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Roteiro

versión On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.46  Joaçaba ene./dic 2021  Epub 08-Jul-2021

https://doi.org/10.18593/r.v46.27195 

Seção temática: Casos de Ensino na pesquisa e na formação de professores

Casos de ensino na pesquisa e na formação de professores: entrevista com Maria Mizukami

Teaching cases in research and teacher training: interview with Maria Mizukami

Casos de enseñanza en investigación y formación docente: entrevista a Maria Mizukami

Luciana de Oliveira Souza Mendonça1I  , Professora
http://orcid.org/0000-0002-8950-092X

IInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, campus Maracanaú, Professora.


Resumo:

A entrevista com a educadora Maria da Graça Nicoletti Mizukami tem como foco temático casos de ensino na pesquisa e na formação de professores. Casos de ensino são narrativas de situações, reais ou não, abordando dilemas que permeiam o trabalho do professor na escola e na sala de aula ou mesmo em outras ocorrências de sua vida profissional. No Brasil, a Profa. Dra. Mizukami possui expressiva produção sobre casos de ensino, sua teorização, elaboração e uso na pesquisa e na formação de professores. Considerando sua trajetória de pesquisadora e de formadora, a entrevista focaliza seu encontro com esse instrumento, as principais referências teóricas, usos e aprendizados dessa experiência.

Palavras-chave: casos de ensino; formação de professores; pesquisa sobre conhecimento profissional; desenvolvimento docente.

Abstract:

The interview with educator Maria da Graça Nicoletti Mizukami focuses on teaching cases in research and teacher training. Teaching cases are narratives of situations, real or not, addressing dilemmas that permeate the teacher's work at school and in the classroom or even in other instances of his professional life. In Brazil, Professor Mizukami has a significant production on teaching cases, its theorization, elaboration and use in research and teacher training. Considering her trajectory as a researcher and trainer, the interview focuses on her encounter with this instrument, the main theoretical references, uses and learnings of this experience.

Keywords: teaching cases; teacher training; research on professional knowledge; teacher development.

Resumen:

La entrevista con la educadora Maria da Graça Nicoletti Mizukami se centra en los casos de enseñanza en la investigación y la formación del profesorado. Los casos de enseñanza son narrativas de situaciones, reales o no, que abordan dilemas que impregnan el trabajo del docente en la escuela y en el aula o incluso en otras instancias de su vida profesional. En Brasil, la Profesora Mizukami tiene una producción significativa sobre casos de enseñanza, su teorización, elaboración y uso en la investigación y formación docente. Considerando su trayectoria como investigadora y formadora, la entrevista se centra en su encuentro con este instrumento, los principales referentes teóricos, usos y aprendizajes de esta experiencia.

Palabras clave: casos de enseñanza; formación de profesores; investigación sobre conocimientos profesionales; desarrollo docente.

Neste dossiê, que versa sobre o uso de casos de ensino na pesquisa e na formação de professores, entrevistamos a Profa. Dra. Maria da Graça Nicoletti Mizukami, do Centro de Educação, Filosofia e Teologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie e que utiliza casos de ensino como estratégia investigativa e formativa desde 1993.

Na entrevista, realizada no mês de novembro de 2020, tivemos a grata satisfação de reencontrar a professora Graça, com quem tivemos a primeira experiência sobre a temática dos casos de ensino enquanto aluna da pós-graduação em Educação na UFSCar, no final da década de 1990. Durante esse reencontro, conversamos sobre sua vasta experiência como formadora de professores, na qual revelou as potencialidades do uso de casos de ensino no processo da aprendizagem da docência e na pesquisa na área de formação de professores.

Trata-se de um momento rico de muitas aprendizagens sobre as referências, concepções e experiências dessa pesquisadora brasileira sobre a temática que vale a pena conferir.

Como você conheceu a metodologia de pesquisa e ensino denominada "casos de ensino", como a concebe e tem utilizado essa metodologia?

O entendimento dos processos formativos vividos por professores e a explicitação dos conhecimentos profissionais que estão na base de sua atuação sempre foram minhas preocupações considerando a promoção de processos de aprendizagem e o desenvolvimento profissional da docência, bem como investigações sobre tais processos. Os professores são profissionais que tomam decisões diante de eventos escolares, resolvem situações incertas em sala de aula, possuem crenças que influenciam sua atividade profissional, constroem conhecimentos profissionais - complexos, dinâmicos e multifacetados - ao enfrentar e refletir sobre diversas situações que ocorrem nas instituições escolares e nas classes em que lecionam. Os modos como processos de desenvolvimento profissional docente podem ser promovidos e investigados constituem o eixo que tem definido minha atuação como formadora de professores e como pesquisadora. Diferentes estratégias formativas e investigativas vêm sendo propostas e analisadas atualmente. Nesse contexto, casos de ensino e método de casos têm sido apontados como ferramentas de valor formativo e investigativo de como professores aprendem a ensinar e a se desenvolver profissionalmente ao logo de suas trajetórias.

Como formadora de professores, atuando em cursos de Pedagogia e em disciplinas da Pós-graduação em Educação, sempre tive uma preocupação em oferecer situações de ensino e aprendizagem que problematizassem o dia a dia da escola, relatos de experiências de professores, descrições de situações que retratassem práticas pedagógicas considerando diferentes conteúdos programáticos do currículo escolar, contextos e modalidades de ensino, bem como com estratégias que facilitavam o estabelecimento de relações entre teoria e prática. Ao longo de toda a minha vida acadêmica meu foco de interesse foi a compreensão de como os professores aprendem a ensinar e a se desenvolver profissionalmente tanto considerando experiências com a formação inicial quanto com a formação continuada de professores. Quando analisam situações do dia a dia escolar, professores evidenciam conhecimentos, crenças, expectativas, dilemas, dificuldades, diferentes formas de explicar práticas, ou seja, explicitam um quadro de concepções que fazem parte da delimitação de um corpo de conhecimentos que constituem um campo de pesquisa e de ensino.

Em 1993, ainda na UFSCar e com o apoio da FAPESP, tive oportunidade de realizar um estágio de pós-doutorado na Santa Clara University, Califórnia, USA. Santa Clara é muito perto da Universidade de Stanford (Palo Alto) e do Far West Laboratory For Educational Research (San Francisco) e eu pude ter acesso, também, a publicações e experiências de profissionais ligadas a processos formativos da docência.

Durante esse período fui introduzida, de maneira sistemática, aos casos de ensino e método de casos. Entrei em contato, na época, com contribuições de Lee Shulman e Judith Shulman, que me ofereceram referencial teórico-metodológico para trabalhar com casos de ensino tanto como estratégias formativas para professores de diferentes níveis, componentes curriculares e modalidades de ensino quanto para o desenvolvimento de pesquisa que objetivassem produzir conhecimentos sobre processos de aprendizagem da docência. De 1993 até os dias atuais eu tenho adotado casos de ensino como ferramentas formativas e investigativas sob uma perspectiva construtivista considerando, principalmente, dois modelos teóricos desenvolvidos por Lee Shulman: a base de conhecimento para o ensino (repertório de conhecimentos do professor) e o processo de raciocínio pedagógico (processos por meio do qual esse repertório é construído). Esses dois modelos oferecem a possibilidade de compreender uma rede de conhecimentos de diferentes naturezas que podem e devem constituir o repertório de conhecimentos do professor e que são necessários a uma docência bem sucedida e que faça diferença na vida dos alunos em termos de aprendizagem.

A escolha da obra de Shulman como importante para investigar e promover aprendizagens dos professores justifica-se, principalmente, pela explicitação do que o autor denomina de conhecimento pedagógico do conteúdo que é considerado como o conhecimento que cada professor constrói, ao longo de sua trajetória profissional, relativo a como ensinar algo (um conceito, um procedimento, uma unidade etc.), conhecimento com o qual tem uma relação de protagonismo, ou seja, conhecimento que é construído pelo próprio professor, conhecimento que não é dado nem passado por programas ou pacotes instrucionais. O estudo do conhecimento pedagógico do conteúdo construído por professores pode oferecer, ao longo do tempo, possibilidades de explicitação de um corpo de conhecimentos inerentes à docência. Pressupõe uma elaboração pessoal do professor ao confrontar-se com o processo de transformar em ensino o conteúdo aprendido durante seu processo formativo. Sob essa perspectiva, concebo os casos de ensino como materialização, sob forma de narrativa, do conhecimento pedagógico do conteúdo sobre como ensinar algo em específico.

O segundo modelo desenvolvido por Shulman, o processo de raciocínio pedagógico (com seus seis componentes: compreensão, transformação, instrução, avaliação, reflexão e nova compreensão), por sua vez, nos explica como a base de conhecimento para o ensino é construída pelo professor e como o conhecimento pedagógico do conteúdo pode processualmente se configurar, em diferentes situações e momentos da trajetória do professor. Shulman, referindo-se a conhecimentos a serem desenvolvidos em processos formativos da docência, identifica, principalmente, três tipos necessários à prática pedagógica: o proposicional (usualmente utilizado em cursos de formação, envolvendo conceitos e ideias de uma área de conhecimento, bem como formas de construção de conhecimentos em determinada área), o de casos particulares e o conhecimento relacionados a formas de interpretação dos casos, considerando seu poder de iluminar situações específicas que exigem do professor tomadas de decisão de diferentes naturezas quando enfrenta situações dilemáticas.

Voltando à pergunta, posso afirmar que, desde o início da minha trajetória profissional (1981) como formadora de professores na UFSCar, tenho utilizado descrições detalhadas e contextualizadas e análises de práticas pedagógicas de professores como ferramentas formativas e investigativas da docência. O contato com a literatura sobre casos de ensino e metodologia dos casos, a partir de 1993, veio oferecer uma base mais sólida e fundamentada teórica e metodologicamente para ações como formadora e para as pesquisas que tenho desenvolvido e participado. Até o momento, vinculada atualmente à Universidade Presbiteriana Mackenzie, continuo a investir nos casos de ensino e método de casos, ampliando e diversificando o quadro teórico no qual me fundamento, bem como diversificando estratégias de ensino e pesquisa baseadas em casos de ensino. Tanto considerando o ensino de futuros professores (atualmente sou responsável por uma disciplina intitulada “Docência na Contemporaneidade” para as licenciaturas e por disciplinas que têm como eixo processos de aprendizagem e de desenvolvimento profissional na pós-graduação) obtenho sempre evidências quanto ao poder dos casos de ensino como estratégia formativa e de desenvolvimento profissional. Tenho trabalhado, prioritariamente, com casos de ensino que envolvem situações concretas de ensino e aprendizagem, embora os casos possam representar situações diversas da vida escolar e de temas educacionais.

Métodos de casos podem incluir leitura, análise e discussão de casos já elaborados bem como a elaboração, análise e discussão de casos relacionados a experiências pessoais vividas em situações de ensino. As análises dos casos podem ser desenvolvidas individualmente, a partir da resolução de questões entregues junto ao caso. O mesmo pode ser dito em relação às pesquisas que tenho participado e às que oriento no sentido de obter respostas, a partir de diferentes indagações, em relação a como professores aprendem a ensinar e a se desenvolver profissionalmente. Ao analisar situações em que professores ensinam conteúdos específicos, de diferentes naturezas, a seus alunos, investigações têm trazido importantes elementos para a discussão em torno dos conhecimentos que fundamentam o ensino e dos processos pelos quais se desenvolve.

Os casos podem expressar diferentes propósitos/temas/concepções/preocupações, tais como análise: da relação teoria-prática; do conceito de reflexão e de experiência; da reflexão como orientação conceitual; de diferentes níveis de reflexão; de diferentes epistemologias envolvidas nos conceitos de ensinar e de aprender, do conceito de aprendizagem em contexto; das necessidades formativas do professor; das relações escola-família; da micropolítica da escola; da cultura escolar e da escola; de comunidades de aprendizagem; da postura investigativa do professor; das políticas públicas etc.

Comente suas principais referências para o uso de casos de ensino na pesquisa e na formação de professores, destacando o que aprendeu com cada um desses autores

A literatura referente a casos de ensino apresenta uma variedade de definições, formas e propósitos de utilização de casos e método de casos na formação de professores.

Ao longo de minha trajetória acadêmica, as contribuições da epistemologia genética de Jean Piaget têm sido fundamentais no que se refere a bases teóricas de como o ser humano aprende e se desenvolve. Os autores que passo a considerar como principais referências vão ao encontro do que considero teoricamente como construtivismo.

Como já mencionei anteriormente, a referência teórica básica inicial é a de Lee Shulman. A obra de Shulman também tem sido importante para fundamentar pesquisas diversas sobre a aprendizagem e ao desenvolvimento profissional da docência. O que define um caso, para Shulman, é a descrição de uma situação com alguma tensão que possa ser aliviada; uma situação que possa ser estruturada e analisada a partir de diversas perspectivas; e que contenha pensamentos e sentimentos do professor envolvido nos acontecimentos. Sob essa perspectiva considero a utilização dos casos de ensino como expressões de situações desequilibradoras-equilibradoras.

Às contribuições de Lee Shulman incluo as de outros pesquisadores que apresentam orientação teórica que posso identificar como compatíveis com uma abordagem construtivista ou socioconstrutivista na análise de processos de aprendizagem e de desenvolvimento profissional da docência. Alguns desses pesquisadores, cujas obras têm sido importantes, são nomeados a seguir:

- Judith Shulman: oferece contribuições importantes relacionadas ao como redigir casos de ensino e como analisá-los, bem como sobre utilização do método de casos. Oferece relatos de como casos foram utilizados e analisados por professores, tipos de contribuição em processos formativos, cuidados na elaboração de casos e vários exemplos de casos já editados com as respectivas formas de utilização e roteiros para discussão de cada um. Tem publicações importantes ligadas ao Far West Laboratory for Educational Research.

- Linda Darling-Hammond e Marylin Cochran-Smith: conceitos de postura investigativa e comunidades de aprendizagem, políticas públicas de formação de professores.

- Pamela Grossman: contribuições de elaboração e análise de casos de ensino como eixos promotores de aprendizagem e desenvolvimento profissional da docência, considerando comunidades de aprendizagem e investimento em processos formativos que propiciem postura investigativa por parte do professor. Grossman oferece contribuições para promover e investigar comunidades de aprendizagem e processos de ensinar e aprender por meio de casos de ensino. Argumenta que os casos podem ser utilizados com diversos objetivos, dentre os quais: contextualizar princípios educacionais abstratos, evidenciando suas relações com situações práticas de ensino; possibilitar o desenvolvimento de entendimentos dos dilemas da docência e de formas de analisar e refletir sobre aspectos relativos ao ensino; estimular a reflexão sobre a própria prática docente.

- John Loughran: contribuições quanto ao conhecimento pedagógico do conteúdo, conhecimento prático do professor, professor pesquisador, aprendizagens a partir de pesquisas com professores iniciantes, mentoria, prática reflexiva.

- John Dewey e Kenneth Zeichner: trazem contribuições quanto a concepções sobre reflexão e experiência. Contribuição para a compreensão e operacionalização de tipos e níveis de reflexão. A releitura de Dewey feita por Zeichner é muito importante quando se pensa o papel da reflexão nos dois modelos de Shulman; são valiosos para análise de processos reflexivos acionados por professores, principalmente quando se considera o quarto componente do processo de raciocínio pedagógico: a reflexão, componente imprescindível para compreensão de um processo de raciocínio pedagógico circular ou espiralado.

- Selma Wassermann: apresenta discussão contextualizada sobre elaboração e utilização de casos de ensino. Apresenta um roteiro importante a ser considerado na elaboração de casos, com muitos exemplos. A pesquisadora sugere que, ao se elaborar casos, leve-se em consideração alguns passos: a escolha de um incidente crítico; descrição do contexto; identificação dos personagens envolvidos no incidente crítico; revisão da situação e das ações disparadas por ela; análise dos efeitos das ações empreendidas; revisão a posteriori do incidente. Oferece contribuição valiosa para práticas pedagógicas que utilizam casos de ensino como ferramentas formativas. Apresenta várias sugestões de como explorar os casos, como criar situações para que relações teoria-prática sejam estabelecidas.

- Donald Schön: oferece importantes contribuições teóricas sobre processos de reflexão-sobre-a-ação; reflexão-na-ação; reflexão-sobre-a-reflexão-na-ação. Ressalto a contribuição principalmente quando se considera o potencial reflexivo dos casos de ensino e ao componente reflexão do processo de raciocínio pedagógico, de vital importância para que ocorra a nova compreensão. Sem reflexão não há nova compreensão, o que torna o processo de raciocínio pedagógico circular (sempre o mesmo ensino independente do contexto, turma, tipo de aluno etc.) e não espiralado. A nova compreensão é que garante que o processo de raciocínio pedagógico seja espiralado, sempre incorporando o que de importante foi aprendido de uma aula, por exemplo, para o planejamento e execução de outra aula da mesma temática.

- Carlos Marcelo García: oferece-nos excelentes sínteses atualizadas de toda a produção contemporânea sobre aprendizagem e desenvolvimento profissional da docência, focalizando principalmente nos professores iniciantes. Sua sistematização de modelos de desenvolvimento profissional é fundamental tanto para construção de modelos quanto para a identificação e análise de modelos adotados por diferentes agências formadoras.

- Isabel Alarcão: considera casos de ensino como ferramentas formativas e investigativas e potencializadores de processos reflexivos. Discute a importância do professor pesquisador de sua própria prática pedagógica. Para Alarcão casos são narrativas elaboradas com o objetivo de dar visibilidade ao conhecimento sobre o ensino envolvido na situação descrita. Indica a importância que as narrativas apresentem descrições contextualizadas. Para ela, os casos se constituem como tal porque podem representar conhecimento teórico e porque possibilitam interpretações diversas.

- Katherine Klippert Merseth: para a autora, a definição mais comumente utilizada refere-se ao caso de ensino como um documento descritivo de situações ou eventos escolares reais, elaborado especificamente para ser utilizado como ferramenta no ensino de professores. Segundo a autora, o caso consiste em uma representação multidimensional do contexto, participantes e da realidade da situação, semelhantemente ao proposto por Wassermann. Para ela, um caso é construído com a finalidade de possibilitar debates sobre um tema específico bem como informações necessárias para que análises e interpretações sejam realizadas sob diferentes perspectivas. Deve incluir detalhes suficientes que possibilitem, a quem o analisar, experienciar a complexidade de uma situação original a partir da qual foi construído. Mais recentemente temos a coletânea por ela organizada, intitulada “Desafios reais do cotidiano escolar brasileiro”, que apresenta dilemas vividos por diferentes coordenadores e professoras em escolas brasileiras, tais como: inclusão no ensino superior, bullying em sala de aula, afetividade no cotidiano escolar, escola de tempo integral, drogas na escola, estrangeiros na escola, etc.

Em síntese, tenho aprendido, com esses autores, que um caso de ensino:

É considerado instância da prática e não um modelo a ser imitado; exemplifica não só como a aula foi conduzida, mas também qual era a problemática do desempenho. Possibilita reinterpretações e múltiplas representações. É instrumento pedagógico que pode ser usado para ajudar os professores na prática de processos de análise, resolução de problemas e tomadas de decisões, entre outros processos profissionais básicos. Os casos sobre o ensino são importantes para o desenvolvimento de estruturas de conhecimento que capacitem os professores a reconhecer eventos novos, a compreendê-los e a delinear formas sensíveis e educativas de ação. (MIZUKAMI, 2000, p. 153).

Considerando os desafios que cercam a formação de professores no Brasil o que você destacaria em termos de relevância, potencialidades e possibilidades sobre o uso de casos de ensino?

Defendo que casos de ensino problematizando temas diversificados sejam utilizados em diferentes momentos, em cursos de formação inicial e programas de formação continuada.

Nos cursos de formação inicial penso que os casos poderiam ser utilizados em diferentes disciplinas de forma integrada, o caso oferecendo múltiplas possibilidades de interpretação sob as diferentes óticas e conteúdos programáticos das disciplinas que compõem as grades das licenciaturas. Os casos podem ser transversais às disciplinas e oferecer aos futuros professores, além de possibilidades de estabelecimento de relações teoria-prática, a visão interdisciplinar da base de conhecimento para o ensino necessária à atuação docente.

Considerando que as experiências escolares pelas quais passamos podem ter impacto na nossa atuação como docente, ao lado de toda fundamentação teórica que é oferecida nos cursos de licenciatura, penso que casos de ensino desenvolvidos por futuros professores e que tenham como ponto de partida a trajetória escolar de cada um deles, descrita com detalhes, exemplos, sucessos, fracassos, aprendizagens etc. (a partir de um roteiro bem detalhado que possibilite explorar diferentes tipos de experiência desde a educação infantil até o final do Ensino Médio e escolha do curso a ser frequentado no Ensino Superior), são de extrema importância para a compreensão da escola, tipos de ensino, relações professor-aluno e aluno-aluno, estilos de ensino, estilos e ritmos de aprendizagens etc. Esses casos partiriam de descrições detalhadas, exemplos e se transformariam em narrativas com finalidade de serem ferramentas de ensino a serem utilizadas em curso de formação inicial. Penso que um investimento nesse sentido vale a pena. Na disciplina pela qual sou responsável na graduação, trabalhei vários anos nessa direção. Os relatórios de observação de estágio também poderiam ter a mesma destinação: um trabalho de edição que possibilitasse panoramas descritivos e analíticos do dia adia escolar sob diferentes perspectivas que possibilitassem, após a edição dos mesmos, estabelecer relações entre como a teoria pode explicar a prática e como a prática pode colocar questões a serem explicadas pela teoria. Os relatórios de observação transformados em casos de ensino poderiam, além de tornarem ferramentas formativas em cursos de formação inicial, transformarem-se em ferramentas de desenvolvimento profissional em programas de formação continuada.

Em programas de formação continuada e mesmo nos espaços de desenvolvimento profissional que congregam grupos de professores estudando temas postos pelo dia a dia escolar e, principalmente, daquela escola, casos poderiam ser utilizados para discussão, problematização e compreensão mais aprofundada de situações vividas. A partir dessas situações postas pelo dia a dia escolar, igualmente, poderiam ser elaborados casos considerando as especificidades dos eventos de cada sala de aula. Além do exercício de construir uma narrativa exemplificada, contextualizada e articulada os professores, ao socializar tais casos poderiam estar se envolvendo na construção de uma comunidade de aprendizagem.

Tanto em cursos de formação inicial quanto em espaços de desenvolvimento profissional construídos em escolas concretas os casos são potencializadores de processos reflexivos e de construção partilhada sobre o ensino.

Qual foi a situação de uso de casos de ensino que mais lhe impactou e por quê?

Foi uma das experiências iniciais que tive com a utilização de um caso de ensino como estratégia formativa em uma disciplina do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, bem no final dos anos 1990. Desde 1994 eu utilizava, com diferentes objetivos e em diferentes momentos, casos de ensino que fossem adequados para problematização de temas tratados pela disciplina. Nesse período também eu tinha me aventurado a acompanhar pós-graduandos na elaboração de seus casos de ensino, como atividade síntese da disciplina.

A situação que me impactou surgiu da escolha de um caso elaborado por uma aluna em disciplina anterior, intitulado Juliana, elaborado por Renata Frederico, turma de 1998. Trata-se de um caso bem simples contendo a narrativa de uma professora de musicalização infantil ensinando a uma criança de 7 anos o valor da semibreve e o valor da mínima. Inicialmente esse caso foi escolhido porque eu queria trabalhar com os alunos um contexto não propriamente escolar e que retratasse uma prática pedagógica individualizada.

Experiência com o caso Juliana: Havia planejado discutir o caso em uma aula e explorar diferentes visões a partir de orientações teóricas diferentes dos alunos da turma. O que começou com um exemplo em uma aula transformou-se em um processo de discussão da docência que durou dois meses, extrapolando todo a programação inicial, mas, ao mesmo tempo, possibilitando que essa programação original fosse encaminhada para diferentes direções. O grau de engajamento dos alunos foi muito alto e o interesse na problematização do caso estendeu-se por tempo considerável.

Os conteúdos envolvidos no caso foram analisados sob a perspectiva de diferentes áreas de conhecimento e sob diferentes orientações teóricas. Em termos gerais, foi possível discutir: conhecimentos de diferentes naturezas que compõem a base de conhecimento para o ensino e relações teóricas. Quanto aos componentes da base de conhecimento para o ensino foram considerados:

conhecimento de conteúdo específico: proporção e equivalência; figuras musicais; distinção entre semibreve e mínima considerando forma de representação, valor de cada uma e a relação entre valores; conceitos de inclusão, conservação de quantidade, números fracionários, sequência, frações equivalentes e proporções entre dias grandezas; compassos quaternários e binários; relações biunívocas; representação gráfica da música (partitura); fracionamento a partir da unidade; conceito de tempo e conhecimento de teorias musicais);

conhecimento pedagógico: conhecimento do aluno e suas características; fins e metas educacionais; currículo; escola; estratégias de ensino; teorias de ensino e aprendizagem; interação professor-aluno; manejo do tempo; manejo de classe; cognição; motivação; desenvolvimento e aprendizagem dos alunos; programas e materiais instrucionais.

Foram estabelecidos diferentes tipos de relações considerando o caso em si e situações cotidianas vividas pelos participantes: nível de desenvolvimento da aluna e nível de abstração; níveis e estilos de aprendizagem; ritmo próprio; histórias de vida dos alunos; conhecimentos prévios dos alunos; noção de tempo e estágio de desenvolvimento de uma aluna de 7 anos; como a criança vê a escola e qual sentido a escola tem para ela; ensino individualizado; conhecimento metodológico do professor não garantindo aprendizagem do aluno; formas e estilos de ensino; planejamento do ensino e programação de ensino.

O caso foi considerado, pelos participantes, como materialização do conhecimento pedagógico do conteúdo da professora. Na configuração desse tipo de conhecimento, que é fruto da intersecção de conhecimentos específicos com conhecimentos pedagógicos, os processos reflexivos, tais como explicitados por Schön, foram predominantes em toda discussão: reflexão-sobre-a-ação, reflexão-na-ação e reflexão-sobre-a-reflexão-na-ação. O caso, didaticamente, apresenta momentos em que tais processos reflexivos da professora podem ser identificados e analisados.

Quanto às relações teóricas, considerando pensadores que contribuem para a compreensão de como os seres humanos aprendem, os participantes apresentaram narrativas longas, detalhadas e bem fundamentadas a partir de três referenciais específicos: sócio interacionismo de Vygotsky, construtivismo piagetiano e análise de comportamento considerando o behaviorismo radical de Skinner, explorando três referenciais a partir dos quais o caso pode ser compreendido e analisado.

O caso de ensino oportunizou, por fim, a explicitação, via elaboração e discussão de narrativas de formação, considerando processos vividos pelos participantes, de especificidades de seus processos de aprender a ser professor e a se desenvolver profissionalmente.

Dessa experiência originou-se o capítulo “Formadores de professores, conhecimentos da docência e casos de ensino”, publicado na coletânea Formação de professores: práticas pedagógicas e escola, organizado por Reali e Mizukami e publicado pela EdUFSCar em 2002.

Você poderia nos contar uma situação vivenciada sobre os efeitos do uso de casos de ensino em processos de formação de professores?

A Universidade Federal de São Carlos passou a oferecer, a partir do segundo semestre de 2013, o Programa de Desenvolvimento Profissional da Docência (PDD), vinculado à Pró-reitoria de Graduação, à Pró-reitoria de Extensão e Secretaria da Educação a Distância (Sead, via Portal dos Professores). Trata-se de programa destinado aos professores ingressantes (primeiros cinco anos na instituição) e objetiva criar espaço para a construção de uma cultura de formação profissional na UFSCar, possibilitando, aos professores iniciantes no Ensino Superior o acesso a um conjunto diversificado de informações e experiências importantes para a criação de uma comunidade de aprendizagem da docência universitária, via internet.

O PDD é composto por cinco unidades: aprendizagem e desenvolvimento profissional da docência (unidade denominada Espaço de Desenvolvimento da Docência - EDD); universidade e currículo; planejamento e condições organizacionais para o ensino de graduação; avaliação do ensino e aprendizagem no Ensino Superior; e, políticas educacionais e ensino.

Fui convidada para construir o módulo 1 do EDD juntamente com os profissionais envolvidos nas pró-reitorias e na Sead. Acompanhei as duas primeiras ofertas (2013 e 2014) do EDD envolvendo professores iniciantes, cerca de 100 professores por oferta. O EDD foi concebido, construído e desenvolvido fundamentado no referencial que adoto sobre processos de aprendizagem e desenvolvimento profissional da docência.

Considerando a diversidade de campos de conhecimento dos professores sendo que a maioria não teve formação pedagógica mais sistematizada, foi utilizado no EDD, inicialmente, um filme que retrata os dois primeiros anos de uma professora iniciante no Ensino Médio com a finalidade de estabelecimento de relações teoria-prática, ou seja, o caso de ensino oferece uma descrição detalhada do dia a dia do professor na escola em sua interação com alunos, equipe gestora, colegas, profissionais ligados a políticas públicas. O objetivo foi de discutir como os dois modelos de Shulman podem explicar situações de aprendizagem e de desenvolvimento profissional da professora. A introdução do caso também objetivou oferecer os primeiros contatos com modelos teóricos. Foi utilizado, como caso de ensino, o filme “Escritores da Liberdade” por possibilitar o mapeamento e análise das aprendizagens da professora e de seus alunos, bem como dificuldades, embates, dilemas, estratégias etc., e por possibilitar também a caracterização, por meio da utilização de uma linha do tempo, de momentos do processo de raciocínio pedagógico espiralado que pode ser percebido, principalmente, via diferentes estratégias pertinentes ao componente transformação.

Após estudarem um texto sobre o referencial teórico do EDD da UFSCar, os professores assistiram ao filme tendo um roteiro de observação. Eles deveriam, individualmente, a partir do filme, identificar: o que a professora aprendeu com os alunos, com a escola, com as políticas públicas e institucionais; o que os alunos aprenderam com a professora, com seus colegas e com a escola; quais tipos de conhecimentos a professora precisou ter (ou aprender) para ensinar aquela turma de alunos naquela escola específica e quais estratégias ela foi desenvolvendo ao longo do tempo.

Foi construída, como apoio, uma videoaula contendo uma animação que representa: a construção da base de conhecimento para o ensino, com especial destaque para o conhecimento pedagógico de conteúdo; o processo de raciocínio circular; o processo de raciocínio pedagógico espiralado. Na terceira animação, a do processo de raciocínio pedagógico espiralado, o professor, ao passar o cursor nas diferentes voltas do espiral, no componente transformação, tem acesso a uma linha do tempo que mostra como as estratégias vão se construindo ao longo do tempo e como cada uma delas alimenta a seguinte. Foi possível, na continuidade, iniciar um fórum com a seguinte problematização: Como a professora Erin vai construindo e ampliando sua base de conhecimento para ensinar a língua materna (literatura e língua inglesa) a partir da análise da prática pedagógica materializada nas estratégias que ela vai utilizando ao longo dos dois anos letivos? No desenvolvimento desse fórum é feito o detalhamento da questão norteadora, como se segue. Considerem que todo professor deve transformar o conteúdo ensinado em conteúdo aprendido. O que a professora Erin devia ensinar aos alunos? Qual conteúdo? Ela tinha o domínio desse conteúdo? Eles aprenderam os conteúdos formais, aqueles que provavelmente estavam no plano de ensino? É importante o professor trabalhar com questões de identidade e alteridade quando ensina? A escola é um lugar em que se discriminam alunos? E a universidade? Há condições e tratamentos diferenciados? A professora Erin era compromissada politicamente? É possível afirmar que as políticas públicas nem sempre cumprem sua proposta inicial e que os objetivos principais dessas ações podem ser perdidos frente às dificuldades práticas de sua implantação? O que são estratégias de ensino?

A utilização desse caso de ensino no início do módulo 1 do EDD mostrou-se altamente promissora em vários sentidos: importância e sentido de se considerar a formação de professores como um campo que abriga conhecimentos sobre o ensino, compreensão da fundamentação teórica utilizada no EDD, compreensão dos modelos de Shulman e explicitação tanto da base de conhecimento para o ensino quanto do processo de raciocínio pedagógico via utilização de dados apresentados no caso; discussão em fórum sobre questões levantadas pelo caso; estabelecimento de relações entre a especificidade do caso que focaliza a docência no Ensino Médio e no Ensino Superior; explicitação de variáveis específicas dos cursos de origem dos participantes.

Que orientações você daria para formadores que querem utilizar casos de ensino na formação e na pesquisa com professores?

Casos de ensino dependem das finalidades com as quais são utilizados e devem ser adequados a cada situação específica. Os casos não têm vida própria, dependem do processo de mediação do professor. A opção pela utilização de casos deve estar justificada pela temática que se pretende discutir e pelas contribuições que podem oferecer para a análise e compreensão de situações educacionais diversas. Há casos em diferentes formatos que podem oferecer contribuições variadas em processos formativos docentes. Há narrativas escritas bem detalhadas, documentários, relatos de experiência, filmes etc.

O importante é tanto a clareza da escolha, o propósito de se escolher um determinado caso para discussão de um determinado assunto quanto a forma como o caso vai ser utilizado. Tenho me detido mais especificamente em casos de ensino que poderia denominar de instrucionais, os diretamente relacionados a práticas pedagógicas caracterizadas pelo ensino de algo, mas os casos podem ser utilizados em uma grande variedade de situações, abordando e problematizando temáticas diferentes.

Tanto a escolha dos casos a serem analisados quanto à elaboração de casos deveriam considerar:

  1. aspectos formais, como o caso é editado;

  2. a clareza em relação ao motivo da escolha de um caso específico;

  3. como o caso se apresenta: atentar para descrições detalhadas, exemplos, inclusão de dados variados que ofereçam um fórum para problematização e estabelecimento de relações teoria-prática;

  4. oferta de um roteiro para leitura;

  5. oferta de um roteiro para reflexão em relação a pontos considerados centrais;

  6. incluir questões para discussão;

  7. incluir um rol textos teóricos que podem propiciar estabelecimento de relação teoria-prática.

REFERÊNCIA

MIZUKAMI, M. G. N. Casos de ensino e aprendizagem profissional da docência. In: ABRAMOWICZ, A.; MELLO, R. R. (org.). Educação: pesquisas e práticas. Campinas: Papirus, 2000. v. 1. p. 139-161. [ Links ]

1Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos; doutoranda em Educação pela Universidade Estadual do Ceará.

Recebido: 20 de Janeiro de 2021; Aceito: 17 de Abril de 2021

Endereço para correspondência: Avenida Parque Central, 1315, Distrito Industrial I, 61939-140, Maracanaú, Ceará, Brasil; professoralucianamendonca@gmail.com

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