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Roteiro

versión On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.46  Joaçaba ene./dic 2021  Epub 23-Mar-2021

https://doi.org/10.18593/r.v46i.26321 

Seção temática: Epistemologias Negras e Processos Educativos

Resenha - A deseducação do negro

Ricardo Matheus Benedicto1I  , Professor
http://orcid.org/0000-0003-4240-740X

IUniversidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Instituto de Humanidades e Letras Malês, Professor.


Molefi Kete Asante em seu artigo The Afrocentric Idea in Education, publicado em 1991, afirma que muitos dos princípios que orientam a educação afrocentrada foram estabelecidos pela obra de Carter Godwin Woodson (1875-1950), The Mis-Education of the Negro, publicada originalmente em 1933. Asante defendeu a ideia de uma educação afrocêntrica, visto que passados mais de cinquenta anos da primeira edição de The Mis-Education of the Negro, os afro-estadunidenses continuavam sendo educados para permanecerem alienados em relação às suas próprias culturas e tradições valorizando a cultura europeia em detrimento de sua própria herança.

Nas portentosas e históricas manifestações contra o racismo e a violência policial, motivadas pelo assassinato de George Floyd, os ensinamentos de Woodson puderam ser percebidos em muitos cartazes dos manifestantes (AZEVEDO, 2020).

Em muitos aspectos a realidade dos afro-brasileiros é similar a de seus irmãos afro-estadunidenses. Há quase um século, levando em consideração apenas o período republicano e a criação do sistema público de ensino, os afro-brasileiros são submetidos a um modelo de educação eurocêntrica que nos aliena de nossas tradições. Nos últimos anos, observamos manifestações cada vez mais explícitas de discriminação racial. Na zona sul de São Paulo, em maio deste ano, um policial em uma abordagem pisou no pescoço de uma mulher negra de 51 anos2 e foi indiciado, apenas, por abuso de autoridade.

Diante deste cenário, a tradução da obra de Woodson, realizada pelo historiador Kwame Asafo Nyansafo Atunda e publicada em 2018, cumpre a importante função de trazer para o público brasileiro as reflexões sobre o menticídio deste importante intelectual.

Na introdução do livro, Atunda apresenta a biografia de Woodson, suas principais obras e descreve precisamente a contribuição do pensador: “traduzir a mais notória obra de Carter G. Woodson, o ‘Pai’ da História africana-americana, foi como dialogar com o autor sobre as bases de uma educação africano-centrada como um mecanismo contra a doutrinação feita pela ‘educação’ eurocentrada” (p. 14).

O livro é composto por um conjunto de reflexões produzidas ao longo de quarenta anos dedicados a educação de diversos povos ao redor do mundo. Estas reflexões, curtas, porém vigorosas, estão distribuídas em dezoito capítulos e um apêndice. No prefácio da obra, Woodson apresentou uma das teses que considero mais brilhantes, desafiadoras e centrais para o entendimento do processo de deseducação do negro: “quando você controla o pensamento de um homem, você não precisa se preocupar com suas ações.” (p. 22). Feita esta introdução, passemos a descrição da obra.

No primeiro capítulo, intitulado A Base do Problema, Woodson mostrou que os “negros educados” são completamente ignorantes de sua história e desse modo totalmente incapazes de ajudar a melhorar as condições de vida do seu povo. O autor afirmou que seja nas escolas negras ou nas escolas mistas, “os negros aprendem a admirar o hebraico, o grego, o latim e o alemão e a desprezar o africano.” (p. 24). A título de ilustração, o intelectual citou uma situação na qual um professor de uma universidade negra - doutor em filosofia - foi convidado a ministrar um curso de verão sobre História do Negro e informou que não sabia nada sobre o negro e que não havia ido à escola para desperdiçar seu tempo desse jeito (p. 24).

No segundo capítulo, Woodson procurou explicar Como Perdemos o Alvo. O pensador investigou as forças importantes no desenvolvimento da educação negra que ocorreu após a Emancipação e mostrou que, desde a Guerra Civil, os projetos para a educação dos negros consistiam em uma educação industrial e uma educação clássica. Em suas palavras: “infelizmente o caso se desenvolveu em uma espécie de batalha de palavras, pois apesar de tudo que disseram e fizeram para obter uma educação, na verdade não receberam nem a industrial nem a clássica.” (p. 33). Este estado de coisas fez com que - apesar de muitos negros adquirirem formação clássica - avaliasse que a oferta de pensadores e filósofos era escassa. Esta reflexão também foi retomada no décimo capítulo intitulado A Perda da Visão. Nele Woodson mostrou que os negros, quando tiveram a oportunidade de participar da gestão dos seus negócios, foram inconscientes e comprometedores (p. 103).

A pergunta “como a educação do negro teve uma tendência desse tipo?” que abre o terceiro capítulo - Como nos Afastamos da Verdade (p. 36) - está relacionada com o problema apresentado acima. Woodson mostrou que no ensino da geografia, da ciência, das linguagens, da literatura, da história, das artes, da medicina e do direito, o negro era excluído e inferiorizado. Este currículo formava “negros altamente educados”, porém incapazes de orientar o seu povo.

No quarto capítulo, Educação sob Controle Externo, Woodson sustentou a importância de a educação superior negra estar sob controle de pessoas negras qualificadas. Isto porque, do contrário, se reproduziria o que ocorre nas universidades tradicionais americanas. Nesse caso, o intelectual sustentava, ironicamente, que valeria mais a pena investir este dinheiro na compra de amendoins para lançar a animais de circo (p. 48).

Este estado de coisas, na avaliação de Woodson, faz com que O Erudito Negro deixe as massas, que a Educação Profissional seja desmotivada e a Educação Política negligenciada. As reflexões sobre estes temas, desenvolvidas no sexto, sétimo, oitavo e nono capítulos, nos apontam as consequências do processo de deseducação do negro. Em sua aguçada avaliação, o intelectual mostrou que a mente dos negros foi completamente escravizada. Para ilustrar este menticídio retomou a poderosa ideia apresentada na introdução cuja sequência é a que segue: “se você faz um homem se sentir inferior, você não precisa obrigá-lo a aceitar um status inferior, pois ele mesmo o buscará. Se você faz um homem pensar que ele é justamente um pária, você não precisa mandá-lo para a porta dos fundos. Ele irá sem ser mandado [...]” (p. 89).

Woodson, em sua obra, não se preocupou apenas em descrever o trágico cenário da educação negra de seu país. O pensador também apresentou caminhos e propostas para reverter este processo. No capítulo XI, intitulado A Necessidade de Serviço em Vez de Liderança, Woodson sustentou que ao invés de buscar liderar os negros, os “negros altamente educados” deveriam servir aos seus irmãos. Em suas palavras: “se o negro pudesse abandonar a ideia de liderança e, em vez disso, estimular o maior número de pessoas a assumir tarefas definidas e sacrificar seu tempo e energia fazendo essas tarefas com eficiência, a raça poderia realizar algo.” (p. 115). E em seguida: “A raça precisa de trabalhadores não de líderes.” (p. 115). Para Woodson, era importante traduzir a ideia de liderança para a de serviço, visto que a primeira leva os negros ao gueto, à pobreza e a se transformarem em parasitas; já a segunda leva à autonomia e a ganhar a vida honestamente.

Para que a ideia de serviço fosse devidamente incorporada à comunidade negra, Woodson apresentou, no décimo quarto capítulo, um Novo Programa Educacional. Os princípios deste programa foram descritos pelo intelectual da seguinte forma: “para educar o Negro precisamos descobrir exatamente o que é o seu passado, o que ele é hoje, quais são suas possibilidades, [...] e torná-lo um indivíduo melhor do que ele é.” (p. 136). Para Woodson, “em vez de encher a mente do Negro com o que os outros mostraram que podem fazer, devemos desenvolver seus poderes latentes para que ele possa realizar na sociedade uma parte da qual os outros não são capazes.” (p. 136). A posição do autor, obviamente, não implica que se deva ignorar as realizações dos outros povos. O pensador sustentava que era fundamental que os negros, primordialmente, conhecessem suas próprias tradições e realizações para que pudessem saber quem são e que modelo de sociedade pretendiam ajudar a construir.

No capítulo dezesseis O Novo Tipo de Profissional Necessário e no capítulo dezoito, Estudo Sobre o Negro, Woodson aprofunda as reflexões sobre o novo programa educacional. Tomando como exemplo o papel que deveria desempenhar um médico e um advogado, o intelectual apresentou as características e o perfil desses novos profissionais. Com relação ao estudo sobre o negro, Woodson destacou a necessidade e a importância do desenvolvimento da Associação Para o Estudo da Vida e História Negra, entidade fundada pelo pensador em 1915.

O que apresentamos acima compõem as principais teses sustentadas por Woodson nesta clássica obra. Dado o retrato apresentado, certamente podemos dizer que as ideias de Woodson têm muito a contribuir no debate brasileiro sobre educação intercultural, além de nos ensinar e relembrar que não devemos adotar o que Anísio Teixeira chama de compreensão mágica da educação. Nesta compreensão de educação, parafraseando o escolanovista, a escola é percebida como um bem em si mesmo e, desse modo, sempre boa, ainda que seja inadequada ou totalmente ineficiente. Cria-se a ilusão de que alguma coisa sempre será aprendida e o que for será sempre um bem para o estudante. Um sistema educacional eurocêntrico, como o existente no nosso país, deseduca os afro-brasileiros.

A tradução também contribui para o ainda controverso debate entre os afro-brasileiros sobre a necessidade, ou não, de construirmos nossos próprios sistemas educacionais. Por fim, a obra de Woodson também nos relembra que, para viabilizar um novo modelo educacional, é preciso ter um projeto para a sociedade em que estamos inseridos.

Antes de encerrarmos esta resenha, é preciso destacar que a tradução da obra precisa de algumas revisões. Na página 38, por exemplo, está escrito: “o viés não parou neste ponto, pois invadiu o ensino das profissões. Os estudantes Negros de direito disseram que pertenciam ao elemento mais criminoso do país [...]” A tradução mais adequada seria: “o viés não parou neste ponto, pois invadiu o ensino das profissões. Era dito aos estudantes negros de direito que eles pertenciam ao grupo dos elementos mais criminosos do país.” Já na página 39 Atunda deveria se referir à décima terceira e décima quarta emenda da Constituição dos Estados Unidos. Essas revisões, no entanto, não diminuem o brilho do trabalho realizado pelo historiador que disponibilizou aos brasileiros as reflexões deste importante intelectual da diáspora africana.

REFERÊNCIAS

WOODSON, Carter G. A Deseducação do Negro. São Paulo: Medu Neter, 2018. 179 p. [ Links ]

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, D. Entenda o livro que inspira Protestos nos EUA. ‘A Deseducação do Negro’. Folha de São Paulo, 1 jun. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/06/entenda-livro-que-inspira-protestos-nos-eua-a-deseducacao-do-negro.shtml . Acesso em: 15 ago. 2020. [ Links ]

WOODSON, C. G. A Deseducação do Negro. São Paulo: Medu Neter, 2018. 179 p. [ Links ]

2O nome da mulher não foi divulgado.

1Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo; Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Recebido: 15 de Setembro de 2020; Aceito: 09 de Março de 2021

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