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Roteiro

versão On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.46  Joaçaba jan./dez 2021  Epub 11-Jun-2021

https://doi.org/10.18593/r.v46.27183 

Seção temática: Casos de Ensino na pesquisa e na formação de professores

Resenha da obra de Katherine Merseth, Desafios reais do cotidiano escolar brasileiro

Review of Katherine Merseth's, Work real challenges of Brazilian school daily

Revisión del trabajo de Katherine Merseth, Retos reales de la escuela brasileña diario

Amanda Raquel Rodrigues Pessoa1I  , Professora permanente
http://orcid.org/0000-0002-6625-3938

Isabel Maria Sabino de Farias2II  , Professora Associada
http://orcid.org/0000-0003-1799-0963

I Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, Campus Juazeiro do Norte, Professora permanente.

IIUniversidade Estadual do Ceará, Professora Associada.


O livro “Desafios reais do cotidiano escolar brasileiro: 22 dilemas vividos por diretores, coordenadores e professores em escolas de todo o Brasil” (MERSETH, 2018) é uma coletânea de casos de ensino, narrativas capazes de inspirar reflexões sobre problemáticas contemporâneas da Educação ao examinar e discutir possibilidades educativas, bem como contribuir para o aprimoramento profissional dos professores.

Colaboraram para a construção da obra o Instituto Península, o Instituto Singularidades e o David Rockefeller Center for Latin American Studies (DRCLAS), da Universidade de Harvard, tendo como organizadora Katherine Klippert Merseth, professora sênior na Faculdade de Educação da Universidade de Harvard.

Os casos de ensino são tratados nessa obra como “materiais didáticos”, com arrimo na “abordagem pedagógica denominada método de instrução de casos”, e são compreendidos como tendo capacidade para ampliar o diagnóstico de problemas que atravessam o cotidiano da escola, bem como para estimular a ação dos professores no sentido de analisar e prospectar alternativas de enfrentamento a questões desafiadoras que permeiam a escola e o ensino. O encontro com os casos de ensino nos processos de formação traz à tona dilemas e/ou tensões que exigem exploração e prospecção de alternativas de resolução das situações presentes no cotidiano escolar, gerando empatia e aproximações emocionais importantes para o desenvolvimento profissional dos docentes.

Os casos de ensino são narrativas, uma “esfera da realidade” que pode ser examinada, explorada e usada por participantes e facilitadores sem a intenção de encontrar respostas e soluções, mas sobretudo contribuir para o repensar das situações difíceis que transitam no fazer docente e que geram reflexões e discussões importantes para novas possibilidades de aprendizagem sobre a atuação profissional.

Entre os elementos preliminares do livro encontram-se uma apresentação, uma introdução e uma sinopse dos casos de ensino, aos quais se seguem quatro grandes seções, nomeadas conforme o foco temático das narrativas nelas contidas. A primeira, identificada de “aspectos internos”, aborda dilemas oriundos da relação cotidiana desenvolvida dentro de instituições educacionais, com destaque para questões como: a) igualdade de oportunidade e acesso a portadores de necessidades especiais ao ensino superior; b) o ensino e a convivência com alunos com necessidades de atenção especial em escola de tempo integral; c) dilemas na atuação docente envolvendo aspectos como bullying, violência contra o professor, perseguições políticas, relação de afeto entre professor-aluno, interferências da vida pessoal na atuação docente e frustrações docentes relacionadas ao processo de inclusão de alunos com comportamento agressivo e reinvindicações que contestam o ensino inovador diante de exigências de mercado.

As principais reflexões advindas dos dez casos de ensino dessa primeira parte permeiam o processo de aprendizagem e suas relações com pessoas com deficiências, como também nos indaga sobre as reais possibilidades de personificar o ensino a partir das necessidades individuais dos alunos. Aborda também as condições de acesso e permanência do aluno na escola, especificamente dentro do modelo integral. Coloca em questão, ainda, a formação docente, se o professor é preparado para lidar com situações cotidianas de conflitos.

Nesse sentido, indaga sobre posturas profissionais docentes e como a gestão escolar deve dialogar sobre a relação professor-aluno. Traz à tona a dimensão humana do trabalho do professor, ponderando que suas atitudes em sala de aula afetam emocionalmente os alunos. Por conseguinte, propõe pensar nas políticas de controle e na competência emocional que se apresenta como necessária na atuação docente. Leva-nos a pensar qual o lugar da afetividade no processo de ensino e aprendizagem e sobre o papel da gestão frente à relação professor-aluno. Além disso, nos desperta a pensar no tratamento a ser dado a professores com problemas que afetam a sua saúde e desempenho profissional, a exemplo da violência e da indisciplina no ambiente escolar, abrindo espaço para problematizações acerca do papel da escola e das políticas educacionais frente aos desafios que se apresentam para a concretização do ensino.

Os “aspectos externos”, tratados na segunda parte do livro, relacionam-se as problemáticas do contexto social que adentram na escola e impactam na atuação e desenvolvimento do trabalho escolar. São abordados, em um conjunto de cinco casos de ensino, temas como: segurança pública, tráfico e marginalização no ambiente escolar, violência doméstica e suas implicações na relação aluno-escola, negligência da gestão pública e os conflitos entre familiares e atuação docente.

Nessa segunda parte o processo reflexivo se direciona para as implicações dos problemas sociais na organização escolar e nas ações educativas desenvolvidas pelos docentes. As narrativas trazem à tona situações que evidenciam a vulnerabilidade a qual a escola e seus profissionais estão expostos, isso em face da marginalidade que assola o seu entorno da escola. Instiga-nos a pensar sobre o que ensinar diante da necessidade de proteger a comunidade escolar dos conflitos entre traficantes e policiais; o que cabe a escola diante dessas situações, que postura adotar frente ao cotidiano de violência e agressão vividos na escola; o que se pode fazer quando estas questões ainda se agravam quando precisam lidar com turmas numerosas; o que fazer diante de um aluno que convive e vive a agressão familiar. Ou, ainda, se essas questões justificam um possível fechamento da instituição e como lidar com a evasão e a desmotivação frente a marginalização. Enfim, convoca-nos a uma reflexão crítica sobre o que a escola pode fazer diante dessas e de inúmeras outras situações. Uma seção com casos que põe em evidência narrativas que focalizam as formas desejáveis de convivência para se manter um ambiente propício a aprendizagem.

Os casos de ensino tratados nessa segunda parte apresentam o quanto é complexo as relações estabelecidas na escola e com o ensino. Nesse ambiente transita a realidade social dos seus alunos e é quando se percebe que não há como negar os problemas externos, uma vez que estes afetam os processos de ensino e aprendizagem.

Em “pautas identitárias”, terceira parte do livro, os casos giram em torno da diversidade que permeia o ensino e as relações socioculturais na escola. Os casos envolvem problemáticas relacionadas a conflitos ideológicos entre professores e alunos no processo de ensino, conflitos culturais, atos de bullying e dificuldades docentes em adequar as práticas pedagógicas com a entrada na escola de alunos imigrantes, além de relações de gênero, preconceito e xenofobia na escola.

O grande destaque dessa parte são as reflexões sobre os embates de ideais que envolvem as relações sociais desenvolvidas na escola. Os casos de ensino trazem indagações pertinentes sobre a necessidade de dialogar com a diferença de forma democrática, sendo este um dos grandes desafios das relações socioculturais que transitam na escola. Nesses termos, nos convida a analisar o processo de ensino e de aprendizagem em uma perspectiva multicultural, na qual se deve ter ciência da complexidade que envolve gerir uma escola e ensinar quando se considera os diferentes contextos territoriais, linguísticos e de identidade dos alunos. Alerta-nos para situações de xenofobia e de preconceito e nos indaga sobre as diferentes formas de lidar com essas situações.

Na última seção, denominada de “equidade”, o foco recaiu sobre as relações tênues que perpassam o processo de aprendizagem na escola, especificamente se debruça sobre a avaliação e as expectativas diante dos quadros de desigualdade e a busca de garantir a qualidade e a equidade. Destacam-se narrativas abordando os dilemas e desafios em lidar com situações de déficit de aprendizagens e com estados de desmotivação de alunos. Pontua-se o desafio da avaliação dos estudantes em face de condicionantes sociais e emocionais que podem afetar os resultados. Instiga-nos, nessa perspectiva, sobre o papel das avaliações no processo de ensino e de aprendizagem, evidenciando a importância de se pensar na função institucional e docente em gerir as ações com qualidade, de forma a ressignificar a prática pedagógica em busca de oportunidades de acesso para melhores resultados de aprendizagem.

O livro nos provoca, com situações cotidianas reais, a refletir e discutir sobre a educação. As questões tratadas nos colocam no lugar do outro e, consequentemente, nas decisões que tomaríamos se estivéssemos vivendo a situação narrada. É certo que o profissional da Educação irá, de alguma forma, se identificar com as narrativas, pois elas expressam problemáticas comuns ao seu universo de trabalho. Por alguns instantes os casos narrados nos trazem lembranças de algo que acontece ou aconteceu em proximidade com as nossas experiências, transformando a leitura e análise em um momento de encontro consigo mesmo e com os seus pares.

Nesse sentido, o que fica evidenciado ao longo do livro é o direcionamento dado aos casos de ensino como subsídio para o desenvolvimento profissional docente, pois em seu uso o que se observa é o quanto o diálogo sobre dilemas e conflitos advindos do cotidiano escolar podem contribuir para o professor analisar e alargar a compreensão de suas posturas, práticas e decisões profissionais. Sob esse prisma, os casos de ensino podem contribuir nas diversas fases profissionais, tanto ao aproximar a realidade escolar a professores iniciantes, mas também ao lançar um zoom sobre a realidade escolar e o que acontece nos processos de ensinar e de aprender para docentes experientes. Favorecem, assim, dinâmicas reflexivas visando ampliar a compreensão da própria prática e, desse modo, desenvolvem bases para a revisão, a constituição e a consolidação de substratos que sustentam o agir profissional mediante o compartilhamento de saberes-fazeres, tanto para professores experientes quanto para iniciantes.

Trata-se, portanto, de uma obra que revela o potencial dos casos de ensino como dispositivo nas ações de formação e de pesquisa sobre o desenvolvimento docente. Nesses termos, não é demasiado realçar sua importância para o estudo contemporâneo da formação de professores, justamente por evidenciar a autorreflexão e as experiências de ensino como partes de um processo contínuo de formação profissional, geradas a partir do fazer docente vivido na dinâmica social que envolve a profissão, a escola e seu entorno.

REFERÊNCIAS

MERSETH, Katherine Klippert. Desafios reais do cotidiano escolar brasileiro: 22 dilemas vividos por diretores, coordenadores e professores em escolas de todo o Brasil. São Paulo: Instituto Península: Fundação Santillana; Moderna, 2018. [ Links ]

1 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará; doutoranda em Educação pela Universidade Estadual do Ceará.

2Doutora e Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.

Recebido: 12 de Janeiro de 2021; Aceito: 17 de Abril de 2021

Endereço para correspondência: Avenida Plácido Aderaldo Castelo, 1646, Planalto, 63040-540, Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil; amandampb4@gmail.com

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