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Roteiro

versión On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.46  Joaçaba ene./dic 2021  Epub 08-Jul-2021

https://doi.org/10.18593/r.v46.26338 

Seção temática: Epistemologias Negras e Processos Educativos

Legado de Ana Célia da Silva: trajetória de ações afirmativas da militância à produção acadêmica

Legacy of Ana Célia da Silva: trajectory of affirmative actions from activism to academic production

Legado de Ana Célia da Silva: trayectoria de acciones afirmativas del activismo a la producción académica

Nanci Helena Reboucas Franco1I  , Professora Associada
http://orcid.org/0000-0002-6810-4493

IUniversidade Federal da Bahia, Faculdade de Educação, Departamento 1, Professora Associada.


Resumo:

A presente entrevista tem como objetivo analisar as contribuições acadêmicas e profissionais da Profa Dra. Ana Célia da Silva, uma intelectual insurgente no campo da educação, que atrela militância e produção acadêmica, na luta contra o racismo na educação brasileira. Fundadora do Movimento Negro Organizado (MNU) e do primeiro Grupo de Trabalho sobre Educação - o grupo de Trabalho Robson da Luz - uma das reivindicações do movimento. Professora Titular aposentada da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), atuou na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade do Departamento de Educação/Campus 1, centrando as suas contribuições teóricas sobretudo nos seguintes temas: negro e educação, educação das relações étnico-raciais, currículo, estereótipos, desconstrução, e representação social do negro nos livros didáticos de Língua Portuguesa das séries iniciais. Autora de uma lista extensa de artigos publicados em periódicos nacionais, de capítulos de livros e outras produções técnicas que são referência nas temáticas supracitadas. Entre os livros publicados estão “A Discriminação do Negro no Livro Didático” (SILVA, 1995), “Desconstruindo a Discriminação do Negro no Livro Didático” (SILVA, 2001), A Representação Social do Negro no Livro Didático: O que mudou? Por que mudou?” (SILVA, 2011) “Retrospectiva de uma trajetória de ações afirmativas precursoras à Lei 10.639/03” (SILVA, 2017). Em reconhecimento a sua trajetória de pesquisadora militante, precursora na luta pelo combate ao racismo, especialmente na educação e a favor da cultura afro-brasileira, recebeu inúmeros prêmios, com destaque para Troféu Zilda Paim concedido pela Assembleia Legislativa da Bahia e a Medalha Zumbi dos Palmares, pela Câmara Municipal de Salvador.

Palavras-chave: negro; relações étnico-raciais; racismo.

Abstract:

This interview aims to analyze the academic and professional contributions of Prof. Dr. Ana Célia da Silva, an insurgent intellectual in the field of education, who links militancy and academic production, in the fight against racism in Brazilian education. Founder of the Organized Black Movement (MNU) and the first Working Group on Education - the Robson da Luz Working Group - one of the movement's demands. Retired Full Professor at the State University of Bahia (UNEB), she worked in the undergraduate and graduate programs in Education and Contemporary at the Department of Education / Campus 1, focusing her theoretical contributions mainly on the following themes: black and education, education of ethnic-racial relations, curriculum, stereotypes, deconstruction, and social representation of blacks in the Portuguese language textbooks of the initial series. Author of an extensive list of articles published in national journals, book chapters and other technical productions that are references in the aforementioned themes. Among the published books are “The Discrimination of the Black in the Textbook” (SILVA, 1995), “Deconstructing the Discrimination of the Black in the Textbook” (SILVA, 2001), The Social Representation of the Black in the Textbook: What has changed? Why changed?" (SILVA, 2011) "Retrospective of a trajectory of affirmative actions precursor to Law 10.639 / 03" (SILVA, 2017). In recognition of her career as a militant researcher, a pioneer in the fight to combat racism, especially in education and in favor of Afro-Brazilian culture, she received numerous awards, with emphasis on the Zilda Paim Trophy awarded by the Bahia Legislative Assembly and the Zumbi Medal of Palmares, by the Salvador City Council.

Keywords: education; black; ethnic-racial relations; racism.

Resumen:

Esa encuesta tiene el reto de analizar las contribuciones académicas y profesionales de la Prof. Dra. Ana Célia da Silva, intelectual insurgente en el campo de la educación, que vincula la militancia y la producción académica, en la lucha contra el racismo en la educación brasileña. Fundador del Movimiento Organizado Negro (MNU) y el primer Grupo de Trabajo de Educación, el Grupo de Trabajo Robson da Luz, una de las demandas del movimiento. Profesora Titular Jubilada de la Universidad Estatal de Bahía (UNEB), trabajó en los programas de graduación y posgrado en Educación y Contemporánea en el Departamento de Educación / Campus 1, enfocando sus aportes teóricos principalmente en los siguientes temas: negro y educación, educación de relaciones étnico-raciales, currículo, estereotipos, deconstrucción y representación social de los negros en los libros de texto en portugués de la serie inicial. Autor de una extensa lista de artículos publicados en revistas nacionales, capítulos de libros y otras producciones técnicas que son referencias en los temas mencionados. Entre los libros publicados se encuentran “La discriminación del negro en el libro de texto” (SILVA, 1995), “Deconstruyendo la discriminación del negro en el libro de texto” (SILVA, 2001), La representación social del negro en el libro de texto: ¿Qué ha cambiado? ¿Por qué cambió?” (SILVA, 2011) "Retrospectiva de una trayectoria de acciones afirmativas precursora de la Ley 10.639 / 03" (SILVA, 2017). En reconocimiento a su carrera como investigadora militante, pionera en la lucha contra el racismo, especialmente en la educación y a favor de la cultura afrobrasileña, recibió numerosos premios, con énfasis en el Trofeo Zilda Paim otorgado por la Asamblea Legislativa de Bahía y la Medalla Zumbi de Palmares, del Ayuntamiento de Salvador.

Palabras clave: educación; negro; relaciones étnico-raciales; racismo.

SOBRE A ENTREVISTADA

A professora Ana Célia da Silva possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia (1968), Especialização em Introdução aos Estudos Africanos (1986) pelo Centro de Estudos Afro Orientais (CEAO/UFBA), Mestrado em Educação (1988) e Doutorado em Educação (2001) pela Universidade Federal da Bahia. É Professora Titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), onde se aposentou em 2010. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Currículos Específicos para níveis e tipos de educação, atuando principalmente nos seguintes temas: negro e educação, educação das relações étnico-raciais, currículo, estereótipos, desconstrução e representação social do negro nos livros didáticos de Língua Portuguesa das séries iniciais. Em plena ebulição desenvolve atividades acadêmicas e militantes e, no momento, está escrevendo sua biografia para socializar o legado construído na sua trajetória enquanto uma intelectual insurgente. Considerada uma das maiores precursoras na luta contra o racismo no Brasil, atuando tanto no âmbito acadêmico, quanto nos movimentos sociais, com destaque para o Movimento Negro, constitui-se como referência essencial nos debates no campo das Relações Étnico-Raciais na Educação.

Pesquisadora: Quem é a pessoa Ana Célia da Silva? Como você foi se construindo como uma intelectual considerada insurgente no campo da Educação?

A.C.S.: Eu sou uma mulher negra, oriunda das periferias e que apesar dos problemas diversos, como falta de condições econômicas dos meus pais, consegui terminar os meus estudos e me tornar arrimo de família. Nasci no dia 25 de agosto de 1940, sou filha de Tertulino Sales da Silva (motorneiro de bonde) e de Maria Isabel da Silva (camponesa). O meu pai teve quatro filhos do primeiro casamento, ficou viúvo, e depois teve mais nove filhos com a minha mãe - no total éramos treze e hoje somos nove. Destaco a minha família pela extrema importância que ela tem na minha vida, mas só falo da minha vida pessoal a partir da minha fase adulta.

Pesquisadora: Fale sobre a sua trajetória escolar e profissional.

A.C.S.: Eu entrei na escola já sabendo ler e escrever porque a minha mãe, que nunca foi à escola e aprendeu a ler sozinha, nos ensinava a ler e escrever a partir dos cinco em casa, e meu pai, assim que aprendíamos a ler, nos mandava ler o jornal para ele todos os dias, quando chegava cedo do trabalho.

Fiz o primário na Escola Sete de Setembro, terminei aos dez anos e fiz o exame de admissão2 para o Instituto Central de Educação Isaias Alves (ICEIA) mas, por conta de problemas diversos, tais como condições econômicas dos meus pais, conclui o ginásio aos 20 anos no curso noturno.

Cursei Pedagogia, licenciatura e bacharelado na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), cursos concluídos em 1969. Fiz Mestrado (1988) e Doutorado em Educação na UFBA (2001). Trabalhei na Secretaria de Educação de 1963 a 1965 como datilógrafa. Aprovada em concurso federal, ingressei, em 1965, no Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários. Aprovada em concurso para o ensino médio, ingressei, em 1970, no Centro Integrado Anísio Teixeira como professora de ensino médio e depois como orientadora educacional. Aposentei-me em 1990 e, em 1994, fui aprovada em concurso público para Professora Assistente no Campus I da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Salvador, onde trabalhei na graduação e na pós-graduação, aposentando-me em 2010.

Pesquisadora: Quando e como foi a sua aproximação com a discussão da questão racial? Teve influência de algum grupo e/ou alguma pessoa?

A.C.S.: Em maio de 1978 fui para uma reunião, convidada pelo professor e militante religioso de matriz africana Alberico Paiva (está no Orun). Na época, o então prefeito de Salvador, professor Dr. Edvaldo Brito, o primeiro e único até agora, prefeito explicitamente negro da cidade, convidou a professora Lelia Gonzales, do Rio de janeiro, para realizar uma série de palestras em comemoração ao 13 de maio. Lá tinham estudantes universitários e secundaristas, operários, funcionários, entre outros. Negros em sua maioria e que ouviram emocionados, as análises de Lelia sobre a exclusão, o genocídio, a resistência e a insurgência do povo negro. A partir desse evento, começamos a discutir mais intensamente os problemas do racismo na sociedade brasileira e após várias reuniões foi criado o grupo Nêgo. Publicamos um boletim com o mesmo nome e convidamos Lelia Gonzales, uma vez que a mesma inspirou essa ação.

Dois meses depois, o Grupo Nêgo enviou dois representantes com um documento elaborado para representar o movimento negro baiano, para a fundação do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNUCDR), no dia 7 de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. Nesse evento, estavam presentes Lelia Gonzales, Abdias Nascimento, entre outros militantes históricos.

Pesquisadora: Como uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978, portanto considerada “uma mais velha”, gostaria que a Sra. falasse da gênese desse movimento.

A.C.S.: Antes do MNU ser fundado ele se chamava Grupo Nêgo, transformado em julho em Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNUCDR), conforme já disse anteriormente, e que teve características diferentes, desde a sua fundação, nos estados do Nordeste e do Sudeste. Depois, o nome foi simplificado para Movimento Negro Unificado (MNU) que surgiu em reação a discriminação de quatro atletas negros pelo Clube Tietê, de São Paulo, e a tortura e assassinato de Robson Silveira da Luz3. Participei de sua fundação e através dessa entidade iniciei os meus estudos sobre racismo, preconceito, discriminação, história e cultura africana e afro-brasileira, entre outros temas.

As reuniões aconteciam em um jardim, conhecido como Cemitério de Sucupira, ao lado da Sorveteria Cubana, junto do Elevador Lacerda no Centro Histórico de Salvador; no local, atualmente fica o Palácio Thomé de Souza, atual sede da Prefeitura de Salvador.

Quando eu cheguei já havia um grupo fazendo o Jornal Nêgo; logo depois eu e Jonatas Conceição (meu irmão caçula já falecido) começamos a ajudar nessa empreitada. Posteriormente, Jonatas passou a ser o responsável pelo jornal juntamente com outras pessoas importantes que também escreviam para o jornal, como Lino Almeida, Manuel Almeida, Jorge Conceição, Edson Tosta Passarinho que fundou o primeiro Grupo de Homossexuais no MNU, entre outros. O Jornal Nêgo foi muito importante porque na época foram as primeiras escritas sobre o Movimento Negro em Salvador, na Bahia, no Brasil e também no exterior; o jornal difundia a ideia de que o Brasil não era uma democracia racial, que no Brasil havia um racismo muito violento, que nós negros éramos maioria no país, mas representados como minoria. E essas ideias chegavam para muita gente porque o Jornal Nêgo tinha uma grande veiculação porque era vendido mão a mão, nas ruas, nas praças, nas Terças da Bênção,4 nas manifestações de rua, entre outros momentos e/ou espaços.

É o MNU que começa a colocar propostas importantes para a edificação do povo negro. Por exemplo em 1988, o nosso jornal já era contra o extermínio da população negra. As nossas metas prioritárias eram educação, denuncia do racismo, ao extermínio e elaboração de muitas proposições.

Pesquisadora: E o Grupo de Trabalho Robson da Luz? Qual a importância desse Grupo?

A.C.S.: O Grupo de Trabalho Robson da Luz foi o primeiro grupo sobre Educação do MNU. Ele foi fundado em 1981 por mim, juntamente com Jonatas Conceição, escritor e poeta dos Cadernos Negros, professor de Literatura da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), a Gildália Anjos e Menezes e Carlos Alberto, militantes históricos do MNU. A partir daí comecei a militar nas escolas de ensino fundamental sobre história e cultura da África e da população afro-brasileira que não constavam nos currículos oficiais. Depois disso, senti necessidade de dar continuidade aos meus estudos.

Pesquisadora: E como foi sua trajetória no espaço da Universidade?

A.C.S.: A minha trajetória na Universidade foi marcada por muita produção, reivindicações, resistências e insurgências que eu vou contando ao longo dessa entrevista. Destaco a parceria do Prof. Dr. Edivaldo Machado Boaventura, antigo Secretário de Educação da Bahia que introduziu na década de 1980 a disciplina “Introdução aos estudos Africanos” nos currículos de 1º e 2º graus na Bahia. Ele organizou várias reuniões e negociações com alunos e professores para criar o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros na sua linha de pesquisa “Política e Gestão da Educação” e tenho inúmeros documentos - ofícios, abaixo-assinados que comprovam esse movimento, e estão publicados no meu “Retrospectiva de uma trajetória de ações afirmativas precursoras à Lei 10.639/03”, publicado pela Editora Hetera em 2017.

A minha dissertação de mestrado intitulada “Estereótipos e preconceitos em relação ao negro no livro didático de Comunicação e expressão de primeiro grau nível 1”, defendida em 1988, tinha como objetivo questionar se os professores de nível I percebiam os preconceitos e estereótipos em relação ao negro veiculados nos livros didáticos de Comunicação e Expressão. É um estudo considerado pioneiro, utilizado em fóruns nacionais, em formação de professores, para discutir o livro didático/questão racial. O meu orientador foi o Dr. Marcos Aurélio Luz, que introduziu na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, na pós-graduação, a linha de pesquisa e a disciplina “Pluralidade Cultural e Educação”; com a aposentadoria dele, a professora Dra. Maria de Lourdes Siqueira, que viria a ser minha orientadora no Doutorado, continuou na linha de pesquisa no Núcleo de Estudos de “Educação, Cultura e Arte”, orientando muitas dissertações e teses.

A minha Tese de Doutorado chamada “As transformações da representação social do negro no livro didático e seus determinantes” (2001) foi orientada pela Profa Dra. Maria de Lourdes Siqueira e teve como objetivo identificar, junto a autores e ilustradores de livros de Língua Portuguesa, os elementos transformadores da representação social do negro.

Pesquisadora: “Se não fosse Ilê Aiyê [...] O que seria de mim, o que seria de você”. Qual a importância do “mais belo dos belos” na sua vida? Que “lugar” você ocupa no Ilê? Que trabalho você desenvolve ou desenvolveu lá?

A.C.S.: É importante dizer que bem antes dos blocos afro, na década de 30, os afoxés já marcavam de o carnaval dos brancos de Salvador. Sou fundadora do Ilê Aiyê e Diretora de Cultura e Arte. O Ilê Aiyê pode ser considerado redefinidor das ações do movimento negro. Ele foi o primeiro bloco afro do Brasil, criado em 1º de novembro de 1974, na Rua do Curuzu no bairro da Liberdade em Salvador. O Ilê foi responsável pelas transformações na nossa concepção de ser negro; em 1974, ele fala para todos nós negros que nós somos bonitos e começa a trabalhar autoestima e identidade negra. Em 1975 o Ilê desfila com uma fantasia de guerreiro Axanti e nos anos seguintes começa a cantar a história dos povos negros da África - o Egito, a Etiópia, Ruanda, Angola, Senegal. Jônatas, meu irmão, dizia que eles tinham consciência de que estavam fazendo política; afinal, o Ilê Aiyê fazia uma articulação político-cultural, mediando através da dança, do canto e da indumentária, mensagens que conduziriam ao orgulho de ser negro e das suas origens culturais, reconstruindo a autoestima e identidade étnico-racial do povo negro. Por exemplo, quando os turistas chegavam no Ilê eles logo tinham a ideia de Ilê como o Bloco de Carnaval. Quando eles viam a Escola Mãe Hilda, criada em 1995, com as crianças na educação infantil e no ensino fundamental tendo uma educação diversificada que ressalta aspectos da cultura afro-brasileira, eles percebiam a grandiosidade do que é o Ilê Aiyê.

O Ilê Aiyê desenvolve muitas ações significativas. No carnaval o Ilê tem o Bloco, a Band’erê, o Camarote do Ilê. Entre as ações culturais tem a Noite da Beleza Negra, os Ensaios do Ilê, o Cortejo da Negritude, a semana da Mãe preta, Novembro Azeviche e o Projeto Ilê construindo o futuro. Já entre as ações sociais estão a Escola Mãe Hilda, a Band’erê e a Escola Profissionalizante do Ilê Aiyê.5

Pesquisadora: A expressão “A princesa Isabel esqueceu de assinar nossa carteira de trabalho” lhe traz alguma memória importante?

A.C.S.: Me lembra uma foto emblemática de Jônatas. Uma foto minha com Petronilha Beatriz na frente de um outdoor na Liberdade - bairro populoso de Salvador, majoritariamente negro e onde está situado o Bloco Afro Ilê Aiyê - e que tinha escrito “A princesa Isabel esqueceu de assinar nossa carteira de trabalho” Esse outdoor foi feito numa articulação entre o Movimento Negro Unificado, o Bloco Ilê Aiyê e o Grupo Ginga, em 13 de maio de 1988, 100 anos após a promulgação da Lei Áurea, numa preocupação de mostrar que por conta do desemprego e o não acesso à educação que estamos nessa situação até hoje. Essa denúncia é muito importante, mas também as manifestações nas ruas, como protestos, passeatas.

Pesquisadora: Como foi a sua experiência como escritora para a Série Cadernos Negros?6

A.C.S.: Uma experiência importante para mim foram as minhas produções nos Cadernos Negros, publicação editada pelo Quilombo Hoje, em São Paulo. Eu escrevi vários poemas como: “Bebê a Bordo” (1966), “O Zé” (1966), “O Zé II” (2000), “Mania” (2000), “Para gostar de ser” (2010), “Pão” (2014), “Regresso” (2014). O mais impactante desses poemas para mim foi “Bebê a Bordo” porque trata sobre um episódio verídico em que a polícia matou crianças negras do Curuzu que formaram uma quadrilha, cuja maioria era de menor de idade. A polícia chegou ao Curuzu, fuzilou todos os garotos e alegou que eles reagiram a prisão; imaginem se eles iam reagir a prisão com a polícia fortemente armada. A morte deles não despertou nenhuma comoção social, como normalmente ocorre com os corpos negros. Depois do referido episódio, escrevi o poema que foi publicado inicialmente pelo Jornal A Tarde e posteriormente foi publicado nos Cadernos Negros.

BEBÊ A BORDO

Que brilho é este negro?

É o brilho do sangue no asfalto

Dos bebês do Curuzu

Negras crianças insurgente

Desesperadas, abandonadas.

Negra juventude transviada?

Seus frágeis corpos metralhados

Seguem a bordo do grito de justiça,

Espalhados pelos blocos afros e MNU

Pelas ruas da Liberdade e Curuzu.

Pesquisadora: A sua trajetória como professora universitária começou na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) em 1995. A UNEB é a primeira universidade do Norte e Nordeste e a segunda do país a utilizar o sistema de cotas desde 2002. Como foi a sua trajetória nessa instituição?

A.C.S.: Eu voltei para a Universidade muitos anos após a minha graduação unicamente pela perspectiva do Movimento Negro para atuar na graduação e na pós-graduação para atuar com essa temática do racismo na educação e nos materiais didáticos.

Em 2000, elaborei o Caderno de Educação Pluricultural que teve como objetivo formar sujeitos multiplicadores de uma educação pluricultural e antidiscriminatória nas series iniciais do ensino fundamental. Neste Caderno foram apresentadas atividades pedagógicas elaboradas nos cursos da pesquisa Formação de Professores numa perspectiva Pluricultural e Antidiscriminatória, que foi ministrado para professores de escolas comunitárias e alunos do curso de Pedagogia do Departamento de Educação - Campus 1 da UNEB, em Salvador, entre os anos de 2002-2004. Destaco alguns dos cursos ministrados: “Introdução aos Estudos Africanos”, “Gênero, Raça e Educação”, “Resistencia Negra no Brasil”, “Resgate da identidade através dos mitos”, “Identificação de Estereótipos nos Materiais Didáticos” e algumas noções de “Religiosidade Africana e Afro-Brasileira”.

Na UNEB orientei várias dissertações no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade, sendo que a primeira foi Rosangela Souza da Silva com a dissertação intitulada “Racismo e discriminação racial no espaço escolar: dizeres e fazeres de professores/as de uma escola pública de nível médio em Feira de Santana” (2005), estudante premiada juntamente com Marluce Macedo e Valdimarina Silva, também orientandas, no Concurso Negro e Educação, ANPED - FUNDAÇÃO FORD - AÇÃO EDUCATIVA (2003).

Destaco também, as seguintes orientações:

Os Cadernos de educação do Projeto de extensão pedagógica do Ilê Aiyê: Um Precursor das Diretrizes Curriculares Nacionais da Lei 10639/03 (2007) de Rosemary Rufina dos Santos Perin;

Xirê: Proposta para inclusão da criança negra na educação infantil: o saber nas festas do Terreiro do Cobre (2007) de Silvandira Arcanja Franco;

As Contribuições da dança afro-baiana na construção da identidade étnico-racial dos dançarinos do grupo cultural Malê Debalê (2007) de Jackson Jorge Almeida;

Uma Breve Reflexão sobre a Implantação da Lei 10.639/03 na Rede Municipal de Ensino de Salvador (2005-2006): a parceria SMEC e CEAFRO (2007) de Otto Vinicius Agra;

Educação, identidade afrobrasileira e publicidade visual: cotidiano do professor (2008) de Ivo Ferreira de Jesus;

Mulher negra professora entre a Crisálida e o Beija-flor: o invisível e o revelado, o silêncio e a escrita de si (2008) de Luciana Nascimento dos Santos;

Terreiros Egúngún: um Culto Ancestral Afro-Brasileiro (2008) de José Raimundo Sant’Anna Sobrinho;

Fundamentos do perfil identitário das crianças expressos na literatura infantil (2009) de Lucila Pereira Correia.

Representações de gênero e raça no ensino fundamental: a construção da identidade do ser "menina" e do ser "menino" (2009) de Marluce Arapiraca dos Santos.

Olhares e Histórias que emanam da voz: a construção da identidade étnico-racial de pessoas cegas (2010) de Ivone Silva de Jesus

Pesquisadora: Sabemos que você é considerada uma das intelectuais mais emblemáticas, reconhecida pela sua trajetória de pesquisadora militante, precursora na luta pelo combate ao racismo, especialmente na educação e a favor da cultura afro-brasileira. Por conta disso também já recebeu vários prêmios. Quais você destaca?

A.C.S.: Destaco o Troféu Clementina de Jesus, concedido pela União de Negros pela Igualdade UNEGRO (1996). O Troféu Ujaama, do Grupo Cultural Olodum (1999). O certificado em reconhecimento à excelência de mulheres que se destacam na luta pela construção de uma sociedade mais justa e mais igual pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia (2001). O Certificado de Solidariedade à Diáspora Africana pelo Instituto Cultural Steve Biko (2001). Troféu de Reconhecimento pelo IV Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros (2006). A Medalha Zumbi dos Palmares,7 pela Câmara Municipal de Salvador (2008). Recebi homenagens da UNEB por serviços prestados (2010). Destaco também o Troféu Sessão especial Zilda Paim concedido pela Assembleia Legislativa da Bahia (2013) e o troféu Mário Gusmão pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (2013), concedido a personalidades negras que contribuem para a promoção da igualdade racial e inclusão social.

Pesquisadora: Qual a sua avaliação do cenário brasileiro hoje no que diz respeito às relações raciais? Faço uma analogia ao Adinkra Sankofa: “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”

A.C.S.: As ações do Movimento Negro têm contribuído, em grande parte, para uma reflexão na sociedade em relação aos determinantes de exclusão das populações afrodescendentes. Sua prática de atuação tem influenciado instituições oficiais e sociais, como o Ministério da Educação (MEC), a Universidade, os partidos políticos, os sindicatos, as Igrejas. São muitas as conquistas no âmbito jurídico, na Academia... O Movimento Negro tem pressionado o Estado no sentido de promover políticas de reparação e de ações afirmativas para os afrodescendentes em todas as áreas e em especial na educação, medidas que devem possibilitar acesso e permanência de uma maioria que foi sistematicamente excluída.

Ressalto que é necessário reorganizar as pessoas, a juventude, que ela saiba que pode fazer muito pela continuidade do Movimento Negro, das lutas, das proposições das coisas que queremos que aconteça. Nós estamos em um momento de completa exclusão, extermínio pelo Estado e nós dizemos que “Bandido bom é bandido morto” e esquecemos que quem deve morrer não é o bandido, mas sim o que faz com que o bandido seja bandido: a marginalidade, a exclusão, a estereotipia. Por isso é necessário que o Movimento Negro faça um retorno às suas origens, as suas bases.

Hoje temos o teatro negro, como o Bando de Teatro Olodum, o novo cinema baiano e nacional, as obras que surgem tratando dessa temática, como “Um defeito de cor”, os livros sobre escravidão e insurgência - como os de João José Reis -, as frentes negras surgidas nessa década, como a frente Vidas Negras Importam, Sarau da Onça, Rolezinho das Caras Pretas, Frente Nacional Makota Valdina, Quartinhas de Aruá, entre outras.

Não esqueçamos que a base é o mais importante, a raiz é o mais importante, a ancestralidade é o mais importante, a unidade na diversidade é importantíssima. E que a luta antirracista não é uma luta do povo negro, deve ser uma luta de todos. Eu gostaria que as pessoas de peles diferentes que às vezes pensa que não é negra, atue no seu âmbito levando a luta antirracista.

Pesquisadora: Nesse momento de pandemia, como está a situação da população negra?

A.C.S.: Antes dizíamos “nossos passos vem de longe”. Considerando que o Brasil é um país de dimensões continentais, nós temos uma pandemia chamada racismo que se concretiza com a eliminação do outro, o outro diverso que eles não aceitam porque nós somos maioria nos pais, maioria invisibilizada. A pandemia chamada racismo está presente na nossa vida desde que nós viemos para aqui forçados nos navios negreiros; mas, junto a ela sempre houve uma reação, uma insurgência, nós estamos nos insurgindo de formas variadas.

Como diz Silvio Almeida, essa representação que nos empurram e nos internalizamos fica naturalizada - incapazes, desumanos. O pior que essa representação é do outro, mas também nossa. Nós ouvimos o negro dizer: “Bandido bom é bandido morto” e isso nós temos que acabar nós temos que tirar, extrair essa representação desumanizada para que as pessoas sintam a revolta como está acontecendo nos Estados Unidos, que as pessoas vejam aquele outro, diverso morto como um ser humano, um cidadão, uma pessoa capaz de quem foi tirada a vida. É isso que esses sentem lá. Eles sofreram menos do que nós essa lavagem cerebral de desumana, incapaz, minoria. Lá eles são minoria e a reação vocês estão vendo, é uma reação imensa e com aliados brancos, o que é muito importante. A adesão do outro que poderia se considerar superior, se considerando diferente e lutando. A pandemia sempre existiu e nós sempre nos insurgimos. A questão do desemprego é muito grande para um certo setor da sociedade; para nós, ele foi dado desde o dia 14 de maio de 1988. Nós fomos excluídos de um mercado em que nós trabalhamos mais de trezentos anos, sob o estereótipo de incompetência e nós fomos jogados na rua, sem direito a terra, sem direito aquela mula e carroça que os americanos tiveram e nós ficamos à nossa própria sorte. E, começamos a construir a partir daí, e bem antes daí, elementos de sobrevivência, vários elementos de sobrevivência. Aí que você vai ver como foi tecido pelo povo negro instrumentos de sobrevivência, instrumentos de insurgência. E tivemos várias revoltas como a Revolta dos Malês, Revolta do Bonde, Revolta da Chibata e muitas outras histórias que eu só conheci a partir de 1978 através do MNU, através das histórias cantadas pelos Blocos Afro Ilê Aiyê, foi o primeiro bloco no Brasil que nos ensinou o que era África, a história da África, a cultura africana, a cultura brasileira e quem éramos nós e quem somos nós no Brasil. É bom destacar a importância desses grupos para a nossa educação, para o nosso enraizamento.

Silvio Almeida fala muito da naturalização do extermínio. E agora ele fala como nós estamos naturalizando e tirando todo o significado das pessoas que estão sendo mortas, jogadas em valas comuns e o trator joga por cima terra. Aquele rito final, que nós chamamos aqui no Nordeste de sentinela, velório, tem um significado muito grande. Ressignificar a importância do que você foi, quem foi embora é uma pessoa muito importante e nós ficávamos velando essa pessoa, fazendo a sentinela, relembrando que a pessoa foi. Isso foi tirado com essa pandemia.

Pesquisadora: Após 35 anos de atuação como professora, você se aposentou em 2010, mas, participa ativamente da vida acadêmica, política, social e cultural de Salvador, sendo uma figura marcante nas diversas manifestações sobre a questão racial. O que você gostaria de destacar na sua extensa trajetória acadêmica/militante?

A.C.S.: Todas as coisas que eu vivi, todos os artigos que eu fiz foi em cima de propostas de ações afirmativas em relação a educação. Para que a educação seja um elemento de reflexão e independência de pensamento, é necessário que ela contemple todas as histórias, todas as culturas, todas as diferenças, em um recorte curricular que traga para a sala de aula o que for mais significativo de todas elas. Isso passa também pela possibilidade de construção de uma escola pública de qualidade para todas as pessoas - contribuir com a inclusão é conhecer e apoiar medidas democráticas que timidamente estão sendo inseridas na sociedade brasileira, através da luta do Movimento Negro e de outros movimentos sociais democráticos para reparar injustiças passadas e presentes e contra a grande maioria da população brasileira, a afrodescendente.

É importante resgatar os nossos atos de resistência e de insurgência. Vou terminar com uma música que o meu irmão Jonatas adorava e que era cantada antes do Ilê Aiyê, por Jorge Ben Jor.

“Zumbi é senhor das guerras

Zumbi é senhor das demandas

Quando Zumbi chega, é Zumbi quem manda[...]

Eu quero ver quando Zumbi chegar

Eu quero ver o que vai acontecer”8

REFERÊNCIAS

SILVA, A. C. da. A discriminação do negro no livro didático. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 1995. [ Links ]

SILVA, A. C. da. A representação social do negro no livro didático: o que mudou? Por que mudou? Salvador: EDUFBA , 2011. [ Links ]

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2Exames realizados entre 1931 e 1971 e que tinha por objetivo verificar se o candidato possuía satisfatória educação primária para ingressar na primeira série ginasial, desde que o educando tenha onze anos completos ou venha a alcançar essa idade no correr do ano letivo (LDB 4024/1961, art. 36).

3Foi um jovem feirante, acusado de pegar frutas na feira onde trabalhava e que foi vítima da violência policial no 44º Departamento de Polícia em Guaianazes, São Paulo.

4Terça da Benção é um evento que ocorre às terças-feiras no Pelourinho, centro histórico de Salvador, considerado Patrimônio Mundial pela UNESCO Nesse dia há uma missa realizada na Igreja do Rosário dos Pretos que alia a liturgia da Igreja católica com elementos da cultura africana. Após a missa, no Pelourinho acontece o show do cantor Gerônimo, o ensaio do Bloco Afro Olodum e as ruas são tomadas por blocos de percussão.

5Para maiores informações sobre as ações socioculturais desenvolvidas pelo Bloco Ilê Aiyê acessar: http://www.ileaiyeoficial.com.

6A série Cadernos Negros é uma publicação periódica literária afro-brasileira, criada em 1978, que publica reúne produções - contos, poemas - de pessoas negras, com temas diversificados.

7De acordo com a Câmara Municipal de Salvador a medalha Zumbi dos Palmares é uma honraria dedicada a pessoas atuantes no combate ao racismo, discriminação e intolerância na cidade de Salvador e no estado da Bahia. A proposta é da vereadora Olívia Santana (PC do B), por meio da Resolução n. 1.557/2005.

8Trecho da música África Brasil, de Jorge Ben Jor.

1Pós-doutora em Sociologia da Educação pela Universidade do Minho, Portugal; Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia.

Recebido: 16 de Setembro de 2020; Aceito: 08 de Junho de 2021

Endereço para correspondência: Avenida Adhemar de Barros, s/n, Ondina, 40170-110, Salvador, Bahia, Brasil; nanci.franco@hotmail.com

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