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Roteiro

versão On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.46  Joaçaba jan./dez 2021  Epub 09-Mar-2021

https://doi.org/10.18593/r.v46i.27132 

Seção temática: Uma alternativa às políticas currículares centralizadas

Resenha - em fios de memórias, imagens e narrativas: processos didáticos e curriculares pensados com os cotidianos

Alexandra Garcia1I  , Professora
http://orcid.org/0000-0001-8285-471X

I Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Educação e Programa de Pós-graduação em Educação: Processos Formativos e Desigualdade Sociais, Professora.


A obra aborda, sob o formato de conversas que entrelaçam narrativas memórias, imagens e densa interlocução teórica, questões relacionadas aos processos didáticos e curriculares relacionados aos cotidianos escolares. Enquanto opção metodológica, assume as conversas como um modo de produção de conhecimentossignificações (ALVES, 2019) característico de professores e defendido em sua trajetória de pesquisa. As conversas são desenvolvidas a partir de histórias trazendo memórias de escolas e imagens da própria autora e de outros professores, criando aproximações com o vivido na perspectiva daquele que narra. As histórias são convites, para tocar em questões que afetam as escolas e destacam as criações cotidianas que acontecem no enfrentamento de problemas locais. Vale ressaltar que, para Nilda, as narrativas incluem sons junto às imagens, compondo o conjunto de artefatos culturais com os quais dialoga em suas pesquisas. As imagens no texto são fotografias de acervos pessoais, além de imagens de um livro didático. Narrativas e imagens são entendidas pela autora, a partir de Deleuze, como personagens conceituais.

Os capítulos problematizam processos pedagógicos - didáticos e curriculares - favorecendo pensar as escolas hoje. A obra se compõe de quinze histórias e questões que tematizam os capítulos e uma seção final com as ideias-força defendidas pela autora no livro. Com contribuições de um repertório experiencial e teórico vasto, explora os diversos modos pelos quais conhecimentossignificações, artefatos culturais e tecnológicos são criados pelos praticantespensantes das escolas. A proposta toma como princípios os modos como as redes educativas deslocam a representação de “muros” que separariam o “dentro” e o “fora” das escolas, enredando saberes dentrofora das escolas pelas tessituras e presenças de seus sujeitos.

Estende ao leitor, assim, as redes de conversas que tece para que se mobilizem a partir delas outras redes e conversas em torno de diferentes processos pedagógicos. Tem como público-alvo docentes de escolas brasileiras e estudantes das licenciaturas. Certamente, também, interessados em pensar as complexidades que envolvem o campo da educação, bem como aquilo que criam os praticantespensantes das escolas. Os leitores encontrarão noções expressas por neologismos, fruto da aglutinação de palavras e suas correspondentes compreensões para propor novas noções, que buscam evidenciar e romper com dicotomias. Algumas dessas expressões são bastante conhecidas no campo e fazem parte do repertório conceitual das pesquisas com os cotidianos. Segundo a autora, isso é necessário, posto que as dicotomias impõem limites às compreensões e às produções de conhecimentossignificações das redes que nos educam.

Os capítulos são nomeados como histórias. A primeira conta um evento com o qual muitos podem se identificar. Sutilmente, problematiza as condições do trabalho docente, bem como as táticas pedagógicas-profissionais a que professores recorrem para garantir o desenvolvimento de processos de aprendizagens com seus estudantes.

A segunda história traz duas narrativas. Aborda o racismo estrutural da sociedade brasileira, lembrando o debate em torno de um aclamado autor literário e a necessária atenção à luta contra o racismo a que somos convocados cotidianamente. A segunda narrativa envolve práticas curriculares em que professores abordam o exercício da democracia para pensar, novamente, a relação entre aquele autor, os currículos e aquilo que aprendemosensinamos dentrofora das escolas. A complexidade da bela narrativa imagética do capítulo provoca sentirpensar e dialoga com o capítulo seguinte, entrando nos debates sobre religião e escola. De forma contundente, convoca a perceber as sutis interseções políticas, epistemológicas e culturais que envolvem a questão. Assim, mobiliza a atenção a outros movimentos sociais que interrogam os currículos escolares e a hegemonia cultural que a diversidade encarnada nos sujeitos interpela.

A quarta história lembra que os processos pedagógicos e a tessitura dos conhecimentossignificações recorrem a artefatos culturais que favorecem a conversa e o enredamento entre as redes educativas. Esse aspecto abordado pela história traz pistas significativas para pensar as relações entre processos pedagógicos, a presença das imagens, recursos audiovisuais e demais artefatos pedagógicos/culturais. Rememorando a exibição na escola de um filme de animação sobre a importância do esqueleto para os vertebrados, provoca a pensar nos movimentos de diferença e repetição que compõem processos pedagógicos. Com isso, perturba compreensões assentadas na ideia de repetição dos processos vividos nas escolas a que podemos remeter equívocos nos discursos sobre “a escola” e “o currículo”. Lembra que cada processo pedagógico será sempre um acontecimento novo, mesmo que com os mesmos roteiros, recursos e materiais.

“Onde eu errei?”, perguntou um experiente professor nas memórias que a autora traz de um curso de admissão, para conversar com os leitores sobre erro e avaliação escolar. São duas as histórias desse capítulo que colocam os temas no bojo dos processos formativos docentes, movidos pelas práticas-reflexões-práticas que constituem, continuamente, fazeressaberes docentes. É também a admissão do erro por uma jovem professora frente à sua turma que provoca pensar esses processos pelos quais professores aprendem com suas práticas.

Ler, escrever e contar é a discussão mobilizada pelas narrativas que as memórias e fotografias da sexta história propõem. Interrogando a herança da Escola Nova e os princípios da “escola da língua nacional” - pensados por Comenius - aborda o modo com as redes educativas cooperam nas aprendizagensensinos dentrofora das escolas.

Inicia a sétima história homenageando os que atuam na organização dos movimentos sociais do país. Leva para uma narrativa que torna oportuno conversar a respeito do necessário tempo coletivo para o fazerpensar docente nas escolas e lembra, assim, a luta para que os professores tenham garantidos os espaçostempos necessários às reflexões sobre os processos pedagógicos.

Na oitava história, Nilda Alves puxa uma intrigante conversa que envolve Gombrich, Agatha Christie e diversos pesquisadores do campo do currículo em um debate sobre a questão dos conteúdos e formas curriculares. Ao lê-la somos instados a pensar os processos que criam a falsa ideia de “universal” e de conhecimentos gerais quando se pensam os conhecimentossignificações que operam na composição caracteristicamente escolar de conteúdos e formas curriculares. Com isso, problematiza os recentes processos de centralização curricular que reduzem a finalidade da escolarização às necessidades do mercado. Lembra do empenho de forças sociais diversas para, ao criarem as Diretrizes Curriculares Nacionais, afirmá-las como orientação geral sem oprimir a diversidade necessária às criações curriculares.

Com uma história que envolve um caminhão, galinhas e a inauguração de uma escola, trata dos espaçostempos escolares como importante dimensão dos processos pedagógicos. A inauguração da escola desinvisibiliza jogos políticos e problematiza formas de apropriação desses espaçostempos pelo poder público. Interroga, assim, o alcance do controle e das autoridades frente às inventividades criadas por docentes e discentes.

Movimentar as redes de saberes com o que sabem os estudantes é, talvez, um princípio que operacionaliza noções pedagógicas epistemologicamente horizontalizadas. Nas redes de conversas que tecem a décima história, o movimento traz à superfície noções ambientais, condições de trabalho, aspectos da nossa geografia e questões didáticas e curriculares. Dentre elas, a memória em imagens e os “usos” - noção trazida do pensamento de Michel de Certeau (1994) - de livros didáticos.

O que sabem os estudantes? Pergunta central aos processos pedagógicos e que continua a ser formulada na décima primeira história. Mostra a perspicácia na análise da política nacional e local feita por meninas, estudantes da Zona Oeste da cidade, ainda rural, na década de 1960. Vale destacar algo que caracteriza o livro: a articulação entre áreas de conhecimento que perpassam os cotidianos, como um aspecto significativo para pensar os processos pedagógicos. Também relevante, nesse sentido, é a preocupação da autora em colocar as histórias em diálogo com os contextos políticos-históricos, dando às questões um relevo crítico incomparável.

A hora da merenda, como tudo que envolve essa questão escolar e política singular, levanta incontáveis possibilidades de discussão. Aqui entra em cena um aspecto relevante nas pesquisas da autora há mais de três décadas: as relações entre os sentidos - olfato, paladar, tato, visão, audição - e os processos de aprendizagemensino. Retoma um conhecido trecho de suas histórias que aborda essa relação para problematizar a avaliação escolar. Com isso, lembra que a comida, a fome, a merenda e os sentidos, nem sempre priorizados na discussão pedagógica, precisam fazer parte das conversas com a formação docente.

A décima terceira história parte do sonho de ver uma experiência que abarque as artes como articuladoras de uma proposta curricular. Nesse capítulo, a memória da autora conta a rica e diversificada vivência em artes nos processos formativos no Instituto de Educação do Rio de Janeiro. A memória do espaçotempo musical e o método adotado pela professora da “sala de ouvir música” nos convidam a pensar essas experiências na educação básica e na formação docente.

No mesmo tema, outra história dialoga com questões didáticas nas práticas docentes invocando a pertinência de noções teóricas que nos processos de aprendizagemensino permitem percebermos o “ainda não” como um intervalo para o trabalho pedagógico. A experiência gira em torno dos “estágios” e introduz discussões quanto aos currículos na educação básica e na formação. Interroga arbitrariedades de algumas classificações que ensinamos, historicamente, nas escolas. Traz uma questão ainda mais importante: pensar que os processos pedagógicos envolvem as vivências e redes de saberes dentrofora das escolas. Com isso, aponta a relevância de temáticas que fazem parte do viver social e cultural serem tratadas nas escolas. Defende que as redes educativas, que nos formam e que formamos, precisam ser percebidas e mobilizadas na formação docente. Esse é um ponto que vem se expandindo nas pesquisas nesse campo, inspirando experiências em licenciaturas e com docentes nas escolas.

A décima quinta história é genial na tarefa de perturbar representações de classe socioeconômica, que muitas vezes estão na origem de constatações e encaminhamentos de questões enfrentadas nos cotidianos escolares. Nos faz pensar nas relações entre saúde e educação e em sua importância para abordar questões que envolvem o bem-estar de discentes e docentes. Ao mesmo tempo, provoca pensar que essa relação amplia as compreensões sobre o que pode se passar com a saúde de estudantes no Brasil, resultando em um bom “remédio” para tratar a tendência à medicalização da vida que vemos avançar, também, na Educação.

A obra trata com originalidade, leveza narrativa e densidade teórica questões didáticas e curriculares para pensar os cotidianos das escolas. Nilda Alves se apropria de forma original e singular das noções e autores com os quais dialoga, marca sua, presente, também, nesse livro. Chama a atenção na obra o modo como as questões são tratadas a partir das complexas imbricações que engendram as redes educativas com as quais os conhecimentossignificações são tecidos, não por recortes disciplinares das áreas de conhecimento. Articula o campo do pensamento pedagógico à filosofia e às conversas com as memórias de escolas, colocando em outro plano político-epistemológico a consistência e o rigor da discussão. Com as ideias de “acontecimento” dos pensamentos de Foucault e de Deleuze, busca ampliar as compreensões das práticas pedagógicas e dos processos curriculares. Por fim, elenca de forma sistemática o que chama de ideias-força de seu pensamento, aprimoradas ao longo de sua trajetória como pesquisadora em Educação e com os cotidianos. São elas: a das redes educativas que nos formam e que formamos - práticasteorias da formação acadêmico-escolar, práticasteorias pedagógicas cotidianas, práticasteorias das políticas de governo, práticasteorias coletivas dos movimentos sociais, práticasteorias das pesquisas em educação, práticasteorias de produção e “usos” de mídias, práticasteorias de vivências nas cidades, no campo e à beira das estradas; e a defesa de que, pela existência dessas redes, todos aprendemensinam - expressa pelas noções de docentesdiscentes e discentesdocentes.

Sendo o livro uma densa conversa composta por muitas conversas menores e abertas a outras articulações e problematizações, podemos dizer aos leitores que tem o “peso” de um clássico e a leveza das delícias das vivências que a vida nas escolas nos leva a sentirpensar. Claro que, em meio aos saberes, em qualquer contexto social e cultural existe muita imaginação, mitos e especulações. Isso, como Nilda faz notar, compõe os repertórios com os quais lidamos nos processos pedagógicos, sempre.

Assim, nos convoca a pensar que, nos processos formativos, talvez o mais importante seja aprendermos como aprender uns com os outros. Necessário lembrar, com ela a importância disso no investimento político na educação básica e, por fim, que esses processos se caracterizam fortemente pelo ato de conversar. Histórias que fazem puxar uma cadeira, pegar um café e enredar conversas em “bons encontros”.

REFERÊNCIAS

ALVES, Nilda. Práticas Pedagógicas em imagens e narrativas: memórias de processo didáticos e curriculares para pensar as escolas hoje. São Paulo: Cortez, 2019. 159 p. [ Links ]

REFERÊNCIA

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1995. [ Links ]

1 Doutora e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Recebido: 18 de Dezembro de 2020; Aceito: 07 de Janeiro de 2021

Endereço para correspondência: Rua São Francisco Xavier, 524, Bloco F, sala 12037-F, Maracanã, 20943-000, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil; alegarcialima@hotmail.com

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