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Roteiro

versão On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.45  Joaçaba jan./dez 2020  Epub 20-Abr-2020

https://doi.org/10.18593/r.v45i0.20259 

Artigos de Demanda Contínua

Formação de professores: desafio da pesquisa como prática pedagógica

Formación de profesorado: desafío de la investigación como práctica pedagógica

Teacher training: challenge of research as a pedagogical practice

Cristiane de Almeida1I  , Bolsista CAPES
http://orcid.org/0000-0003-1359-1471

Eva Teresinha de Oliveira Boff2II  , Professora
http://orcid.org/0000-0002-7266-9630

Anemari Roesler Luersen Vieira Lopes3III  , Professora
http://orcid.org/0000-0002-4636-9618

I Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria, Departamento do Programa de Pós-graduação em Educação, Bolsista CAPES

II Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande, Departamento de Ciências da Vida, Professora

III Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria, Departamento de Metodologia do Ensino, Professora


Resumo:

O objetivo deste artigo foi analisar um processo interativo de formação de professores desenvolvido em uma escola de Educação Básica do Estado do Rio Grande do Sul (RS), permeado pela pesquisa. Constituiu-se um grupo de estudos com professoras da área de Ciências da Natureza, que planejaram e desenvolveram aulas para três turmas do Segundo Ano do Ensino Médio, com foco na proposta de (re)organização curricular denominada Situação de Estudo (SE), que tem como aporte teórico o referencial histórico-cultural, com sua base principal em Vigotski. Investigou-se, neste processo, as possibilidades de articulação dos conteúdos escolares com temáticas consideradas relevantes socialmente. Da análise dos dados emergiram três categorias: Pesquisa como princípio pedagógico; Pesquisa como princípio educativo; e Articulação dos conteúdos escolares com as pesquisas dos estudantes. Os dados produzidos trouxeram indícios de que o processo interativo contribuiu na construção de aprendizagens dos estudantes e das professoras, uma vez que, ao modificarem sua prática pedagógica para melhor orientar os discentes em suas pesquisas, também fizeram investigação, considerando a pesquisa como princípio pedagógico e educativo.

Palavras-chave: Ensino de Ciências da Natureza; Formação de professores; Teoria histórico-cultural.

Resumen:

El objetivo de este artículo fue analizar un proceso interactivo de formación docente, desarrollado en una escuela de Educación Secundaria del Estado de Rio Grande do Sul (RS, Brasil), impregnado por la investigación. Se constituyó un grupo de estudio con profesores del área de Ciencias Naturales, quienes planificaron y desarrollaron su docencia para tres clases del segundo curso de Educación Secundaria, enfocándose en la propuesta de (re)organización curricular llamada Situación de Estudio (SE), cuyo apoyo teórico central es el referente histórico-cultural basado en la perspectiva de Vigotski. En la investigación se analizaron las posibilidades de articular contenidos escolares con temas socialmente relevantes. Del análisis de datos emergieron tres categorías: Investigación como principio pedagógico; Investigación como principio educativo; y Articulación de los contenidos escolares con la investigación del alumnado. Los datos producidos mostraron que el proceso interactivo contribuyó al aprendizaje de estudiantes y docentes; debido a que el profesorado, al modificar su práctica pedagógica para guiar mejor a los estudiantes en su investigación también realizaron investigaciones, lo que llevó a considerar a la investigación como un principio pedagógico y educativo.

Palabras-clave: Docencia en Ciencias Naturales; Formación de profesorado; Teoría histórico-cultural.

Abstract:

The aim of this article was to analyze an interactive process of teacher education, developed in a school of basic education in State in Rio Grande do Sul (RS, Brazil), permeated by the research. A study group was set up with teachers from the area of Natural Sciences, who planned and developed classes for three courses of the second year of High School, focusing on the proposed (re)organization called Study Situation (SS), which has as contribution theoretical and historical-cultural referential, with its bases in Vigotski. We investigated the possibilities of articulating the school contents with socially relevant themes. From the data analysis emerged three categories: Research as pedagogical principle; Research as an educational principle; Articulation of school contents with student research. The data produced showed signs that the interactive process contributed to learning for students and teachers; because teachers, when modifying their pedagogical practice to better guide students in their research, also did the research; and thus carried out the research as a pedagogical and educational principle.

Keywords: Teaching of Natural Sciences; Teacher Training; Historical-cultural theory.

1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo foi o de analisar um processo interativo de formação de professores desenvolvido em uma escola de Educação Básica do Estado do Rio Grande do Sul (RS), permeado pela pesquisa. Investigou-se, neste processo, as possibilidades de articulação dos conteúdos escolares com temáticas consideradas relevantes socialmente. O foco das discussões foi orientado pelos pressupostos teóricos e metodológicos da proposta de (re)organização curricular denominada Situação de Estudo (SE). A SE foi originada no coletivo de professores e estudantes vinculados ao Grupo Interdepartamental de Pesquisa sobre Educação em Ciências (Gipec) da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul em Unijuí. A mesma visa a propiciar a contextualização dos conteúdos escolares e a valorização dos conhecimentos de vivências de docentes e discentes, com prioridade em estudos e significação dos conceitos científicos, articulados com processos de formação docente permanente (MALDANER; ZANON, 2004; MALDANER, 2007).

O referencial teórico que fundamenta a SE pauta-se na abordagem histórico-cultural, com sua base principal em Vigotski, que defende que é na reconstrução teórica do real que os conceitos científicos se enriquecem de vivência e seus significados evoluem, enquanto os conceitos do cotidiano se reorganizam em direção à abstração, despregando-se, sempre mais, dos conhecimentos espontâneos (VIGOTSKI, 2008, 1993). “É essa vivência trazida para dentro da sala de aula que dinamiza e articula as inter-relações entre saberes, temas, conteúdos, conceitos, procedimentos, valores, atitudes, nos contextos de interação interdisciplinar, em uma situação de estudo.” (MALDANER; ZANON, 2004, p. 49).

Assim, consideramos fundamental discutir com professores sobre a formação de conceitos, visando à organização do ensino na perspectiva de que os estudantes possam atribuir novos sentidos aos conceitos trazidos de seu cotidiano e, no processo de internalização, se apropriem de modos de compreensão do mundo em que vivem, apoiados em conceitos científicos. Estes e outros argumentos, ao perpassarem pelas discussões em um coletivo de professores de diferentes áreas e níveis de conhecimento, contribuem para uma formação docente crítica.

A SE apresenta-se como uma proposta curricular aberta, que orienta para trabalhar com temáticas que envolvem situações reais presentes no contexto dos docentes e discentes. (MALDANER; ZANON, 2004). A elaboração da SE parte de diálogos entre os sujeitos envolvidos, configurando-se em um processo de formação docente contínua, podendo ser estruturada com base em quatro momentos: a elaboração da SE no coletivo, ou seja, docentes pesquisadores do Ensino Superior e/ou Pós-graduação, estudantes da Pós-graduação e/ou Graduação e docentes da Educação Básica; desenvolvimento da SE com estudantes da Educação Básica; reflexão sobre o processo formativo; e reelaboração de ações por meio das contribuições adquiridas após o desenvolvimento da SE (PANSERA-DE-ARAÚJO; AUTH; MALDANER, 2007).

Entendemos como importante que os conteúdos escolares estejam articulados à realidade objetiva dos estudantes e às possibilidades de entendimento do mundo em geral, o que também pode ser proporcionado pela pesquisa na prática pedagógica. Nem sempre, porém, a formação dos docentes - em especial os da área de Ciências da Natureza que, normalmente, acontece de forma fragmentada e desprovida de articulação dos conhecimentos científicos com a prática do cotidiano - prepara-os para trabalhar nessa lógica. Na contramão desse modelo tradicionalmente instituído, constituímos um processo coletivo de formação contínua de professores no ambiente escolar, na perspectiva de produzir reflexões que pudessem contribuir para a transformação do fazer pedagógico que envolveu uma estudante da Pós-graduação, três docentes da Educação Básica e uma docente pesquisadora da Pós-graduação. Denominamos esse movimento de processo interativo, uma vez que foi constituído a partir da premissa de que a interação fosse seu mote orientador, compreendendo que a interação entre os sujeitos é que vai permitir a apropriação de novos conhecimentos produzidos coletivamente.

Os dados empíricos apresentados no presente trabalho foram norteados pela seguinte questão central: Que contribuições podem ser produzidas por meio de um processo interativo de formação contínua de professores para articular os conteúdos escolares com pesquisas realizadas por estudantes do Ensino Médio?

2 CAMINHOS METODOLÓGICOS

A pesquisa a que se refere este artigo foi realizada em uma escola pública estadual do interior do Estado do Rio Grande do Sul, com a participação de três professoras da área de Ciências da Natureza (Biologia, Física e Química), uma mestranda do programa de Pós-graduação em Educação nas Ciências (Unijuí), graduada em Licenciatura em Química, e uma professora pesquisadora da Unijuí, que planejaram e desenvolveram aulas para três turmas do Segundo Ano do Ensino Médio. Os dados empíricos foram produzidos em encontros realizados com as docentes e em aulas desenvolvidas nas disciplinas, por meio de gravações em áudio e/ou vídeo, registros de diário da mestranda, bem como textos produzidos pelas docentes sobre as ações desenvolvidas no coletivo e em sala de aula.

Os pressupostos metodológicos tiveram como base a modalidade de pesquisa-ação, conforme proposto por Carr e Kemmis (1988), realizado por meio de uma espiral de ciclos autorreflexivos. Uma espiral consiste no planejamento de mudanças, na ação e na observação do processo e das consequências dessas mudanças, na perspectiva de contribuir na transformação da prática pedagógica, tomando-se a concepção dialógica como a organizadora do pensar e agir na prática educativa e do refletir e autorrefletir no coletivo. O ciclo autorreflexivo iniciou com a constituição do grupo de docentes no espaço escolar, o qual discutiu e planejou ações como possibilidades de trabalhar com a pesquisa na prática pedagógica com base em SE. A reflexão, os estudos, os planejamentos e o desenvolvimento das ações, aconteceram coletivamente, antes da ação, durante a ação e depois da ação, em um ciclo contínuo.

Levando em consideração o tema geral da escola relacionado com “Esportes”, as professoras da área de Ciências da Natureza decidiram por trabalhar, com turmas do Segundo Ano do Ensino Médio, com a temática “Alimentação” (envolvendo o Esporte). A perspectiva da escolha de uma temática para a área e somente em um dos Anos do Ensino Médio, foi de possibilitar o trabalho interdisciplinar e fazer a articulação dos conteúdos escolares com pesquisas que os estudantes desenvolveram. A pesquisa na prática pedagógica foi uma estratégia do currículo escolar como uma maneira de contribuir com a formação pela pesquisa e, assim, proporcionar autonomia para os discentes na construção de novos conhecimentos, tendo em vista a formação de cidadãos críticos e conscientes com as questões que envolvem o seu entorno.

Em relação à pesquisa escolar, Demo (1999, p. 82) afirma que:

O conceito de pesquisa é fundamental, porque está na raiz da consciência crítica questionadora, desde a recusa de ser massa de manobra, objeto dos outros, matéria de espoliação, até a produção de alternativas com vistas à consecução de sociedade pelo menos mais tolerável.

Assim, foram realizados oito encontros coletivos com as professoras da área de Ciências da Natureza, com estudos e planejamento de ações a serem desenvolvidas com os estudantes relacionadas à temática da área. Os estudantes do Segundo Ano do Ensino Médio também fizeram pesquisas bibliográficas sobre a alimentação de atletas, buscando informações sobre o assunto na comunidade em que eles viviam e ampliando para atletas do nosso país, bem como de outros países.

Da análise dos dados deste trabalho emergiram três categorias que nortearam a análise: pesquisa como princípio pedagógico; pesquisa como princípio educativo; e articulação dos conteúdos escolares com as pesquisas dos estudantes.

Os diálogos dos sujeitos envolvidos na pesquisa estão expressos em quatro episódios que, embora tenham sido organizados em uma sequência, nem sempre ocorreram no mesmo momento, pois estes não são retilíneos, visto que se trata de diversos interlocutores com desejos e compreensões distintas, ocasionando a interrupção em alguns momentos e continuidade em outros. Segundo Carvalho (2006), os episódios são constituídos por um conjunto de cenas que se assemelham à montagem de um filme que se completa ao longo do processo de seleção. Os mesmos foram enumerados em uma sequência de números (1, 2, 3, 4) que identifica as diferentes cenas, que também podem ser interrompidas com representações por parênteses (...). Os textos produzidos pelas professoras sobre a reflexão da prática pedagógica e sobre o trabalho coletivo durante o processo interativo, foram enumerados em uma sequência de letras em ordem alfabética (a, b, c, d, e, f).

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa/Unijuí, com parecer consubstanciado n. 486.353. Foram adotados os procedimentos descritos na resolução do CNS (Conselho Nacional de Saúde) n. 466/2012, a fim de atender os aspectos éticos de pesquisa com seres humanos. Para preservar a identidade dos sujeitos envolvidos utilizamos códigos de identificação, sendo D para as docentes de Educação Básica (D1, D2, D3), M para a mestranda e DP para a docente pesquisadora.

3 FORMAÇÃO DOCENTE E A PRÁTICA PEDAGÓGICA

Ao desenvolver esse processo de organização do ensino, envolvendo docentes em formação contínua no contexto escolar, constituímos um espaço de diálogo, pesquisa, planejamento e reflexão, numa perspectiva de mudanças na prática pedagógica. Propomos a SE como uma possibilidade de construção de novas abordagens dos conteúdos escolares, mediante discussões fundamentadas em teorias da área de Ciências da Natureza e na pesquisa enquanto princípio educativo e pedagógico. A SE contribui para a formação docente na medida em que se configura como uma proposta de (re)organização curricular que visa a superar a linearidade dos conteúdos escolares e a fragmentação que, geralmente, caracterizam a forma tradicional do ensino dessa área do conhecimento (MALDANER; ZANON, 2004; MALDANER, 2007; 2000; BOFF, 2011).

Os trabalhos que apresentam a SE como proposta de formação pela pesquisa, tanto de professores quanto de estudantes, propiciam a formação de um docente pesquisador de seu fazer pedagógico, pois permite a autoria compartilhada do currículo desenvolvido por ele. O “sentido atribuído ao professor pesquisador se refere ao permanente olhar reflexivo sobre sua aula, seu aluno, seu fazer cotidiano escolar, em parceria com seus colegas e colegas mais experientes.” (BOFF; DEL PINO, 2018, p. 80). Faz-se menção ao professor que percebe seu estudante como sujeito histórico-cultural que modifica e é modificado pelo contexto social em que vive e, por isso, desenvolve suas faculdades mentais superiores pela mediação de outros (VIGOTSKI, 2008).

Concordamos, também, com Nóvoa (1992), quando afirma que os cursos de formação que melhor contribuem para a formação profissional dos docentes são os que constituem espaços que propiciam práticas coletivas compartilhadas, pois, dessa forma, colaboram para a emancipação profissional e pessoal e para a consolidação de uma profissão que é autônoma na produção dos seus saberes e valores. Nesta perspectiva, a formação continuada é um espaço para a reflexão e a participação ativa dos docentes.

A partir desses pressupostos, foi realizado esse processo formativo na escola de Educação Básica, que iniciou com um encontro envolvendo as três docentes da área de Ciências da Natureza (D1, D2, D3), a mestranda (M) e a docente pesquisadora (DP). O debate focou na SE como estratégia de (re)organização do ensino e formação docente, conforme expresso no episódio 1, que explicita a fala da DP.

Episódio 1: A SE prioriza um processo de formação docente, portanto, não é algo que está pronto, ou que o professor vai simplesmente aplicar aquilo que está no livro didático, mas prioriza a formação docente, na medida em que se organiza o currículo escolar, e essa organização nós chamamos de SE. A SE significa situar o estudo dos conceitos disciplinares em um contexto de relevância social. A SE precisa partir de uma temática que seja de vivência dos estudantes, que seja de relevância social e cultural, e possibilite trabalhar os conteúdos disciplinares de forma interdisciplinar. Outra coisa, que se destaca, é que precisa ocorrer em um processo dialógico, ou seja, não é eu vir aqui dizer o que vocês devem fazer, mas dialogar e ver quais são as necessidades que cada um tem, e é por meio desses diálogos que pode se produzir conhecimento e reconstruir aquilo que já está sendo trabalhado. (informação verbal).

O episódio expressa a intenção de apresentar as principais ideias da SE como uma proposta de ensino que visa articular o estudo dos conteúdos escolares com um contexto real, como já citado, relevante social e culturalmente. A construção no coletivo, em assimetria, possibilita a formação pela pesquisa e a realização de um trabalho interdisciplinar. A interdisciplinaridade é uma das características fundamentais no processo de desenvolvimento de uma SE, com vistas a “uma nova forma de inclusão das Ciências na Educação Básica, com acesso a importantes e novas linguagens constitutivas de pensamentos mais abertos e fecundos” (MALDANER, 2007, p. 115). O trabalho coletivo contribui para a produção de sentidos ao fazer pedagógico, permitindo a transformação nas práxis docentes pela autoria compartilhada da sua atividade de ensino.

Foi partindo de discussões no coletivo de docentes da área de Ciências da Natureza (Biologia, Física, Química) que emergiu a temática “Alimentação” envolvendo os “Esportes” (relacionado ao tema geral da escola), para a organização do ensino para as três turmas do Segundo Ano do Ensino Médio. Inicialmente, foram planejadas algumas questões, que permitiu problematizar com os estudantes situações de suas vivências, com a intencionalidade de despertar neles a necessidade de estudo e investigação sobre a temática (Esportes-Alimentação), tais como: Quais os nutrientes que não podem faltar na nossa alimentação diária? Quais os problemas de saúde decorrentes de uma alimentação inadequada? Dê que são constituídos os alimentos consumidos pelos atletas? Que quantidade de calorias os atletas necessitam? Quais os suplementos alimentares presentes na dieta dos atletas? Qual a composição dos suplementos? Qual a diferença entre suplemento alimentar e suplemento vitamínico? Quais são os alimentos proibidos para atletas?

A partir dessas questões respondidas pelos discentes, foram discutidos problemas de pesquisas a serem desenvolvidas. Os estudantes, em pequenos grupos, escolheram seus subtemas de investigação, tais como: Alimentação adequada para os atletas de futebol; Suplementos alimentares presentes na dieta alimentar de atletas; Alimentos proibidos para atletas; Saúde e Nutrição dos atletas brasileiros; Os tipos de alimentos mais indicados para a saúde dos atletas. Às professoras coube a função de desenvolver seus conteúdos disciplinares relacionados a esses subtemas, de modo interdisciplinar, com o objetivo de contribuir com os estudantes nessas pesquisas.

Para sustentar teoricamente a análise dos diálogos decorrentes do processo formativo, buscamos apoio no referencial histórico-cultural com base em Vigotski (2008, p. 115), o qual afirma que:

O aprendizado escolar induz o tipo de percepção generalizante, desempenhando assim um papel decisivo na conscientização da criança dos seus próprios processos mentais. Os conceitos científicos, com o seu sistema hierárquico de inter-relações, parecem constituir o meio no qual a consciência e o domínio se desenvolvem, sendo mais tarde transferidos a outros conceitos e a outras áreas do pensamento. A consciência reflexiva chega à criança através dos portais dos conhecimentos científicos.

Concordando com o autor, entendemos que os conhecimentos científicos são importantes e necessários para o desenvolvimento mental dos sujeitos. Eles fazem parte da base do currículo, e é por meio deles que os estudantes tomam consciência do cotidiano para melhor transformá-lo. Assim, os conceitos disciplinares precisam ser estudados, pois um dos objetivos da escola é fornecer a base do conhecimento científico e relacioná-lo com os conhecimentos cotidianos, de modo a considerar as questões sociais, culturais e de relevância para o aprendizado escolar. Nesta abordagem, realizar pesquisa, sem aprofundá-la com os conhecimentos científicos, faz com que o discente não desenvolva a sua consciência crítica em relação ao que se está analisando.

Para efetivar um ensino com base nos argumentos de Vigotski (2008), o grupo interativo organizou uma síntese de nexos conceituais relacionados com a temática “Alimentação” (Diagrama 1), envolvendo os conteúdos escolares das três disciplinas da área, que foram estudados com as turmas do Segundo Ano do Ensino Médio. O objetivo de construir a síntese com os nexos conceituais foi de que as docentes não deixassem de trabalhar os conceitos científicos e conseguissem perceber que, a partir de uma temática, é possível envolver vários conteúdos de forma interdisciplinar, e que não precisam ser trabalhados de modo linear.

Fonte: Docentes da área Ciências da Natureza

Diagrama 1 -  Síntese dos Nexos Conceituais da Área Ciências da Natureza considerando a temática “Alimentação” 

Os conteúdos e conceitos que se apresentam nesta síntese dos nexos conceituais foram ressignificados em vários momentos, não de forma isolada, mas, sim, de modo interdisciplinar e contextualizado, em que os conceitos das três disciplinas se relacionam e se interconectam. Para Vigotski (2008), um conceito está sempre mediado a outro conceito, então, um conceito científico está dentro de um sistema de conceitos. Assim, os conhecimentos científicos que o sujeito adquire na escola estão mediados, desde o início, por outros conceitos, que o autor chama de conceitos espontâneos. Esses conceitos espontâneos são os relacionados à experiência e ao cotidiano, sendo de generalização empírica. Os conceitos científicos são aqueles relacionados aos símbolos, sendo de generalização teórica.

O desenvolvimento dos conceitos científicos e espontâneos seguem caminhos diferentes em sentido contrário, ambos os processos estão internamente e da maneira mais profunda inter-relacionados. O desenvolvimento do conceito espontâneo da criança deve atingir um determinado nível para que a criança possa apreender o conceito científico e tomar consciência dele. Em seus conceitos espontâneos, a criança deve atingir aquele limiar além do qual se torna possível a tomada de consciência. (VIGOTSKI, 2001, p. 349).

Assim, o conhecimento cotidiano não deve ser ignorado ou substituído pelo científico. A formação da consciência se dá a partir da significação dos conceitos e, na medida em que os significados evoluem, amplia-se para o sujeito a compreensão do mundo em que vive. Nesta perspectiva, foram sendo realizados os planejamentos de ações contemplando os conteúdos das referidas disciplinas. O coletivo de docentes elaborou problematizações iniciais para introduzir a temática nas aulas, contemplando os conhecimentos da vivência dos discentes, e a disciplina de biologia ficou responsável por esta ação. Por que nos alimentamos? De onde provêm os alimentos? Quais alimentos você ingeriu em maior abundância? Você sabe quais os alimentos você ingeriu diariamente que contêm maior quantidade de calorias? O que é nutrição para você? O que é desnutrição para você? Qual a importância das proteínas, dos carboidratos e dos lipídios na nossa alimentação? Qual a diferença de vitaminas e sais minerais?

No episódio 2 as docentes abordam, em um dos encontros do coletivo, como iniciaram o trabalho em sala de aula com a temática para introduzir os conteúdos disciplinares, estabelecendo a relação com os conhecimentos espontâneos dos discentes.

Episódio 2: Nas aulas de Física também introduzi com questões da vivência dos/as estudantes, deixando os/as estudantes responderem primeiro, para depois introduzir os conteúdos. As questões que trabalhei: Quais são os processos de produção de energia? Que tipos de alimentos são necessários para a vida? Como nosso corpo produz energia térmica? E o que é hipotermia? Para começar com os conceitos de temperatura e calor. Depois vamos para esses textos, que discutimos no coletivo, de artigo e livro didático, para aprofundar o conhecimento no assunto. (D2). Outra atividade que trabalhei com eles: pedi para eles fazerem uma lista dos alimentos que ingeriram nos dois últimos dias e anotar no caderno. Essa lista eles dividiram em energéticos, reguladores e construtores. Daí expliquei as noções básicas desses conceitos para eles, discutimos sobre o que eles colocaram e depois fomos para o texto que discutimos no coletivo. (D3). (informações verbais).

Percebemos que as docentes buscam articular a temática com os conteúdos escolares e, num primeiro momento, procuram investigar o conhecimento que os discentes já possuem sobre o que será estudado em aula. Isso nos remete à teoria de Vigotski em relação à Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), referente à importância de introduzir um novo estudo a partir dos conhecimentos que os estudantes já possuem. Segundo esse autor, existem dois níveis de desenvolvimento - o real e o potencial -, posto que no espaço entre esses níveis estão as possibilidades para a aprendizagem dos conceitos científicos. Nas palavras de Vigotski (1998, p. 113),

[...] a zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de “brotos” ou “flores” do desenvolvimento, ao invés de “frutos” do desenvolvimento. O nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental retrospectivamente, enquanto a zona de desenvolvimento proximal caracteriza o desenvolvimento mental prospectivamente.

O autor afirma que a significação conceitual se dá quando o sujeito toma consciência do cotidiano em um nível mais elevado de compreensão, e isso acontece na relação dos conhecimentos científicos com os espontâneos. Assim, a partir das problematizações iniciais para introduzir os conteúdos, continuamos o planejamento, aprofundando os conceitos a serem estudados nas disciplinas não mais de forma linear.

O episódio 3 explicita a articulação dos conteúdos com as pesquisas dos discentes, quando os planejamentos são discutidos e realizados de modo a contribuir com as mesmas.

Episódio 3: Eu vou continuar com o conteúdo de energia cinética, temperatura, que está relacionado com o tema “Alimentação”. O alimento nos dá energia para manter a temperatura do corpo. Cada tipo de alimento nos dá uma quantidade de energia, que nos possibilita o movimento. Energia térmica. Quanto de calor precisa para realizar um trabalho. (D2). Em química daria para trabalhar com o conteúdo de termoquímica, para fechar com o que a física e a biologia vão trabalhar, só não sei muito bem como encaixar no conteúdo de agora, temos que pensar para relacionar este conteúdo com estequiometria. O que pensei para trabalhar agora, que também tem relação com a nutrição e a pesquisa dos/as estudantes, é essa questão sobre suplementos vitamínicos, que são utilizados pelos atletas. Podemos pensar em uma questão: dá pra pedir para eles pesquisarem um rótulo de suplementos, e a partir disso elaborarmos algumas atividades relacionadas com fórmula estrutural, massa molecular, mol (...). (D1). (informações verbais).

No desenvolver de nossas ações procuramos não trabalhar os conteúdos de forma linear, embora isso nem sempre é uma tarefa fácil para os docentes, conforme a fala da D1, que parece sentir necessidade de seguir uma sequência de conteúdos. Destaca-se, também, que a D1 se mostrou disposta a fazer a articulação das pesquisas com os conteúdos da disciplina, produzindo seu próprio material de aula e contribuindo com o trabalho interdisciplinar.

A partir dessas discussões continuamos a organização do ensino, envolvendo algumas das ações com a produção de pães, que permitiu o aprofundamento dos conceitos estudados nas disciplinas, relacionando-os a um tipo de alimento do cotidiano dos discentes. Para introduzir a produção de pães com os estudantes, foi lhes proposto que desenvolvessem cálculos usados na confecção de pães a partir de uma receita, possibilitando o estudo de conteúdos, conforme o Texto A, produzido pela D1, sobre a reflexão do processo formativo:

Texto A: Inicialmente partimos do estudo de uma receita correta para a produção de pães. Em sala de aula foi dado noções sobre o cálculo estequiométrico ao interpretarmos uma receita correta para a produção de um pão, em que os/as estudantes calcularam as quantidades corretas dos ingredientes necessários para produzir um pão que tenha o tamanho escolhido por cada grupo nas aulas do componente curricular de química. Dividimos a turma em dois grupos e cada grupo ficou responsável por trazer os ingredientes e suas quantidades já calculadas no dia das atividades práticas. O objetivo de trabalhar a receita é mostrar que o cálculo estequiométrico não é algo tão distante do cotidiano deles e que usa basicamente regras de três para calcular as quantidades corretas dos ingredientes; quando se quer aumentar as quantidades em uma receita aumentam-se proporcionalmente cada um dos ingredientes que compõem a receita. Da mesma forma procedemos ao interpretar equações químicas corretamente balanceadas para obter as massas possíveis dos produtos de interesse ao problema. (D1).

Esta ação referida no Texto A permite a aproximação aos conceitos necessários para o estudo do conteúdo de estequiometria, começando pelo estudo da Lei de Proust - Lei das proporções certas -, e a da Lei de Lavoisier - Lei da conservação da massa -, ambas presentes em ações do dia a dia. Zanon e Maldaner (2010) afirmam que o estudo de uma situação de vivência dos estudantes privilegia o conhecimento inter-relacional e contextual e trabalha os conteúdos de forma disciplinar e interdisciplinar, tendo um potencial de mudança no papel social do ensino, proporcionando a autonomia na aprendizagem dos sujeitos envolvidos.

Na perspectiva de que os estudantes significassem conceitos disciplinares e conseguissem relacioná-los com as suas pesquisas, o grupo de docentes planejou ações experimentais relacionadas à produção de pães, conforme diálogos expressos no episódio 4 (sendo uma das referências utilizadas para o estudo o livro: Situação de Estudo - Alimentos: produção e consumo de autoria de Boff, Hames e Frison, 2010):

Episódio 4: Podemos fazer essa atividade sobre a temperatura adequada para a ação das leveduras; envolve os conteúdos das 3 disciplinas. (M). Nessa atividade já dá para aproveitar para trabalhar densidade. (D2). Essa atividade do efeito da saliva sobre o alimento relaciona-se com o conteúdo que vou trabalhar do processo de digestão dos alimentos, daí já entro na parte das enzimas. (D3). Outra atividade interessante, que a DP deu ideia, de realizarmos a combustão do pão, para calcular a quantidade de calorias do pão. (M). Com essa atividade podemos relacionar estequiometria e termoquímica, reações de combustão e calor liberado na combustão. (D1). E em física se trabalha os cálculos de quantidade de calor liberado. (D2). (informações verbais).

Percebemos que as docentes conseguem identificar os conteúdos a serem trabalhados em cada disciplina envolvendo os experimentos. Antes da realização das ações experimentais com os discentes, o coletivo de docentes as realizaram e as discutiram de forma interdisciplinar, de modo que cada um do grupo buscou contribuir a partir das possibilidades de exploração dos conhecimentos científicos de sua disciplina. Evidenciamos que esses momentos foram importantes para o grupo, pois, conforme Vigotski (1998), o sujeito internaliza e reconstrói o seu conhecimento a partir da mediação discursiva do outro.

Partiu-se dos experimentos realizados, em que participaram as três, a mestranda e as três turmas de discentes do Segundo Ano do Ensino Médio, que permearam as aprendizagens por meio dos diálogos e de ações, que possibilitaram a realização de ações complementares nas disciplinas de Química, Biologia e Física em sala de aula, conforme discutido no coletivo, e, após, sistematizado de forma escrita pelos docentes. Os Textos B, C, e D, mostram algumas dessas ações realizadas.

Texto B: Nas aulas de química analisou-se um rótulo trazido por um grupo de estudantes. Este rótulo era de um suplemento alimentar que despertou curiosidades em sua análise por parte dos/as estudantes, pois estava relacionado à pesquisa de um grupo. As atividades trabalhadas em sala de aula em relação a esse rótulo foram baseadas em uma dieta de 2.000 Kcal diárias, que permitiu calcular a quantidade de matéria (mol) de alguns dos componentes do rótulo, massa molecular, fórmulas estrutural e molecular, quantidades em gramas de ingestão de determinados componentes, necessidades diárias de cada um deles, benefícios à saúde. (texto produzido pela D1).

O Texto B apresenta a explicitação quanto à contribuição das pesquisas dos discentes na formação da docente, pois a necessidade de auxiliar os estudantes em suas pesquisas provocou mudanças na sua prática pedagógica. Destacamos aqui duas categorias de análise: a pesquisa como princípio educativo e a pesquisa como princípio pedagógico. A professora busca respostas para problemas que surgem no contexto escolar, o que caracteriza a pesquisa como princípio educativo e, ao mesmo tempo, a docente possibilita novas ações de ensino, que contribuem para a significação dos conceitos escolares a partir de questões importantes vivenciadas e investigadas pelos estudantes, utilizando, portanto, a pesquisa como princípio pedagógico. Conforme Azevedo e Reis (2014, p. 31), “a pesquisa como princípio educativo trata da pesquisa que educa, que forma, que transforma, que é meio de produção do conhecimento de forma individual ou coletiva”, e a pesquisa como princípio pedagógico “se refere à dimensão da investigação científica como processo capaz de potencializar as possibilidades do fazer pedagógico. A pesquisa é assumida como cerne do processo de ação-reflexão-ação”.

Outra questão importante a ser destacada no Texto B é o fato de os estudantes terem trazido material para ser estudado em aula. Valorizar os conhecimentos e sugestões trazidos pelos estudantes é outra condição para que estes respeitem e se disponibilizem para aprender os conteúdos diversos. A pesquisa, articulada com a prática pedagógica, é uma possibilidade de contribuir de forma significativa no processo de aprendizagem dos sujeitos. É importante que a intencionalidade dos docentes permeie a organização do ensino na perspectiva de que os sentidos atribuídos pelos discentes ao conteúdo escolar estudado, coincidam com o seu significado social.

Segundo Leontiev (1983), os significados são componentes importantes da consciência humana. As significações refletem o mundo na consciência do homem, e a linguagem é o meio para aprender os significados. O autor explica que:

A significação é o reflexo da realidade independente da relação individual ou pessoal do homem a esta. O homem encontra um sistema de significações pronto, elaborado historicamente, e apropria-se dele tal como se apropria de um instrumento, esse precursor material da significação. O fato propriamente psicológico, o fato da minha vida, é que eu me aproprie ou não, que eu assimile ou não uma dada significação em que grau eu a assimilo e também o que ela se torna para mim, para a minha personalidade; este último elemento depende do sentido subjetivo e pessoal que esta significação tenha para mim. (LEONTIEV, 1978, p. 102).

A significação refere-se às relações que se estabeleceram historicamente e designaram, por exemplo, a palavra, e esta faz parte do vocabulário de uma cultura, na qual todos aqueles que vivem nesta sociedade a compreendem, já o sentido é pessoal. Para que o sujeito compreenda a cultura humana produzida sob a forma de conhecimentos e desenvolva suas funções psicológicas superiores, é necessário se apropriar da significação, que é social.

No Texto C são apresentados indícios da pesquisa como princípio pedagógico, caracterizado pela valorização dos questionamentos dos estudantes e de novas ações na prática pedagógica.

Texto C: Nas aulas de biologia trabalhou-se o sistema cardiovascular, sendo o sangue um dos componentes do sistema cardiovascular. Além de ser responsável pelo transporte de gases respiratórios, ele também é responsável por transportar parte dos nutrientes que ingerimos na alimentação. A partir deste conteúdo, organizou-se com os/as estudantes uma pesquisa sobre algumas doenças relacionadas, em que surgiram questionamentos quanto ao que se refere à pressão arterial, e foram surgindo curiosidades por parte dos/as estudantes sobre o índice de massa corporal (IMC), o que culminou em uma aula prática de verificação de pressão arterial, peso e altura dos/as estudantes. (D3).

As produções textuais das docentes (Textos B, C e D) trazem indicativos de que elas estão abertas ao diálogo com os discentes, proporcionando a construção de conhecimentos que foram emergindo no decorrer dos estudos. Segundo Freire (2005, p. 96), “somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz, também, de gerá-lo. Sem ele não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação”. O diálogo é fundamental no processo de ensino para que a educação ocorra com qualidade na formação de sujeitos críticos.

Nos Textos C e D a pesquisa também é apresentada como princípio educativo, que, conforme Demo (2007, p. 43), pode ser vista como “processo cotidiano, integrante do ritmo da vida, produto e motivo de interesses sociais em confronto, base da aprendizagem que não se restrinja à mera reprodução”. É nesta perspectiva que as docentes estão trabalhando em suas aulas, visando a contribuir em aprendizagens significativas sem reproduzir os conteúdos escolares.

Texto D: Nas aulas de física os/as estudantes fizeram uma pesquisa para conhecer alimentos mais energéticos. A partir disso, discutimos em sala de aula sobre quanto de energia uma pessoa necessita no seu dia a dia, e quais os alimentos são mais saudáveis para o ser humano. A partir disso, iniciou-se o estudo de calor, ou seja, sobre o calor sensível, que são as calorias, trabalhando o sistema de unidades e transformações. Estudou-se a temperatura dos alimentos e as transformações entre as Escalas Celsius, Kelvin e Fahrenheit, massa e volume dos alimentos consumidos, especificamente do pão, variação de volume e pressão e densidade, que vêm da relação massa/volume. (D2).

Os relatos das docentes (D1, D2, D3) mostram que foi possível trabalhar os conteúdos disciplinares da área de Ciências da Natureza de forma contextualizada e interdisciplinar, considerando as necessidades dos/das discentes. Maldaner (2014, p. 20) argumenta que “aprofundar o significado de uma informação que chega fácil aos estudantes, situando-a nos mais variados contextos com base em conhecimentos que possam produzir novos sentidos”, possibilita que o sujeito possa atuar no mundo de modo a transformá-lo. Conforme ressaltam Cenci e Damiani (2018, p. 924), portanto, referindo-se a atuar na ZDP,

há de ficar claro que nem toda instrução promove desenvolvimento/ amadurecimento: aquela dirigida a processos já completados não repercute em desenvolvimento, bem como aquela muito distante dos conhecimentos prévios do aprendiz não encontra suporte em suas funções mentais e, assim, também não influencia o seu desenvolvimento. A instrução é mais eficaz quando voltada àquelas funções em fase de amadurecimento.

Os dados empíricos mostram, todavia, que foram elaboradas e desenvolvidas ações intencionais que não estavam prontas em livros didáticos, planejadas e discutidas em um movimento de ação-reflexão-ação, conforme pressupostos teóricos de Carr e Kemmis (1988), visando a atender às necessidades dos/das estudantes e das professoras. Essa organização do ensino, com base em SE, permitiu a reflexão sobre a prática e a articulação dos conteúdos escolares com as pesquisas realizadas pelos discentes, o que resultou em mudanças na prática pedagógica, proporcionando aprendizagens tanto para os discentes quanto para as docentes.

4 REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA PEDAGÓGICA

No decorrer do processo interativo as docentes também fizeram sistematizações dos trabalhos realizados e produziram textos, como alguns já explicitados supra, com o objetivo de contribuir nas reflexões sobre as práticas pedagógicas. Os mesmos apontaram indícios de que as professoras perceberam a importância do trabalho coletivo e o quanto é significativo para a formação docente, conforme os Textos E e F, que apresentamos a seguir.

Texto E: O planejamento coletivo foi e sempre será muito importante no cotidiano escolar. Através dele nós, professores, planejamos de forma diferente e efetivamente interdisciplinar, onde todos têm espaço para dar suas opiniões e melhorar seu trabalho; isso faz com que os/as estudantes ganhem em aprendizados e se motivem mais no aprender, fazendo as ligações necessárias entre as diversas disciplinas. Especificamente na minha disciplina, depois de fazer as atividades práticas, facilitou o trabalho em sala de aula, pois a todo o momento eu me referia à prática e eles me respondiam com os seus entendimentos, o que melhorou a aula, pois teve mais interatividade entre professor, conteúdo, áreas do conhecimento e estudante. Percebi também que, após as práticas, as atividades de sala de aula ficaram mais interativas e produziu maior saber por parte dos/as estudantes e também de mim, professora, pois pude retomar e rever alguns conhecimentos das outras disciplinas que se fazem importante para o conhecimento do todo. (D2). Texto F: Os planejamentos que aconteciam de 15 em 15 dias, auxiliavam na organização do material de trabalho para que cada professor, na sua disciplina, conseguisse entrar no assunto sem que o mesmo ficasse cansativo e repetitivo, (...) elencávamos o que poderia ser associado à pesquisa dos/as estudantes com a disciplina de cada professora da área. O trabalho coletivo foi muito bom; é muito bom discutir no coletivo, realizar essas trocas. (D3).

As reflexões das docentes sobre a prática pedagógica indicadas nos Textos E e F, evidenciam a constituição de um professor diferente, que está refletindo sobre seu fazer docente, a interdisciplinaridade, a articulação dos conteúdos escolares com as pesquisas dos discentes e a pesquisa como princípio pedagógico. Concordamos com Demo (1999, p. 43): “o que faz a aprendizagem algo criativo é a pesquisa, porque a submete ao teste, à dúvida, ao desafio, desfazendo tendências meramente reprodutivas”. Conforme escrita da D3, essa organização do ensino no coletivo encaminhou-se nesta perspectiva, ocorrendo mudanças nas aulas e introduzindo a pesquisa na prática pedagógica.

É importante destacar, também, sobre a questão da interdisciplinaridade, citada no texto E. Essa abordagem interdisciplinar não exclui o caráter disciplinar do conhecimento científico, mas completa-o e estimula a percepção dos fenômenos, possibilitando a construção e uma percepção dinâmica da nossa vivência e da convivência com o mundo, ou seja, um aprendizado com aspectos práticos e críticos. A interdisciplinaridade permite reconhecer não somente o diálogo entre as disciplinas, mas também a conscientização sobre o sentido da presença do homem no mundo (FAZENDA, 2008).

Ressaltamos, ainda, a importância da escrita para a prática pedagógica, quando as docentes produziram textos durante o processo formativo. Essa ação permite refletir sobre a prática. Conforme Marques (2006), ao escrever é possível conversar com os outros e consigo mesmo, articular melhor as ideias, ser mais coerente e conduzir melhor os assuntos. O autor afirma que, no ato de escrever, a presença do leitor faz com que quem escreve expresse sentimentos e ideias que não experimentaria se não escrevesse ou dissesse a alguém, sendo assim, o escrevente é seu primeiro leitor.

Este processo interativo de formação contínua docente, com base na SE, portanto, possibilitou a articulação dos conteúdos escolares com a pesquisa na prática pedagógica, permitindo a construção de novos conhecimentos por meio de estudos, diálogos, pesquisas, planejamentos e desenvolvimento de ações e escritas, enfim, transformando a prática educativa.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados obtidos nesse processo interativo de formação de professores apontam indícios na direção da autonomia das docentes em organizar o ensino de Ciências da Natureza, articulando os conteúdos escolares com a pesquisa na prática pedagógica. Este movimento coletivo, com base na SE, possibilitou a construção de novas aprendizagens, uma vez que as docentes, ao modificarem sua prática para melhor orientar os discentes em suas pesquisas, também fizeram investigação, considerando a pesquisa como princípio pedagógico e educativo.

Assim, a pesquisa como princípio pedagógico potencializa o fazer pedagógico pela ação-reflexão-ação, modificando as formas de ensino e contribuindo na aprendizagem de docentes e discentes. Já a pesquisa como princípio educativo contribui na formação de um sujeito capaz de construir sua aprendizagem de forma autônoma, crítica.

Por fim, defendemos que a constituição de espaços coletivos no contexto escolar, com sujeitos mais experientes e a participação ativa de docentes da escola, envolvendo a socialização, a reflexão, a organização, o planejamento e o desenvolvimento de aulas, orientadas pela proposta de ensino denominada de SE, quando acompanhada pela pesquisa, aumenta seu potencial formativo, oferecendo maiores chances para a (re)significação e a produção de conhecimentos profissionais de docentes, favorecendo a constituição de um professor capaz de tomar decisões conscientes para qualificar o seu trabalho, e, assim, transformar sua prática pedagógica.

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1Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria e Mestra em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul;

2Graduada em Licenciatura em Ciências com habilitação em Química pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul; cristianehdealmeida@gmail.com

3Doutora em Educação em Ciências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Mestra em Ciências Biológicas - Bioquímica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; evaboff@unijui.edu.br

4Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo; Mestra em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho de Rio Claro; anemari.lopes@gmail.com

Recebido: 01 de Março de 2019; Aceito: 16 de Setembro de 2019

Endereço para correspondência: Universidade Federal de Santa Maria, Av. Roraima, 1000, Cidade Universitária Bairro, Camobi, Santa Maria, Rio Grande do Sul, 97105-900; anemari.lopes@gmail.com

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