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, nos termos do art. 37, inciso XXI da Constituição Federal, modalidade de licitação denominada pregão, para aquisição de bens e serviços comuns, e dá outras providências.

14Lei que regulamenta o art. 37, inciso XXI da Constituição Federal, e institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.

1 Doutora e Mestra em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

2Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestra em Educação pela Universidade Federal Fluminense.

Recebido: 12 de Março de 2019; Aceito: 12 de Agosto de 2019

Endereços para correspondência: Rua Dr. Catrambi, 11, apto. 306, Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil; amandamoreira.uerj@gmail.com

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