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Roteiro

versão On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.45  Joaçaba jan./dez 2020  Epub 30-Jul-2020

https://doi.org/10.18593/r.v45i0.21640 

Artigos de Demanda Contínua

Jornal Escolar na concepção de Célestin Freinet: diálogos com a legislação educacional catarinense - 1940

School Newspaper in the conception of Célestin Freinet: dialogues with Santa Catarina educational legislation - 1940

Periódico escolar en la concepción de Célestin Freinet: diálogos con la legislación educativa de Santa Catarina - 1940

Cintia Gonçalves Martins1I  , doutoranda
http://orcid.org/0000-0002-3304-8268

Giani Rabelo2II  , Professora titular
http://orcid.org/0000-0002-5073-1026

I Universidade do extremo Sul Catarinense, Programa de Pós-graduação em Educação doutoranda.

II Universidade do Extremo Sul Catarinense, Professora titular.


Resumo:

Este artigo se dedica a realizar um diálogo entre a proposta do educador escolanovista Célestin Freinet sobre a utilização dos Jornais Escolares como práticas pedagógicas e seu uso nas escolas do estado de Santa Catarina, Brasil, em meados de 1940, a partir da análise da legislação estadual que regulamentou as Associações Auxiliares da Escola, em especial o Decreto-lei n. 3.735/1946 de Santa Catarina. A legislação catarinense de 1946 buscou se aproximar da perspectiva escolanovista com a criação das Associações Auxiliares da Escola às quais a Associação do Jornal Escolar pertenceu. Assim, analisamos a legislação estadual e a difusão, a partir da década de 1920, dos trabalhos de Freinet com relação à prática do Jornal Escolar. No estudo, observamos a tentativa dos governos e dos dirigentes educacionais do Estado catarinense de se aproximarem das ideias pedagógicas escolanovistas com a prática dos Jornais Escolares. Todavia, na realização da análise, observamos contradições entre a proposta da legislação e os princípios de Freinet sobre a utilização do Jornal Escolar.

Palavras-chave: Jornal Escolar; Escola Nova; Célestin Freinet.

Abstract:

This article is dedicated to conducting a dialogue between the proposal of the school educator Célestin Freinet on the use of School Newspapers as pedagogical practices and their use in schools in the state of Santa Catarina, Brazil, in the mid-1940s, from the analysis of the state legislation that regulated the Auxiliary Associations of the School, in particular Decree-Law No. 3,735 / 1946 of Santa Catarina. The 1946 Santa Catarina legislation sought to approach the Escanovista perspective with the creation of the Auxiliary Associations of the School to which the Associação do Jornal Escolar belonged. Thus, we analyzed the state legislation and the dissemination, from the 1920s, of Freinet's works in relation to the practice of Jornal Escolar. In the study, we observed the attempt by the governments and educational leaders of the state of Santa Catarina to get closer to the school-based educational ideas with the practice of School Newspapers. However, in carrying out the analysis, we observed contradictions between the proposed legislation and Freinet's principles on the use of the Jornal Escolar.

Keywords: School Journal; New School; Célestin Freinet.

Resumen:

Este artículo está dedicado a llevar a cabo un diálogo entre la propuesta del educador escolar Célestin Freinet sobre el uso de periódicos escolares como prácticas pedagógicas y su uso en las escuelas del estado de Santa Catarina, Brasil, a mediados de la década de 1940, a partir del análisis de la legislación estado que regulaba las Asociaciones Auxiliares de la Escuela, en particular el Decreto Ley N ° 3.735 / 1946 de Santa Catarina. La legislación de Santa Catarina de 1946 buscó abordar la perspectiva escanovista con la creación de las Asociaciones Auxiliares de la Escuela a las que pertenecía la Associação do Jornal Escolar. Así, analizamos la legislación estatal y la difusión, desde la década de 1920, de las obras de Freinet en relación con la práctica de Jornal Escolar. En el estudio, observamos el intento de los gobiernos y los líderes educativos del estado de Santa Catarina de acercarse a las ideas educativas basadas en la escuela con la práctica de los periódicos escolares. Sin embargo, al llevar a cabo el análisis, observamos contradicciones entre la legislación propuesta y los principios de Freinet sobre el uso del Jornal Escolar.

Palabras clave: School Journal; Nueva Escuela; Célestin Freinet

1 INTRODUÇÃO

No bojo de um movimento no campo pedagógico, que disseminou novas práticas educativas no País e no Estado de Santa Catarina, emergiu o Jornal Escolar no contexto histórico de consolidação da Primeira República (1889-1930). Posteriormente, essa prática foi alicerçada pelo processo de nacionalização e modernização do ensino, em especial nas décadas de 1930 e 1940, com o Governo de Getúlio Vargas, sendo que o período de 1937 a 1945, denominado Estado Novo, foi assinalado pela administração governamental autoritária desse Presidente.

À época, várias reformas foram realizadas na Educação, as quais atingiram as escolas públicas e privadas dos municípios e dos estados brasileiros, com o propósito de organizar e padronizar a instituição educacional e, da mesma maneira, de fortalecer o sistema nacional de educação. Um forte indício que justifica as reformas que se seguiram é a criação do Ministério da Educação e Saúde e da Comissão nacional de Ensino Primário, com o Decreto-lei n. 868, de 18 de novembro de 1938.

Foi também a partir da década de 1930 que intelectuais organizaram o Manifesto da Escola Nova, publicado oficialmente em 1932, na tentativa de reivindicar ações dos governantes com relação aos problemas enfrentados pela educação brasileira naquele contexto. Esses intelectuais buscavam modernizar a educação e afastar-se dos métodos do ensino tradicional. No estado catarinense, houve a criação das Associações Auxiliares da Escola (AAEs), estando entre elas o Jornal Escolar, como medida tomada na tentativa de inserir práticas escolanovistas nos estabelecimentos de ensino.

Nessa perspectiva, de acordo com Petry (2013), as AAEs eram organizações formadas por estudantes de diferentes idades e séries, as quais tinham como coordenador responsável um professor. Cada uma dessas associações possuía tarefas de acordo com seus objetivos. “Elas funcionavam como uma espécie de organismo auxiliar da atividade de ensino ou de socialização, moralização e civilização dos estudantes, bem como de aproximação da escola com a família.” (PETRY, 2013, p. 101). No início do ano letivo, nas primeiras reuniões pedagógicas, elas eram reorganizadas, destinando um professor para a coordenação e alguns estudantes para fazerem parte de suas diretorias. Os alunos, assim como os professores, deveriam cumprir algumas tarefas a serem registradas em atas mensais e relatórios anuais, sendo os últimos encaminhados para o Departamento de Educação do Estado de Santa Catarina.3

O Jornal Escolar, como uma prática da Escola Nova vinculada às AAEs, torna-se público e detalhadamente descrito na legislação catarinense a partir do ano de 1944, por meio do Decreto-lei n. 2.991/1944 (SANTA CATARINA, 1944b),4 publicado pelo Interventor Federal Nereu Ramos (1937-1945). Entretanto, é com a publicação do Decreto-lei n. 3.735, de 17 de dezembro de 1946, que as diretrizes de desenvolvimento das AAEs aparecem de maneira mais consistente e minuciosa. Nesse sentido, em virtude de os dois Decretos-leis serem muito semelhantes, optamos por problematizar o segundo (Decreto-lei n. 3.735/1946), por considerá-lo mais completo em relação às atribuições das AAEs. Ambos os decretos foram formulados e homologados pelo Departamento de Educação do Estado de Santa Catarina.

O decreto objeto desta análise, portanto, determinava que “[...] a Escola Nova deveria ser posta em prática pelos professores, imediatamente, revogadas as disposições em contrário.” (FIORI, 1975, p. 152). Essa legislação regulamentou oficialmente a aplicação das AAEs nas instituições escolares das redes estadual, municipal e privada, que foram postas em prática nas instituições que ofereciam o ensino primário.

De acordo com Amaral (2002), os impressos se apresentam como testemunhas vivas dos métodos e das concepções pedagógicas, por isso, a partir deles, é possível realizar uma leitura das manifestações contemporâneas aos acontecimentos e uma real aproximação dos discursos emitidos na época em relação ao projeto de sociedade, bem como sobre as instituições sociais, dentre elas a escola. Essas fontes podem, por vezes, apresentar reação às normas estabelecidas e representam, assim, um produto cultural de sujeitos específicos em determinado contexto histórico. Nesse sentido, os impressos escolares produzidos no interior das escolas, individuais ou coletivos, apresentam em sua materialidade os registros das práticas educativas e os ideários de processos educacionais de determinados períodos históricos, constituindo e produzindo a cultura escolar dos estabelecimentos de ensino.

A proposta do Jornal Escolar como uma das práticas metodológicas da Escola Nova se inspira, em tese, nos princípios do pedagogo francês Célestin Freinet (1974), que defendia a sua produção como textos livres, sem redações formais e sem a intervenção dos adultos. Nesse sentido, surgiu uma dúvida: a implantação da Associação Jornal Escolar nas escolas catarinenses pode ter significado uma apropriação de Célestin Freinet pelo movimento da Escola Nova? A fim de intentar responder tal questão, buscamos analisar a proposta de Jornal Escolar apresentada por Célestin Freinet no Livro O Jornal Escolar (1974), publicado na sua primeira versão em 1967, e, na sequência, apresentar as diretrizes para a organização e a produção do Jornal Escolar previstas no Decreto-lei n. 3.735, de 17 de dezembro de 1946, problematizando suas exigências e determinações.

2 O JORNAL ESCOLAR COMO PRÁTICA DA ESCOLA NOVA

A prática de elaboração e utilização do Jornal Escolar nas escolas brasileiras, historicamente, esteve amparada nos princípios metodológicos da perspectiva pedagógica do educador francês Célestin Freinet (1896-1966), que se tornou mundialmente conhecida a partir da década de 1920. Freinet fundamentou-se nos trabalhos do educador belga Ovide Decroly, denominados Correio da Escola, realizados após a primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ele o reconhece como seu inspirador para a elaboração da técnica do impresso escolar, afirmando que antes de Decroly não havia conhecimento da utilização da prática de produção de impressos estudantis na França e em outros lugares do mundo (FREINET, 1974).

No entanto, essa afirmação se torna questionável, pois em estudos realizados no âmbito da história da educação se reconhece a utilização de impressos pedagógicos em períodos anteriores a Decroly, por parte de Louis Dumas (1730) e Paul Robin (1890) (MONTEAGUDO, 2013). Independentemente disso, para Freinet (1974), a origem da elaboração e utilização de jornais escolares como prática nas escolas é secundária. O mais importante, na sua visão, “[...] não é o aspecto histórico das técnicas e dos métodos, mas sim a sua adequação às necessidades pedagógicas.” (FREINET, 1974, p. 10). Para o autor, as práticas metodológicas de utilização de impressos escolares que não seguissem os critérios estabelecidos por sua pedagogia eram consideradas jornais antiescolares.

Crítico da pedagogia tradicional, Freinet (1974, p. 7) assim a descreve: “[...] continua obstinadamente baseada num passado caduco e trava as forças inovadoras que dinamizavam o avanço.” Esse pedagogo se torna um dos estudiosos e precursores do movimento da Escola Nova e da Pedagogia Ativa, defendendo que:

O movimento da Escola Moderna empenhou-se, há trinta anos, em transformar em realidade nas nossas escolas os sonhos generosos dos pedagogos. Fê-lo no âmbito da Escola, experimentando demorada e prudentemente as novas técnicas cuja necessidade se fazia sentir, ensaiando, através da própria vida ativa e criadora das crianças, os utensílios que iriam substituir progressivamente as maquinetas anacrônicas da escola tradicional. (FREINET, 1974, p. 7).

Como uma das grandes referências da Escola Nova e da Pedagogia Ativa, Freinet valorizava a vida ativa dos discentes. Para esse professor, os estudantes deveriam produzir e criar seus próprios instrumentos pedagógicos, seus materiais didáticos, elaborados a partir de suas experiências, necessidades e suas vivências dentro e fora do convívio escolar.

Dialogando com esse pensamento, Monteagudo (2013) expõe o exemplo da rejeição que Freinet possuía em relação aos livros didáticos, visto que, na visão dele, além de empobrecer a atividade cognitiva, limitava a capacidade de exploração pessoal dos alunos. Para Monteagudo (2013), Freinet também se opunha aos livros porque eles transmitem ideologias nacionalistas e consciências entorpecidas, considerando-os instrumentos de domesticação e de reprodução social. Em sua visão, a ideologia ultranacionalista forçava a falsa moral que incentivava a legitimidade das guerras.

Segundo Monteagudo (2013, p. 15), Freinet era considerado um dos estudiosos da Pedagogia Nova, mas com outra perspectiva, pois era “[...] um revolucionário, um iconoclasta, um comunista, um ativista sindical, um professor rural, uma base de educador.” Sobre a filosofia educacional de Freinet, Legrand (2010, p. 27) assim discorre: “Freinet acreditava na pedagogia como um caminho ou até mesmo como o caminho para a transformação da humanidade. À medida que fosse conhecida e adotada, sua prática poderia ser um meio de regeneração social e de superação do capitalismo explorador e belicista.”

Na perspectiva de superação do capitalismo, a partir da educação e de suas práticas direcionadas para uma educação popular baseada em conceitos científicos, observamos que os princípios da pedagogia freinetiana possuem um “[...] caráter crítico e heterodoxo em sua teoria e metodologia.” (KANAMARU, 2014, p. 4). Entre as suas práticas, Freinet se torna responsável por divulgar o método do texto livre, da imprensa escolar, da correspondência interescolar e do jornal escolar, que ganharam grande visibilidade nas práticas pedagógicas a partir da década de 1920 (MONTEAGUDO, 2013). Além disso, desenvolveu e registrou em seus livros as mudanças estruturais de reorganização das salas de aula, modificou a arquitetura dos espaços escolares de tradições escolásticas, pois os espaços serviam para centrar a autoridade do professor e não contribuíam para que as crianças criassem a noção de sujeitos ativos no seu processo de ensino e aprendizagem. Como decorrência de seu entendimento, criou o conceito de “cantos pedagógicos”, que vislumbra as salas de aula como espaços de trabalho e de criação multidisciplinar, nomeando-as ateliê (KANAMARU, 2014).

Com a publicação do livro O Jornal Escolar, em 1967, na França, tornou-se pública uma prática que se transformou em uma referência universal: a técnica do impresso escolar. Para o autor, “[...] o método Freinet, baseado nos textos livres, a observação e experimentação através da própria vida, a expressão, sob todas as suas formas literárias, científicas, artísticas, permite-nos reunir e apurar o conteúdo do jornal.” (FREINET, 1974, p. 22). Sua proposta educacional substitui a rotina dos livros e manuais, dos trabalhos e lições de casa, que são para ele impostos pelas autoridades dos adultos. Ele baseou em três pilares a técnica do texto livre, que são as seguintes:

- O texto livre, que é a expressão natural inicial da vida infantil no seu meio ambiente normal;

- A observação e a experiência como fundamentos indispensáveis das aquisições de conhecimentos em ciências e em cálculo, em história e em geografia;

- O desenho, a pintura e a música livres, expressão complementar pela via afetiva e artística, de tudo o que a criança tem em si de possibilidades difusas e, não obstante, superiores, de acesso à cultura, não apenas escolar, mas cultura social e humana. (FREINET, 1974, p. 8).

Nessa perspectiva, é possível afirmar que o texto livre se configurava como uma técnica de trabalho que criou uma nova cultura escolar na qual o estudante era o principal protagonista do processo de ensino e aprendizagem. O professor não determinaria mais o que deveria ser lido ou escrito, pois apenas com a escolha livre as crianças poderiam expor sua personalidade, seus pensamentos, suas angústias, seus desejos, suas observações, ou seja, o método Freinet propunha-se a respeitar o pensamento infantil de forma íntegra, entendendo que a intervenção dos adultos faria com que se perdesse a essência das crianças. Sobre o texto livre, Freinet (1974, p. 12) aponta o seguinte:

Nas nossas classes, a criança conta primeiro e, mais tarde, escreve livremente aquilo que sente necessidade de exprimir, de exteriorizar, de comunicar aos que com ela convivem ou aos seus correspondentes. Não escreve uma coisa qualquer. A espontaneidade que tem sido tão discutida, não deve ser para nós uma fórmula pedagógica. A criança exprime-se inserida num contexto que nos cabe tornar o mais educativo possível, com objetos que devemos englobar nas nossas técnicas de vida.

Logo, ao produzir um jornal escolar com seus pensamentos, a criança inicia um novo processo que não será o de produzir e escrever apenas o que interessa a si própria, visto que seu texto será compartilhado com seus companheiros de escola ou com pessoas da comunidade, mas aquilo que também provoca o interesse desses companheiros ou dessa comunidade: o texto livre, que, escolhido por votação de mãos levantadas, é aperfeiçoado coletivamente, buscando sempre a veracidade de seu conteúdo na forma sintática, gramatical e ortográfica. Portanto, o método se constitui de forma natural, “[...] baseado nos textos livres de expressão, sobre todas as suas formas, literária, científica, artística, permite-nos reunir e apurar o conteúdo do jornal até ser encaminhado para os pequenos tipográficos.” (FREINET, 1974, p. 22).

Relacionados à técnica de impressão do Jornal Escolar, Freinet (1974) apresenta quatro procedimentos para aquilo que ele nomeou Imprensa Escolar: manuscrito,5policopiado,6 limografado7 e a tipografia.8 Freinet (1974, p. 20) defendia que a melhor técnica para a imprensa escolar era a tipografia, utilizando-se dos seguintes argumentos:

A tipografia permite uma apresentação sempre superior à do texto poligrafado. As pessoas cansam-se rapidamente de ler uma circular roneografada, mesmo que esteja impecavelmente tirada, ao passo que uma página impressa, artisticamente apresentada, é repousante e atraente. Na prática as crianças interessam-se espontaneamente pelos jornais impressos, sobretudo se são ilustrados e coloridos. Para eles - e é esse o teste decisivo - a tiragem ao limógrafo não passa de uma produção de segunda ordem.

A defensiva de Freinet sobre a superioridade da impressão do jornal escolar pela tipografia se relaciona também com a pedagogia escolar que ele defendia, uma vez que, para ele, a máquina, em poucos minutos, imprimia vários exemplares dos jornais que seriam distribuídos pela correspondência interescolar para seus assinantes ou, pelo intercâmbio, para a comunidade escolar. Nesse caso, a criança é responsável pelo controle de todas as etapas de produção do impresso, ou seja, pela “[...] escrita, aperfeiçoamento coletivo, composição tipográfica, ilustração, disposição sob a prensa, tintagem, tiragem, agrupamento, agrafagem.” (FREINET, 1974, p. 20).

Nesse processo, a produção dos Jornais Escolares adaptava-se às necessidades das escolas, seguindo uma linha mais artesanal de produção, com a participação dos estudantes em todo o processo. Além disso, o material se tornava mais acessível financeiramente para o educandário, visto que os modelos de impressoras, tiragens, papéis e tintas poderiam ser escolhidos de acordo com a faixa etária dos estudantes. Em suas palavras:

O nosso material de impressão não é uma cópia nem um substituto das grandes instalações industriais; é um utensílio novo que não existia antes da nossa iniciativa, quer responde à necessidade e satisfaz objectivos que tinham sido até agora desconhecidos ou negligenciados. Os nossos jornais não são imitações nem substitutos de jornais de adultos. São uma produção original que tem a partir de agora as suas normas e as suas leis, que tem, é certo, as suas imperfeições, mas que apresenta também a vantagem histórica de abrir uma nova via de conhecimento da criança e de práticas pedagógicas de que o futuro mostrará a fecundidade. (FREINET, 1974, p. 24).

Nesse sentido, compreende-se que o método de Freinet busca uma legitimidade perante as outras técnicas de produção de jornais, em particular o impresso estudantil, posicionando-se como o criador de uma prática original, que contribui para as práticas pedagógicas no ambiente educacional e a ligação com o meio social no qual a(o) educanda(o) está inserida(o), mas que, de certa forma, torna-se regulamentada por sua metodologia.

Essa regulamentação do Jornal Escolar fomenta uma indagação sobre a livre produção da imprensa, visto que em determinados momentos o autor afirma que não poderiam ocorrer interferências dos educadores e pais, isto é, de adultos que estavam vinculados à comunidade escolar. Em contrapartida, o autor assegura que o jornal escolar é “[...] uma realização original cujas normas são diferentes dos jornais de adultos. A sua apresentação, no entanto, nem por isso deixa de obedecer a certo número de regras que procuram obter, no gênero que se previu, um máximo de perfeição.” (FREINET, 1974, p. 28).

Nota-se que o discurso da livre produção da imprensa escolar converte-se em argumentos contraditórios, pois as regras são criadas por Freinet para serem seguidas pelos estudantes no processo de produção do Jornal Escolar. Tais regras de elaboração estão descritas desde a forma de produção do Jornal Escolar até o modo como ele deveria ser apresentado aos leitores. As descrições são as seguintes: capa, impressão, material utilizado, linhas, formato da letra, espaçamento, tamanho e letra do título, ilustrações, desenhos, fotografias e correção ortográfica. Além de tais itens, o pedagogo indica para qual idade e classe escolar o Jornal deve ser indicado, produzido e utilizado. Nesse caso, ele apresenta, em formato de classificação, cláusulas de como o Jornal Escolar deve ser apresentado em cada classe e, além das tipologias, explica como cada classificação funciona.

Freinet argumenta sobre a experiência do seu método em outros lugares do mundo e sobre como essa técnica perpetuou em outras culturas. Não apresenta exemplos de utilização de sua técnica especificamente no Brasil, mas reconhece a utilização em países da América, como México e Cuba, e cita, de forma geral, que existem experimentações de seu método nos países da América do Sul, as quais são chamadas de “periódicos escolares”.

O paradoxo encontrado nas argumentações de Freinet sobre a produção livre do impresso escolar e a responsabilidade dos educandos associada às regras propostas para a efetivação do Jornal Escolar pode ser compreendido da seguinte forma: para Freinet, os textos que compõem o Jornal Escolar devem partir do interesse, das vivências e das experiências dos educandos; sua pedagogia prevê a preparação para a vida em sociedade e para o trabalho, especialmente o trabalho coletivo, assim os estudantes devem participar de todo o processo de ensino e aprendizagem. Apesar disso, fazem-se necessários os métodos para que a prática de produção do Jornal Escolar seja pedagógica e psicologicamente vantajosa para a aprendizagem. Nessa perspectiva, o autor argumenta que

As nossas inovações não teriam direito ao título de método se não trouxessem unido aperfeiçoamento técnico à prática cujo valor pedagógico é hoje correntemente contestado e se não tivessem o objectivo de facilitar as lições, sistematizar e memorização, servir as aquisições - sintácticas, gramaticais, literárias, históricas ou científicas - de que a Escola fez, até agora, o essencial do seu programa. (FREINET, 1974, p. 43).

A partir desse entendimento, o texto livre faz parte da produção do Jornal Escolar, pois ele acredita que a criança sente a necessidade de escrever e que seu interesse é reforçado quando ela sabe que seu texto será lido pelos pais, pela comunidade escolar ou pelos amigos/companheiros de escola, ou de escolas vizinhas, mas as regras tornam o impresso estudantil uma ferramenta de ensino e aprendizagem, ou seja, a produção técnica do Jornal Escolar, controlada pelos métodos de produção, não interfere na elaboração do texto livre, que será o enredo essencial para a composição do impresso. Nos argumentos de Freinet (1974, p. 62):

Estas crianças adoram a pesquisa, a experiência e o trabalho. Brincam normalmente, visto que o trabalho tomou nas suas vidas o lugar que deve ter. Esta transformação dos indivíduos, esta abertura que é uma libertação, esta socialização, pode ser preparada e finalmente alcançada nas nossas aulas pelo método de expressão livre, cujo instrumento é o Jornal Escolar.

É nessa perspectiva que Freinet argumenta sobre as vantagens psicológicas, pedagógicas e sociais da prática e do método de produção dos jornais escolares nos educandários. Ele alerta que o método libertará o estudante da pedagogia tradicional e compreende que tanto a pedagogia quanto o jornal escolar fazem parte de uma educação que prepara a criança para a vida futura, para o trabalho e para a cooperação escolar.

Para Kanamaru (2014, p. 7), alguns aspectos são centrais no pensamento pedagógico e nas ações de Freinet:

[...] a autonomia como razão última e o trabalho como atitude vital diante de adversidades; a defesa da livre expressão, como consequência necessária da autonomia, e a livre pesquisa, como consequência do trabalho como meio gerador de conhecimento novo e, finalmente, a cooperação e autogestão como resultado coerente e lógico dessa experiência teórico-metodológica.

De acordo com Kanamaru (2014), essas práticas que dão forma e sentido à pedagogia educacional proposta por Freinet estão associadas a uma pedagogia científica e laica que almeja preparar os discentes para a vida do trabalho, a vida em comunidade e a superação das desigualdades econômicas. Na obra de Freinet nos deparamos com a defesa de uma educação efetivamente científica em contraposição à educação escolástica. Sendo que, em 1928, em Saint Paul de Vence, ele cria a Cooperativa de Ensino Laico, com a tentativa de aplicar os princípios de sua pedagogia, como a utilização da imprensa de tipos móveis e a correspondência interescolar de possibilidade internacional. Entretanto, essa iniciativa foi reprimida pelo governo local no período, não sendo possível a sua efetivação.

Para Freinet, a educação seria o mecanismo para superarmos o sistema capitalista, que marginaliza as camadas populares da sociedade, com uma proposta baseada no marxismo “[...] particularmente relacionada à teoria das relações materiais de produção, à teoria da alienação e à doutrina internacionalista.” (KANAMARU, 2014, p. 1).

Na próxima seção, buscaremos apresentar a legislação educacional que instituiu o Jornal Escolar em Santa Catarina, a fim de compreendermos seu processo de implantação e, ao mesmo tempo, de produção no âmbito dos estabelecimentos escolares catarinenses.

3 O JORNAL ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL CATARINENSE DE 1944

O Jornal Escolar como uma prática da Escola Nova, vinculada às AAEs, foi detalhadamente apresentado no Decreto-lei n. 3.735, de 17 de dezembro de 1946. De acordo com a legislação estadual de 1946, para introduzir a prática do Jornal Escolar nos educandários, os professores deveriam realizar uma exposição para os alunos e apresentar as vantagens de produzirem os referidos impressos escolares, a fim de que o interesse pela prática do “jornalzinho”, como é citado na legislação, ocorresse de forma espontânea, natural e positiva.

Os professores deveriam propagar entre os estudantes os benefícios advindos das atividades de produção do referido impresso, como: produção de um documento histórico que serviria para que as próximas gerações de alunos tivessem o conhecimento das realizações do passado; oportunidade para os alunos que gostassem de desenhos, poesias, crônicas, narrações, contos, descrição e caligrafia ampliarem suas predisposições, sendo que com a prática iriam brotar os talentos da alma juvenil; documento para o conhecimento da vida e da região em que os estudantes estavam inseridos, sendo uma fonte valiosa para contar a história da localidade; uma forma de os pais conhecerem seus filhos, bem como acompanharem seus progressos na vida escolar e de outros estudantes (SANTA CATARINA, 1946).

Além de apresentar as vantagens da produção dos impressos, que deveriam ser afirmados pelos(as) professores(as) para os(as) estudantes, a legislação descreve minuciosamente como os(as) alunos(as) deveriam produzi-lo e o que deveria constar em cada exemplar, igualmente o que era de responsabilidade do/a professor/a orientador/a.

Segundo o Decreto-lei n. 3.735/1946, o Jornal deveria ter um nome e quatro dirigentes escolhidos por votação. Os cargos para o jornal escolar eram de diretor, repórteres e gerente. Assim, o primeiro item a ser encaminhado era a escolha do nome do impresso, devendo ser definido em data e horário determinados por meio de votação entre os alunos, auxiliado pelo professor orientador. Para a votação ser realizada, os estudantes construiriam uma lista com 10 nomes e, na sequência, deveriam distribuir um papel para que os alunos escrevessem o nome que desejassem. Ao ter os papéis com os nomes em mãos, o professor apuraria os votos, e, desse modo, o nome do Jornal estaria definido (SANTA CATARINA, 1946).

O segundo encaminhamento seria a votação para escolha dos dirigentes do Jornal, atendendo às exigências da legislação de eleger os quatro alunos mais capazes da escola. Na análise do Decreto-lei, ficam evidentes algumas diferenças na organização dos cargos para as Escolas Isoladas e para os Grupos Escolares. Com relação às Escolas Isoladas, os eleitores deveriam escolher um diretor, um gerente e dois repórteres, porém, nos Grupos Escolares, a quantidade de repórteres poderia ser ampliada, tendo em vista o maior número de alunas(os) e, consequentemente, de classes. Assim, os repórteres auxiliares eram escolhidos por designação e nomeados em assembleia, e a escolha deveria ser registrada em ata. Mas como esses repórteres eram auxiliares, seus nomes não apareceriam no cabeçalho do jornal escolar (SANTA CATARINA, 1946).

O Art. 550 do Decreto-lei tratava do corpo do Jornal Escolar, isto é, da estrutura que os(as) integrantes da associação deveriam seguir para produzir o periódico, devendo ter os seguintes itens: título, localidade, município, data, número, ano e o nome dos dirigentes. Constavam no artigo explicações para cada um desses itens. Sobre o item título, ou seja, o nome do jornal, deveria estar na primeira página, localizado na parte superior ou destacado de acordo com o gosto dos(as) dirigentes. A sua disposição deveria seguir um padrão para facilitar sua identificação pelos leitores nas próximas edições. Aconselhava-se, também, que os dirigentes criassem um molde, utilizando papelão ou cartolina, para padronizar o tamanho e o tipo de letra, a ser utilizado em todas as ocasiões de produção do impresso (SANTA CATARINA, 1946).

No item localidade, deveria ser registrado o local da escola onde era produzido o impresso, devendo acompanhar as seguintes informações: “[...] órgão mensal da escola estadual, municipal ou particular de (nome da localidade) e, em seguida, como elemento indispensável o nome do município.” (SANTA CATARINA, 1946, p. 77).

A legislação alertava as escolas, especialmente as do interior do estado, para a importância de colocarem no impresso o nome do município, visto que sem esse registro haveria dificuldades no agrupamento dos exemplares enviados para o Departamento de Educação. Nota-se, nesse item, uma nuance de cobrança e de controle do Departamento para com as escolas. Diante dessa exigência, pode-se inferir que a prática de produção de jornais escolares nas instituições catarinenses era recorrente, bem como muito mais do que arquivar e salvaguardar a memória escolar, visto que o que o Departamento de Educação buscava, na verdade, era estar informado do que era produzido nas escolas. Podemos pensar que esse seria um mecanismo de controle ou até de censura do que era ensinado na escola.

O quarto ponto destacado discorre sobre a data, que, de acordo com a legislação, não deveria ser a de produção do jornal, e sim a data de circulação no ambiente escolar.

O número do jornal escolar serviria para o controle da quantidade de jornais produzidos pela escola, portanto cada edição deveria conter o número, sempre de forma sequencial, iniciando pelo algarismo um e assim sucessivamente, mesmo que as edições sofressem interrupções por quaisquer motivos. Caso isso ocorresse, precisaria obedecer à sequência numérica. Para as escolas que já o produziam, a orientação era de que deveriam organizar os números de edição para saber quantos jornais escolares já haviam sido confeccionados (SANTA CATARINA, 1946).

Com a sugestão do componente ano, buscava-se indicar o período de existência do jornal, ou seja, se o impresso tivesse cinco anos, era possível saber a data de sua fundação e o número que corresponderia à sua edição. A legislação apresenta o seguinte exemplo: “Um jornal cujo primeiro número saiu hoje, deve ter o número 1. Daqui exatamente a um ano, ele terá por exemplo, o número 8 e o ano II, isto é, entra no segundo ano de existência. Daqui a dois anos, trará por exemplo o número 16, e o ano II e, assim por diante.” (SANTA CATARINA, 1946, p. 78).

O último item estava relacionado à apresentação da equipe redatorial, que deveria ser estruturada da seguinte forma: “[...] o nome do diretor e do Gerente do lado superior esquerdo e no lado superior direito os nomes dos repórteres.” (SANTA CATARINA, 1946, p. 78). Mesmo contendo todos esses elementos explicados de forma minuciosa, a legislação ainda recomendava um modelo de cabeçalho que as escolas deveriam seguir na construção do impresso. Após apresentar o modelo de cabeçalho, a legislação descrevia quais as publicações, ou seja, os conteúdos que deveriam constar nos impressos escolares. De acordo com o Decreto-lei de 1946, as publicações deveriam abarcar os trabalhos realizados nas salas de aulas pelos estudantes, além de notas sobre os acontecimentos sociais, como aniversários, casamentos, festas, velórios, batizados, passeios, ou seja, informações sobre a região, resultantes de pesquisas realizadas pelas(os) repórteres. Os textos selecionados para compor o jornal deveriam passar pela “censura” do professor orientador, mas sem perder a “originalidade”, pois poderia se colocar em risco a sua finalidade de cooperação, objetivo central do Jornal Escolar. Indicava-se que as páginas deveriam ser cortadas ao meio, criando duas colunas com margens de dois centímetros. Nas primeiras páginas, deveriam ser copiados, primeiramente, os artigos; em sequência, as reportagens diversas - ou melhor, aquelas que mais agradassem à preferência do professor.

Nessas inúmeras orientações, observa-se a contradição entre a proposta de Freinet para a elaboração do jornal escolar e o que permitia a legislação catarinense. Para Freinet (1974), a interferência na produção dos Jornais realizada pelos professores ou pelos pais dos estudantes descaracterizaria o Jornal Escolar como uma produção livre e espontânea. Segundo o autor, por mais preciosas que fossem as interferências externas na produção dos impressos realizadas pelos responsáveis dos alunos e seus mestres escolares, esse ato não proporcionaria uma pedagogia realmente nova que colocaria o aluno como autônomo em seu processo de ensino e aprendizagem, isto é, o Jornal Escolar que sofresse interferências dos adultos não seria considerado um Jornal Escolar na perspectiva pedagógica de Freinet.

No Decreto-lei de 1946, os textos deveriam ser escritos pelos(as) alunos(as), sem dar preferência para os(as) estudantes que mais se destacassem no processo de ensino em razão de certas facilidades intelectuais, ou àqueles(as) que recebiam auxílio dos familiares, pois o propósito era fazer com que mais crianças participassem na construção desse trabalho. Entretanto, mesmo que os textos fossem escritos e produzidos pelos(as) estudantes, passariam pela análise dos(as) orientadores(as), o que nos faz pensar sobre o risco de se publicar apenas o que esses(as) entendiam como sendo benéfico para a escola.

Nas regras estabelecidas pelo Decreto-lei, o jornal poderia ser “[...] impresso, mimeografado, datilografado, manuscrito e falado. Pela carência de recursos e de aparelhagem, o Jornal impresso ou mimeografado se torna quase impossível a tiragem.” (SANTA CATARINA, 1946, p. 79). Desse modo, era recomendado que a técnica manuscrita fosse a mais utilizada, pois os(as) alunos(as) também não tinham conhecimento das técnicas necessárias de datilografia. Aconselhava-se a técnica manuscrita e a escolha dos(as) alunos(as) que possuíam boa caligrafia.

A técnica do jornal falado era indicada para alunos(as) dos primeiros anos. A orientação para a implementação desse procedimento estava baseada na narrativa oral, sendo assim descrita:

Cada semana, os alunos de determinada classe ficam incumbidos de relacionar as ocorrências de seu conhecimento dentro desse prazo e, na última aula de sábado ou em aula de língua - memorizada para aquele ato. O professor fará uma nota dos fatos expostos que pode ser publicada no Jornalzinho da escola. São muito interessantes as narrativas dos alunos nessa classe porque para não perderem o sabor da novidade nada comentam com os colegas, senão depois de expostas em classes. (SANTA CATARINA, 1946, p. 79)

A respeito da tiragem do Jornal Escolar, cada número deveria ter três exemplares, um destinado ao Departamento de Educação, que seguiria para o fichamento; outro que ficaria na escola, para ser arquivado; e o terceiro exemplar seria destinado para a reprodução, a fim de oportunizar o acesso dos leitores e dos assinantes da Associação do Jornal Escolar.

Para produzirem os jornais escolares, a direção dos educandários teria o dever de disponibilizar os materiais e os equipamentos necessários para que a Associação do Jornal Escolar pudesse iniciar a produção dos impressos, sendo que essa atividade deveria se realizar em conjunto com todos(as) os(as) participantes da associação, consolidando o trabalho em equipe, visto que era uma das propostas das AAEs.

No artigo 557, último do Decreto-lei, aparece a seguinte exigência: “[...] todas as escolas deverão organizar o seu jornal dentro dos princípios expostos” (SANTA CATARINA, 1946, p. 79), ou seja, as normas estabelecidas pelo Departamento de Educação deveriam ser seguidas para que o departamento reconhecesse o impresso como uma AAE. A recomendação ainda explicita que se a produção do jornal possuísse a colaboração de todos(as) os(as) professores(as) dos grupos escolares e extrapolasse a quantidade de quatro páginas, o que era exigido para o jornal escolar, poderia ser organizada em forma de uma revista.

Após todas as exigências expostas, o Decreto termina com a seguinte frase: “Com essas instruções desejamos obter o máximo de resultado que uma organização escolar pode oferecer. É o que esperamos.” (SANTA CATARINA, 1946, p. 79). Essa afirmação demonstra o quanto a Associação do Jornal Escolar tornou-se importante tanto para as mudanças no âmbito da educação do Estado catarinense quanto para a escola que a possuía. Denota-se uma expectativa do Departamento de Educação para com os grupos escolares, bem como em relação à responsabilidade que as escolas teriam de produzir os jornais escolares dentro das propostas e exigências. Nesse sentido, apresentamos a capa do Jornal Escolar O Estudante Orleanense9 (Figura 1), produzido por estudantes do Grupo Escolar Costa Carneiro na Cidade de Orleans, SC, em junho de 1963, como demonstração de um modelo acabado do impresso escolar.

Centro de Memória da Educação do Sul de Santa Catarina (1963)

Figura 1 Capa do Jornal Escolar O Estudante Orleanense (junho de 1963) 

Tal exemplar demonstra a materialização das exigências realizadas na legislação para a construção dos jornais escolares. Diante de tantas prescrições realizadas pelo Departamento de Educação para o desenvolvimento da Associação do Jornal Escolar nas escolas, é possível pensar sobre a impossibilidade de alcançar a ideia central de Freinet sobre o texto livre, que se fundamentava na autonomia do(a) educando(a) para a produção dos impressos escolares. Observa-se que o distanciamento da proposta de Freinet se materializava na medida em que havia uma descrição minuciosa sobre os passos para a produção do jornal. É possível afirmar que o Departamento se utilizava de uma postura autoritária e controladora quanto à produção do impresso e de seus textos, poesias, histórias, desenhos, enfim, de tudo aquilo que seria publicado no Jornal Escolar. Do mesmo modo, é possível inferir que tais prescrições e exigências poderiam sobrecarregar os(as) educadores(as) e, ao mesmo tempo, ordenava uma perfeição imperiosa que se tornava impossível de ser aferida por eles.

Para Abras e Felgueiras (2013, p. 54), “O projeto educacional do Estado Novo contemplava os Jornais Escolares como uma das atividades escolares e ao mesmo tempo como forma de controle das instituições, dos professores e dos estudantes.” Essas exigências realizadas pelo Estado catarinense não condizem com as ideias do educador escolanovista Freinet.

A Associação do Jornal Escolar difundida a partir das práticas sugeridas por Freinet foi utilizada como uma proposta pedagógica da escola ativa apresentada no movimento da Escola Nova. De acordo com Cândido (2012, p. 91), na pedagogia ativa,

Ao educando não era mais requerida a passividade anterior, mas sim, uma participação mais ativa e todas as realizações escolares que possibilitassem o pleno desenvolvimento de suas capacidades cognitivas, psicológicas e sociais. A aprendizagem no ensino ativo consistiu na aquisição gradual e individual de habilidades por cada criança, que deveria ser levada a aprender, pelo seu educador “vigilante” e perspicaz, capaz de garantir o meio e mobilizar os interesses dos seus educandos.

Nos Decretos-leis que regulamentavam os Jornais Escolares na legislação educacional de Santa Catarina, por exemplo, a produção desses gêneros textuais deveria seguir as normas e as regras prescritas, tal como nas outras AAEs. Desse modo, os impressos escolares produzidos nas instituições educacionais catarinenses não seguiam os preceitos da livre produção, como recomendava Freinet, pois, além de as AAEs serem regulamentadas pelos Decretos-leis, eram vigiadas constantemente pelos inspetores escolares. Abras e Felgueiras (2013, p. 54) destacam que

O projeto Político Pedagógico do Estado Novo acolheu os Jornais escolares como parte da metodologia nos trabalhos estudantis, imprimindo-lhes um movimento de cooperação com o intuito de incrementar a qualidade dos programas educativos. Ressalta-se ainda, que a circulação desse periódico estudantil, possibilitou a difusão de uma política controladora, presente nos registros da rotina escolar.

As técnicas e as práticas de produção do Jornal Escolar fizeram parte da cultura escolar de alguns estabelecimentos de ensino do Estado de Santa Catarina, entretanto pode-se inferir que sua concepção foi utilizada apenas como uma nova atividade educativa, e não como uma proposta efetiva de modificação do meio, a partir das concepções e das vantagens pedagógicas e psicológicas, como sugeria Célestin Freinet ao discorrer sobre a utilização do jornal escolar nos educandários.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relevância dos Jornais Escolares como práticas metodológicas de ensino e aprendizado é notória com base na legislação e nos Decretos-leis dispostos pelo Estado catarinense que os regulamentavam e normatizavam. A implementação das AAEs e a produção dos Jornais Escolares estava imersa em um contexto histórico, político, social e econômico da sociedade brasileira, que buscava normatizar os sujeitos e as relações sociais, construindo um conjunto de regras que almejava controlar a vida dos cidadãos e cidadãs.

Porém, o entendimento de produção do Jornal Escolar apresentado por Freinet não ia ao encontro dos estabelecidos pelos governos republicanos, para os quais a educação tinha como objetivo formar a mão de obra qualificada para alimentar o sistema capitalista, que ganhava força no Brasil no início do século XX. Buscava-se uma instituição educacional homogênea, a qual teria a função de alienar as crianças em um único sistema ideológico que impediria quaisquer princípios pedagógicos com fundamentos marxistas, em virtude do medo vermelho que se espalhava pelos diversos países a partir da ascensão dos governos comunistas.

A pedagogia freinetiana observou e denunciou o caráter classista presente no ensino público francês, pois seu compromisso ético, social e político para com a educação estava relacionado a um sistema educacional que atendia às crianças de famílias carentes, bem como aquelas que eram abandonadas em serviços assistenciais (KANAMARU, 2014).

Outra incompatibilidade entre a proposta pedagógica de Freinet e o entendimento de educação para o governo está estritamente relacionada à laicidade do ensino, uma vez que os governos republicanos, em especial o Governo Varguista, que buscaram modificar o cenário político, social, econômico e educacional brasileiro, baseados em propostas que fortaleceriam o ideal de uma nação moderna, capitalista e centralizada, utilizando-se da educação, fizeram com que alguns dos princípios da Escola Nova não fossem efetivamente concretizados, destacando-se, dentre eles, a laicidade do ensino.

Os princípios de laicidade do ensino estão presentes nas obras de Freinet, de acordo com Kanamaru (2014), antes mesmo de ele apresentar suas teorias metodológicas. Freinet analisou criticamente os fundamentos e as práticas da pedagogia escolástica, dominantes em sua época. Ele considerava tal pedagogia traumática e domesticadora, pois separava o caráter educacional intelectualista e dogmático, os conteúdos e a forma didática, bem como promovia a separação das práticas educacionais em relação às necessidades reais dos estudantes, tornando-se crítico das escolas religiosas e defensor da educação laica e científica.

Desse modo, encontramos incompatibilidade entre as propostas pedagógicas de Freinet e a implementação dos princípios do movimento da Escola Nova no Brasil. Como afirmado anteriormente, em Santa Catarina, as AAEs - consideradas as representantes dos princípios da Escola Nova - foram minuciosamente regulamentadas pela legislação catarinense, que descrevia detalhadamente como elas deveriam funcionar, sendo fiscalizadas pelos inspetores escolares. Assim, podemos sugerir que o movimento da Escola Nova no Estado de Santa Catarina não passou de novas práticas educativas que buscavam se distanciar dos métodos pedagógicos da escola tradicional.

A implementação e a produção das AAEs e dos jornais escolares estavam imersas em um contexto histórico, político, social e econômico da sociedade brasileira, que buscava normatizar os sujeitos e as relações sociais, construindo um conjunto de regras a fim de controlar a vida dos cidadãos e das cidadãs.

Assim, compreendemos que mesmo os princípios do movimento da Escola Nova não terem sido aplicados no dia a dia das escolas catarinenses, os debates relacionados a um novo modelo de educação avançaram. Tais avanços foram pautados nas exigências prescritas em lei, na aquisição de materiais pedagógicos para equipar as escolas, como livros de leitura e didáticos-pedagógicos e objetos de ensino, na constituição do tempo escolar e na inserção destes no contexto das/os educadoras/es e das/os gestoras/es escolares. Esses aspectos contribuíram para consolidar algumas práticas educacionais, sendo elas: a criação das associações auxiliares da escola, o modelo da escola ativa que buscava o protagonismo dos/as educandos/as no processo de ensino e aprendizagem, bem como a coeducação. Desse modo, ocorreram mudanças na cultura escolar dos estabelecimentos de ensino, isto é, o movimento da Escola Nova contribuiu para a construção de um novo olhar sobre a produção de conhecimento, por conseguinte, dos sujeitos que faziam parte do universo escolar.

Ao realizarmos a análise da legislação estadual de 1946, que determina as exigências para a produção do impresso, constatamos que a produção do Jornal Escolar, em Santa Catarina, afasta-se do ideal de texto livre proposto por Freinet.

REFERÊNCIAS

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3O departamento de Educação corresponde hoje à Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina (SED).

4É importante salientar que em Santa Catarina a primeira referência às associações escolares na legislação ocorreu pelo Decreto-lei n. 76, de 1938, que estabeleceu regras para a concretização de atividades cívicas e programas comemorativos nos educandários catarinenses (MARTINS, 2017). Entretanto, será com a publicação do Decreto-lei Estadual n. 2.991/1944 (SANTA CATARINA, 1944b) e do encaminhamento aos inspetores e diretores dos estabelecimentos de ensino, com a publicação da circular n. 42, de 10 de maio de 1944, que efetivamente elas foram postas em prática (SANTA CATARINA, 1944a).

5A técnica manuscrita é aquela que se utiliza das mãos para escrever um documento, isto é, o que é escrito manualmente.

6Policopiado é a técnica que se utiliza de um aparelho à base de álcool no qual um texto produzido à mão é inserido junto com tinta carbono para, seguidamente, serem produzidas as suas cópias (FREINET, 1974).

7A técnica de impressão por meio do limógrafo consiste na utilização de um aparelho que passa um rolo de tinta sobre um stencil (papel especial perfurado que não rasga). A tinta atravessa os perfuradores e passa para o papel colocado embaixo do stencil (FREINET, 1974).

8A técnica de tipografia se utiliza da impressora para produzir os textos. As oficinas tipográficas ficaram conhecidas mundialmente a partir do século XV, com as invenções do alemão Johannes Gutenberg (CHARTIER, 1998).

9O Jornal Escolar O Estudante Orleanense foi objeto de uma investigação mais ampla que resultou na dissertação apresenta e aprovada pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGE/UNESC) em março de 2017. Para mais informações, ver Martins (2017).

1Mestre e doutoranda em Educação pela Universidade do Extremo Sul Catarinense.

2Pós-doutora pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa; Pós-doutora em Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina.

Recebido: 06 de Agosto de 2019; Aceito: 24 de Março de 2020

Endereço para correspondência: Rua Maria Cechinel, 259, Jardim das Palmeiras, Cocal do Sul, Santa Catarina, Brasil; cintiamartins@unesc.net

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