SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46Casos y lecciones de enseñanza en/para futuros procesos de formación de profesoresLa construcción de casos de enseñanza en un programa de inducción profesional para principiantes: potencialidades formativas índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Roteiro

versión On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.46  Joaçaba ene./dic 2021  Epub 11-Jun-2021

https://doi.org/10.18593/r.v46.27230 

Seção temática: Casos de Ensino na pesquisa e na formação de professores

No quintal do PIBID, os achadouros docentes: casos de ensino, narrativas formativas e desenvolvimento profissional

In PIBID's backyard, teaching "achadouros" (findings): teaching cases, formative narratives and professional development

En el jardin del PIBID, los hallazgos docentes: casos de enseñanza, narrativas formativas y desenvolvimiento profesional

Sandra Novais Sousa1I  , Professora
http://orcid.org/0000-0002-5965-1954

Eliane Greice Davanço Nogueira2II  , Professora titular
http://orcid.org/0000-0002-6067-9911

Cristiane Ribeiro Cabral Rocha3III  , Professora
http://orcid.org/0000-0001-8321-3906

IUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul, Faculdade de Educação, Professora.

IIUniversidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Programa de Mestrado em Educação, Professora titular.

IIIUniversidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Professora.


Resumo:

O artigo objetiva trazer ao debate as interfaces entre os casos de ensino e as narrativas formativas, tomando como objeto de análise as ações desenvolvidas em um subprojeto do Programa de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), no âmbito do curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Como procedimentos metodológicos, tendo como referencial teórico o método biográfico, foi realizado um levantamento bibliográfico da produção sobre o Pibid, a pesquisa narrativa e os casos de ensino, além da análise de relatórios produzidos por participantes do subprojeto no período de 2011 a 2017 e a produção de um caso de ensino a partir de observações das aulas de uma professora iniciante egressa do Pibid e entrevistas à professora e à gestora da escola em que atuava. Os resultados apontaram que os casos de ensino se situam, metodologicamente, no campo das narrativas formativas, histórias de vida, memoriais, narrativas autobiográficas e outros dispositivos ligados à pesquisa narrativa e ao método biográfico. Concluímos que a utilização de casos de ensino no referido subprojeto propiciou aos participantes do Pibid a reflexão sobre as práticas docentes, o espaço escolar e as concepções sobre ensino, aprendizagem e profissão docente, qualificando a formação inicial e potencializando a instituição de práticas alfabetizadoras pautadas no uso social da leitura e da escrita e na ludicidade.

Palavras-chave: Pibid; casos de ensino; narrativas formativas; pesquisa narrativa.

Abstract:

The article aims to bring to debate the interfaces between teaching cases and formative narratives, taking as object of analysis the actions developed in a subproject of the Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência [Teaching Initiation Scholarship Program] (Pibid), within the scope of the Pedagogy course at the Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. As methodological procedures, having the biographical method as theoretical reference, a bibliographic survey of the production on Pibid, narrative research and teaching cases was carried out, in addition to the analysis of reports produced by participants of the subproject in the period from 2011 to 2017 and the production of a teaching case based on observations of the classes of a beginning teacher graduated from Pibid and interviews with the teacher and the manager of the school where she worked. The results showed that the teaching cases are located, methodologically, in the field of formative narratives, life stories, memorials, autobiographical narratives and other devices linked to narrative research and the biographical method. We conclude that the use of teaching cases in the referred subproject provided the participants of Pibid with a reflection on the teaching practices, the school space and the conceptions about teaching, learning and teaching profession, qualifying the initial training and enhancing the institution of literacy practices based on social use of reading and writing and playfulness.

Keywords: Pibid; teaching cases; formative narratives; narrative research.

Resumen:

El artículo tiene como objetivo traer al debate las interfaces entre los casos de enseñanza y las narrativas formativas, teniendo como objeto de análisis las acciones desarrolladas en un subproyecto del Programa de Bolsa de Iniciação à Docência [Programa de beca a la iniciación à docencia] (Pibid), en el ámbito del curso de Pedagogía de la Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Como procedimientos metodológicos, teniendo como referencia teórica el método biográfico, se realizó un levantamiento bibliográfico de la producción sobre el Pibid, la investigación narrativa y los casos de enseñanza, además del análisis de los informes elaborados por los participantes del subproyecto en el periodo de 2011 a 2017 y la producción de un caso docente a partir de las observaciones de las clases de una maestra principiante egresada del Pibid y entrevistas con la maestra y la dirección de la escuela donde trabajaba. Los resultados mostraron que los casos de enseñanza se encuentran, metodológicamente, en el campo de narrativas formativas, historias de vidas, memoriales, narrativas autobiográficas y otros dispositivos vinculados a la investigación narrativa y al método biográfico. Se concluye que la utilización de casos de enseñanza en el referido subproyecto brindó a los participantes del Pibid una reflexión sobre las prácticas docentes, el espacio escolar y las concepciones sobre la docencia, aprendizaje y profesión docente, calificando la formación inicial y potenciando la institución de las prácticas de alfabetización basado en el uso social de la lectura y la escritura y en la ludicidad.

Palabras clave: Pibid; casos de enseñanza; narrativas formativas; investigación narrativa.

1 INTRODUÇÃO

O artigo debate as interfaces entre os casos de ensino e as narrativas formativas, tomando como objeto de análise as ações desenvolvidas no período de 2011 a 2017 em um subprojeto do Programa de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), no âmbito do curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária Campo Grande.

O Pibid foi criado pelo Governo Federal em 2007 com o objetivo de investir na melhoria da formação de professores, por meio da realização de estágios acompanhados por professores supervisores nas escolas públicas parceiras e coordenadores de área nas Instituições de Ensino Superior. Trata-se do primeiro programa nacional voltado diretamente à formação e acompanhamento dos licenciandos nas escolas de educação básica, diferindo do estágio supervisionado pelo tempo de contato dos acadêmicos na escola, pela maior participação dos acadêmicos no planejamento e acompanhamento das atividades pedagógicas e pelo recebimento da bolsa de auxílio.

O modelo original do projeto do Pibid - que foi sofrendo modificações ao longo dos anos, desde sua criação - foi objeto de estudo de diversos pesquisadores, tendo grande parte deles destacado as potencialidades do programa para a formação inicial docente (ANDRÉ, 2018; FARIAS; ROCHA, 2012; FARIAS; JARDILINO; SILVESTRE, 2015; GATTI et al., 2014). Uma das contribuições do Pibid mais evidenciadas pelos pesquisadores é a possibilidade de as vivências mais prolongadas dos licenciandos no cotidiano escolar provocarem a compreensão de que os conhecimentos a que se tem acesso na formação inicial não funcionam como receitas a serem aplicadas indistintamente nas situações de ensino; antes, precisam ser articulados às situações diversificadas encontradas no cotidiano da prática escolar (FETZNER; SOUZA, 2012).

Nessa perspectiva, a participação no Pibid tem contribuído para a quebra de mitos a respeito da realidade do campo profissional entre os futuros professores, bem como para a diminuição de receios e eliminação de preconceitos sobre as escolas públicas, fortalecendo a proximidade entre universidade e escola e entre iniciantes e experientes (ALBUQUERQUE; FRISON; PORTO, 2014; BERGAMASCHI; ALMEIDA, 2013; FREITAS, 2014).

A originalidade e a criação de estratégias próprias, visando à inovação educativa e a ruptura com os princípios e padrões formativos predominantes também têm sido destacadas pelos pesquisadores, o que mostra que o programa, ao longo de mais de uma década de sua existência, se constituiu em um importante espaço formativo, pois ofereceu subsídios para a configuração da docência como profissão e para a ampliação do compromisso com o ensino e aprendizagem (GONZATTI, 2015; ZIBETTI; SOUZA, 2011; ZORDAN, 2015).

No entanto, há contradições e desigualdades que, como programa de governo, o Pibid não conseguiu erradicar, como, por exemplo, não ser estendido a todos os licenciandos, demoras e atrasos no pagamento das bolsas, o próprio valor das bolsas que, ainda que contribua para a permanência dos acadêmicos, não atende às necessidades básicas de quem se dedica apenas aos estudos.

Durante o percurso histórico de sua criação até o momento da escrita desse artigo, o Pibid passou por quatro governos diferentes: Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de 2007, ano de seu lançamento, a 2010; Dilma Rousseff (PT), de 2011 a 31 de agosto de 2016, quando sofreu processo de impeachment, interrompendo seu mandato; Michel Temer (PMDB), de agosto de 2016 ao final de 2018; e Jair Messias Bolsonaro (sem partido), a partir de janeiro de 2019. Consequentemente, houve também mudanças na direção da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), entidade responsável pela gestão do programa, que implicaram em modificações mais ou menos substanciais nos encaminhamentos e diretrizes do programa ao longo dos anos.

No presente texto, o foco pretendido ao evidenciar as ações desenvolvidas em um subprojeto do Pibid não consiste em supervalorizar o programa em si, mas o potencial formativo que foi possibilitado por uma metodologia de trabalho que se utilizou de casos de ensino, narrativas formativas e investigação sistemática das práticas de ensino dos licenciandos bolsistas à luz de teorias educacionais. Para tanto, organizamos este escrito em três seções. Na primeira, buscamos conceituar casos de ensino, com destaque para as suas interfaces com os pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa narrativa. Em seguida, apresentamos o subprojeto do Pibid “Ateliês Formativos de Professores Alfabetizadores: construindo práticas eficazes”, evidenciando, especificamente, a proposta metodológica utilizada em suas reuniões formativas. Por fim, realizamos a análise de um caso de ensino, a partir da observação de aulas de professora iniciante egressa do Pibid.

2 CASO DE ENSINO: NARRANDO E REFLETINDO SOBRE EXPERIÊNCIAS DO COTIDIANO DAS ESCOLAS

Os casos de ensino, encontrados na literatura ou elaborados por professores ou estudantes das licenciaturas, configuram-se como instrumentos que possibilitam ressignificar a formação de professores, por meio do desenvolvimento de processos reflexivos sobre as experiências vivenciadas no cotidiano das escolas (MIZUKAMI, 2006).

A interface entre casos de ensino e narrativas fica bastante evidenciada quando se busca contextualizar historicamente a definição e conceituação do termo. Nono (2010, p. 8) explica que, por volta de 1985, Lee Shulman, então presidente da American Educational Research Association (AERA), já reconhecia a potencialidade da utilização dos casos de ensino como estratégia para incluir nos programas de formação inicial de professores os conhecimentos sobre situações escolares específicas, tomando-se como base algumas “[...] experiências preliminares - ainda que esporádicas e não totalmente estruturadas - com casos de ensino”, tanto em cursos de formação de professores como em outros campos profissionais, como Medicina, Direito e Administração.

Shulman (1992, p. 21) assim define os casos de ensino:

Diria que um caso possui uma narrativa, uma história, um conjunto de eventos que ocorrem num tempo e num local específicos. Provavelmente inclui protagonistas humanos, embora nem sempre seja necessário que isso ocorra. [...] Narrativas revelam o trabalho de mãos, revelam pensamentos, motivos, concepções, necessidades, preconcepções, frustrações, ciúmes, falhas. Representações e intenções humanas são centrais nessas narrativas. Refletem os contextos social e cultural em que os eventos ocorrem. Casos, portanto, possuem ao menos duas características que os tornam importantes na aprendizagem: seu status de narrativa e sua contextualização no tempo e no espaço.

Domingues, Sarmento e Mizukami (2012, p. 405), descrevendo as características de uma narrativa que se configura como “caso de ensino”, apontam:

[...] se trata de uma narrativa que possui um enredo; expõe um único ou vários episódios escolares reais ou fictícios; retrata uma situação de conflito; possibilita a construção de pontes entre teoria e prática e a reflexão das teorias pessoais de/sobre ensino; pode ser usada em diferentes etapas da formação (formação inicial e continuada) e em diferentes contextos (ensino presencial e a distância); aborda diferentes temáticas (educação inclusiva, área específicas de conhecimento, educação indígena, etc.); combina muitos elementos: análise, julgamento/avaliação, problematização, planejamento, decisão, etc.; contempla o contexto e/ou processo escolar: gestão, comunidade, aluno, professor, sala de aula, currículo, ensino, aprendizagem entre outros.

Dessa forma, os casos de ensino situam-se, metodologicamente, no campo das narrativas formativas, histórias de vida, memoriais, narrativas autobiográficas e outros dispositivos ligados à pesquisa narrativa e ao método biográfico ou (auto)biográfico.

Historicamente, a publicação das obras Histórias de vida: metodologia da abordagem biográfica em Sociologia, de Daniel Bertaux (1976), Produzir sua vida: autobiografia e autoformação, de Gaston Pineau e Marie-Michele (1983), e, posteriormente, História e Histórias de vida, de Franco Ferrarotti (1983/2014), na França, colocaram em ascensão o método biográfico nas pesquisas em Ciências Sociais.

No Brasil, sua utilização inicialmente esteve marcada, no campo da Sociologia, pelo interesse em pesquisar grupos minoritários, como o fez Florestan Fernandes4 ao analisar “a biografia de um índio do Centro-Oeste brasileiro” ou Roger Bastide,5 ao pesquisar “as relações raciais na sociedade brasileira” valendo-se, entre outros instrumentos, de histórias de vidas (SANTOS; OLIVEIRA; SUSIN, 2014, p. 360).

Já no campo educacional, uma perspectiva em desenvolvimento, principalmente a partir da década de 1980, relacionava-se ao caráter formativo que a rememoração de uma história de vida pode assumir, quando utilizada em pesquisas com professores. Assim, nesse campo, são representativas desse enfoque as obras de: Zeila Brito Demartini, “Velhos mestres das novas escolas: um estudo das memórias de professores da 1ª República em São Paulo” (1984); Clarice Nunes, “A reconstrução da memória: um ensaio sobre as condições sociais da produção do educador” (1987); e Denise Bárbara Catani, Belmira Oliveira Bueno e Cynthia Pereira Sousa, organizadoras da obra “Docência, memória e gênero” (1997); entre outras

É nessa vertente, que prioriza os aspectos formativos presentes nas histórias de vida de professores, que observamos a interface entre os casos de ensino e as narrativas de professores. Essa abordagem coloca em evidência as possibilidades da utilização de histórias de vida na formação de professores, a partir de uma “[...] teoria de formação dos adultos pensada como um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida, colocando em evidência os saberes subjetivos e não formalizados que os indivíduos utilizam em suas experiências, nas relações sociais e profissionais.” (OLIVEIRA, 2016, p. 147).

As narrativas de professores possibilitam, conforme Delory-Momberger (2006, p. 365), formular reflexões “[...] em uma dinâmica prospectiva que liga as três dimensões da temporalidade (passado, presente e futuro)”, com vistas a “fundar um futuro do sujeito e fazer emergir seu projeto pessoal.” Podem contemplar, portanto, a diversidade de propostas de ensino encontradas no ambiente escolar e nas salas de aula, propiciando a reflexão sobre os processos de ensino e aprendizagem e as interações entre professores, alunos, demais profissionais que atuam no ambiente escolar e comunidade de pais e/ou responsáveis.

As narrativas apresentadas nos casos de ensino são marcadas pelas representações dos sujeitos envolvidos, contextualizadas no tempo e no espaço. Quando utilizadas na formação inicial de professores como casos de ensino, propiciam aos licenciandos refletirem sobre suas percepções e concepções sobre a aprendizagem, o ensino, a escola e seus sujeitos, contribuindo para que percebam a necessidade de olhar para aquela situação a partir de uma perspectiva profissional, e não com o olhar de aluno. Portanto, os casos de ensino voltados para a formação de professores são elaborados de forma a retratar ações e práticas observadas ou experienciadas, a fim de provocar o uso do raciocínio, do discurso e da memória profissional (SHULMAN, 1992).

Nono (2005, p. 10), aponta que os casos de ensino contribuem para a “[…] compreensão dos modos como ocorrem e como podem ser promovidos processos de desenvolvimento profissional, podendo […] ser utilizados em programas de formação inicial e continuada de professores como estratégia formativa e investigativa.”

Dessa forma, tanto os casos que são narrados a partir das experiências próprias quanto os que são disponibilizados na literatura, reais ou fictícios, potencialmente podem promover a reflexão e problematização das práticas docentes, oportunizando tanto a sistematização de conhecimentos didático-pedagógicos quanto uma discussão crítica e teórica que pode possibilitar mudanças ou superação de determinadas práticas.

Os casos de ensino têm se mostrado bastante adequados quando se considera seu uso na formação dos professores enquanto profissionais que, diante de situações escolares cotidianas, mobilizam e utilizam conhecimentos - construídos ao longo de sua trajetória escolar e profissional - para tomar decisões e determinar suas ações, respondendo à complexidade e à diversidade dos eventos que ocorrem em sala de aula e, ao mesmo tempo, construindo e reconstruindo seu conhecimento profissional. (NONO, 2005, p. 14).

Os casos de ensino, aqui entendidos como narrativas formativas, possibilitam ao professor ou futuro professor relacionar os aspectos teóricos e práticos, problematizar diferentes situações escolares, refletir sobre os recursos didáticos, o currículo e os saberes docentes e discentes, enfim, sobre o cotidiano escolar, promovendo, ainda, uma reflexão antecipada da ação a ser exercida ou daquilo que já foi realizado, sendo um instrumento relevante tanto pra a formação inicial quanto para a formação continuada de professores, na perspectiva do desenvolvimento profissional docente.

O desenvolvimento profissional docente refere-se ao “[...] processo contínuo de transformação e constituição do sujeito, ao longo do tempo, principalmente em uma comunidade profissional.” (FIORENTINI; CRECCI, 2013, p. 13). Essa concepção está baseada em um posicionamento epistemológico que leva em consideração a ação dos sujeitos na estrutura, modificando-a e sendo modificado, em um processo ativo.

De acordo com Imbernón (2010), não se pode analisar ou propor alternativas para a formação de professores sem levar em consideração o contexto político, histórico e social, ou seja, é preciso vincular a formação ao contexto de trabalho. Assim, compreendemos que os casos de ensino, utilizados na formação inicial ou continuada, contemplam as condições objetivas de trabalho dos professores, narradas por eles ou por seus pares, conforme foram vivenciadas e a partir das suas experiências, que, conforme Larrosa (1999), referem-se àquilo que provoca mudanças, deixa marcas ou “toca” o sujeito.

Marcelo Garcia (1999) ressalta, ainda, entre outros aspectos que discute sobre a formação de professores, para o que chama de necessidade de isomorfismo entre as ações de formação e o que se espera ou o que será permitido que o professor desenvolva no seu campo de trabalho. Não se pode esperar que o professor aprenda, seja na formação inicial seja nos momentos de formação continuada propiciados pelas secretarias de educação ou pela própria instituição escolar, algo que não poderá executar

No que se refere ao Pibid, esse é um fator relevante de discussão, haja vista que, como professores iniciantes, os egressos encontram um campo de atuação diversificado, escolas que assumem diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, mais ou menos propensas a aceitar mudanças.

Dessa forma, ainda que ressalte a validade de se individualizar a formação, no sentido de não considerá-la como um processo homogêneo que desconhece as expectativas, conhecimentos e características pessoais dos sujeitos em formação, Marcelo Garcia (1999) evidencia o caráter coletivo do processo de aprendizagem docente e a importância de se buscar soluções colaborativas para os problemas educacionais reais encontrados no contexto de atuação de uma equipe de profissionais. Os casos de ensino, nessa perspectiva, podem contribuir para essa busca colaborativa de soluções.

Sob essa ótica, na próxima seção apresentaremos como os casos de ensino foram utilizados como estratégia formativa no âmbito do subprojeto "Ateliês Formativos de Professores Alfabetizadores: construindo práticas eficazes”, desenvolvido no curso de Pedagogia na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).

3 ACHADOUROS6 DE CASOS DE ENSINO: “ATELIÊS FORMATIVOS DE PROFESSORES ALFABETIZADORES: CONSTRUINDO PRÁTICAS EFICAZES”

O subprojeto “Ateliês Formativos de Professores Alfabetizadores: construindo práticas eficazes” integrou o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Docência (Pibid), no período de 2011 a 2016. Em sua apresentação, afirma a intenção de desenvolver "[...] um projeto de estágio que integre a disciplina de alfabetização à prática docente, visando compreender o processo de alfabetização no interior de sua totalidade social, bem como os elementos da didática necessários ao ensino da oralidade, leitura e escrita." (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL, 2011, p. 2).

Participavam do subprojeto uma coordenadora de área (professora do curso de Pedagogia), uma professora supervisora (que atuava como diretora adjunta na escola parceira) e os acadêmicos bolsistas, denominados “pibidianos”.

Antes e durante a imersão dos pibidianos no contexto escolar, no contexto do subprojeto em questão, os acadêmicos bolsistas participavam de reuniões semanais, com o objetivo de realizar estudos sistemáticos sobre os processos de ensino e aprendizagem e os aspectos que perpassam a profissão docente. Nessas reuniões formativas, os licenciandos discutiam casos de ensino, narrados em seus relatórios a partir do que vivenciavam nas escolas ou tendo como elemento motivador alguma situação-problema lançada nas reuniões.

A metodologia formativa adotada no subprojeto, portanto, estava ligada aos pressupostos da pesquisa narrativa. Assim, os relatórios eram escritos em formato de narrativas, adquirindo uma característica menos técnica ou em linguagem administrativa do que o que se imaginaria encontrar em "relatórios". Nesses relatórios mensais, eram narradas as situações vivenciadas na escola, abrangendo as conversas na sala dos professores, o trabalho da coordenação pedagógica, as metodologias utilizadas pelas professoras regentes que acompanhavam, o que observavam nas reuniões pedagógicas, nos horários de planejamentos, enfim, a dinâmica geral da escola. A ideia de que “toda narrativa reflete uma práxis humana” (SILVA; RIOS, 2018, p. 59) perpassava a proposta dessa produção escrita.

As narrativas abrangiam a prática dos acadêmicos com os alunos nos “ateliês”, termo utilizado no subprojeto para nomear os espaços e atividades desenvolvidas pelos pibidianos com turmas de, no máximo, dez estudantes de classes de alfabetização que apresentavam dificuldades na aprendizagem da leitura e da escrita, escolhidos pelos professores regentes. Nesse atendimento eram desenvolvidas atividades diferenciadas, pautadas na teoria da psicogênese da língua escrita e fugindo às formas tradicionais e transmissivas dos métodos de alfabetização.

A escrita e a socialização desses relatórios propiciavam uma constante reflexão sobre o cotidiano escolar, possibilitando relacionar teoria e prática, sensibilizando para as relações desenvolvidas no ambiente de trabalho. São essas narrativas que se aproximam do que chamamos aqui como casos de ensino, e que serão apresentadas a seguir. Colocamos os excertos das narrativas entre aspas, seguidos do nome (fictício) dos acadêmicos bolsistas e do ano em que o relatório foi produzido.7

Em uma das reuniões, foi lido o texto “Poder e desvelo na sala de aula” de George Noblit (1995), que narra o caso de uma professora norte-americana que conseguia aliar a disciplina em sala de aula com a participação ativa das crianças. A proposta para a escrita da narrativa era discorrer sobre o que para eles fazia com que um professor tivesse poder, ou seja, o que era um “professor poderoso”.

A pibidiana Ariel narra que interpretou inicialmente o sentido do termo poder do professor como a capacidade do docente em controlar a indisciplina na sala de aula, associando "poder do professor" com "poder autoritário". O desenrolar de sua narrativa, no entanto, revela que esse pensamento continuou a nortear suas reflexões, demonstrando as contradições inerentes à articulação da teoria aprendida e defendida nas reuniões do Pibid - em que a criança, como sujeito ativo de sua aprendizagem, é incentivada a se expressar, a participar da aula - com a observação da dificuldade em colocar isso na prática e manter a organização e a disciplina tanto na sala de aula, com todos os alunos, quanto nos “Ateliês”, em que a bolsista atendia a cinco crianças e, segundo os seus relatos, não conseguia "executar as atividades", mostrando que, aparentemente, vivenciava problemas em mantê-los organizados.

Para Ariel, a obediência ao professor consistia em uma "ação inserida na relação de respeito entre aluno e professor". Relata que não aprovava a atitude da professora da sala que observava, pois, segundo ela, "a relação de respeito existe no sentido de amedrontar as crianças" que, em consequência das atitudes da professora, "permanecem em silêncio, levantam a mão antes de falar, não se levantam da cadeira, não sentam de qualquer jeito." No entanto, a acadêmica bolsista narra em seu relatório: “confesso que também pensava que a sala não estaria desse jeito se ela não fosse brava, gritasse e amedrontasse suas crianças. A sala de aula realmente não é tão silenciosa e organizada se o professor não der alguns gritos, porém a sala de aula ideal não é essa.” (Ariel, 2014).

Assim, observamos na narrativa de Ariel o confronto e a reflexão provocada por situações distintas, mas interligadas: o que acreditava que seria o "ideal", ou seja, conseguir manter a sala organizada, sem recorrer ao autoritarismo ou aos gritos, como narrado no caso de ensino lido na reunião do subprojeto; aquilo que percebia na prática da professora regente que acompanhava, a qual conseguia manter a sala disciplinada, mas usando estratégias que não seriam as ideais; e o que vivenciava em sua própria prática, quando afirma que com apenas cinco alunos não conseguia "executar as atividades".

Francy, por outro lado, empreendeu uma reflexão sobre os múltiplos sentidos que o termo poder poderia tomar, a depender do ponto de vista do observador. A pibidiana relacionou o poder do professor ao “vigor, autoridade e importância" do profissional, ligado tanto ao "respeito de seus alunos" como à "autonomia para decidir a melhor maneira de trabalhar." (Francy, 2014).

Para desenvolver essa autonomia, no entanto, é preciso que o professor tenha um aporte teórico que lhe permita opinar e optar, explicitar suas escolhas metodológicas e ser respeitado como profissional, a fim de desempenhar suas funções a partir de suas interpretações de mundo e de educação, o que não implica, conforme Contreras (2002, p. 200), um “[...] isolamento do restante dos colegas, nem tampouco oposição à intervenção social na educação ou ao princípio de responsabilidade pública.” Para o autor, a ideia de autonomia, “[...] entendida como exercício, como construção, deve se desenvolver em relação ao encargo prático de uma tarefa moral, da qual se é publicamente responsável, e que deve ser socialmente participada.” (CONTRERAS, 2002, p. 200).

Diante dessas limitações objetivas à autonomia docente, Francy narra em seu relatório que, ao invés de se sentir poderoso, o professor se sente "[...] desanimado com questões do trabalho, com as impossibilidades e falta de reconhecimento." (Francy, 2014).

Em outros relatórios, esse poder do professor foi associado a um modelo de docente inspirador, amigo, afetivo, desvelando o ideário presente nas concepções dos bolsistas e como alguns professores ora se encaixavam ora não se encaixavam nesse estereótipo formado. Para o pibidiano Cláudio, o poder do professor vinha da admiração que causava nos seus estudantes por ser "alguém com quem podia contar, um conselheiro, amigo e instrutor de voo, que me amparava nos meus questionamentos." Revela uma imagem idealizada do profissional, concebendo-o como "um ser fora do comum, alguém acima das outras pessoas." (Cláudio, 2014).

Já Eli narra sobre um professor da Educação de Jovens e Adultos que para ela era exemplo de um professor poderoso. No entanto, aponta que "de início não o julgava capaz, talvez pela sua estrutura física, pois ele era miudinho”, também trazendo à tona que havia uma imagem, já formada, sobre o perfil de um profissional do magistério, o que incluía determinado tipo físico. Para ela, as características de um professor poderoso seriam "entusiasmo, amor, dinamismo, vivacidade, domínio de conteúdo e de sala, levar o aluno ao questionamento, a acreditar em si mesmo, a se apaixonar pelo conhecimento e a ter uma visão mais aberta do mundo real." (Eli, 2014).

Segundo Nóvoa (2009, p. 28), "[...] o professor é a pessoa, e a pessoa é o professor. É impossível separar as dimensões pessoais e profissionais. Ensinamos aquilo que somos e, naquilo que somos, se encontra muito daquilo que ensinamos." Nos relatos dos pibidianos sobre a imagem que tinham de um professor poderoso, percebemos essas dimensões: não bastava a esse professor saber ensinar conteúdos, pois as formas de se relacionar com os estudantes e a coerência que precisava ser percebida entre seus ensinamentos e suas ações eram aspectos relevantes de sua profissionalidade.

Esses valores interiorizados pelos pibidianos sobre a educação e a profissão docente fazem parte dos valores e crenças que permeiam o campo. Tratar de tais temas na formação dos futuros professores pode contribuir, portanto, para a desnaturalização desses mesmos valores e crenças. Alguns temas tratados nas reuniões formativas do subprojeto do Pibid estavam, assim, voltados para a discussão sobre as ideias ou concepções que sustentam a prática dos professores e a dinâmica imposta na instituição escolar. Em uma das reuniões foi debatido o texto Ideias, concepções e teorias que sustentam a prática de qualquer professor, mesmo quando ele não tem consciência delas, de Telma Weiz (1999), com a proposta de se refletir que, ainda que os professores alfabetizadores não tivessem consciência, havia teorias e concepções que embasavam suas práticas cotidianas.

Nesses relatórios, mais do que o entendimento dos pibidianos das diferenças entre o construtivismo e a teoria empirista, temática do texto, mostrou-se relevante a articulação que fizeram entre o texto proposto e as suas vivências reais na escola, o que aponta para um início de passagem de uma visão meramente estudantil para uma visão como profissional daquilo que estava sendo tratado. Houve uma reflexão não somente sobre as práticas das professoras observadas, mas sobre suas próprias práticas nos ateliês, em como essa teoria era posta em movimento, se materializava, às vezes de forma inconsciente.

Ariel, por exemplo, narra que a discussão a fez pensar sobre a sua prática em relação à teoria, afirmando: "Eu ainda cometo deslizes fazendo algo do modo tradicional e às vezes sem nem perceber, como simplesmente dar a resposta e corrigir a criança sem dar a chance de ela notar o erro, porque é mais rápido." (Ariel, 2013, grifo nosso). O seu relato revela que atuar nos ateliês com as crianças propiciou à licencianda perceber aquilo que de outra forma talvez passasse despercebido: que o ato de dar a resposta, de corrigir sem dar tempo ao estudante de refletir sobre o problema, fazia parte das ações embasadas por uma teoria específica, em que a visão de ensino, de aluno, de escola ou de sociedade era diversa daquela que estava sendo discutida e adotada pelo subprojeto do Pibid.

Francy argumenta que as dúvidas sobre as teorias "[...] quase nunca surgem no momento de reflexão, debate, estudo e leitura, surgem somente na prática, quando vivenciamos situações em que não temos nenhuma ideia da direção em que devemos ir." (Francy, 2013). Entender as concepções das teorias por meio da leitura de um artigo, o que implica tão somente a capacidade de interpretação de texto, foi considerado diferente de compreender como essas teorias eram postas em prática no cotidiano escolar.

Para os futuros professores, tais reflexões, articuladas com a vivência dessas situações na escola, contribuíam para o seu processo formativo e para a construção de uma identidade docente, problematizando a imagem hegemônica de escola e de professor presente na sociedade.

De fato, nos relatos dos pibidianos, a concepção de escola presente em seus imaginários, naturalizada, era de um espaço sem conflitos, "mágico", com uma função social bem definida: ensinar conteúdo. "Parecia que tudo era simples, sem muita burocracia" (Consul, 2013), um lugar "de uma convivência harmônica" (Ane, 2013), "onde se aprenderia, os alunos tinham de ficar quietos, os professores nos ensinariam coisas relevantes." (Nanda, 2013). A consideração do estudante como tábula rasa, ou aquele que entra "em branco" (Consul, 2013) estava presente nas concepções dos professores em formação, assim como está presente na sociedade e nas regras implícitas no campo educacional.

No entanto, a vivência na escola, de forma ativa, não apenas como observador, mas atuando com as crianças, provocou nos pibidianos a constatação que dos entraves, processos burocráticos e cobranças presentes na dinâmica escolar: "tudo que se faz esbarra em um amontoado burocrático. Os papéis nem sempre são cumpridos com satisfação" (Cônsul, 2013); "tudo é mais complexo e difícil, o quanto tem de burocracia atrás de muitas políticas pedagógicas e quantos problemas que às vezes parecem difíceis de serem solucionados." (Ane, 2013).

Nesse processo reflexivo, as concepções presentes no campo educacional foram problematizadas, como na reflexão de Nanda, que narra: "Vi que os professores precisam planejar, que não devemos ficar presos apenas em passar conhecimento. Vi isso no Pibid, pois na escola ainda encontramos inúmeros professores que fazem isso.” (Nanda, 2013).

Ainda que estivessem em formação, preparando-se para o exercício da profissão após a conclusão da licenciatura, os pibidianos refletiram sobre a constituição da docência pelas experiências vivenciadas nos ateliês, atuando junto às crianças com dificuldade de aprendizagem. Em uma proposta de narrativa intitulada: "Como me constituí professor", após a leitura e debate da obra “O bom professor e sua prática”, de Maria Isabel da Cunha (1992), encontramos relatos em que é possível perceber a movimentação da forma como os pibidianos se percebiam no ambiente escolar.

Do sentir-se como "estagiária, amiga da prô, empregada da prô” (Francy, 2014) ao "já consigo me reconhecer professora" (Eli, 2014), houve um processo de reflexão que passou, essencialmente, pelo olhar do outro sobre si mesmos, seja dos estudantes, seja dos professores e outros atores da escola: "Os alunos me viam como professor, os professores me viam como professor, os funcionários da escola me viam como professor e eu passei a me ver como professor" (Cláudio, 2014); "os alunos te enxergarem como docente vem bem antes de nós nos vermos como tal.” (Francy, 2014).

Esse reconhecimento de si como docente estava ligado, segundo os relatos, essencialmente ao contato com as crianças em situação de docência e à responsabilidade advinda das expectativas depositadas em seu trabalho: “A inquietação que nos dá ao perceber que o aluno ainda não entendeu e a vontade de buscar algo que facilite” (Kelly, 2014); "Foi no ateliê que realmente acordei, foi quando uma das crianças disse, professora eu não sei escrever isso, então percebi que era minha responsabilidade ensinar [...]” (Eli, 2014); "[...] passei a refletir na imensa dificuldade dos alunos, e percebi que estava ali como uma professora que podia e deveria fazer algo por eles diante da realidade encontrada. Me vi professora na emoção que senti ao vê-los a primeira vez depositando toda sua confiança e expectativas em mim." (Nanda, 2014).

Nesse sentido, analisar casos de ensino, realizar efetivamente ações como docentes nos ateliês durante o curso da graduação e escrever sobre essas experiências em suas narrativas propiciou aos pibidianos a oportunidade de formular reflexões sobre as interações no campo educacional, as responsabilidades dos professores sobre as aprendizagens das crianças, os problemas reais encontrados no cotidiano escolar, os conhecimentos necessários à profissão e, principalmente, a transitoriedade desses saberes frente à dinâmica das mudanças sociais, contribuindo para a formação de uma atitude investigativa.

Conforme Cochran-Smith (2003, p. 24), a atitude investigativa consiste em “uma perspectiva intelectual, uma forma de questionar, dar sentido e relacionar o trabalho diário ao trabalho de outros e a contextos sociais, históricos, culturais e políticos mais amplos.” Dessa forma, implica a compreensão da formação como um processo de construção pautado no questionamento e no olhar crítico sobre a teoria e a prática, a partir do contexto histórico, político, social e cultural em que as ações docentes são realizadas, sem perder de vista que esse contexto está inserido, por sua vez, em contextos mais amplos.

Na próxima seção, a fim de ampliar as discussões sobre casos de ensino, analisamos um caso que evidencia a prática docente de uma egressa do subprojeto e os efeitos que essa participação teve em sua trajetória acadêmica e iniciação profissional.

4 ANÁLISE DE UM CASO DE ENSINO: PROFESSORA INICIANTE EGRESSA DO SUBPROJETO ATELIÊS

Para a produção do caso de ensino apresentado a partir do próximo parágrafo, foram utilizados os relatórios que Francy produziu quando participava do subprojeto Ateliês, entrevistas realizadas com ela e com a diretora da escola em que atuava como professora iniciante, em 2017, e um relatório de 72 horas de observações de suas aulas em uma escola pública da rede municipal de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, elaborado por uma acadêmica do curso de Pedagogia que, no momento, era participante do referido subprojeto.

Francy não foi uma aluna que se destacou no curso de Pedagogia. A estada na universidade não alterou, por exemplo, seus hábitos de leitura. Ela continuou lendo o que gostava, livros de ficção, deixando de realizar as leituras obrigatórias pedidas em algumas disciplinas da Pedagogia, quando o texto não lhe interessava. Foi sendo aprovada com as notas mínimas exigidas nas disciplinas.

Fez os primeiros estágios também sem muito entusiasmo ou destaque. Em um estágio de observação, realizado em uma sala de 2º ano da rede municipal, ao ver que a professora centrava suas práticas na leitura e repetição de famílias silábicas, pensou que quando fosse fazer sua regência iria repetir essa prática, afinal, foi dessa forma que havia sido alfabetizada.

Foi uma surpresa para os professores do curso quando se inscreveu para o Pibid, em 2012, pois, realmente, não possuía um perfil acadêmico de quem busca atividades extracurriculares. Mas, a entrada no programa, de certa forma, provocou mudanças em sua vida acadêmica e seus hábitos de estudo. Passou a ter interesse em leituras teóricas sobre alfabetização, Apesar de ter sido quase reprovada na disciplina Alfabetização e Letramento, passou a ter interesse em leituras teóricas sobre alfabetização. Foi, aos poucos, desenvolvendo um olhar crítico sobre as práticas alfabetizadoras tradicionais, preocupando-se em elaborar um planejamento que não fosse voltado à codificação e decodificação, por meio do ensino direto das correspondências grafo-fônicas. “Não vou ficar lendo para a criança a manhã inteira BA-BE-BI-BO-BU.”

Participou, como pibidiana, das rotinas escolares, como reuniões pedagógicas, acompanhamento dos planejamentos da professora regente, observação das aulas e regência nos ateliês. Em 2013, quando observava e ajudava uma professora regente que havia fixado na parede um cartaz em que classificava o nível da leitura de cada aluno através de “carinhas”', umas com um sorriso largo, outras com apenas um sorriso e outras chorando, analisou criticamente que aquela metodologia havia feito com que vários alunos começassem a se recusar a ler. Assim, em seus ateliês buscava formas de incentivar as crianças a lerem sem medo de estarem sendo avaliadas.

No mesmo ano, observou que a atitude da professora de pedir que ela acompanhasse um aluno com dificuldade, realizando com ele atividades diferentes das que o restante da turma fazia, era excludente. Então, nos ateliês, sem a presença da professora regente, procurava elaborar atividades que todas as crianças pudessem participar, de acordo com o seu nível de conhecimento e ritmo de aprendizagem.

No ano seguinte, acompanhando uma professora diferente, continuou a problematizar as metodologias de alfabetização, buscando, a partir disso, construir uma prática diferenciada com as crianças que atendia nos ateliês. Entre as práticas problematizadas estavam as atividades descontextualizadas de caligrafia e a ação de “tomar a leitura” das sílabas, que não contribuíam para uma real aprendizagem da leitura e da escrita, mas apenas colocavam as crianças em uma posição de competição em relação à letra ou à memorização das sílabas. Vale lembrar que as crianças que frequentavam os ateliês eram escolhidas em função de terem dificuldades de aprendizagem.

Francy ficou durante três anos no subprojeto do Pibid. Após a conclusão do curso, ingressou como professora concursada em uma escola da rede municipal de ensino, assumindo uma sala de 1º ano. No início de sua atuação como professora, teve que enfrentar alguns problemas com os pais e com colegas de profissão. Alguns pais não confiavam que ela “daria conta” de alfabetizar as crianças, comparavam-na com a outra professora alfabetizadora da escola, que possuía 15 anos de experiência, era mais velha e mais conservadora em suas práticas. Já Francy, mais jovem, quase da estatura das crianças, era vista com olhares de suspeição. A colega de profissão, conforme relata a gestora da escola, recusava-se a planejar junto com a novata, não acreditava em sua metodologia e ficava à espreita, esperando o seu fracasso. Não achava que com tantos anos de experiência tinha que se submeter a se sentar com ela, ouvir o que ela pensava ou levar em consideração suas ideias em relação ao trabalho.

No entanto, aos poucos Francy foi conquistando a confiança de seus pares, do corpo administrativo e dos pais, ao verem os resultados do trabalho que desenvolvia. “Ela tem outra visão, já vem com uma formação que a auxiliou nesse desafio. Fez um trabalho de excelência, muito segura, acreditando muito na maneira como ela leciona, o que ela espera do aluno”, disse a gestora.

Nas observações de suas aulas, foi possível perceber que a egressa manteve a mesma dinâmica dos ateliês de alfabetização, privilegiando atividades diferenciadas, o protagonismo das crianças e a superação de modelos pautados na memorização e repetição mecânica de sons.

A sua sala de aula ficava em um espaço em que funcionava anteriormente um laboratório de Ciências. Apesar de ser um espaço pequeno, a sala era acolhedora, e não foram observados, como é comum se ver em salas de alfabetização, muitos cartazes nas paredes. Havia, somente, cartazes com recortes de numerais, alfabeto, palavras e algumas figuras, sinalizando produção das crianças.

Havia, ainda, vários recursos disponíveis em sala de aula: livros literários, revistas, jornais, jogos e brinquedos, dos quais a maioria pertencia à professora. Por ser uma sala um pouco afastada das outras dependências da escola, havia certa tranquilidade e ausência de interrupções.

A professora sempre começa sua aula cumprimentando as crianças, dando boas-vindas e desenhando no quadro um menino e uma menina. Pergunta para as crianças: "Quem é esse menino e essa menina?". As crianças procuram entre si algum detalhe que dê pistas de quem foi desenhado. "É o [nome da criança]!", uma criança responde, por exemplo. A professora elogia o acerto e pergunta: "E a menina?" Após descobrirem quem foram as crianças desenhadas no quadro, a professora convida uma criança para realizar a contagem dos meninos e das meninas presentes.

Quando terminam, a professora escreve no quadro a quantidade crianças em frente a cada desenho, coloca o sinal de adição (+) entre os números e conta, com as crianças, o total de estudantes presentes à aula: "Aqui tem 14, com o 14 na cabeça, agora contamos o restante no dedo, 15, 16, 17,18, [...], 24. Então, 14 com 10 é igual a 24 crianças no total." E escreve no quadro o numeral 24.

A professora também escreve no quadro, em frente aos números de meninos e meninas, a palavra “MENIN_S” e segue-se o pequeno diálogo:

Professora: - Qual a letra que está faltando aqui?

Ela repete o nome, e as crianças respondem:

- É a letra “O”!"

Professora: - E aqui? Qual a letra que falta?

- A letra “A”! - respondem.

- Então a letra que diferencia um nome do outro são as vogais “O” e “A”. Muito bem!

A professora utiliza o momento inicial da aula para trabalhar o raciocínio lógico-matemático, por meio do cálculo mental, que auxilia tanto a compreender o sistema de numeração (por meio da contagem), como as propriedades das operações (quando faz uso do símbolo convencional de adição). Nesse momento, também trabalha o sistema de escrita alfabética, ajudando as crianças a compreenderem o diferencial de uma palavra em relação a outra com a troca de apenas uma letra. As crianças se evolvem com a atividade, principalmente, pela estratégia de desenhar um deles e propor à classe o desafio de descobrir quem foi desenhado, com base em algumas características. Por exemplo, em uma das aulas uma criança disse: "Professora é a [nome da criança], porque ela está de maria-chiquinha”, referindo-se à forma que o cabelo da menina estava arrumado. Ou, quando outra criança descobriu: "Eu sei! É o [nome da criança]! Ele está de cabelo de lado!" Assim, o momento torna-se descontraído e promove a aprendizagem de forma lúdica.

Também presente na rotina está a utilização do calendário: dia, mês, ano, datas comemorativas e o significado dos feriados. As crianças possuem uma cópia do calendário do mês colada no caderno e, todos os dias, pintam os dias que já passaram. O trabalho com as noções temporais, como a ordenação, a duração e a simultaneidade, são fundamentais para auxiliar a criança a situar-se historicamente. Precisa fazer parte da rotina do trabalho com crianças porque, segundo Ribeiro (2001, p. 78):

Estas referências temporais que foram definidas convencionalmente pelos homens, e de acordo com os seus próprios marcos culturais, representam um grande desafio para as crianças, por se constituírem medidas arbitrárias e de alto grau de abstração. A escola, como espaço de sistematização do aprendizado infantil, deve-se tornar o lugar privilegiado de apropriação das noções do tempo pela criança. A tarefa da escola é levar a criança a quantificar o tempo, possibilitando ao aluno o trabalho com o tempo remoto e a consequente reflexão e atuação transformadoras sobre o presente.

Dessa forma, ao diariamente, e não somente como um conteúdo da disciplina matemática, estimular as crianças a olharem e fazerem uso do calendário, a professora contribui para que estruturem essas referências temporais, o que tanto pode amenizar, por exemplo, a angústia das crianças menores em relação à ausência dos pais enquanto estão na escola, como para introduzi-las às noções mais abstratas e convencionadas.

Após a contagem das crianças presentes e leitura do calendário, a professora escolhe o ajudante ou a ajudante do dia, pela ordem alfabética, que tem a função de recolher os cadernos de tarefas e entregar o caderno com as atividades que serão realizadas na sala, procurando identificar o nome dos colegas escritos na capa. Também esse aspecto da rotina diária revela uma situação pedagógica. Escolher a criança, ajudante do dia, pela ordem alfabética, contribui para dar sentido à memorização do alfabeto, sem a necessidade de repeti-lo todos os dias de forma descontextualizada. Esse ou essa ajudante, em situação de aprendizagem, precisa identificar o dono ou a dona do caderno pelo nome escrito na capa. Foi observado que muitas crianças, ao atuarem como ajudantes, reconheciam sozinhas os nomes dos colegas e iam diretamente entregá-lo a quem pertencia, mas, quando ficavam em dúvida, ou não identificavam, algum colega, espontaneamente, ajudava.

O nome próprio, para crianças em fase de alfabetização, de acordo com Ferreiro e Teberosky (1985, p. 215), é “[...] a primeira forma de escrita dotada de estabilidade, como protótipo de toda escrita posterior e, em muitos casos, cumpre uma atenção muito especial na psicogênese.” Assim, ao reconhecer seu nome e o dos colegas, mesmo antes de saber ler convencionalmente, as crianças estão se inserindo no mundo da cultura escrita, reconhecendo o nome como algo que personifica, sugere posse e, ao mesmo tempo, diz sobre a identidade de alguém.

As atividades foram desenvolvidas, na maioria das vezes, de forma lúdica, contando com a participação ativa das crianças. Em uma atividade com formas geométricas, a professora apresentou alguns objetos de formas variadas e depois pediu que cada criança tentasse identificar pelo tato qual a forma geométrica de objetos escondidos dentro de um saco. A brincadeira foi dividida em dois grupos, e a professora utilizou os resultados para também apresentar os numerais, realizar adição e subtração, com cálculo mental, algoritmos e símbolos.

Após essa atividade, faltando pouco tempo para o término da aula, a professora reforçou as vogais e consoantes com a brincadeira da forca - um jogo em que o objetivo é descobrir determinada palavra preenchendo os espaços com as letras que a forma. Quando as crianças falavam uma letra que não pertencia à palavra, a professora desenhava no quadro uma parte de um boneco, que se fosse completado seria “enforcado”. A intenção da professora era que as crianças analisassem os espaços vazios tentando formar uma palavra, ao invés de falarem letras aleatórias. As crianças ficaram motivadas com a brincadeira e se recusavam a ir embora quando os responsáveis chegavam para buscá-las.

Em uma aula de português, as crianças receberam um cartão com as letras do alfabeto em bastão e cursiva. A professora contou a história “Gato pra cá, rato pra lá”, prendendo a atenção das crianças, pois dava entonação e dinamicidade à voz das personagens, o que resultou em grande entusiasmo e interação dos estudantes durante a escuta da história. Em seguida, explicou como se escrevia "gato" e "rato", destacando a semelhança entre as palavras e pedindo que os alunos as comparassem com outras palavras que fossem semelhantes. Todos participaram de forma ativa.

Em outra atividade, a professora leu a parlenda “A macaca Sofia”, distribuiu atividade impressa e pediu aos alunos que circulassem as palavras que ela ditava. Complementando as atividades na lousa, cada criança escrevia uma palavra. A maioria conseguiu escrever e reconheceu as sílabas prontamente. A parlenda citava um horário, meio-dia, então a professora pediu que desenhassem um relógio e colocassem os ponteiros apontando para o meio-dia, conversando sobre o tempo e o horário.

Em uma aula, ao explicar para as crianças que naquele dia teriam aula de História, a princípio acharam que a professora se referia às histórias de contos de fada. Houve a explicação de que seria uma história diferente, sobre os povos africanos e indígenas. Para falar sobre as nossas diferenças, a professora pedia que as crianças, em duplas, falassem a diferença que viam no outro, em relação a si mesmas. Após todos falarem, chamou a atenção para o fato de que, apesar de sermos todos diferentes, todos somos iguais porque somos seres humanos. Mostrou um mapa do Brasil, explicando o significado das palavras "Brasil" e "mapa", desconhecida para algumas crianças, e questionou quem sabia qual era a presidente do Brasil. Alguns arriscaram a dizer o seu nome, embora não entendessem o significado de tal função. A professora, então, distribuiu algumas revistas e pediu que recortassem rostos para colar no desenho do mapa do Brasil. Toda a aula foi dialogada, sem caráter de transmissão de conteúdo, e observou-se que a professora procurava partir do conhecimento dos alunos e contextualizar as informações com exemplos conhecidos por eles.

Em suas aulas, a professora utilizava vários suportes e gêneros textuais: contos, parlendas, cantigas, textos informativos e notícias de jornal. Em uma das aulas observadas, por exemplo, a professora pegou em sua mesa um jornal, que tinha em destaque a manchete “Operação Carne Fraca”. Houve o seguinte diálogo:

Professora: O que é isso?

Crianças: É um jornal!

Professora: Do que será que o jornal está falando? (Havia uma imagem de carnes no frigorífico)

Crianças: É sobre a carne, professora!

Professora: Sobre a carne? Que carne?

Criança 1: É a Friboi!

Professora: E porque você diz que é sobre a Friboi?

Criança 1: Porque a minha mãe falou que a carne da Friboi estava estragada, ué!

No fim de semana anterior a essa aula, mais exatamente na sexta-feira, 17 de março de 2017, havia sido realizada pela Polícia Federal uma operação em frigoríficos, entre eles o Friboi, com a denúncia de adulteração nas carnes comercializadas. A professora aproveitou o tema, que estava em debate no Brasil todo e, possivelmente, havia sido mencionado nos lares de algumas crianças, para falar sobre a importância do jornal para manter as pessoas informadas sobre os assuntos que acontecem no cotidiano. A aula, que tinha nos conteúdos os meios de comunicação, foi contextualizada na perspectiva do letramento, sendo realizada de uma forma interativa e participativa, utilizando fatos reais e presentes no cotidiano das crianças como incentivo à aprendizagem.

As atividades programadas diariamente não sobrecarregavam as crianças, eram prazerosas, lúdicas e desafiadoras, realizadas em um clima agradável e favorável à aprendizagem e em um ambiente de respeito e valorização pelas diferenças de cada um. A professora trabalhava de forma interdisciplinar, sem fragmentar as aulas ou compartimentalizar os conhecimentos, entrelaçando os conteúdos de forma a fazerem sentido. Ouvia as crianças e as ajudava a resolver as questões que surgiam durante as aulas.

A professora alfabetizava por meio de textos, com atividades ao mesmo tempo desafiadoras e possíveis. A outrora aluna mediana da Pedagogia se mostrou uma profissional que sabia da importância de conhecer seus alunos, por meio da prática constante de avaliação diagnóstica e formativa. Durante todo o período de observação, percebemos que, ao ministrar atividades, a docente deixava que as crianças fizessem suas tentativas, de acordo com suas hipóteses sobre o sistema de escrita alfabética, fazendo, posteriormente, intervenções individuais e coletivas a fim de provocar reflexões sobre a língua escrita.

Suas atitudes revelaram que sua prática era objeto de investigação e pesquisa, e, na perspectiva do desenvolvimento profissional docente, mantinha uma rotina de estudo e aprendizagem.

Diante das singularidades inerentes à iniciação dessa profissional na carreira docente, compreendemos que a utilização dos casos de ensino e das narrativas no subprojeto do Pibid apresentou um potencial para a formação dessa professora, que desenvolveu estratégias diferenciadas de ensino, com práticas não reprodutoras dos métodos tradicionais de alfabetização.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa proposta nesse artigo foi trazer ao debate as interfaces entre a pesquisa narrativa e os casos de ensino. Essas interfaces podem ser sintetizadas na busca pela reflexividade, valorização da subjetividade, incentivo à formação de uma atitude investigativa frente ao cotidiano profissional e consideração da formação como uma ação processual, complexa e contínua, não verticalizada, externa ou transmissiva.

Buscamos, ainda, evidenciar a potencialidade - termo aqui utilizado no sentido de elemento potencializador, ou seja, que pode contribuir para aumentar as probabilidades de um resultado - da utilização de casos de ensino e das narrativas formativas no subprojeto "Ateliês Formativos de Professores Alfabetizadores: construindo práticas eficazes”, do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid).

Observamos que a metodologia utilizada no subprojeto do curso de Pedagogia da UEMS, com a produção e socialização de narrativas sobre as vivências na escola, potencializou no conjunto dos participantes a reflexão sobre as concepções de ensino, aprendizagem, avaliação, espaço escolar, profissão docente e práticas didático-pedagógicas, sobretudo ligadas ao ensino inicial da leitura e da escrita.

No caso de ensino apresentado, é notória a importância reflexiva de dois momentos: o primeiro que é relatado a partir das narrativas de Francy, que observou e vivenciou, durante sua estada no Pibid, práticas tradicionais e conservadoras de alfabetização, mas que, por meio dos Ateliês pode experienciar novas metodologias que lhe deram base e confiança para constituir uma prática profissional baseada em outra concepção de alfabetização, apesar de ser inserida em um espaço em que as práticas mais conversadoras de uma professora experiente eram valorizadas pelos pais e pela comunidade escolar, que via sua metodologia com olhares de suspeição.

O segundo momento é apresentado de forma coadjuvante, por meio dos relatos da entrevista narrativa realizada com a gestora da escola em que a professora iniciante atuava e do relatório de uma acadêmica do curso de Pedagogia, também participante do Pibid, que observou durante 72 horas as aulas, a organização e a rotina de Francy. O olhar desses “outros” sobre a prática da egressa evidenciou a sua segurança teórica, inovação e criticidade frente às imposições institucionais, bem como a potencialidade da análise de casos de ensino e da utilização das narrativas formativas no referido subprojeto, pois o estudo desse caso específico durante as posteriores reuniões do Pibid também provocou reflexões nos bolsistas.

Esses dois momentos destacam a intencionalidade da análise de casos de ensino para a formação inicial de professores e a importância de se repensar as concepções que embasam os currículos e as práticas dos professores formadores. Como mencionado anteriormente, não foi pretensão desse artigo supervalorizar o Pibid como política pública, até porque a proposta original desse programa sofreu diversas modificações que o levaram a ter, no momento atual, outra configuração, mas chamar a atenção para aquilo que consideremos que foi relevante naquele subprojeto, do ponto de vista da formação, e que pode suscitar reflexões mais gerais sobre os modelos formativos utilizados nos cursos de licenciatura.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, M. P.; FRISON, L. M. B.; PORTO, G. C. Memorial de formação escrito no decorrer da prática docente: aprendizagens sobre alfabetização e letramento. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 95, n. 239, p. 73-86, 2014. [ Links ]

ANDRÉ, M. E. D. A. Professores iniciantes: egressos de programas de iniciação à docência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 23, e230095, p. 1-20, dez. 2018. [ Links ]

BERGAMASCHI, M. A.; ALMEIDA, D. B. Memoriais escolares e processos de iniciação à docência. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 15-41, 2013. [ Links ]

BERTAUX, D. Histoires de viés: méthodologie de l'approche biographique en sociologie. Paris: Raport au Cordes, 1976. [ Links ]

CATANI, D.; BUENO, B. O.; SOUSA, C. P. (org.). Docência, memória e gênero: estudos sobre formação. São Paulo: Escrituras, 1997. [ Links ]

COCHRAN-SMITH, M. Learning and unlearning: the education of teacher educators. Teaching and Teacher Education, v. 19, n. 1, p. 5-28, 2003. [ Links ]

CONTRERAS, J. Autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002. [ Links ]

CUNHA, M. A. O bom professor e sua prática. 2. ed. São Paulo: Papirus, 1992. [ Links ]

DELORY-MOMBERGER, C. Formação e socialização: os ateliês biográficos de projeto. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 359-371, ago. 2006. [ Links ]

DEMARTINI, Z. B. Velhos mestres das novas escolas: um estudo das memórias de professores da 1ª República em São Paulo. São Paulo: Centro de Estudos Rurais e Urbanos, 1984. [ Links ]

DOMINGUES, I. M. C. S.; SARMENTO, T.; MIZUKAMI, M. G. N. Os casos de ensino na formação-investigação de professores dos anos iniciais. In: DORNELLES, L. N.; FERNANDES, N. (org.). Perspectivas sociológicas e educacionais em estudos da criança: as marcas das dialogicidades luso-brasileiras. Braga, Portugal: Editora da Universidade do Minho, 2012. p. 403-414. [ Links ]

FARIAS, I. M. S.; JARDILINO, J. R. L.; SILVESTRE, M. A. Aprender a ser professor: aportes de pesquisa. Jundiaí: Paco editorial, 2015. [ Links ]

FARIAS, I. M. S.; ROCHA, C. C. T. PIBID: uma política de formação Docente inovadora? Revista Cocar, Belém, v. 6, n. 11, p. 41-49, jan./jul. 2012. [ Links ]

FERRAROTTI, F. História e histórias de vida: o método biográfico nas Ciências Sociais. Tradução: Carlos Eduardo Galvão e Maria da Conceição Passeggi. Natal: EDUFRN, 2014. [ Links ]

FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. [ Links ]

FETZNER, A. R.; SOUZA, M. E. V. Concepções de conhecimento escolar: potencialidades do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência. Educação e Pesquisa , São Paulo, v. 38, n. 3, p. 683-694, jul. 2012. [ Links ]

FIORENTINI, D.; CRECCI, V. Desenvolvimento Profissional Docente: um termo guarda-chuva ou um novo sentido à formação? Formação Docente, Belo Horizonte, v. 5, n. 8, p. 11-23, jan./jun. 2013. [ Links ]

FRAZÃO, D. Florestan Fernandes. Ebiografia, 16 ago. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.ebiografia.com/florestan_fernandes/ . Acesso em: 23 mar. 2017. [ Links ]

FREITAS, M. F. Q. A pesquisa participante e a intervenção comunitária no cotidiano do Pibid/CAPES. Educação em Revista , Curitiba, n. 53, p. 149-167, 2014. [ Links ]

GATTI, A. B. et al. Um estudo avaliativo do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid). São Paulo: FCC/SEP, 2014. [ Links ]

GONZATTI, S. E. M. Contribuições do Pibid para a formação inicial de professores: a terceira margem do rio. 2015. 178 f. Tese (Doutorado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. [ Links ]

HAAG, C. As artes de Roger Bastide. Pesquisa Fapesc, ed. 184, jun. 2011. Disponível em: Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp.br/2011/06/23/as-artes-de-roger-bastide/ . Acesso em: 23 mar. 2017. [ Links ]

IMBERNÓN, F. Formação continuada de professores. São Paulo: Artmed, 2010. [ Links ]

LARROSA, J. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascarados. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. [ Links ]

MARCELO GARCIA, C. Formação de professores: para uma mudança educativa. Porto, Portugal: Porto Editora, 1999. Coleção Ciências da Educação. [ Links ]

MIZUKAMI, M. G. L. Aprendizagem da docência: professores formadores. Revista E-Curriculum, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 1-17, 2006. [ Links ]

NOBLIT, G. Poder e desvelo na sala de aula. Tradução e apresentação: Belmira Oliveira Bueno. R. Fac. Educ., São Paulo, v. 21, n. 2, p. 119-137, jul./dez. 1995. [ Links ]

NONO, M. A. Caso de ensino na formação do pedagogo. In: CONGRESSO INTERNACIONAL - PBL2010, 2010, São Paulo. Anais [...] São Paulo: USP; Rede Pan-Americana de Aprendizagem baseada em Problemas, 8-12 fev. 2010. p. 1-13. [ Links ]

NONO, M. A. Casos de ensino e professores iniciantes. 2005. 238 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2005. [ Links ]

NÓVOA, A. Para uma formação de professores construída dentro da profissão. In: NÓVOA, A. Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 2009. p. 25-46. [ Links ]

NUNES, C. A reconstrução da memória: um ensaio sobre as condições sociais da produção do educador. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, p. 72-80, 1987. [ Links ]

OLIVEIRA, V. F. Narrativas autobiográficas docentes: o cinema como dispositivo de experiência formadora e “cuidado de si”. In: BRAGANÇA, I. F. S.; ABRAHÃO, M. H. M. B.; FERREIRA, M. S. (org.). Perspectivas epistêmico-metodológicas da pesquisa (auto)biográfica. Curitiba: CRV, 2016. p. 145-157. [ Links ]

PINEAU, G.; MARIE-MICHÉLE. Produire sa vie: autobiographi et autoformation. Paris: Tèraèdre, 1983. [ Links ]

RIBEIRO, L. T. F. Ensino de história e geografia. Fortaleza: Brasil Tropical, 2001. [ Links ]

SANTOS, H.; OLIVEIRA, P.; SUSIN, P. Narrativas e pesquisa biográfica na sociologia brasileira Revisão e perspectivas. Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 359-382, maio/ago. 2014. [ Links ]

SHULMAN, L. Toward a pedagogy of cases. In: SHULMAN, J. (org.). Case methods in teacher education. New York: Teacher’s College Press, 1992. p. 1-30. [ Links ]

SILVA, F. O.; RIOS, J. A. V. P. Narrativas de si na iniciação à docência: o PIBID como espaço e tempo formativos. Educação & Formação, Fortaleza, v. 3, n. 8, p. 57-74, maio/ago. 2018. [ Links ]

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL. Relatórios com narrativas de formação - 2012 a 2017. Acervo pessoal. Campo Grande: Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, 2017. [ Links ]

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL. Ateliês Formativos de Professores Alfabetizadores: construindo práticas eficazes (Subprojeto do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência: subárea: alfabetização). Campo Grande: UEMS, 2011. [ Links ]

WEIZ, T. Ideias, concepções e teorias que sustentam a prática de qualquer professor, mesmo quando ele não tem consciência delas. In: ABREU, A. R. et al. Alfabetização: livro do professor. Brasília, DF: FUNDESCOLA/SEF-MEC, 1999. [ Links ]

ZIBETTI, M. L. T.; SOUZA, M. P. R. A dimensão criadora no trabalho docente: subsídios para a formação de professores alfabetizadores. Educação e Pesquisa , São Paulo, v. 36, n. 2, p. 459-474, 2011. [ Links ]

ZORDAN, P. Movimentos e matérias da iniciação à docência. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 40, n. 2, p. 525-547, jun. 2015. [ Links ]

4Florestan Fernandes (1920-1995) foi um político, sociólogo e ensaísta brasileiro, considerado fundador da Sociologia Crítica, no Brasil. Informações disponíveis em Frazão (2019).

5Sociólogo e antropólogo francês, Roger Bastide (1898- 1974) produziu trabalhos dedicados ao Brasil, país no qual viveu entre 1938 e 1954 como professor de sociologia na Universidade de São Paulo. Informações disponíveis em Haag (2011).

6O terno “achadouros”, que utilizamos no título desse artigo e também nesse subtítulo, refere-se ao trecho do poema “Achadouros”, do livro Memórias Inventadas - A infância, de Manoel de Barros (2003): “Sou hoje um caçador de achadouros de infância / Vou meio dementado e enxada às costas / a cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos”

7Como os relatórios não são paginados e fazem parte do acervo pessoal de uma das autoras desse artigo, que à época era a coordenadora de área do referido Subprojeto, não seguiremos todas as normas tradicionalmente utilizadas em trabalhos científicos aos citá-los: não haverá indicação da página, os nomes estarão somente com a letra inicial em maiúsculo e não constarão individualmente na lista de referências, apenas como “Relatórios” em Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (2017).

1Doutora em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

2Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas; Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina.

3Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul; doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Recebido: 30 de Janeiro de 2021; Aceito: 19 de Maio de 2021

Endereço para correspondência: Cidade Universitária, Faculdade de Educação, Avenida Costa e Silva, Pioneiros, 79070-900, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil; sandra.novais@ufms.br

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons