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Roteiro

versão On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.45  Joaçaba jan./dez 2020  Epub 23-Jul-2020

https://doi.org/10.18593/r.v45i0.21665 

Artigos de Demanda Contínua

Formação docente e educação profissional: análise a partir de Shulman e Fleck

Teaching training and professional education: analysis from Shulman and Fleck

Formación docente y educación profesional: análisis de Shulman y Fleck

Marilandi Maria Mascarello Vieira1I  , Professora pesquisadora.
http://orcid.org/0000-0002-5531-9946

Maria Cristina Pansera de Araújo2II  , Professora pesquisadora.
http://orcid.org/0000-0002-2380-6934

Ione Ines Pinsson Slongo3III  , Professora adjunta.
http://orcid.org/0000-0002-2103-0896

IUniversidade Comunitária da Região de Chapecó, Programa de Pós-graduação em Educação, Professora pesquisadora.

II Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, Professora pesquisadora.

III Universidade Federal da Fronteira Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação, Professora adjunta.


Resumo:

O artigo relata estudo que teve o objetivo de analisar aspectos da formação docente para a atuação na educação profissional a partir do pensamento de Shulman (1986, 2005), Fleck (2010) e seus intérpretes. Trata-se de pesquisa bibliográfica, orientada pela Análise Textual Discursiva (MORAES; GALLIAZI, 2013). Nas obras de Shulman o foco esteve nas categorias de saberes docentes, particularmente o “conhecimento pedagógico do conteúdo”. Na obra de Fleck foram priorizadas as categorias epistemológicas “estilo de pensamento”, “coletivo de pensamento”, “círculos” e “circulações” de ideias. Essas categorias mostraram-se profícuas para uma análise dos saberes da docência presentes na formação e na prática dos professores da educação profissional. Considerando a aproximação existente entre as categorias teóricas dos dois autores, foi possível analisar que a aquisição do conhecimento pedagógico do conteúdo, pelos docentes da educação profissional, ocorre, de modo geral, no exercício da docência e em processos formativos. Em ambas as situações, houve destaque para a inserção dos docentes em distintos coletivos de pensamento, bem como para a circulação de ideias, em âmbitos intra e intercoletivos. Desse modo, tanto a formação quanto o cotidiano da docência na educação profissional, enquanto um espaço de educação continuada, mostraram-se lócus privilegiados para a aquisição e disseminação dos conhecimentos necessários à docência, particularmente o conhecimento pedagógico do conteúdo.

Palavras-chave: Shulman e os saberes docentes; Epistemologia de Fleck; Formação de professores; Docência na educação profissional.

Abstract:

The article reports a study that aimed to analyze aspects of teacher training for acting in professional education based on the thoughts of Shulman (1986, 2005), Fleck (2010) and their interpreters. This is a bibliographic research, guided by Discursive Textual Analysis (MORAES; GALLIAZI, 2013). In Shulman's works the focus was on the categories of teaching knowledge, particularly “pedagogical knowledge of content”. In Fleck's work, the epistemological categories “style of thinking”, “collective of thought”, “circles” and “circulations” of ideas were prioritized. These categories proved to be useful for an analysis of the teaching knowledge present in the training and practice of teachers in professional education. Considering the approximation between the theoretical categories of the two authors, it was possible to analyze that the acquisition of pedagogical knowledge of the content, by the teachers of professional education, occurs, in general, in the exercise of teaching and in training processes. In both situations, there was an emphasis on the insertion of teachers in different thought collectives, as well as the circulation of ideas, at intra and intercollective levels. In this way, both the training and the teaching routine in professional education, as a space for continuing education, proved to be a privileged locus for the acquisition and dissemination of the knowledge necessary for teaching, particularly the pedagogical knowledge of the content.

Keywords: Shulman and teaching knowledge; Fleck's epistemology; Teacher training; Teaching in professional education.

Resumen:

El artículo informa sobre un estudio que tuvo como objetivo analizar aspectos de la formación del profesorado para actuar en la educación profesional con base en los pensamientos de Shulman (1986, 2005), Fleck (2010) y sus intérpretes. Esta es una investigación bibliográfica, guiada por el análisis textual discursiva (MORAES; GALLIAZI, 2013). En las obras de Shulman, el enfoque se centró en las categorías de enseñanza del conocimiento, particularmente "conocimiento pedagógico del contenido". En el trabajo de Fleck, se priorizaron las categorías epistemológicas "estilo de pensamiento", "colectivo de pensamiento", "círculos" y "circulaciones" de ideas. Estas categorías demostraron ser útiles para un análisis del conocimiento docente presente en la formación y práctica de los docentes en educación profesional. Considerando la aproximación existente entre las categorías teóricas de los dos autores, fue posible analizar que la adquisición del conocimiento pedagógico del contenido, por parte de los docentes de educación profesional, se produce, en general, en el ejercicio de la enseñanza y en los procesos formativos. En ambas situaciones, se hizo hincapié en la inserción de docentes en diferentes colectivos de pensamiento, así como en la circulación de ideas, en los niveles intra e intercolectivos. De esta manera, tanto la formación como la rutina de enseñanza en la educación profesional, como un espacio para la educación continua, demostraron ser un lugar privilegiado para la adquisición y difusión del conocimiento necesario para la enseñanza, particularmente el conocimiento pedagógico del contenido.

Palabras clave: Shulman y enseñanza del conocimiento; La epistemología de Fleck; Formación de profesores; Docencia en educación professional.

1 INTRODUÇÃO

A formação e o trabalho docente são temas relevantes no atual cenário educacional brasileiro, considerando a complexa relação entre políticas educacionais e práticas docentes. Esse debate é particularmente interessante com relação aos docentes na educação profissional, cuja formação ocorre de forma diferenciada à dos docentes que atuam na educação básica.

Essa diferenciação decorre das especificidades que caracterizam a educação profissional: suas finalidades, formas de organização, diversificação das formas de oferta de cursos, verticalização do ensino e o perfil dos alunos e docentes, fatores que trazem implicações para a formação desses docentes, que precisam adaptar o trabalho a todas essas particularidades.

Em linhas gerais, o corpo docente das instituições de educação profissional é constituído por três grupos distintos: os licenciados em disciplinas da educação básica que atuam nos cursos integrados e não têm formação na educação profissional; os bacharéis ou tecnólogos que atuam nas disciplinas técnicas, têm formação na área específica e experiência profissional, mas não na docência; por fim, os profissionais técnicos de nível médio sem formação acadêmica, mas que atuam na docência em razão de sua experiência profissional na área do curso.

Na ausência de formação para a docência, como os integrantes dos dois últimos grupos elaboram os saberes constitutivos da profissão docente? Essa é uma questão sobre a qual há a necessidade de estudos que possam contribuir para a formação desses profissionais, e este trabalho insere-se nessa discussão, já que tem por escopo compreender os conhecimentos necessários à docência na educação profissional e o modo como estes podem ser adquiridos e mobilizados pelos docentes que atuam nesse espaço formativo.

Para analisar essa problemática, buscamos as contribuições de Shulman (1986, 2005), que toma como referência a constituição do conhecimento de professor e as bases do conhecimento sobre a docência e oferece elementos para compreender sua relevância no contexto da docência na educação profissional. A epistemologia de Fleck (2010) também contribui nesse sentido, uma vez que o autor concebe o processo de produção do conhecimento como ato coletivo e, assim, lança luzes sobre a constituição da docência por meio do compartilhamento de conhecimentos e práticas que ocorrem no interior dos “coletivos de pensamento” (CP). Assim, o pensamento desses autores possibilita explicitar os conhecimentos necessário à docência e sua disseminação em diferentes contextos, tema do presente artigo.

2 SHULMAN E OS SABERES SOBRE A DOCÊNCIA

Lee Shulman foi pioneiro nas pesquisas sobre o conhecimento profissional do professor, estudando o processo ensino-aprendizagem, as bases do conhecimento para a docência, a formação de professores, a instrução psicológica no ensino de ciências, matemática e medicina, a lógica da pesquisa educacional e a qualidade do ensino da educação superior.

Seus estudos são datados na década de 1980, período de descontentamento geral da sociedade americana com a educação e suas faculdades de educação pela má formação dos professores. Shulman (1989) analisou as pesquisas desenvolvidas por cinco programas de investigação sobre os professores e sua formação, identificando suas estruturas e paradigmas, indicando os avanços, limites e contribuições para a construção de uma base sólida de conhecimentos sobre os processos de aprendizagem e de desenvolvimento profissional da docência. Ele apresentou (SHULMAN, 1989) um conjunto de proposições com o objetivo de complementar as lacunas presentes em tais programas e que serviram de referência para as reformas educativas americanas na década de 1990, marcadas pelo movimento de profissionalização do ensino, em que pesquisadores buscaram identificar um repertório de conhecimentos que pudessem se constituir em base da ação docente.

O autor (SHULMAN, 2005) identificou sete conhecimentos-base para a docência: o conhecimento do conteúdo, o conhecimento didático geral, o conhecimento curricular e o conhecimento pedagógico do conteúdo, dos alunos e suas características, dos contextos educativos e dos objetivos, das finalidades e dos valores educativos, e dos fundamentos filosóficos e históricos.

A categoria que o distingue dos demais estudiosos sobre saberes docentes, como Tardif (2002) e Gauthier et al. (2006), é o “Conhecimento pedagógico do conteúdo” (CPC), identificada originalmente por Shulman como Pedagogical Content Knowledge (PCK) e que é traduzida de forma diferente pelos autores. Shulman (1986, 2005) demonstrou interesse particular por essa categoria porque acredita que a capacidade de transformar o conhecimento disponível sobre um tema em conteúdo escolar e favorecer o aprendizado pelo aluno é o que caracteriza a docência. Portanto, Shulman busca elucidar como o conhecimento produzido no contexto social se transforma em conteúdo escolar e é aprendido pelos alunos, ou seja, o processo de transmissão e transformação do conhecimento na escola.

Os estudos de Shulman não tomaram a análise sobre a produção do conhecimento como aspecto central, mas sua disseminação pela escola. O autor apenas faz referência a dois grupos envolvidos nesse processo: os especialistas e os professores. Argumenta que o primeiro produz o conhecimento, notadamente, o científico, enquanto o professor é responsável pela sua transformação em conteúdo escolar e transmissão via processo ensino-aprendizagem. O domínio do conhecimento de uma área, portanto, não faz do especialista um professor. Grossman, Wilson e Shulman (2005, p. 5, tradução nossa) assim expressam:

Os professores e os especialistas têm diferentes objetivos primários. Os especialistas criam um novo conhecimento na disciplina. Os professores ajudam os alunos a adquirir conhecimento em uma área. Esses objetivos diferentes exigem entendimentos relacionados, mas diferentes, do assunto. Todos nós tivemos um professor que obviamente conhecia o assunto, mas não conseguia explicá-lo aos alunos. Bons professores não apenas conhecem seu conteúdo, mas também sabem coisas sobre seu conteúdo que possibilitam uma instrução eficaz.

Destaca Shulman (1986, p. 11) que o professor, além do domínio da matéria que leciona, precisa também construir referenciais que o permitem compreender “como determinados temas e problemas são organizados, representados e adaptados aos diversos interesses e capacidades dos alunos, e expostos em seu ensino.” É isso que ele identifica como CPC, “esse especial amálgama entre matéria e pedagogia que constitui uma esfera exclusiva dos professores, sua própria forma especial de compreensão profissional.” (SHULMAN, 2005, p. 10, tradução nossa).

O CPC representa a articulação entre outras duas: o conhecimento da disciplina e o conhecimento pedagógico geral. Segundo Segall (2004), no ensino, tanto um quanto outro tipo de conhecimento não existem de forma independente porque o conteúdo é sempre pedagógico, e a pedagogia é sempre conteúdo. Ambos confluem para o CPC porque é ele quem permite transformar o conteúdo científico em escolar de forma que possa ser ensinado. Shulman (1986, p. 9, tradução nossa) aponta essa categoria como um tipo de saber necessário ao professor:

Dentro da categoria de conhecimento pedagógico do conteúdo incluo, para os tópicos mais regularmente ensinados de uma área de estudo, as formas mais úteis de representação dessas ideias, as mais poderosas analogias, ilustrações, exemplos, explicações e demonstrações, numa palavra, a formas de representar e formular o assunto que a torna compreensível para os outros. [...] Conhecimento pedagógico do conteúdo também inclui uma compreensão do que torna o aprendizado de temas específicos fácil ou difícil: as concepções e preconceitos que alunos de diferentes idades e origens trazem com eles para a aprendizagem desses tópicos e lições mais frequentemente ensinadas.

Percebe-se, pois, que o CPC é constituído de vários componentes, descritos a seguir.

a) A organização do conjunto de conhecimentos produzidos pela ciência, transformando-o em matéria de ensino, o que envolve um processo de seleção, estruturação, hierarquização e adequada sequenciacão do conteúdo.

Grossman (2005), a partir de pesquisa com professores iniciantes na docência em uma escola secundária americana, considera o conhecimento do conteúdo como um componente do CPC, que inclui as crenças sobre a seleção e a organização dos materiais curriculares.

Grossman, Wilson e Shulman (2005, p. 10, tradução nossa) ressaltam a importância do conhecimento do conteúdo da disciplina pelo professor para o exercício da docência: “Os professores que compreendem o mapa mais amplo de sua matéria, que entendem a relação de tópicos e habilidades individuais com os tópicos mais gerais em seu campo, também podem ser mais eficientes no ensino de suas matérias.” Os autores ressaltam que o conhecimento do conteúdo ou a falta dele interfere na forma como o professor estrutura os conteúdos, seleciona o material e conduz a aula.

b) A compreensão acerca da situação concreta dos estudantes de diferentes idades com relação a um conteúdo particular

O conhecimento sobre os estudantes é outro componente do CPC. Grossman (2005) afirma que muitas vezes os professores, ao selecionarem o conteúdo e as estratégias de ensino, tomam como referência as próprias trajetórias como estudantes, o que gera dificuldades na tarefa de ensinar, porque criam a expectativa de que eles tenham o mesmo grau de domínio de conhecimentos e motivação dos docentes, quando estudantes. Nas suas pesquisas, Grossman (2005, p. 16, tradução nossa) constatou que os professores acharam difícil prever os problemas e os interesses dos estudantes.

O descompasso entre os ideais implícitos sobre os alunos por parte desses professores e as realidades da capacidade dos alunos e suas motivações é particularmente problemático, especialmente quando os novos professores não podem ensinar em cursos avançados em que podem encontrar os alunos que desejariam ensinar. Sem ajuda, os professores podem aprender a culpar os alunos por sua falta de capacidade ou motivação em vez de mostrar suas abordagens sobre a responsabilidade do professor de atingir uma ampla gama de alunos.

c) A compreensão sobre como os estudantes poderão interpretar os tópicos específicos do conteúdo, a partir de seus conhecimentos prévios, identificando possíveis equívocos e dificuldades.

Shulman (1986) argumenta que o estudo dos problemas, dos equívocos de compreensão da matéria pelos estudantes e sua influência na aprendizagem é um dos temas mais férteis para a investigação cognitiva porque faz parte do conhecimento que o professor precisa ter para ensinar, transformando as concepções iniciais, e indica que isso exige a interpretação didática a que se refere McEwan (1987). Grossman, Wilson e Shulman sintetizam algumas conclusões de estudos desenvolvidos por McEwan (1987 apud GROSSMAN; WILSON; SHULMAN, 2005, p. 7, tradução nossa):

[...] uma tarefa central do ensino são as "interpretações didáticas" da matéria, interpretações que se apoiam sobre o conhecimento que os professores têm das crenças dos alunos acerca da matéria. McEwan sugere que, para que os professores construam interpretações didáticas sólidas, devem possuir o conhecimento adequado das crenças dos alunos acerca da matéria. Essas crenças incluem os preconceitos e os equívocos dos alunos, bem como o conhecimento prévio e a experiência dos alunos na matéria.

Grossman, Wilson e Shulman (2005) ressaltam que não são apenas as crenças e os conhecimento anteriores dos estudantes que interferem no processo de ensinar, mas os do próprio professor, que também possui representações acerca da docência, dos estudantes, da escola e da matéria que influenciam não apenas na seleção do que ensinar, mas sobre como ensinar e como os alunos aprendem.

Grossman (2005, p. 6, tradução nossa) aponta como importante componente do CPC as crenças do professor sobre as metas e os objetivos de ensinar a disciplina ou conteúdo porque elas funcionam como “[...] um marco organizado, o mapa conceptual, para a tomada de decisões instrutivas, servindo de base para avaliação de livros textos e materiais curriculares, objetivos de aula, tarefas apropriadas, e avaliações de aprendizagem dos alunos.”

d) A seleção de estratégias mais pertinentes para ensinar cada tópico do conteúdo em circunstâncias específicas em sala de aula.

Shulman (1986) faz referência, sobretudo, à forma como o professor constrói as representações, isto é, interpreta o conteúdo e o transforma para facilitar a compreensão pelo aluno, mobilizando-o para o conhecimento. Refere-se, então, à habilidade de transformar o conteúdo em atividades e experiências para facilitar o aprendizado, o que inclui as analogias, o uso de exemplos, explicações e demonstrações daquele tópico específico do conteúdo.

A análise dos tipos de conhecimento e formas de divulgação não foi objeto de estudo de Shulman. Assim, quando o autor (2005) menciona tipos de conhecimento, refere-se à categoria “conhecimento do conteúdo”, ou seja, o domínio, pelo professor, do conteúdo da área disciplinar em que atua. Ele faz referência a dois tipos: o conhecimento substantivo e o sintático. O primeiro inclui o conteúdo per si, ou seja, o conjunto de conceitos, definições, teorias, termos e paradigmas explicativos utilizados pela área, enquanto o segundo, o sintático, refere-se a regras, processos, métodos, instrumentos e cânones de evidência que a área lança mão para construir seus conhecimentos, de modo a divulgá-los e obter a aceitação pelos especialistas. Mizukami (2004, p. 35), interpretando Shulman, define o conhecimento sintático como:

[...] padrões que uma comunidade disciplinar estabeleceu de forma a orientar as pesquisas na área. Refere-se à forma como os novos conhecimentos são introduzidos e aceitos pela comunidade. A estrutura sintática envolve conhecimento de formas pelas quais a disciplina constrói e avalia novo conhecimento. É importante que o professor não só aprenda os conceitos, mas que os compreenda à luz do método investigativo e dos cânones de ciência assumidos pela área de conhecimento.

É possível estabelecer certa semelhança entre o “conhecimento sintático” de Shulman e o papel atribuído por Fleck ao círculo esotérico na produção do conhecimento, ou seja, a formação do EP envolve tanto o conteúdo em si quanto as suas formas de produção.

Em consonância a essas categorias, serão abordados a seguir elementos da epistemologia de Fleck (2010), os quais contribuem para a análise da formação docente na educação profissional.

3 A EPISTEMOLOGIA DE FLECK E OS GRUPOS ENVOLVIDOS NA PRODUÇÃO E DISSEMINAÇÃO DO CONHECIMENTO

O médico e filósofo judaico-polonês Ludwik Fleck (1896 -1961) é autor da obra Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico, que serve de referência a este estudo e é considerado pela comunidade científica como o mais relevante trabalho do autor, publicado em alemão em 1935, em inglês em 1979, em espanhol em 1986 e em português em 2010. A obra apresenta um caso da história da medicina, a sífilis, explicitando a evolução histórica do que denomina de “pensamento sifilidológico”. Ao fazê-lo, Fleck expressa sua compreensão acerca da produção do conhecimento científico, isto é, sua “epistemologia comparada”.

Ainda que a reflexão epistemológica de Fleck tenha se destinado inicialmente à área de Saúde/Medicina [...] sua argumentação se amplia no sentido de propor uma teoria do conhecimento. [...] sua proposta pode ser empregada para uma compreensão gnoseológica da produção de conhecimentos por comunidades leigas do ponto de vista científico e a interação destas com as comunidades que produzem conhecimento científico. (DELIZOICOV et al., 2002, p. 64).

O desafio de Fleck (2010) foi compreender o surgimento e o desenvolvimento do fato científico, concebido como um objeto de estudo de natureza histórico-sociológica. Ao reconstruir a história do conceito de sífilis, afirmou que os fatos científicos são porta-vozes de uma época e de um modo de compreender, sendo, portanto, dinâmicos, transitórios e mutáveis, reinterpretados segundo os modos de perceber de cada época. Definiu-os ainda, como “[...] uma relação de conceitos conforme o estilo de pensamento, que, embora possa ser investigável por meio dos pontos de vista históricos e da psicologia individual e coletiva, nunca poderá ser simplesmente construída, em sua totalidade, por meio desses pontos de vista.” (FLECK, 2010, p. 132).

O autor argumenta que a gênese e o desenvolvimento do conhecimento não se baseiam numa perspectiva lógica, objetiva, neutra ou individual, posto que o conhecimento é socialmente produzido e compartilhado como resultado de processos históricos vivenciados por grupos em interação. Ou seja, há em sua epistemologia a “culturalização” das ciências, por meio da valorização dos aspectos sociais, históricos, culturais e antropológicos, os quais condicionam a produção do conhecimento. Nos termos de Fleck (2010, p. 85), “O processo de conhecimento representa a atividade humana que mais depende das condições sociais, e o conhecimento é um produto social por excelência.”

Portanto, para Fleck (2010), o conhecimento é sempre datado, socialmente situado e produzido por meio da interação entre sujeito, objeto e um terceiro fator, o estado do conhecimento; este, constituído pelas relações históricas, sociais e culturais que compõem o estilo de pensamento (EP) compartilhado pelo coletivo de pensamento (CP). Ou seja, na relação cognoscitiva, “[...] algo já conhecido influencia a maneira do conhecimento novo; o processo do conhecimento amplia, renova e refresca o sentido do conhecido.” (FLECK, 2010, p. 81).

3.1 O CONDICIONAMENTO SOCIAL DA PRODUÇÃO E DISSEMINAÇÃO DO CONHECIMENTO

Cabe, aqui, dar destaque a duas categorias estruturantes do pensamento epistemológico de Fleck (2010): estilo de pensamento e coletivo de pensamento. Sobre a categoria EP, Fleck assim a define (2010, p.149, grifos do autor): “[...] consiste numa determinada atmosfera (Stimmung) e sua realização. Uma atmosfera (Stimmung) possui dois lados inseparáveis: ela é a disposição (Bereitschaft) para um sentir seletivo e para um agir direcionado correspondente.” Ele representa, portanto, o modo de pensar, de entender e de agir segundo a compreensão compartilhada por determinado grupo, o CP, que predispõe seus membros para uma percepção seletiva dos fatos e para uma ação direcionada, estabelecida por meio da coerção exercida pelo coletivo sobre o indivíduo. Estão explícitos, então, os dois principais componentes do EP: a disposição para o perceber orientado e a respectiva ação dirigida e restringida ao estilo.

Quanto à origem do EP, Pfuetzenreiter (2003) identificou em Fleck três fontes: as protoideias, a circulação intracoletiva e a circulação intercoletiva das ideias, ou seja, os efeitos do confronto de ideias, que produz transformações na forma de conceber o saber em questão. Pfuetzenreiter (2002, p. 153) argumenta que há uma relação entre o grau do desenvolvimento do conhecimento e a possibilidade de sua ruptura, ou seja, “Quanto mais desenvolvido um campo do conhecimento, menores serão as divergências de opinião. O conhecimento vai se tornando uma estrutura rígida, com muitos pontos de confluência, deixando, portanto, pouco espaço para o desenvolvimento de outras formas de pensamento.”

Amalgamado ao conceito de EP está o conceito de CP. Fleck (2010, p. 82) caracterizou CP como “uma comunidade de pessoas que trocam pensamentos ou se encontram numa situação de influência recíproca [...]” Desse modo, é um coletivo que compartilha pensamentos e práticas e define, portanto, os pressupostos do EP. O autor adverte que “[...] quando duas ou mais pessoas trocam ideias constituem coletivos momentâneos ou casuais de pensamento, que aparecem e desaparecem a cada momento [e não lhe cabe] [...] o valor de um grupo fixo ou de uma classe social.” (FLECK, 2010, p. 154). Contudo, coletivos estáveis ou relativamente estáveis “[...] formam-se, principalmente, em torno de grupos altamente organizados. Quando o grupo maior existe por tempo suficientemente longo, o EP se fixa e ganha uma estrutura formal” (FLECK, 2010, p. 154), exercendo força coercitiva maior sobre seus membros do que os grupos casuais. Outro aspecto ressaltado é que o indivíduo pode pertencer a vários CPs ao mesmo tempo. Portanto, o CP não significa apenas uma soma de indivíduos.

Em sua epistemologia sócio-histórica, chamou a atenção para a recorrente dinâmica estabelecida na marcha do pensamento, fazendo com que o EP, enquanto modo de ser pensar e agir, compartilhado por um CP, ao mesmo tempo em que resiste, sofre transformações. Essa dinâmica foi descrita pelo autor como sendo a instauração, extensão e transformação de EPs. Esse ciclo, para Fleck, é processual e está fortemente amparado nos processos comunicativos, em âmbito interno e externo ao CP.

Assim, toda a teoria científica vive inicialmente uma fase clássica, em que o EP se acha instaurado e o CP trabalha de modo coeso, orientado pelos pressupostos do EP, de modo a desenvolvê-lo. Nesse período, todos os problemas se encaixam, as ideias estão em conformidade com o pensamento vigente, é a fase da “harmonia das ilusões”. Trata-se, portanto, de um período em que ocorre a extensão do EP.

Contudo, essa tendência à persistência aos poucos vai sendo abalada diante do surgimento de novos problemas que já não são respondidos pelo pensamento vigente, caracterizando o surgimento das exceções ou complicações. Estas levam à perda do ver formativo, estruturante do EP, o que, indicando a quebra do “feitiço” da harmonia das ilusões e número de exceções, ultrapassa as regularidades. Ocorre, então, a exaustão do EP e a intensificação do diálogo intercoletivo. Esse período de instabilidade, de grande agitação e confronto de ideias acaba por levar à transformação o EP vigente.

Ou seja, a transformação e a instauração de um novo EP apresenta uma fase inicial em que o olhar é confuso, pouco claro e pouco articulado, passando gradativamente ao “ver gestáltico”, quando ocorrem mudanças no direcionamento da percepção e os membros do CP voltam a compartilhar um novo modo de pensar, conceber e tratar os fatos científicos. Fleck (2010, p. 37) argumenta que “Com o deslocamento dos pressupostos, muda o saber: algo novo aparece - outra coisa, conteúdo já não pode mais ser ‘sabida’ se ela perdeu seus fundamentos através da inovação.” A condição harmônica é, então, conquistada, e o EP passa a se desenvolver, caracterizando um novo período de extensão.

A vitalidade de um EP, dentre outros aspectos, manifesta-se na resistência em aceitar contradições, o que provoca dificuldade de diálogo com outros EPs, já que, segundo Fleck (2010, p. 161), “O estilo de pensamento alheio tem ares de misticismo, as questões rejeitadas por ele são consideradas exatamente como as mais importantes, as explicações como não são comprovadoras ou errôneas e os problemas, muitas vezes, como brincadeira sem importância ou sem sentido.” Há, então, uma relação de estranhamento e distanciamento entre EPs que gera certo nível de dificuldade de comunicação entre diferentes CPs. As razões estão na incongruência entre EPs e na dificuldade de estabelecer diálogo entre perspectivas diversas, pois, assumindo uma, necessariamente negamos a sua alternativa.

Em síntese, o autor argumenta que um fato científico surge por meio de um ciclo : primeiro um sinal de resistência no pensamento inicial caótico, depois uma certa coerção de pensamento e, finalmente, uma forma (Gestalt) a ser percebida de maneira imediata.” (FLECK, 2010, p. 144, grifo do autor). Esse ciclo é contínuo e dinâmico, porque ocorre sem grandes rupturas ou revoluções, pois,

Nunca um fato é completamente independente de outros: ou se manifestam como um conjunto mais ou menos coeso do sinal particular, ou como sistema de conhecimento que obedece a leis próprias. Por isso, cada fato repercute retroativamente em outros, e cada mudança, cada descoberta exerce um efeito em um campo que, na verdade, não tem limites: um saber desenvolvido, elaborado na forma de sistema harmonioso, possui a característica de cada fato novo alterar todos os anteriores, por menor que seja essa alteração. Nesse caso, cada descoberta é, na verdade, a recriação do mundo inteiro em um coletivo de pensamento. (FLECK, 2010, p. 153).

Analisando essa complexa dinâmica, o autor destaca que em torno de qualquer formação do pensamento atuam dois grupos que se envolvem de forma hierarquizada, com sua produção e disseminação, os círculos esotéricos e os exotéricos.

O círculo esotérico, numericamente menor, é constituído pelos especialistas da área, que têm o domínio intelectual do campo de conhecimento em questão e produzem o saber especializado. O segundo grupo, denominado exotérico, é formado pelos não especialistas, os leigos e os leigos formados, quantitativamente maior que o anterior, porque representa a opinião pública. Este último não tem relação direta com a produção do saber especializado, mas é portador de conhecimento da ciência popular. Para o autor:

Um coletivo de pensamento consiste em muitos desses círculos que se sobrepõem, e um indivíduo pertence a vários círculos exotéricos e a poucos, eventualmente a nenhum, círculo esotérico. Existe uma hierarquia gradual de iniciação e muitos fios que ligam tanto cada um dos níveis, quanto os diversos círculos. O círculo exotérico não possui uma relação imediata com aquela formação de pensamento, mas apenas através da intermediação do círculo esotérico. A relação da maioria dos participantes do coletivo de pensamento com as formações do estilo de pensamento reside, portanto, na confiança nos iniciados. Mas até esses iniciados não são, de maneira alguma, independentes: dependem mais ou menos, de maneira consciente ou inconsciente, da “opinião pública”, isto é, da opinião do círculo exotérico. Dessa maneira surge, de modo geral, o fechamento interno do estilo de pensamento e sua tendência à persistência. (FLECK, 2010, p. 157).

Enquanto o ingresso no círculo esotérico exige formação, por meio de um processo de aprendizagem dirigida a uma área do conhecimento que lhes capacite a perceber dirigido, o ingresso no círculo exotérico não exige pré-requisitos. Há um importante traço distintivo entre os dois grupos, dos leigos e dos especialistas, a formação e aquisição de um conhecimento específico e a experiência em determinada área do conhecimento.

Para Fleck (2010), a circulação intracoletiva de ideias, isto é, aquela que ocorre entre os membros de um mesmo CP, é a estratégia fundamental para a formação dos pares e ampliação do círculo esotérico. De outro lado, o autor atribui à circulação intercoletiva, aquela que ocorre entre membros de diferentes EPS, a disseminação do EP para os não especialistas, que constituem o círculo exotérico, em relação ao círculo esotérico em questão. Esse processo se distingue do processo de formação de especialista, uma vez que, no diálogo intercoletivo, ocorre o que Fleck chama de simplificações do conhecimento disseminado.

Delizoicov (2004), ao utilizar a estrutura de pensamento fleckiana sobre a produção e a disseminação dos EPs, faz uma leitura do processo educativo escolar. Parte do pressuposto que a educação escolar é um processo de disseminação dos EPs nas áreas disciplinares e aponta a interface de três círculos comunicativos, caracterizando o que chama de tráfego intercoletivo de pensamentos: o círculo esotérico - formado pelos pesquisadores das diferentes áreas, que produzem os EPs, a serem disseminados no processo educacional; o círculo exotérico de leigos formados - constituído pelos professores das diferentes áreas de conteúdo escolar que, via processo educacional, objetivam disseminar ou popularizar os EPs vigentes; o círculo exotérico de leigos - constituído pelos estudantes que pretendem se apropriar dos EPs vigentes na área.

Fleck adverte, no entanto, que o grau de circulação intercoletiva está condicionado ao grau de aproximação entre os círculos: quanto mais traços comuns mais facilmente as ideias circulam, e a maior distância dificulta a comunicação. O autor chama a atenção para o deslocamento de sentido que o conhecimento pode sofrer na circulação intercoletiva, pois “[...] a simples comunicação de um saber nunca acontece sem transformação, mas sempre com uma modificação de acordo com determinado estilo; no caso intracoletivo, com o fortalecimento; no caso intercoletivo, com uma mudança fundamental.” (FLECK, 2010, p. 163).

3.2 O TRÂNSITO DO CONHECIMENTO

Há ainda dois aspectos da epistemologia fleckiana que interessam ao presente estudo: os tipos de conhecimento e suas formas de disseminação. O autor distingue quatro tipos de ciência ou de pensamento circulando socialmente: a ciência dos periódicos, a ciência dos manuais, a ciência dos livros didáticos e a ciência popular.

Para Fleck (2010), o conhecimento especializado ou científico é produzido pelo círculo esotérico, resultado de comprovações, de trabalho empírico que, para ser popularizado, precisa ser simplificado, sob pena de tornar-se inútil na prática social. Assim, perde sua rigidez, adquirindo plasticidade, sendo transformado para tornar-se compreensível aos membros do círculo exotérico. O autor argumenta que há uma relação circular entre esses tipos de conhecimento, pois o popular advém da simplificação do científico, tanto quanto esse último tem sua gênese nos conhecimentos populares.

Dado que a ciência popular abastece a maior parte das áreas do saber de cada pessoa, e dado que também o profissional mais meticuloso lhe deve muitos conceitos, muitas comparações e seus pontos de vista gerais, ela representa um fator de impacto genérico de qualquer conhecimento e deve ser considerada como um problema epistemológico. Quando um economista fala em organismo econômico, ou um filósofo em substância, ou um biólogo no estado de células, todos utilizam em sua própria especialidade conceitos oriundos do repertório popular do saber. É em torno desses conceitos que constroem suas ciências especializadas [...] esses elementos foram muitas vezes decisivos para o conteúdo do saber especializado, predeterminando seu desenvolvimento por décadas. (FLECK, 2010, p. 165, grifo nosso).

Segundo o autor, a ciência dos periódicos, produzida pelo círculo esotérico, é apresentada com linguagem estilizada, própria do EP, e mantém a marca do provisório e do pessoal. Muitas vezes aborda hipóteses, em versão ainda não conclusiva e com pouca conexão com a problemática da área, portanto, ainda em processo, mostrando sua provisoriedade.

Os periódicos contribuem para o avanço do conhecimento, tornando-se o veículo que mais favorece a emergência de novas abordagens sobre o objeto de estudo. O autor do texto, ao divulgar seus estudos nesse veículo, tem a aspiração de ser reconhecido pelo seu CP e ver suas ideias aceitas, estando suas conclusões adequadas ao EP em vigor.

A ciência dos manuais, por sua vez, apresenta o objeto por meio de uma linguagem impessoal. Busca uma totalidade orgânica e, por isso, aglutina os trabalhos individuais, veiculados em periódicos e produzidos no interior do grupo esotérico, com a função de sistematizar esse conhecimento e apresentá-lo de forma ordenada. Contudo, a ciência dos manuais não nasce simplesmente da soma ou aglutinação dos trabalhos publicados em periódicos, pois a ciência dos manuais

[...] escolhe, mistura, adapta e sintetiza o saber exotérico de coletivos alheios e o saber estritamente especializado do sistema. Os conceitos assim formados passam a dar o tom, tornando-se impositivos para qualquer especialista: o sinal inicial de resistência se transforma numa coerção de pensamento que determina o que não pode ser pensado de outra maneira, o que é negligenciado ou não é percebido e, inversamente, onde se deve investigar com acuidade redobrada: a disposição para a percepção direcionada se intensifica e toma forma. (FLECK, 2010, p. 177-178).

Nesse processo, não basta adicionar ou seriar os trabalhos isolados dos periódicos, posto que eles são, muitas vezes, fragmentados ou contraditórios, o que não pode constituir os manuais, que precisam formar sistemas fechados caracterizados pela certeza e unidade de pensamento, de modo a mostrar certa hegemonia do CP. Tal sistematização requer a elaboração de um plano em que se faz a seleção e a ordenação do que vai ser nele abordado.

[...] decide o que deve ser considerado como conceito fundamental, quais métodos são chamados louváveis, quais os rumos que são apresentados como prometedores, quais os pesquisadores que merecem uma posição de destaque e quais deles simplesmente cairão no esquecimento. (FLECK, 2010, p. 173).

A linguagem dos manuais é mais impositiva, talvez coercitiva, do que a dos periódicos, já que exerce a função de “coação do pensamento”, ou seja, é como se efetiva a imposição de dado modo compreender as ideias, a doutrinação e, por isso, precisa ser impessoal e fixa. Fleck (2010, p. 172) exemplifica com afirmações usadas nos manuais: “Somente a ciência impessoal dos manuais traz expressões como: ‘não existe isso ou aquilo’, ou ‘há algo como’, ‘não há dúvida de que’.” Mediante seleção criteriosa, os manuais disseminam um sistema coerente, que não deixa à mostra as particularidade e incongruências próprias da ciência de periódicos.

Em síntese, Fleck (2010) apresenta o manual como o veículo mediador entre o grande público e os especialistas. Transforma o que até então era a predisposição do fato em fato propriamente dito, “[...] no estágio do saber cotidiano e popular, ele se torna carne: uma coisa imediatamente perceptível, isto é, realidade.” (FLECK, 2010, p. 179). É ele o principal veículo de popularização do EP entre os leigos, etapa importante para a sua legitimação.

Quanto à ciência popular, Fleck aponta que lhes falta uma análise epistemológica. Considera-a como a origem do saber com que, muitas vezes, operamos no cotidiano. Sua característica dogmática apresenta conteúdo simplificado, de poucos detalhes ou pontos polêmicos. Portanto, trata-se da ciência para não especialistas, isto é, a ciência para leigos. Assim, ela afasta-se do “centro esotérico” em direção à periferia exotérica, mostrando-se, conforme Fleck (2010, p. 171), com maior plasticidade emotiva e segurança, pois “[...] não se exigem mais provas coercitivas para o pensamento, pois, a palavra já se tornou carne.”

Com relação à ciência dos livros didáticos, Fleck (2010) não a aborda de forma enfática. Apresenta-a brevemente como um caminho para a disseminação da ciência esquematizada a partir dos manuais, visando transformá-la em ciência popular, no âmbito do círculo exotérico. Dentre suas características destaca a simplificação artificial, a ausência de detalhes e polêmica.

Por fim, cabe destacar que o potencial analítico e de transposição da abordagem fleckiana para uma leitura interpretativa de outros contextos formativos, por exemplo, da formação e do trabalho docente, tornaram a epistemologia de Fleck (2010) particularmente relevante para o estudo relatado. Na próxima seção será apresentada a leitura que suas categorias epistemológicas, notadamente o EP, o CP, os círculos eso e exotérico e a circulação intra e intercoletiva de conhecimentos e práticas, possibilita em relação à aquisição dos saberes docentes pelos professores da educação profissional, tendo em vista sua formação em círculos exotéricos, relativamente ao exercício da docência.

4 CONTRIBUIÇÕES DE SHULMAN E FLECK PARA A FORMAÇÃO DOCENTE NA E PARA A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL

Como mencionado na introdução, os professores que ministram as disciplinas técnicas nos cursos de educação profissional em geral são graduados em sua área de formação, porém sem formação para a docência, dados confirmados por Vieira em estudos sobre a produção do conhecimento em educação profissional abrangendo o período de 2010 a 2017, apresentados em eventos (VIEIRA, 2018) e em Programas de Pós-Graduação - teses e dissertações (VIEIRA; ARAÚJO; VIEIRA, 2018).

Esses dados são corroborados pela Sinopse Estatística da Educação Básica de 2019, que aponta que do total de 130.005 professores que atuam na educação profissional regular, 69 têm ensino fundamental, 7.101 têm ensino médio e 122.835 são graduados, sendo que destes, 70.858 (57,69%) são licenciados e 51.977 (42,31%) não têm licenciatura (INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2019). Quanto aos cursos de pós-graduação, 52.823 cursaram especialização, 23.559 são mestres, e 8.050 têm titulação de doutor.

É preciso considerar que os profissionais com o perfil descrito atuam numa modalidade de ensino cujo exercício da docência envolve aspectos distintivos em relação às demais etapas da educação básica, aspectos esses ligados às suas especificidades e que exigem postura profissional específica, levando em conta, inclusive, as particularidades do próprio fazer docente. No caso do nível de ensino técnico, Machado (2008, p. 18) chama a atenção para algumas particularidades relativas à atuação do docente:

a) no ensino técnico integrado ao médio, ele deve saber integrar os conhecimentos científicos, tecnológicos, sociais e humanísticos, que compõem o núcleo comum de conhecimentos gerais e universais, e os conhecimentos e habilidades relativas às atividades técnicas de trabalho e de produção relativas ao curso técnico em questão;

b) no ensino técnico concomitante ao médio, ele deve saber articular o planejamento e o desenvolvimento dos cursos, de modo a aproveitar oportunidades educacionais disponíveis; e

c) no ensino técnico subsequente ao médio, ele deve saber lidar com um alunado heterogêneo que já concluiu o ensino médio e reforçar a formação obtida na educação básica paralelamente ao desenvolvimento dos conteúdos específicos à habilitação.

A autora reporta os desafios que esse professor precisa enfrentar quando ingressa na profissão em contextos tão diferenciados como são as escolas técnicas, o que exige posturas didático-pedagógicas portadoras de especificidades.

Para a classificação das fontes de conhecimento sobre a docência, tomamos como referência Grossman (2005), colaboradora de Shulman, que, por meio de um estudo de caso, comparou a prática desenvolvida em sala de aula por seis professores de inglês principiantes, sendo três graduados em curso de formação de professores e três sem essa formação profissional formal. O estudo constatou que as fontes são múltiplas, entre as quais destaca quatro: conhecimento da matéria a ser ensinada; experiência do professor como estudante; aprendizado adquirido nos cursos de formação dos professores e experiência profissional.

Neste trabalho, as fontes de conhecimento sobre a docência foram analisadas a partir do aporte teórico de Shulman e Fleck e agrupadas em dois tópicos:

formação acadêmica: inclui o conhecimento do conteúdo, a formação pedagógica adquirida na formação graduada e/ou pós-graduada e a experiência como estudante e pesquisador;

a prática profissional: a experiência profissional na área de formação, a experiência na área da docência e a formação continuada.

4.1 A FORMAÇÃO ACADÊMICA E O EXERCÍCIO PROFISSIONAL: O INGRESSO EM DIFERENTES COLETIVOS

A formação acadêmica em nível de graduação tem como objetivo disseminar o conhecimento acumulado pela área, com o intuito de formar os novos membros que seguirão o desenvolvimento desta. É nesse espaço formativo que os profissionais adquirem, em boa medida, os saberes disciplinares (teóricos e práticos) que, ao assumirem a docência, irão ministrar. Desse modo, é possível argumentar que a constituição docente se inicia no curso universitário, por meio da apropriação do conhecimento do conteúdo específico da área.

Shulman (1986) sinaliza que o conhecimento específico, veiculado na literatura de cada área, e o conhecimento filosófico e histórico sobre a natureza do conhecimento no campo de estudo são elementos presentes nos cursos universitários. Assim, neles o profissional adquire o conhecimento da matéria, que, segundo Grossman (2005), na profissão docente, não se reduz ao conjunto de informações produzidas pela ciência, que Shulman intitulou conhecimento substantivo, mas também adquire a compreensão sobre a estrutura sintática da área.

Grossman (2005) afirma que, ao se tornar professor, o profissional precisa compreender com clareza o papel que a disciplina tem para a formação dos alunos e dos objetivos de ensiná-la, pois em seus estudos constatou que a concepção do professor acerca disso modifica a forma como ele seleciona, organiza e ensina o conteúdo.

Os professores que atuam nas disciplinas técnicas dos cursos de educação profissional, em sua grande maioria, não optaram prioritariamente pela profissão docente, nem mesmo na formação pós-graduada, quando, geralmente, aprofundaram sua inserção no círculo formado pelos pesquisadores da área específica, passando a integrar os CPs dessas profissões (veterinária, agronomia, direito, etc.). Ao assumir a docência na educação profissional, ingressam em outro coletivo de pensamento, o dos docentes. Por fim, no exercício da profissão docente, relacionam-se com um terceiro círculo, dos estudantes do ensino médio, que buscam, por meio da formação técnica, mudar seus EP. Uma análise fleckiana possibilita, assim, caracterizar esses círculos com os quais os docentes intercambiam conhecimentos e práticas:

o círculo esotérico: formado pelos professores da educação profissional, especialistas em suas áreas específicas, que ministram disciplinas de conteúdo específico e realizam pesquisas nas respectivas áreas de formação;

o círculo esotérico: formado pelos professores que possuem formação para a docência e realizam pesquisa na área do ensino;

o círculo exotérico: formado pelos estudantes do ensino médio que buscam uma formação profissional em nível médio.

Vale destacar que esses círculos são exotéricos, relativamente uns aos outros. Portanto, supomos que esse profissional, ao assumir-se professor, passa a estabelecer diálogo, necessariamente, com os três círculos, e a dinâmica de circulação que se estabelece é, por vezes, intracoletiva (quando estabelece trocas como CP ao qual pertence por formação e compartilha EPs vigentes na área) e intercoletiva (quando estabelece diálogos e trocas com outros CPs, formados pelos colegas de profissão, com formação específica para o exercício da docência ou com os estudantes do ensino médio, com o qual também Fleck reconhece que há trocas e compartilhamentos de grande interesse para o ensino e a aprendizagem).

Essa perspectiva auxilia na compreensão do funcionamento desses círculos e pode lançar luzes no sentido de contribuir para uma potencialização dos diálogos e trocas no âmbito da educação profissional. Contudo, é importante lembrar que, conforme argumentos de Fleck (2010), a intensidade da circulação de ideias é dependente da maior ou menor aproximação entre os círculos em diálogo.

O processo de formação e iniciação didática em determinado campo de saber ocorre, conforme Fleck (2010, p. 155), por intermédio do que ele denomina doutrinamento:

A iniciação em um estilo de pensamento, portanto, também a introdução em uma ciência, são epistemologicamente análogas àquelas iniciações que conhecemos da etnologia e da história cultural. Não surtem apenas um efeito formal [...], algo até então invisível se lhe torna visível. Esse é o efeito da assimilação de um estilo de pensamento.

Os CPs compostos pelos círculos esotérico (os professores universitários como grupo de vanguarda) e exotérico (os alunos como leigos em formação) configuram a formação profissional: os primeiros exercem a “suave coerção” sobre os últimos por meio da introdução de certos modos de ver e agir, pois, segundo Fleck (2010, p. 155), “toda introdução didática é um ‘conduzir-dentro’ ou uma suave coerção.”

No curso universitário, a disseminação dos EPs ocorre por meio da circulação de ideias entre os dois círculos, nas atividades letivas, na participação em atividades de investigação e pela leitura dos periódicos e manuais, principais veículos de divulgação do conhecimento científico. Em todas essas atividades há a mediação da linguagem, que é um poderoso veículo de transmissão de um EP, pois, por meio dela, os novos membros vão sendo iniciados nos CPs, que passam a compartilhar do estilo vigente.

Com relação à formação pedagógica dos professores, Grossman (2005, p. 15, tradução nossa) argumenta que ela tem importante contribuição para a construção do docente, especialmente quando o curso frequentado contém componentes de didáticas específicas: “Este estudo também desafia a literatura sobre os efeitos dos cursos de formação docente, demonstrando que o curso sobre uma disciplina específica pode exercer uma poderosa influência em como os professores ensinam e pensam suas matérias.”

Em se tratando de cursos de licenciatura, Gudmundsdóttir e Shulman (2005) chamam a atenção para que centrem maior atenção no CPC, ajudando os docentes a pensarem sobre a matéria a ser ensinada e o processo que devem desenvolver para facilitar o aprendizado dos alunos. Eles tecem críticas à forma como esses cursos estão estruturados, pois inicialmente são oferecidas as disciplinas de conteúdo específico, depois métodos gerais de ensino, estudos sobre psicologia e sociologia, separando conteúdo e forma. Nesse caso, ambos se esvaziam porque conteúdo sem método não se torna ensinável, e princípios gerais sobre processos de ensinar e aprender somente se efetivam no confronto com a matéria a ser ensinada.

A respeito da formação de professores da educação profissional, conforme já explicitado, a maioria ministra disciplinas técnicas e ingressou na atividade docente sem formação pedagógica em processos formais. Nesse caso, não dispõe de conhecimento mais profundo sobre o ensinar e aprender. Mesmo os cursos de mestrado e doutorado geralmente secundarizam esse aspecto, visto que ofertam apenas uma disciplina ou o estágio docente, atividade de curta duração em que o estudante desenvolve atividades planejadas e supervisionadas pelo orientador, o que não permite a vivência plena da docência na sua complexidade.

Seguindo numa reflexão fleckiana, observa-se que desde a educação básica os alunos estão imersos em ambientes de aprendizagem nos quais circulam conhecimentos de diversas naturezas, inclusive conhecimentos pedagógicos, crenças, valores e atitudes de seus professores, além dos conhecimentos científicos, e o papel da escola é difundi-los. Esse período de socialização profissional é ampliado especialmente nos cursos superiores, constituindo-se como referencial para sua futura atuação docente. Na educação profissional essa relação se acentua, pois, diante da ausência de formação para a docência, o professor iniciante baseia sua prática em ações que vivenciou como estudante, reproduzindo modelos de seus docentes. Ou seja, a forma como foi ensinado repercute nos modos como organiza o processo de ensino, como indicam pesquisas de Oliveira (2015) e Vieira (2017).

Nesse sentido, mais uma vez convém retomar Fleck (2010), quando fez referência à formação inicial como etapa em que se imitam os modelos, quando ocorre a introdução didática em um campo de saber e em um EP, que desempenha papel de doutrinamento. Schäfer e Schnelle (2010, p. 23) afirmam que: “[...] participação e identidade, maneira de trabalhar e colocação do problema, equipamento teórico e aplicação experimental se formam ou são adquiridos na fase concreta de formação, quando se demonstram e se imitam processos exemplares.” No caso da educação profissional, então, as práticas docentes dos professores formadores constituem-se em ferramentas de atuação docente, tanto o domínio dos conteúdos, das práticas profissionais quanto dos métodos de ensino, que se constituem em rito de iniciação à docência.

Portanto, considerando os percursos formativos, infere-se que os docentes da educação profissional enfrentam desafios no exercício da docência, pois, apesar de suas extraordinárias formações nos campos específicos, não tiveram a oportunidade de estudar os processos pedagógicos pelos quais passaram a ser responsáveis profissionalmente.

Nesse sentido, uma alternativa que se mostra promissora é o investimento em projetos formativos que promovem o diálogo intercoletivo no âmbito da educação profissional, pois, se de um lado há o risco de os docentes das áreas específicas reproduzirem modelos pedagógicos de referência, mormente aqueles vivenciados em cursos superiores, muitas vezes pouco adaptáveis ao ensino médio, de outro, os docentes licenciados que atuam nas disciplinas de formação comum, como mencionado na introdução, em geral não têm formação em cursos de educação profissional e, portanto, necessitam significar suas abordagens, aproximando-as da realidade a ser vivenciada pelos estudantes na atuação profissional futura. Portanto, a circulação de conhecimentos e práticas em âmbito intercoletivo entre as áreas específicas e pedagógica mostra-se fundamental à profissionalização dos docentes da educação profissional.

Em estudo assemelhado, Gonçalves, Marques e Delizoicov (2007) apontam que as trocas intercoletivas entre os docentes de um curso de Química mostraram-se positivas e construtivas do ponto de vista da produção de novos conhecimentos na e sobre a docência na respectiva área. Destacam, ainda, que a circulação intercoletiva possibilitou avanços na compreensão de determinados assuntos ligados ao currículo e ao ensino de Química.

Conforme Fleck (2010), o sentimento de pertença a um CP dá origem à introdução didática ao EP compartilhado entre os membros, que perdura mesmo após a diminuição do convívio com os grupos originais e se materializa pela repetição dos modelos nele adquiridos.

Em se tratando de curso de formação de licenciados, Grossman (2005) destaca a importância do diálogo com o terceiro círculo, o dos estudantes. A autora considera formativa a convivência entre estudantes e seus professores e estimula a circulação intercoletiva entre os círculos esotéricos e exotéricos. Esse intercâmbio entre professores e estudantes, Grossman (2005) denomina de aprendizagem da docência por meio da observação, proporcionando modelos implícitos para ensinar. Assim, o professor tende a reproduzir, na sua prática, as experiências que vivenciou com seus professores e toma como referência sua própria experiência estudantil. Grossman (2005, p. 11-12, tradução nossa), porém, adverte que “o Conhecimento Pedagógico do Conteúdo que deriva da aprendizagem por observação, pode ser mais tácito que explícito, mais conservador que inovador, e pode oferecer resistências durante a formação dos professores.” Ela, no entanto, chama a atenção para o fato de que a formação, em si mesma, pode não produzir os resultados desejados, mas contribuir muito quando associada à experiência profissional.

O que sugere esta análise é que a formação dos professores pode proporcionar um marco teórico que forme o que os professores principiantes aprendem com a experiência [...]. No entanto, o que aprenderam com a experiência foi moldado pelas concepções sobre o ensino da área de inglês, que eles construíram no processo de formação de professores. [...] Sem estes referenciais teóricos a aprendizagem a partir da experiência pode ser fortuita, idiossincrática, e inclusive enganosa [...]. (GROSSMAN, 2005, p. 11, tradução nossa).

Portanto, poderá haver um avanço significativo no processo formativo que parte da vivência de situações educacionais, se na universidade a formação estiver aliada à prática profissional, aspecto que será abordado a seguir.

4.2 A SABEDORIA QUE SE DESENVOLVE NA PRÁTICA

Como já abordado na primeira seção, Fleck (2010) considera a atividade prática um dos componentes fundamentais do EP. Para o autor, “A cada estilo de pensamento correm, paralelamente, seus efeitos práticos, isto é, a aplicação. Qualquer pensamento é aplicável, uma vez que a convicção de que uma suposição procede ou não também exige uma atividade intelectual.” (FLECK, 2010, p. 156). Assim, o núcleo duro do EP é o conhecimento e a ação prática correspondente, compartilhada pelos membros do CP, como a utilização de instrumentos, técnicas, procedimentos e processos, uso de linguagem específica. Pfuetzenreiter (2007, p. 5), analisando a obra de Fleck, argumenta que:

A atividade pressupõe uma prática que orienta o coletivo para um determinado tipo de atitude, que inclui, dentre outros aspectos, a utilização de uma linguagem própria e de instrumentos pela coletividade. Neste sentido, a prática se apresenta como um importante parâmetro para estabelecer a correspondência com um estilo de pensamento.

Analisando a formação e profissionalização docente, Shulman (1986) também considera o saber experiencial como uma das bases para a docência e, ao tratar da seleção das estratégias de construção da representação, identifica duas fontes de conhecimento para a construção do CPC: a “sabedoria da prática” e a pesquisa: “Como não existe forma mais poderosa de representação, o professor deve ter em mãos um verdadeiro arsenal de alternativas de formas de representação, algumas das quais derivam da pesquisa, enquanto outras têm origem na sabedoria da prática.” (SHULMAN, 1986, p. 9, tradução nossa). Em texto posterior (2005), o autor apontou a prática como fonte de construção da base para o ensino, destacando a sua contribuição para a elaboração das máximas que orientam (ou fornecem racionalização reflexiva para) a prática dos professores.

No caso da educação profissional, a experiência prática na área de formação inicial é particularmente importante porque os conteúdos de ensino são princípios, conceitos, processos e modos de operar, que são a base do currículo e, dessa forma, centrais na formação desses professores, que precisam ter domínio de técnicas, o que ocorre por meio da vivência na profissão antes ou durante o exercício do magistério. Essa vivência facilita o trabalho docente porque subsidia a seleção de analogias, exemplos, explicações e demonstrações de que eles lançam mão na sala de aula para promover a adequada aprendizagem, conforme demanda o mundo do trabalho. Assim, o domínio do conteúdo e a vivência profissional permitem ao professor estabelecer a articulação entre os conteúdos e a realidade vivenciada no campo de atuação, ou seja, as situações da prática profissional.

Na educação profissional, os conhecimentos adquiridos por meio do trabalho na área são bastante valorizados pelos alunos, que os consideram como uma dimensão prática do aprendizado, ou seja, os conhecimentos objetos do ensino adquirem sentido quando balizados pela experiência profissional do professor.

Portanto, a experiência na docência também é uma poderosa fonte de conhecimento sobre o ensino. Gudmundsdóttir e Shulman (2005), em estudo em que compararam a prática profissional de dois professores de Ciências Sociais, um experiente e outro principiante, com o objetivo de analisar as diferenças entre eles com relação ao domínio do CPC, constataram que:

Enquanto o professor experiente desenvolveu a habilidade de segmentar e estruturar o currículo e conhece os prós e contras de cada abordagem, o iniciante sabe apenas um caminho, que usa. [...] Professores experientes podem mais facilmente entender as unidades longas como um curso. Iniciantes, por outro lado, pensam em uma unidade em partes, sem tentar ver a relação com o todo. [...] Um iniciante só pode usar pequenas informações e é incapaz de usá-las mais amplamente e em estruturas organizadas. [...] A maioria das diferenças profundas entre o iniciante e o experiente é que o experiente tem conhecimento didático do conteúdo que lhe permite ver uma imagem mais ampla de diferentes formas e tem a flexibilidade de selecionar um método de ensino que faça justiça ao assunto. (GUDMUNDSDÓTTIR; SHULMAN, 2005, p. 9-10, tradução e grifo nossos).

De modo geral, a experiência fornece ao professor uma imagem mais ampla que lhe permite segmentar e estruturar melhor o currículo de sua disciplina, compreender a relação todo-partes, atribuir maior sentido a cada unidade da programação e selecionar as melhores estratégias de didatização, o que constitui os componentes do CPC.

Nessa direção também vão os argumentos de Gudmundsdóttir e Shulman (2005) quando apontam a formação continuada como importante momento para a troca de saberes e experiências sobre a docência. Para os autores, a assessoria e apoio dos professores veteranos aos iniciantes poderia ser chave no desenvolvimento do CPC. Ela pode se constituir em espaço de reflexão na e sobre a prática docente se for organizada de modo a promover, com os professores, “[...] uma compreensão teórica sobre aqueles elementos que condicionam sua prática profissional, mas dos quais pode não ter consciência.” (CONTRERAS, 2002, p. 155).

Pfuetzenreiter (2007, p. 6), ao analisar o ensino de ciências e tecnologia, afirma que, para Fleck (2010), a prática desempenhada por um coletivo está na base de suas categorias epistemológicas. “O conhecimento como experiência e prática é a pedra angular do pensamento de Fleck. Desta forma, os estilos de pensamento são múltiplos e têm como suporte uma atividade prática.”

Mizukami et al. (2006) defendem que a formação continuada precisa estar organizada em três elementos basilares: a instituição de ensino como lócus dessa formação; o reconhecimento e valorização do saber docente como referência central dos processos formativos, e as etapas de desenvolvimento profissional dos docentes como pauta para as ações formativas. Para que essa formação se efetive nessas bases, faz-se necessário que as redes de ensino e as escolas, em particular, assumam o protagonismo do processo formativo, investindo em ações centradas na análise das práticas profissionais docentes. Portanto, fazendo das próprias instituições e das práticas docentes em curso lócus privilegiado para a formação permanente e do desenvolvimento dos profissionais da educação, via disseminação de conhecimentos e práticas que constituem os EPs sobre a docência.

Além disso, a participação em eventos formativos permite a atualização na área de formação inicial e relativos à docência. A partir da epistemologia fleckiana, podemos considerar que também os eventos são importantes espaços de circulação inter e intracoletiva de conhecimentos e práticas, pois neles acontece a divulgação dos avanços recentes das pesquisas produzidas pelo grupo esotérico, que promovem a extensão e a transformação do estilo de pensamento. Para Fleck (2010), a origem do pensamento do homem “[...] não está nele, mas no meio social onde vive, na atmosfera social na qual respira, e ele não tem como pensar de outra maneira a não ser daquela que resulta necessariamente das influências do seu meio social, que se concentram em seu cérebro.” (FLECK, 2010, p. 90, grifo do autor).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo das obras dos autores e seus intérpretes aponta a inexistência de oposição de conceitos ou ideias divergentes, evidenciando complementaridade, embora seus enfoques sejam diferenciados: Fleck fornece o quadro conceitual para compreender a trajetória de formação dos professores como membros de coletivos de pensamento (CP) e portadores de diferentes estilos de pensamentos (EP) e que, portanto, promovem a disseminação de EPs por meio da circulação intra e intercoletiva de ideias.

Shulman procura compreender como ocorre o ato de ensinar, ou seja, os processos efetivados para que os conhecimentos sejam adequados para o ensino e auxilia na compreensão sobre o fazer pedagógico à medida que descreve a constituição e os saberes necessários para a efetivação da tarefa de professor e a forma como se efetiva essa mediação - o CPC, razão porque nele há maior destaque ao papel do docente.

Com relação à formação dos docentes que atuam na educação profissional, as categorias de Fleck (2010) esclarecem como ocorre a elaboração dos conhecimentos-base para o ensino, especialmente quando trata da formação dos CPs, dos EPs e da importância da circulação intra e intercoletiva das ideias. Há em sua obra, também, destaque quanto à importância da atividade prática e da ação compartilhada na inserção de novos membros no CP, pois passam a compartilhar as práticas usuais do coletivo, como a utilização de instrumentos, técnicas, procedimentos e processos, uso de linguagem própria, etc.

Shulman (1986, 2005) permite perceber as fontes de conhecimento sobre a docência, e, embora suas pesquisas tenham se centrado na formação dos licenciados, suas principais categorias auxiliam na compreensão do processo de constituição docente pelos profissionais que não tiveram a formação pedagógica em seus cursos de graduação, mas têm, sobretudo na atividade prática, a principal fonte de conhecimento, que se torna referência para o trabalho docente.

REFERÊNCIAS

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1Doutora em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul; Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo.

2Doutora em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Mestre em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

3Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina; Mestre em Educação/Ensino de Ciências Universidade Federal de Santa Catarina.

Recebido: 07 de Agosto de 2019; Aceito: 30 de Abril de 2020

Endereço para correspondência: Rua Jardim Europa, 1131-E, Bairro Presidente Médici, Chapecó, Santa Catarina, Brasil; mariland@unochapeco.edu.br

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