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Roteiro

versión On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.46  Joaçaba ene./dic 2021  Epub 30-Jun-2021

https://doi.org/10.18593/r.v46i.24347 

Seção temática: Desafios da formação de professores para o ensino de Matemática

Formação de professores que ensinam matemática em uma perspectiva de complexidade: discussão agregando fragmentos experienciais

Training teachers who teach mathematics from a perspective of complexity: discussion gathering experiential fragments

Formación profesores que enseñan matemáticas desde una perspectiva de la complejidad: discusión agregando fragmentos experienciales

Ettiène Cordeiro Guérios1I  , Professora Titular
http://orcid.org/0000-0001-5451-9957

IUniversidade Federal do Paraná, Programa de Pós-graduação em Educação: Teoria e Prática de Ensino, Professora Titular.


Resumo:

Apresento pressupostos que fundamentam uma perspectiva complexa de formação de professores que ensinam matemática. A complexidade pertence aos estudos contemporâneos sobre cognição e desenvolvimento humano. Encontra ressonância na comunidade científica, envolvida com discussões inter e transdisciplinares, nos diferentes âmbitos formativos. Este artigo tem o objetivo de discutir questões relativas à formação de professores que ensinam matemática em uma perspectiva de complexidade, conforme postula Edgar Morin. De natureza analítica e reflexiva, tomo a ideia de conhecimento pertinente como âncora teórica e o pensamento complexo como linha matriz sob a qual analiso fragmentos de experiências formativas vividas por uma professora que ensina matemática na Educação Básica e fragmentos de experiências vividas por uma aluna adulta tentando aprender matemática. Ambas não têm vínculo entre si. Da primeira, analiso o reflexo, em seus alunos, de seu processo de formação. Da segunda, analiso o reflexo da ação de sua professora em seu processo de aprendizagem. Adoto a ideia do pensamento complexo como articulante e multidimensional, em que articular, relacionar e contextualizar são movimentos intrínsecos ao fazer docente. Como resultado, apresento indicativos de que a densidade da aprendizagem em matemática é vinculada a princípios didáticos, desenvolvidos pelos professores em seus processos formativos, que vão da prescrição pedagógica, em um extremo, à problematização de situações contextualizadas, porquanto pertinentes, em outro.

Palavras-chave: Pensamento complexo; Formação de professores de matemática; Prática pedagógica; Ação docente.

Abstract:

I present assumptions that support a complex perspective of training teachers who teach mathematics. The complexity is a part of contemporary studies on cognition and human development. It reaches resonance in the scientific community, engaged with inter and transdisciplinary discussions, in the different formative spheres. This article seeks to discuss issues related to the training of teachers who teach mathematics from the complexity´s perspective, as Edgar Morin postulates. Of an analytical and reflective nature, I take the idea of pertinent knowledge as a theoretical anchor and Complex Thought, as the matrix line under which I analyze fragments of formative experiences lived by a teacher who teaches mathematics in the Basic Education, and fragments of experiences lived by an adult student trying to learn mathematics. Both have no link with each other. From the first, I analyze the reflection, in their students, of their formation process. From the second, I analyze the reflection of her teacher in the student learning process. I take the idea of Complex Thought as articulating and multidimensional, in which articulating, relating and contextualizing are intrinsic movements in teaching. As a result, I provide indications that the density of learning in mathematics is linked to didactic principles, developed by teachers in their formative processes, which range from the pedagogical prescription, in one hand, to the problematization of contextualized situations, while pertinent, in another.

Keywords: Complex thought; Training of mathematics teachers; Pedagogical practice; Teaching action.

Resumen:

Presento presupuestos que basan una perspectiva compleja de la formación de profesores que enseñan matemáticas. La complejidad pertenece a los estudios contemporáneos sobre cognición y desarrollo humano y encuentra resonancia en la comunidad científica involucrada en discusiones interdisciplinarias y transdisciplinarias en los diferentes ámbitos de la formación. Este artículo tiene como objetivo discutir temas relacionados con la formación de profesores que enseñan matemáticas en una perspectiva de complejidad conforme Edgar Morin. De naturaleza analítica y reflexiva, tomo la idea del conocimiento pertinente como un ancla teórica y el pensamiento complejo como una línea matricial bajo la cual analizo fragmentos de experiencias formativas vividas por una profesora que enseña matemáticas en Educación Básica y fragmentos de experiencias vividas por una alumna adulta que intenta aprender matemáticas. No existe vínculo entre ellas. De la primera, analizo el reflejo, en los alumnos, del proceso de formación de esta profesora. De la segunda, analizo el reflejo de la acción de la profesora en proceso de aprendizaje de esta alumna. Adopto la idea del pensamiento complejo como articulador y multidimensional en el que articular, relacionar y contextualizar son movimientos intrínsecos en la enseñanza. Como resultado, presento indicativos de que la densidad de aprendizaje en matemáticas está vinculada a los principios didácticos desarrollados por los profesores, en sus procesos formativos, que van desde la prescripción pedagógica, en un extremo, hasta la problematización de situaciones contextualizadas, por cuanto pertinente, en otro.

Palabras clave: Pensamiento complejo; Formación de profesores de matemáticas; Práctica pedagógica Acción docente.

1 INTRODUÇÃO

Considero um desafio discutir sobre formação de professores que ensinam matemática, em uma perspectiva de complexidade, conforme postula Edgar Morin. A complexidade encontra ressonância na comunidade científica, envolvida com discussões inter e transdisciplinares, nos diferentes âmbitos formativos, além de emergir em estudos contemporâneos no campo da cognição, aprendizagem e desenvolvimento humano, campo em que se situa esta autora. Proponho-me o desafio da discussão porque percebo indicadores na complexidade para a ocorrência de uma transformação da ação docente que tem na prescrição pedagógica seu modo operacional, para outra que contemple a dinamicidade inerente a concepções não dogmáticas acerca de processos pedagógicos. Persigo essa ideia. Debruço-me sobre ela.

Debruço-me porque vejo nessa possibilidade de transformação uma via/auxílio para romper o estatismo2 em que repousa a educação brasileira no que tange à especificidade da formação de professores para a Educação Básica, a formação do formador e os resultados de aprendizagem em avaliações oficiais. Tal afirmação, a do estatismo, advém do que pesquisas evidenciam em seus resultados acerca da recorrência de problemas e frágeis resultados, apesar das tentativas institucionais para vencê-los ou, ao menos, minorá-los. Argumentarei sobre essa afirmação por meio das produções de Gatti (2013, 2014), Gatti et al. (2019), Mindal e Guérios (2013) e Guérios e Gonçalves (2019).

Em estudo sobre o cenário da formação de professores no Brasil, Gatti (2013) questionou sobre a formação inicial oferecida nos Cursos de Licenciatura. Ela constatou, entre outros pontos, que essa formação apresenta “[...] estágios fictícios e avaliação precária, interna e externa.” (GATTI, 2013, p. 58). Para essa constatação, apropriou-se de resultados obtidos em pesquisas de Gatti et al. (2010) e Gatti, Barretto e André (2011).

Afirmou também que, “Em especial, o que se encontra nas instituições de ensino superior é o esquema antigo de formação de professores tendente mais a um bacharelado do que a uma licenciatura, ou seja, o modelo ‘3 + 1’, que foi institucionalizado nos inícios do século XX.” (GATTI, 2013, p. 59). De modo muito pertinente, essa pesquisadora levantou a desafiadora questão: “[...] por que mudanças profundas não ocorrem nesses cursos uma vez que, há muito tempo e por muitos estudos, tem-se falado em crise das licenciaturas pelas suas fragilidades formativas?” (GATTI, 2013, p. 64). Entre as proposições apresentadas, com o propósito de colaborar para a superação desse quadro, chamou-me a atenção o fato de que “[...] é necessário superar nossa tradição de modelo formativo de professores que se petrificou no início do século XX, com inspiração na concepção de ciência dos séculos XVIII e XIX.” (GATTI, 2013, p. 59).

Em Gatti (2014, p. 29), a recorrência temática é decorrente de, em suas palavras, “[...] análises aglutinadoras de achados”, provenientes do estado do conhecimento sobre formação inicial de professores, nos cursos de Licenciatura, tomando estudos de mapeamento como corpus. São recorrentes:

[...] improvisação de professores; ausência de uma política nacional específica para as licenciaturas; pouca atenção às pesquisas sobre o tema; diretrizes curriculares isoladas por curso; currículos fragmentados; estágios sem projeto e acompanhamento; aumento da oferta de cursos a distância; despreparo de docentes das instituições de ensino superior para formar professores; e características socioeducacionais e culturais dos estudantes, permanência e evasão nos cursos. (GATTI, 2014, p. 24).

Gatti (2014) chamou a atenção para o fato de a comparação de estudos recentes com o estado da arte da formação de professores no Brasil - apresentada por André et al. (1999) - mostrar a permanência de problemas não resolvidos sobre a formação de professores para a Educação Básica em cursos de Licenciatura.

Em estudo de estado da arte, realizado por Mindal e Guérios (2013), que envolveu aproximadamente 2550 trabalhos, entre teses, dissertações e artigos, realizados entre 2006 e 2013, com o descritor “formação de professores”, as autoras identificaram que, em geral, as investigações abordam situações e condições específicas da docência. Poucas têm foco nos professores e na especificidade de sua formação. O que causou perplexidade foi a constatação de que “[...] os problemas, impasses, dilemas e pontos de tensão são praticamente os mesmos há mais de 70 anos.” (MINDAL; GUÉRIOS, 2013, p. 30). É fato que as discussões são aprofundadas no decorrer dos anos e trazem novos subsídios para se pensar a formação de professores para a Educação Básica. É fato também, que atualmente diversos trabalhos têm ampliado a discussão, “[...] mostrado a complexidade do tema e a perplexidade que surpreende àqueles que por ele se interessam: discute-se muito, mas na prática parece pouco o reflexo no avanço qualitativo da formação.” (MINDAL; GUÉRIOS, 2013, p. 22).

Guérios e Gonçalves (2019) realizaram estudo acerca da pesquisa sobre formação inicial de professores que ensinam matemática, nos anos iniciais de escolarização. Identificaram que poucas delas têm o processo em si da formação inicial de professores como questão de investigação, tendo como foco a verificação de ênfases não vinculadas ao processo de formação dos professores no Curso de Pedagogia. Os autores identificaram que a formação dos professores em cursos de Pedagogia é frágil e apresenta problemas de diferentes naturezas, inclusive verificáveis pelos índices oficiais de avaliação. Para eles, “[...] refletir sobre esses dados e sobre a responsabilidade interventiva das Instituições de Ensino Superior, nesse cenário, no que tange à Formação Inicial de Professores, é imperativo.” (GUÉRIOS; GONÇALVES, 2019, p. 16).

Sob o ponto de vista de políticas públicas para a formação de professores da Educação Básica, Gatti et al. (2019) empreenderam um levantamento historiográfico sobre programas e ações institucionais realizadas [na última década]. Analisam dados educacionais e afirmaram que “[...] o retorno verificado tem estado sempre aquém do esperado, pois os recursos investidos não são coerentes com a melhora dos resultados de aprendizagem dos estudantes.” (GATTI, 2019, p. 179). Sob o ponto de vista curricular, destacaram a formação fragmentada e genérica e apontaram que, ao contrário, “[...] demanda certa integralidade saindo da perspectiva somente cognitiva relativa ao domínio de conteúdo e integrando formação pedagógica, metodológica, histórico-cultural, psicossocial.” (GATTI, 2019, p. 37-38). No que tange à formação de professores, chamaram a atenção para o sentimento de insatisfação, no tocante às políticas públicas e às práticas formativas. As autoras acrescentaram que:

No âmbito das políticas, destacam-se as críticas de desprofissionalização, precarização e aligeiramento da formação, bem como a frágil articulação entre a formação inicial, a formação continuada, a inserção profissional e as condições de trabalho, salário e carreira dos profissionais da educação. E, no âmbito das práticas formativas, no contexto da formação inicial e continuada, as críticas dizem respeito principalmente à frágil articulação entre teoria e prática, entre conhecimento específico e conhecimento pedagógico, entre universidades e escolas. Continua sendo um desafio, no contexto dos cursos de licenciatura, desenhar um currículo formativo, que contemple, de forma equilibrada e coesa, as dimensões política, ética, humana, estética, técnica e cultural. E, ainda, que prepare o futuro professor para o exercício da docência em contextos favorecidos, ou não, visando a atender à diversidade de necessidades de todos os alunos e, assim, promover uma educação inclusiva. (GATTI et al., 2019, p. 177).

Chamo a atenção para o destaque das autoras sobre a necessidade de se caminhar na formação de professores “[...] para além dos utilitarismos imediatistas uma vez que a educação escolar visa a formação para a vida.”3 (GATTI et al., 2019, p. 13).

Até o momento, abordei sobre reflexos do passado no presente. Doravante abordarei sobre presente e futuro. Concordo com Nóvoa (2017, p. 22), quando afirma que Não sabemos como será a escola do futuro, mas sabemos que será muito diferente da escola dos nossos dias.” Uma possibilidade para pensarmos esse futuro no presente é sua sugestão de ultrapassar o “[...] currículo disciplinar, especializado e normalizado, e construir a aprendizagem com base em grandes temáticas de convergência.” (NÓVOA, 2017, p. 21).

Ora, tal ultrapassagem induz outras práticas e possibilidades formativas em que “A capacidade de ligar, de religar, de interligar é fundamental para que o conhecimento se inscreva na sua amplitude e abrangência e não fique apenas pelas suas formas disciplinares.” (NÓVOA, 2017, p. 21). Essas palavras de Nóvoa lembram-me a afirmação de Morin (2001): “[...] as mentes jovens perdem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes e integrá-los em seus conjuntos.” (NÓVOA, 2017, p. 15). E segue:

[...] em uma escola que ensina a isolar os objetos (de seu meio ambiente), a separar as disciplinas (em vez de reconhecer suas correlações), a dissociar os problemas, em vez de reunir e integrar. Obrigam-nos [nessa escola] a reduzir o complexo ao simples, isto é, a separar o que está ligado; a decompor, e não a recompor; e a eliminar tudo que causa desordens ou contradições em nosso entendimento. (NÓVOA, 2017, p. 15).

É instigante pensar, no presente, sobre a maneira como o professor concebe o conhecimento e a influência que ela exercerá no seu modo de pensar para que a capacidade de ligar, religar e interligar seja mola propulsora dessa escola do futuro. Nesse escopo, posso afirmar que

[...] há uma simbiose entre o modo como se concebe o conhecimento - a ciência - e o modo como pensamos e agimos. Daí, que o conhecimento pode ser concebido pelo docente como disciplinar ou como transdisciplinar, possibilitando ou não, como diz Nicolescu, a compreensão do mundo em sua unidade. (GUÉRIOS et al. 2019, p. 228).

Ou seja, a formação envolve, por óbvio, conhecimentos específicos e disciplinares, mas o movimento da ação docente é permeado pelas suas concepções acerca do conhecimento, da percepção pedagógica do seu fazer, da consideração de diferentes nuances que envolvem o processo educativo. Esse movimento da ação docente, portanto, decorre de elementos formativos que o colocam entre a prescrição pedagógica ou a ação dinâmica e criativa, que transcende formas disciplinares, dinamiza e contextualiza o conhecimento curricular, tornando-o pertinente e possibilita a compreensão conceitual pela atribuição de significado que lhe confere (GUÉRIOS; MODTKOSKI, 2017; GUÉRIOS, 2019a, 2019b).

Pelo exposto, este artigo tem o objetivo de discutir questões relativas à formação de professores que ensinam matemática, em uma perspectiva de complexidade, conforme postula Edgar Morin. Tomo a ideia de conhecimento pertinente como âncora teórica e o pensamento complexo como linha matriz sob a qual desenvolvo a análise e a reflexão, agregando fragmentos de experiências formativas, vividas por uma professora que ensina matemática na Educação Básica e fragmentos de experiência, vivida por uma aluna adulta, tentando aprender matemática.

2 PERSPECTIVA TEÓRICA

Tendo em vista o escopo teórico sob o qual realizo a discussão pretendida, apresento a perspectiva de complexidade no campo pedagógico que adoto neste artigo. Complexidade advém de Complexus que significa o que é tecido junto (MORIN, 2000, 2001). Desse fundamento, construo a ideia de que “[...] complexidade é ‘tecer junto’ os elementos constitutivos da prática pedagógica. Em sua totalidade.” (GUÉRIOS, 2002, p. 161). Defendo que tais elementos da prática pedagógica constituem uma “[...] malha em que confluem conhecimentos específicos, repertório de saberes, repertório de conhecimentos profissionais, em um movimento contínuo e não linear em que as emoções, os sentimentos, a imaginação, a intuição, a especulação e a subjetividade são também componentes.” (GUÉRIOS, 2002, p. 178). Ainda, “[...] a malha constitutiva da prática pedagógica no âmbito educativo escolar contempla aluno, professor, circunstâncias, conhecimentos específicos, conhecimentos pedagógicos.” (GUÉRIOS, 2002, p. 174). Explica Morin (2000, p. 38) que “[...] há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si [...] por isto a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade.”

A ideia de contexto, neste artigo, é vinculada a de conhecimento pertinente. Um dos sete saberes necessários a Educação,4 propostos por Morin (2000),5 “O conhecimento pertinente é o que é capaz de situar qualquer informação em seu contexto.” (MORIN, 2001, p. 15). Ainda, “[...] todo conhecimento, para ser pertinente, deve contextualizar seu objeto. A indagação ‘Quem somos nós?’ é inseparável de ‘Onde estamos, de onde viemos, para onde vamos?’” (MORIN, 2001, p. 16). Em outras palavras, não mutila o objeto do que lhe é inseparável; não desagrega, separa ou considera-o em unidades estanques, compartimentadas e não relacionadas; não o isola de condições humanas e sociais que lhe são constitutivas. Sob o ponto de vista do ensino, na estrutura disciplinar das escolas, diz-nos que devemos:

[...] pensar o problema do ensino, considerando, por um lado, os efeitos cada vez mais graves da compartimentação dos saberes e da incapacidade de articulá-los, uns aos outros; por outro lado, considerando que a aptidão para contextualizar e integrar é uma qualidade fundamental da mente humana, que precisa ser desenvolvida, e não atrofiada. (MORIN, 2001, p. 16).

De fato. Considerar quem somos, mas não só: considerar quem somos e quem são os outros, especificamente, quem somos e quem são nossos alunos, associado à capacidade de articular saberes. Esses elementos constituem vetores que permitem “[...] a construção do conhecimento com referência ao contexto, ao global [relações entre o todo e as partes que o constitui] e ao complexo” (MORIN, 2000, p. 39), por meio da mobilização do que sabe do mundo. Pode-se considerar que o que se sabe resulta de conhecimentos adquiridos e experienciados. Nesse sentido, alerta-nos para o fato de que “Os problemas fundamentais e os problemas globais estão ausentes das ciências disciplinares [...] Nestas condições, as mentes formadas pelas disciplinas perdem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes, do mesmo modo que para integrá-los em seus conjuntos naturais.” (MORIN, 2000, p. 40).

Moraes (2019, p. 120), em seus estudos da complexidade, alerta-nos para a [...] construção de um conhecimento pertinente, significativo, relacionando os conteúdos curriculares e as experiências concretas que verdadeiramente façam sentido ao aluno.” Há que se considerar um conhecimento emergente, de natureza complexa, cujo vínculo entre as dimensões objetiva do conhecimento, subjetiva dos sujeitos e experiencial de alunos e professores se faz presente. Considerar esse vínculo é imperativo na conjuntura educativa. Se pensarmos na malha constitutiva da prática pedagógica, constituída por Guérios (2002, p. 178), será um desafio conceber que experiências concretas de alunos e professores - considerando “[...] as emoções, os sentimentos, a imaginação, a intuição, a especulação e a subjetividade” - são deflagradores de construções de conhecimento na conjuntura educativa, que lhes façam sentido.

Em relação ao conhecimento, há uma afirmação de Morin que ressoa em meu pensamento. Diz ele que é preciso “[...] transformar o conhecimento da complexidade em pensamento da complexidade.” (MORIN, 1988, p. 8). De que transformação está Morin falando e que efeitos podem ser sentidos? “Entendo que um efeito dessa transformação se traduz em ação conexa entre a dimensão cognitiva e a experiencial na formação de professores. Ou seja, há estrita relação entre agir, pensar, conceber e o Ser.” (GUÉRIOS, 2019a, p. 224). Conjecturo, pois, que “O corolário dessa afirmação é: não basta conhecer. É preciso pensar! Articular ideias, criar, transcender ao estabelecido.” (GUÉRIOS, 2019a, p. 224).

Agregue-se ao exposto que o pensamento complexo “[...] é um pensamento articulante e multidimensional. A ambiguidade do pensamento complexo é dar conta das articulações entre domínios disciplinares fraturados pelo pensamento desagregador (um dos principais aspectos do pensamento simplificador.” (MORIN; ROGER-CIURANA; MOTTA, 2003, p. 54). A dialógica, a recursividade, a hologramaticidade lhes são princípios constitutivos.

Pensar de forma complexa torna-se pertinente quando nos defrontamos (quase sempre) com a necessidade de articular, relacionar, contextualizar. Pensar de forma complexa é pertinente quando se tem necessidade de pensar. Daí decorre que não se pode reduzir o real nem à lógica nem à ideia. Não se pode nem se deve racionalizar. Buscamos sempre ultrapassar o que já é conhecido. A dificuldade do pensamento consiste em conferir lugar a uma ideia. Pensar é construir uma arquitetura das ideias, e não ter uma ideia fixa. A inspiração não nasce de uma ideia fixa, mas nasce se essa ideia for poética. É possível ser genial, se a ideia for genial. (MORIN; ROGER-CIURANA, MOTTA, 2003, p. 38, grifo nosso).

Ora, a não percepção da necessária articulação entre os domínios disciplinares fraturados pelo pensamento desagregado (MORIN; ROGER-CIURANA; MOTTA, 2003) induz à não percepção da multidimensionalidade da realidade em sua complexidade que, por sua vez, exclui o sujeito de seu contexto. E, por que não, de si e de suas circunstâncias? Como tecer junto os elementos constitutivos da prática pedagógica (GUÉRIOS, 2002) se o sujeito-aluno em sua inteireza estiver excluído da malha multidimensional que o constitui? Como pensar de forma complexa se articular, relacionar e contextualizar não forem verbos imperativos para o fazer docente? Se aceitarmos que pensar é construir uma arquitetura das ideias, e não ter uma ideia fixa, como nos dizem Morin, Roger-Ciurana e Motta (2003), podemos discorrer sobre a trama da complexidade, visto a alegórica elucubração que a expressão “arquitetura das ideias” permite realizar para a ultrapassagem do já conhecido. A perspectiva transdisciplinar impulsiona essa ultrapassagem.

3 EXPERIÊNCIAS DE APRENDIZAGEM VIVENCIADAS - APRENDIZAGEM?

A discussão sobre questões relativas à formação de professores que ensinam matemática, conforme anteriormente anunciado, se dá tendo o conhecimento pertinente como âncora teórica e o pensamento complexo como linha matriz. De natureza analítica e reflexiva, o processo de produção de dados está amparado por pressupostos da pesquisa qualitativa de natureza interpretativa (CRESWELL, 2014). Decorre da simbiose entre experiências vivenciadas por Paula e por Joceli. Estabeleço relações entre elas por meio de fragmentos selecionados por contraste, extraídos de investigação própria a cada uma. Os dados próprios à Joceli foram obtidos por meio de entrevista e documentos, por um período de 4 (quatro) anos. Os próprios à Paula, por meio de notas de campo.

De Paula, interessou o reflexo da ação de sua professora em seu processo de aprendizagem. De Joceli, interessou o reflexo em seus alunos de seu processo de formação. Poderia chamar de dois casos, mas prefiro chamar de experiências de Paula e de Joceli pela singularidade dos fragmentos que analiso. As duas experiências são desvinculadas entre si e aconteceram no mesmo período temporal, em circunstâncias diferentes. Relacionar, articular e contextualizar - movimentos próprios da complexidade - são tomados como eixos de análise.

Na época da investigação, Joceli era professora na Educação Básica. Tinha cursado Magistério no Ensino Médio e Licenciatura em Matemática. Durante o curso de Licenciatura, havia participado de um projeto denominado Laboratório de Ensino e Aprendizagem de Matemática e Ciências Físicas e Biológicas, na Universidade Federal do Paraná, doravante denominado Laboratório. Entre as diferentes atividades que desenvolveu no Laboratório, esteve a criação de jogos matemáticos pelos alunos do Ensino Fundamental, a construção de recursos didáticos para atividades de ensino, na modalidade metodológica de projetos temáticos em matemática, a participação em um projeto de Educação Ambiental, que envolvia todas as áreas do conhecimento escolar para alunos do Ensino Fundamental de um município do estado do Paraná. O fragmento que abordarei refere-se ao seu processo formativo com a atividade de criação de jogos matemáticos, pelos alunos do Ensino Fundamental, e as prováveis decorrências na aprendizagem de seus alunos.

Paula terminava seus estudos em Curso Supletivo e pretendia efetivação profissional na área de enfermagem, na cidade em que morava. Para isso, precisava concluir o Ensino Fundamental. Tinha 46 anos e trabalhava em um hospital como auxiliar de enfermagem há mais de 20 anos. Paula estava estudando matemática para realizar a “prova”, ocasião em que a acompanhei seu esforço para aprender, ao mesmo tempo em que investigava seu movimento de aprendizagem. O fragmento que abordarei refere-se ao movimento de aprendizagem de Paula como reflexo do ensino recebido.

4.1 O FRAGMENTO VIVENCIADO POR PAULA

Desenvolvo esta análise por meio dos seguintes personagens por mim criados: Paula, Jonas como o “ajudante” de Paula e a professora de Paula. Paula tinha muita dificuldade com as atividades matemáticas. Jonas auxiliava Paula a compreender os “conteúdos do curso”. Eu investigava seu movimento de aprendizagem. O fragmento que apresentarei ocorreu durante a resolução de um problema cujo enunciado pedia cálculos de dosagens de medicamentos. O conteúdo em pauta era “regra de três”.

Vendo que Paula procurava resoluções por analogia ao que a professora mostrava em suas explicações e não conseguia encontrar a solução, Jonas pediu que ela relacionasse o enunciado da atividade com o que fazia diariamente em sua profissão. Paula era considerada excelente profissional. Ela respondeu que sabia fazer as dosagens “do seu jeito”, mas que não sabia fazer “em matemática”.

No fragmento que apresentarei, a discussão era sobre o que 0,5 e ½ representavam em uma atividade realizada na sala de aula. Paula não concatenava que 0,5=1/2, embora, por óbvio, soubesse o que é meio comprimido, meio frasco, ou meia ampola de medicação. Neste fragmento não está em pauta a transformação de decimais em fração ou vice-versa, mas apenas o que 0,5 e ½ representam em relação a um inteiro ou a uma unidade.

Tentando uma explicação acessível para o momento, Jonas pediu para Paula construir oralmente, consigo, a sequência 0,5; 0,6; 0,7; 0,8; 0,9, esperando que ela encontrasse 1 após 0,9. Mas não encontrou. Jonas percebeu que sua tentativa foi absolutamente sem nexo para ela. Propôs, então, de modo escrito, os cálculos a seguir, que apresento com as respectivas resoluções de Paula.

Tabela 1 Resoluções de Paula - parte 1 

Cálculos solicitados Resolução de Paula
(0,5 +0,1) = (0,5 +0,1) = 0,6
(0,6 +0,1) = (0,6 +0,1) = 0,7
(0,7 +0,1) = (0,7 +0,1) = 0,8
(0,8 +0,1) = (0,8 +0,1) = 0,9
(0,9 +0,1) = (0,9 +0,1) = 0,10

Fonte: o autor.

Paula não percebeu que 0,9 + 0,1 resulta em 1 (0,9+0,1=1,0). Ao discutir sobre o resultado encontrado, Jonas perguntou qual a diferença entre 0,10 e 1,0, sem obter resposta. Olhando apenas para o cálculo escrito, pode parecer que Paula não tinha compreendido o algoritmo da adição com números decimais e escrito equivocadamente 0,10 em vez de 1,0. No entanto, não era o que acontecia. De fato, Paula não percebia tal diferença. Jonas propôs então os cálculos a seguir, pedindo que observasse o que acontecia enquanto realizava cada um deles.

Tabela 2 Resoluções de Paula - parte 2 

Cálculos solicitados Resolução de Paula
(0,5 + 1) = (0,5 + 1) = 0,6
(0,6 + 1) = (0,6 + 1) = 0,7
(0,7 + 1) = (0,7 + 1) = 0,8
(0,8 + 1) = (0,8 + 1) = 0,9
(0,9 + 1) = (0,9 + 1) = 0,10

Fonte: o autor.

Paula não percebeu que (0,5+0,1) é diferente de (0,5+1), assim como nos demais cálculos. Jonas pretendeu estabelecer alguma correspondência entre os cálculos e situações cotidianas prescritas pelos médicos nos prontuários. Paula já havia explicado que “há muita matemática” envolvida naquilo que os enfermeiros fazem porque, não raramente, precisam fazer contas para adequar dosagens prescritas com os volumes dos frascos disponíveis na farmácia do hospital, calcular gotejamento nos equipos, de acordo com a prescrição recebida, determinar horários para ministrar os medicamentos, adequar esses horários às escalas de atendimento dos enfermeiros dos plantões, entre outras tarefas.

Ela dizia que não podia errar porque trabalhava com seres humanos, com doentes, acidentados, com dor, com vida. Ela insistiu que, “em matemática”, tudo é mais difícil, quando não incompreensível. Jonas decidiu desenvolver um raciocínio, tomando um comprimido como ideia de unidade e de inteiro. Um frasco com 10 comprimidos e dose de medicamento também foram considerados na conversa entre ambos. Todavia, Paula estava mais direcionada ao comprimido do que à dose ou ao frasco, porque a professora havia feito um exercício com comprimidos que a deixara confusa.

Tendo em vista que a professora de Paula já havia ensinado sobre números decimais, Jonas decidiu “retomar” tal conhecimento. Lembrou o que é um número decimal, sua nomenclatura e utilizou alguns exemplos. Discutiu sobre o significado de 1/10, 2/10 até 10/10. Associou a frações.

Na sequência, pediu que Paula calculasse (0,9+1) e (0,9+2), com a expectativa de que ela percebesse, numericamente, a diferença entre um comprimido inteiro (1), mais de um comprimido (2) e menos de um comprimido (0,9).

Ela apresentou os seguintes resultados:

(0,9 +1) = 0,10 (e não 1,9)

(0,9 +2) = 0,11 (e não 2,9)

Paula relatou a experiência de um exercício em que, na resolução do problema, sua professora fizera um cálculo referente à regra de três. Ao obter 0,5, e não ½, disse aos alunos que errara, pois deveria encontrar ½, que é meio comprimido/dose, e não 0,5. Paula relatou que a professora refez o cálculo para encontrar o ½ por ela esperado. Paula arrematou:

- Isto é tão difícil que até a professora se perdeu nas contas e errou. Imagine eu!

Jonas explicou a ela que 0,5 e ½ “era a mesma coisa” em relação ao comprimido.

Ela contestou e disse que não era.

Jonas sugeriu a ela que dividisse 1 por 2.

Ela respondeu que não seria preciso fazer isso no problema, porque a resposta já era ½ comprimido. Imediatamente, complementou que não precisaria dividir um comprimido por dois porque não era necessário dividir o comprimido para duas pessoas, mas dar meio comprimido para uma pessoa. Ela explicou:

- A pessoa toma meio comprido em uma hora e meio em outra hora. Por exemplo: meio comprimido às 8 horas e meio comprimido depois de 8 horas, às 4 da tarde.

Jonas pediu a ela para dividir “no papel” para ver o que acontecia.

Ela se irritou, mas fez o cálculo solicitado e encontrou 0,5.

Jonas discutiu com Paula sobre o significado do cálculo realizado e o resultado encontrado. Ele pediu então para ela fazer (0,5+0,5) e (1/2+1/2) para que ela “sentisse as metades”.

Ela encontrou 0,10.

Jonas apelou para o bom senso. Perguntou “quanto” do comprimido é 0,5 e “quanto” é 0,10, em relação ao comprimido ou a qualquer outro tipo de dosagem. Pediu para ela fazer a “conta” (0,5 + 0,5) novamente.

Ela encontrou o resultado 1,0. Todavia, não o interpretou como 1 (unidade). Depois, ao entender, deslumbrou-se, mas declarou que não adiantava muito saber aquilo.

- Tem que fazer do jeito da professora - disse Paula.

4.2 O FRAGMENTO VIVENCIADO POR JOCELI

Joceli vivenciou diferentes experiências formativas, durante o Curso de Licenciatura em Matemática. Uma delas foram atividades com jogos didáticos. Entre utilizar jogos clássicos ou já conhecidos e elaborar jogos originais para ensinar matemática, Joceli optou pela elaboração, visto a potencialidade criativa inerente a esse processo. Joceli6 viveu experiências formativas em que a perspectiva investigativa era um princípio didático,7 o que significa que toda atividade, independente do método utilizado, tem a investigação como espinha dorsal estruturante. Provavelmente por isso, desenvolveu um potencial dialógico que oportunizava aos alunos se colocarem em inquirição entre a atividade lúdica de criação de jogos com suas regras e o conhecimento matemático.

Em seu movimento dialógico, Joceli valorizava expressões dos alunos tais como: “Ah, mas é assim? É por isso que acontece isso?” Tais expressões refletem o fato de os alunos estabelecerem relações matemáticas por si e “descobrirem” as ideias pertencentes às relações estabelecidas. “É isso mesmo! Diz ela. Ele descobre e ele não mais esquece. E expressa prazer ao afirmar que: É muito fantástico ver isso!” (GUÉRIOS, 2002, p. 123).

Um aspecto que chama a atenção é a utilização das expressões "problema", "situação-problema" e "mundo da situação-problema”, cunhadas pelo grupo ao qual Joceli pertencia no Laboratório. “Ficou muito claro para mim que nem sempre é possível usar questões do cotidiano com as crianças, mas que é sempre possível criar uma situação-problema.” (GUÉRIOS, 2002, p. 124). Assim, permanecia em estado de indagação, em busca de soluções.

Em relação à utilização de jogos, ela criou o hábito de os alunos associarem conhecimentos matemáticos sempre que jogassem. Por isso, algumas vezes ela foi surpreendida por atitudes inesperadas deles, conforme suas palavras:

É muito divertido porque dependendo do jogo eles dizem: a gente podia fazer assim, a gente podia fazer de tal maneira... ou seja, eles vão criando estratégias próprias e descobrindo caminhos que eu não tinha pensado. Pelo menos, não tinha pretendido que eles pensassem daquele modo naquele momento. Eles têm estas atitudes mesmo para jogos já conhecidos, mas quando criam jogos novos, aí, o desenvolvimento e as surpresas que temos com eles são ainda maiores. (Joceli, informação verbal. In: GUÉRIOS, 2002, p. 125).

Joceli também atuava em turma de supletivo, no período noturno, onde tinha alunos com mais de sessenta anos. As dificuldades na aprendizagem de conteúdos básicos, como operações aritméticas elementares e frações, por exemplo, eram grandes. O dia a dia dos alunos, a realidade deles, nas suas palavras, eram considerados o ponto de partida para a docência dos conteúdos que ministrava. Para ela, não havia sentido em atuação docente desvinculada dos alunos, como se não houvesse uma dimensão experiencial que os constituísse. A vida profissional de cada um - todos os alunos da turma do Supletivo trabalhavam - trazia elementos concretos a serem problematizados para auxiliar na compreensão dos conteúdos, pelos significados que poderiam ser construídos. Era um caminho para uma aprendizagem conceitual dos conteúdos programáticos a serem ministrados por ela.

Também, nas turmas de supletivo, utilizava frequentemente jogos como recurso didático. Ela proporcionava aos alunos o tempo necessário para que as atividades com jogos se tornassem experiências matemáticas, fossem internalizadas e relações fossem estabelecidas, até que conseguissem perceber os conhecimentos envolvidos. Pode-se dizer que, para ela, havia tempo lúdico, tempo teórico e tempo prático - todos dimensionados e compreendidos como necessários para os alunos. Ela tinha a dimensão desses diferentes tempos didáticos. Podemos compreender seu pensamento, acerca da atividade docente em matemática, por meio do extrato seguinte:

[...] Trabalhava-se com problematização a partir de dados da realidade [...] Mas da realidade dos alunos, e não da ‘minha’ realidade. [...] O que eu percebo nesse modo de trabalhar, e até certo ponto me instiga, é que quando eu preciso dar aulas puramente teóricas, ou de exercícios - porque isso é necessário - os alunos não reclamam. É como se eu conseguisse ‘puxá-los para o nosso lado’. Parece que eles percebem que há hora para tudo e que isto é necessário. Claro, falta muita coisa ainda, eu estou muito longe de ser o que penso ser uma boa professora, pois, às vezes, eu fico muito triste porque vejo que não consigo atingir totalmente os objetivos. Mas só o fato de ver que, ao ensinar assim, o rendimento é cem por cento maior do que quando unicamente se passa o conteúdo, é uma coisa fantástica. Isto acontece com os pequenos com quem eu trabalho pela manhã e com os alunos de quinze até sessenta e cinco anos que eu tenho no Supletivo à noite. Tenho um senhor na sala de sexta série que tem sessenta e cinco anos. É fantástico ver como eles também descobrem as coisas. (Joceli, informação verbal. In: GUÉRIOS, 2002, p. 126, grifo nosso).

Qualquer que fosse a sala de aula, dos pequenos dos anos iniciais aos adultos de sessenta e cinco anos ou mais, Joceli valorizava o fato de os alunos precisarem saber o que fazer e tomar decisões, fosse em atividades com jogos, ou em necessários exercícios, cuja decorrência era a aprendizagem. Ela percebeu que:

[...] ‘saber o que fazer’ é diferente de ‘saber fazer’. ‘O que fazer’ exige tomada de decisão por parte do aluno, o que pressupõe domínio conceitual e a capacidade de conjecturar. ‘Saber o que fazer’ introduz a multiplicidade, a diversidade e a incerteza. Muda o foco de ação. Percebe-se por aí que o processo de definir ‘o que fazer’ comporta múltiplas possibilidades, as quais terão que ser identificadas e discutidas entre os alunos, e entre eles e ela. (GUÉRIOS, 2002, p. 181).

Entre as diferentes ações didáticas de Joceli, citei a de criação de jogos matemáticos por visibilizar sua compreensão acerca da atividade docente. Para ela, o ato de criar jogos envolve diferentes habilidades e exige uma cadeia de relações cognitivas, decorrentes do “saber o que fazer”. Para criar um jogo, necessariamente inovador, há que se pensar nas regras, na lógica interna dessas regras, nos “conteúdos” matemáticos componentes do jogo; há que se prever as jogadas dos jogadores (o aluno é ao mesmo tempo o jogador e seus adversários), prever as consequências das jogadas e outras tantas questões. Em tese, o aluno conjectura, estabelece relações e, em função delas, assume escolhas na criação do jogo. Ele “[...] está potencializando seu pensamento ao prever a consequência de suas decisões e escolhas, sobretudo quando estabelece relações matemáticas [...] e terá que assumir o passo dado, fruto de sua decisão, e, portanto, responderá por ele.” (GUÉRIOS, 2002, p. 181).

5 REFLEXÕES ANALÍTICAS EM UMA PERSPECTIVA DE COMPLEXIDADE

“Tem que fazer do jeito da professora.” (Paula, informação verbal).

Não me reporto à Paula, no episódio, mas à professora dela. Ouso afirmar que ensinar conteúdos curriculares da Educação Básica para alunos profissionais, de modo alheio à vivência profissional é, praticamente, ensinar procedimentos algorítmicos alheios aos sentidos matemáticos. Paula era considerada excelente profissional da área de enfermagem. Sua dificuldade, no Curso Supletivo, estava em aprender matemática de modo estanque e desconexo, sem vínculo algum com o que lhe pudesse fazer sentido. “Ter que fazer do jeito da professora” aborta possibilidades de estabelecimento de relações de qualquer natureza.

A dimensão procedimental (GUÉRIOS, 2002) constitutiva da ação docente da professora parece modelar uma prática algorítmica cujo reflexo está na dificuldade de aprendizagem de Paula. As sucessivas tentativas de Jonas não surtiam efeito, como mostram os excertos do fragmento em análise. Paula repetiu que, na atividade profissional, “sabia fazer” os cálculos que a atividade matemática lhe pedia, mas que “em matemática” não sabia, porque era mais difícil. Meio comprimido na dosagem da vida profissional é diferente de meio comprimido na atividade matemática.

“Trabalhava-se com problematização a partir de dados da realidade [...] Mas da realidade dos alunos, e não da ‘minha’ realidade.” (Joceli, informação verbal, grifo nosso).

Reporto-me agora à Joceli. Para ela, a aprendizagem estava na tomada de decisão dos alunos sobre o que deveriam fazer na atividade matemática. Para isso, eles precisavam problematizar. Para Joceli, problematizar era palavra-chave para desencadear o processo do aprender e decorria de situações significativas para os alunos. Por isso, enfatizou que partia de dados da realidade dos alunos, e não da realidade dela.

Como observei, em Guérios (2002), tomar decisão envolve “saber o que fazer”, que é diferente de “saber fazer”, porque considera a multiplicidade de circunstâncias e a diversidade de possibilidades resolutivas. Contextual por excelência, pressupõe articulação de fatos e ideias para saber o que fazer.

A expressão “mundo da situação-problema”, cunhada pelo grupo de Joceli, traz em si uma perspectiva didática que amplia o espectro da ação docente pela contínua possibilidade de criação de situações matemáticas a serem resolvidas. A ambiência criada por ela comporta o risco e o imponderável, mas considera a experiência dos alunos e o que lhes é significativo.

Ela transitava entre crianças e adultos com setenta e cinco anos. E, independente da idade e da circunstância, seu objetivo era que desenvolvessem estratégias de pensamento, que conjecturassem, que elaborassem soluções, que fossem capazes de situar qualquer informação em seu contexto, prerrogativa do “conhecimento pertinente”, um dos sete saberes necessários à Educação, propostos por Morin (2000), conforme abordei anteriormente.

Se o pensamento complexo é articulante e multidimensional, então articular, relacionar e contextualizar lhe são intrínsecos. Retomo de Moraes (2019) a importância da “construção de um conhecimento pertinente, significativo, relacionando os conteúdos curriculares e as experiências concretas que verdadeiramente façam sentido ao aluno.” De Morin, Roger-Ciurana e Motta (2003, p. 38) retomo que “Pensar de forma complexa é pertinente quando se tem necessidade de pensar.”

As experiências de Paula não lhe permitiam articular, relacionar e contextualizar, visto que eram alheias a ela. Quando declarou que sabia fazer o cálculo das dosagens “do seu jeito”, estava dizendo que, na vida profissional, tem autonomia para desenvolver a estratégia cognitiva que lhe faça sentido. Mas, na atividade matemática, ela tinha que fazer “do jeito” da professora. Por contraste, as experiências dos alunos de Joceli são ponto de partida para a docência da professora.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Qual a relação dos fragmentos da experiência de Paula e de Joceli com a formação de professores que ensinam matemática? Qual a relação com as pesquisas que mostram a recorrência de mesmos problemas, dilemas, pontos de tensão na formação de professores brasileiros por décadas? Argumento que, provavelmente, a formação de Joceli e a da professora de Paula são baseadas em concepções e perspectivas diferentes. Entre as expressões “Tem que fazer do jeito da professora!” e o aluno “ter que conjecturar, estabelecer relações, e em função delas assumir escolhas a serem efetivadas”, reside a diferença formativa.

As diferentes concepções e perspectivas formativas são determinantes para a natureza da ação docente. Em Guérios (2002), identifiquei que os professores constroem princípios que sustentam sua ação docente, tal como uma linha diretriz para sua postura didática, qualquer que seja o método, recurso ou técnica que utilizem. É o que denomino por princípio didático.

Por exemplo, os que têm uma prática indagativa ou investigativa cotidiana, têm a investigação como princípio didático, conforme pode ser observado na seguinte manifestação: “[...] até na aula expositiva, que é exposição oral, eu parto de questões investigativas. Afinal tudo se orienta por uma questão que precisa ser resolvida e que faz parte de um contexto.” (GUÉRIOS, 2002, p. 187).

Por outro lado, os que têm uma prática verificacionista e desvinculada do aluno têm a exposição prescritiva como princípio didático. Assim, mesmo utilizando jogos, resolução de problema, modelagem matemática ou outro método, recurso ou técnica, a prática será prescritiva, não contextualizada e o conhecimento matemático estará fragmentado.

Provavelmente, a prescrição pedagógica é um princípio didático para a professora de Paula e a problematização de situações contextualizadas o princípio didático de Joceli. Joceli trabalhava com problematização a partir de dados da realidade. Mas da realidade dos alunos, e não da "sua" realidade. Paula tinha que fazer as atividades - resolver exercícios - do “jeito” da professora. São situações opostas, antagônicas.

Pode-se justapor as situações, pois Paula tinha 46 anos e era aluna de Curso Supletivo, enquanto Joceli era professora em Curso supletivo e tinha alunos com mais de setenta anos. Joceli considerava e valorizava a realidade dos alunos, enquanto Paula sequer reconhecia a própria realidade. A realidade de Paula era o modo de resolução ensinada pela sua professora. Na verdade, na sala de aula, Paula era extraída de seu contexto, de si, de suas circunstâncias.

O que percebo é a densidade de aprendizagem dos alunos manifestada na docência de Joceli e a dificuldade da aprendizagem de Paula. Nesse sentido, Morin (2000, p. 36) tem razão ao afirmar que “Existe inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre, de um lado, os saberes desunidos, divididos, compartimentados e, de outro, as realidades ou problemas cada vez mais multidisciplinares, transversais, multidimensionais, transacioanais, globais, planetários.”

A desarticulação disciplinar agregada ao pensamento fragmentado e ao sujeito excluído da malha multidimensional que o constitui são decorrências dessa inadequação. Como construir uma arquitetura das ideias? Interessante citar que, entre os problemas recorrentes na educação brasileira, citados por Mindal e Guérios (2013), estão as fragilidades formativas, entre elas, dissociação entre teoria e prática, fragmentação e disciplinarização curricular.

Em outra perspectiva, mas complementar, as autoras apontam que “[...] grande parte da complexidade da formação para professor e da própria atuação deriva das dimensões objetivas e subjetivas do ser professor” (MINDAL; GUÉRIOS, 2013, p. 25), dimensões articuladas que lhes são inerentes. Se os elementos constitutivos da prática pedagógica se apresentam dispersos, perde-se a multidimensionalidade constituída por elementos múltiplos e de naturezas diversas e inter-relacionados. Eis minha contribuição para o desafio contemporâneo de discutir a formação de professores que ensinam matemática em uma perspectiva de complexidade.

Concluo com a expectativa de que os jovens de hoje desenvolvam aptidão natural para contextualizar os saberes e integrá-los em seus conjuntos, como nos diz Morin (2001), de modo a desenharem a escola do futuro, citada por Nóvoa (2017), em que a ação docente seja fundamentada por concepções não dogmáticas acerca de processos pedagógicos (GUÉRIOS; MODTKOSKI, 2017) e por indicadores do pensamento complexo articulante e multidimensional, porquanto relacional e contextualizado.

Afinal, toda uma vida cabe em meio comprimido. Ou não?

REFERÊNCIAS

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2Etimologia: Estático + ismo.

3Contribuições para a discussão sobre políticas públicas educacionais podem ser encontradas em Guérios, Ribeiro e Follador (2017).

4Título da obra é: “Os sete saberes necessários a Educação do Futuro”, publicada no ano 2000. Na minha perspectiva, o futuro chegou, é o hoje, motivo pelo qual, declino da utilização da expressão “do futuro”.

5Os Sete Saberes são: 1. As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; 2. O conhecimento pertinente; 3. Ensinar a condição humana; 4. Ensinar a identidade terrena; 5. Enfrentar as incertezas; 6. Ensinar a compreensão; 7. A ética do gênero humano.

6A história de Joceli pode ser encontrada em Guérios (2002, p. 119-133).

7Sobre Princípio Didático, ver em Guérios (2002) e em Guérios (2019a).

1 Doutora em Educação Matemática pela Universidade Estadual de Campinas; Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná.

Recebido: 06 de Junho de 2020; Aceito: 01 de Fevereiro de 2021

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