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Roteiro

versão On-line ISSN 2177-6059

Roteiro vol.46  Joaçaba jan./dez 2021  Epub 14-Set-2021

https://doi.org/10.18593/r.v46.24819 

Artigos de demanda contínua

Educação em direitos humanos: possibilidades a partir do PNEDH e do cinema na escola

Educación en derechos humanos: posibilidades del PNEDH y el cine en la escuela

Human rights education: possibilities based on HRNEP and cinema at school

Alexandre Silva Guerreiro1I  , Professor
http://orcid.org/0000-0003-0767-5054; lattes: 1123647112802381

ISecretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, Professor


Resumo:

A luta pela instauração da Educação em direitos humanos em diversos países é decorrência direta da década dedicada à Educação (1995-2004) pelas Nações Unidas. Os Planos Nacionais de Educação em Direitos Humanos são, por sua vez, uma decorrência desse esforço, mas o hiato entre o que os planos estabelecem e as práticas pedagógicas persiste. Este trabalho tem por objetivo refletir sobre o PNEDH, publicado no Brasil em 2007, e as formas pelas quais podemos aproximar os direitos humanos da escola, em especial, através do cinema e do audiovisual. A partir de um estudo do PNEDH e de uma abordagem do cinema como arte na escola (BERGALA, 2002; FRESQUET, 2011; 2013), conclui-se que a tríade cinema-educação-direitos humanos é fundamental para que a escola atual seja reinventada, a partir da valorização e do protagonismo de alunas/alunos e professoras/professores.

Palavras-chave: Direitos Humanos; PNEDH; Cinema; Educação; Escola

Resumen:

La lucha por el establecimiento de la educación en derechos humanos en varios países es el resultado directo de la década dedicada a la educación (1995-2004) por las Naciones Unidas. Los Planes Nacionales de Educación en Derechos Humanos son, a su vez, el resultado de este esfuerzo, pero la brecha entre lo que establecen los planes y nuestras prácticas pedagógicas persiste. Este trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre el PNEDH, publicado en Brasil en 2007, y las formas en que podemos acercar los derechos humanos a las escuelas, especialmente a través del cine y el audiovisual. Con base en un estudio del PNEDH y un enfoque del cine como arte en la escuela (BERGALA, 2002;FRESQUET, 2011;2013), concluye que la tríada cine-educación-derechos humanos es fundamental para la reinvención de la escuela actual, desde la valorización y protagonismo de estudiantes y docentes.

Palabras clave: Derechos humanos; PNEDH; Cine; Educación; Escuela.

Abstract:

The struggle for the establishment of Human Rights Education in several countries is a direct result of the decade dedicated to Education (1995-2004) by the United Nations. The Human Rights National Education Plan is a result of this effort, but the gap between what the plan establishes and our pedagogical practices persists. This work aims to reflect on the HRNEP, published in Brazil in 2007, and the ways in which we can bring human rights closer to school through cinema and audiovisual. Based on a study of the HRNEP and an approach of cinema as art at school (BERGALA, 2002;FRESQUET, 2011;2013), the researsh concludes that the triad cinema-education-human rights is fundamental for the current school to be reivented, through the valorization and protagonism of students and teachers.

Keywords: Human rights; HRNEP; Cinema; Education; School.

1 INTRODUÇÃO

A Educação em direitos humanos é, há algum tempo, uma preocupação global. A prova disso é o estabelecimento de uma década dedicada a essa acepção de educação pelas Nações Unidas (1995-2004). Contudo, as dificuldades quanto à universalização da Educação em direitos humanos decorrem, em grande medida, das críticas ao conceito de universalidade desses direitos. A resistência ao fundamento da universalidade dos direitos humanos gira em torno da apropriação desse campo como estratégia de dominação, notadamente dos países centrais sobre os países periféricos. A superação desse quadro se dá a partir da adoção de uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos (SANTOS; MARTINS, 2019), ao que a Educação deve ser permeável. Estabelecer um movimento globalizante da Educação preservando as especificidades regionais é um dos desafios que estão colocados.

Os Planos Nacionais de Educação em Direitos Humanos são um movimento importante no estabelecimento de uma Educação pautada pelos Direitos Humanos que se afirme globalmente, respeitando as especificidades regionais. No entanto, o hiato entre os planos e nossas práticas pedagógicas é um sintoma das dificuldades dessa implementação que persiste. Em grande parte, a superação desse hiato fica a cargo do trabalho docente, quando o Estado e a escola não garantem as condições para que os direitos humanos ocupem o espaço escolar de maneira orgânica.

Nesse sentido, o cinema e o audiovisual, em particular, e a arte, em geral, são importantes recursos para que professoras e professores transformem suas aulas dentro do horizonte de uma Educação em direitos humanos. Vale salientar que nosso entendimento do cinema o toma como matriz da força geradora de sons e imagens que nos atravessam na contemporaneidade. Sendo assim, quando nos referimos ao cinema, abarcamos o universo audiovisual que ultrapassa, em muito, as salas de exibição ou a prática de visionamento de filmes. Da mesma forma, é importante frisar que nossa crença no cinema como arte se traduz pela possibilidade de criação e de transformação dos sujeitos no ambiente escolar. Contudo, no PNEDH, o cinema está dentro do conceito mídia, o que atesta que o cinema habita um entre espaço dos campos da Comunicação e da Arte. Com efeito, quando nos referimos à mídia, temos no horizonte, ainda assim, o cinema como arte no que diz respeito a sua potencialidade de transformação e criação.

Este trabalho tem por objetivo refletir sobre o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos - PNEDH (BRASIL, 2007), ampliando essa reflexão para pensarmos nossas práticas pedagógicas, amparando-as na noção de cinema como arte na escola (BERGALA, 2002; FRESQUET, 2011; 2013). Partimos de uma exploração sobre a Educação em Direitos Humanos, abordando seus fundamentos e sua história. Em seguida, analisamos alguns pontos do PNEDH, buscando estabelecer as possibilidades de sua efetivação. Por fim, abordamos o cinema e o audiovisual como um caminho possível para a entrada dos direitos humanos na escola.

Assumimos, do ponto de vista metodológico, uma investigação sobre a década da educação que busque denotar sua importância e seus reflexos, e uma pesquisa documental a partir da qual nos debruçamos mais detalhadamente sobre o PNEDH para, em seguida, adotarmos uma perspectiva exploratória quando abordarmos a tríade cinema-educação-direitos humanos, acreditando que esta junção pode servir a pesquisas futuras.

A superação do hiato entre o que está proposto no PNEDH e nossas práticas pedagógicas depende do protagonismo de alunas e alunos, da formação docente e de uma determinada forma de abordagem do cinema e do audiovisual na escola que seja afim à Educação em direitos humanos e voltada para sua efetivação.

2 A DÉCADA DA EDUCAÇÃO

Quando Arendt (2006), em seu clássico texto A Crise na Educação, aponta para a necessidade de assumirmos responsabilidade pelo mundo, o que se coloca em evidência é a premência de se repensar a Educação e de se conceber melhor o mundo que se quer construir. A Educação em direitos humanos surge como uma vertente que almeja a transformação da realidade através de estratégias que sustentem uma série de aprendizados voltados para a garantia do respeito à dignidade da pessoa humana, da valorização das diferenças e do combate às mais variadas formas de preconceito.

A Educação em direitos humanos é um dos temas centrais da luta pelos direitos humanos hoje. Desde que a ONU definiu uma década pela educação em direitos humanos (1995-2004), os avanços nesse campo foram notáveis. Os Planos Nacionais de Educação em Direitos Humanos são decorrência direta desta década, mas podemos levantar questões sobre como deve se dar essa educação em direitos humanos. Como preservar as especificidades regionais numa perspectiva globalizante da educação? Como evitar as críticas a uma perspectiva universalizante da Educação que a própria noção de direitos humanos enfrenta?

Vale salientar que a construção do PNEDH é resultado de uma articulação entre governos federal, estaduais e municipais, também com a participação de organismos internacionais, instituições de educação superior e sociedade civil organizada. A criação do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH), em 2003, marcou o início da elaboração do Plano que teve a participação da sociedade como um todo, através de encontros, seminários e fóruns em âmbito nacional, regional e estadual, o que foi posteriormente sistematizado apenas em 2006, o que dá a dimensão do caráter plural e democrático ao qual o plano se propõe (BRASIL, 2018).

Direitos humanos e educação mantém uma estreita relação desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. A essa afirmação se junta o fato de que a educação é considerada um direito fundamental. No entanto, podemos observar mudanças importantes nessa relação, que vem se intensificando a partir da década dedicada à Educação em direitos humanos na medida em que diversas ações que ainda não haviam saído do plano das ideias foram efetivamente implementadas, inclusive através dos Planos Nacionais de Educação em Direitos Humanos, cuja versão brasileira foi elaborada em 2006 e publicada em 2007.

O significado da definição dessa década da educação voltada para os direitos humanos não é pequeno. Trata-se de um esforço internacional no sentido de pressionar governos, bem como organizações nacionais e internacionais, para que todos se concentrem na promoção de uma cultura universal dos direitos humanos através da educação. O que se pretende é formar cidadãos capazes de reconhecer e defender seus direitos e de terceiros, dando uma importante contribuição para a prevenção das constantes violações dos direitos humanos em âmbito mundial.

Nesse sentido, o reconhecimento da importância da educação em direitos humanos a partir da consolidação de uma década dedicada à mesma nos mostra que tal educação é concebida como um direito fundamental voltado para promover a formação de sujeitos de direitos, capazes de reconhecer, reivindicar e fazer valer seus direitos, num exercício de cidadania plena. Para tal, a confecção de um Plano de Ação se fez necessária, apontando diretrizes para o desenvolvimento de trabalhos a serem realizados ao longo da década. Esse Plano de Ação e as diretrizes dele decorrentes têm como base a Resolução adotada pela Assembleia Geral 49/184: Década das Nações Unidas para a Educação em matéria de Direitos Humanos (NAÇÕES UNIDAS, 1998).

Dentre as diretrizes da década, figuram o reforço aos direitos humanos e liberdades fundamentais, o desenvolvimento da personalidade humana e o sentido de sua dignidade, a promoção da compreensão, da tolerância, da igualdade entre os sexos e da amizade entre todas as nações, povos indígenas e grupos raciais, nacionais, étnicos, religiosos e linguísticos, a participação efetiva de todas as pessoas numa sociedade livre, a promoção das Nações Unidas em prol da manutenção da paz (NAÇÕES UNIDAS, 1998, p. 11-12). Resta claro que são imensas as dificuldades para a incorporação desse desafio no cotidiano escolar. O fato é que, por si só, o estabelecimento de uma década dedicada à Educação em direitos humanos lança luz a um campo em construção e terreno fértil para que possamos transformar a escola em espaço plenamente democrático, visando a formação de sujeitos de direitos.

Os objetivos da Década apontados acima mostram certo hiato entre a realidade escolar e o que determina o Plano de Ação, mas a partir desse desencontro, novos caminhos em comum podem ser traçados. Esses objetivos versam sobre a formulação de estratégias para a promoção dos direitos humanos em todos os níveis do sistema escolar, a criação de programas para a Educação em Direitos Humanos em nível internacional, regional, nacional e local, o desenvolvimento de materiais didáticos, o reforço do papel dos meios de comunicação social, a ampla divulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim, com a convocação para que governos se engajem na Década, o esperado era que a Educação, como um todo, privilegiasse esses objetivos no sentido de promover a Década da Educação.

É evidente que as dificuldades de se implementar tais medidas em âmbito mundial são imensas. As diferenças dos sistemas educacionais de um país a outro, bem como no interior de um mesmo país, como é o caso do Brasil em decorrência de sua dimensão continental, tornam claras essas dificuldades. No entanto, como diversos tratados e diretrizes firmados dentro do universo dos direitos humanos, o que se tem é um direcionamento que deve pautar as políticas educacionais dentro de cada país, com uma pressão internacional no sentido de que os objetivos sejam atingidos. Nesse sentido, ainda que questionável, sobretudo pelo seu caráter universalizante, tais medidas têm um resultado positivo, fato que pode ser atestado pela existência, hoje, em diversos países, de planos de ação específicos para uma Educação em direitos humanos.

Com ênfase na formação, o Plano de Ação objetiva a existência de multiplicadores que poderão levar, ao maior número possível de pessoas, as ideias centrais que pautam a Educação em direitos humanos. Sobre os cursos de formação, o Plano indica que devem ser introduzidas técnicas eficazes para a formação de públicos específicos, com utilização de métodos pedagógicos criativos e interativos, oferecendo possibilidade de formação ativa e empenhada dos formandos. No entanto, as especificidades concernentes à elaboração de cada programa, dado o caráter geral do Plano, fica a cargo de profissionais locais, o que dá uma abertura para se pensar na Educação em direitos humanos incorporando as demandas e necessidades regionais.

Seja como for, a Década da Educação abre uma importante discussão acerca dos objetivos gerais e regionais da Educação, nos fazendo formular indagações que surgem a partir da crise na educação apontada por Arendt (2006). Afinal, que mundo queremos construir a partir de nossas práticas pedagógicas? Como promover, a partir da escola, uma sociedade mais justa e igualitária? De que maneira almejaremos efetivar a ideia de igualdade na diferença e como formar alunas e alunos que se reconheçam, enquanto cidadãs e cidadãos, como sujeitos de direitos? Os diversos projetos que convivem no dia a dia escolar, a despeito das políticas educacionais gerais, são aqui confrontados com a ideia de que, seja qual for o direcionamento dessas políticas, a Educação em direitos humanos deve ser uma preocupação central para todos os países do mundo que se submetem às normas internacionais dos direitos humanos.

3 PRINCÍPIOS E HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

A Educação em direitos humanos se preocupa, essencialmente, com a construção de uma cultura dos direitos humanos e de respeito à dignidade da pessoa humana. Essa construção se daria, através da educação, pelo fomento aos valores de justiça, de liberdade, de igualdade, preservando e valorizando as diferenças. Vale salientar que muitas das diretrizes da luta pelos direitos humanos, notadamente na educação, já habitam nossos pensamentos e pautam nossas ações, ainda que não utilizemos, necessariamente, o termo Educação em direitos humanos. Porém, o uso da expressão é importante e evoca a luta de mulheres e homens engajados na educação, voltada para aquilo que é mais essencial aos direitos humanos: a dignidade da pessoa humana.

O propósito maior da Educação em direitos humanos gira em torno de uma educação libertadora e que emancipe os sujeitos, que os torne cientes de seus direitos e dos direitos dos outros. Nesse sentido, não falamos de uma educação voltada para o adestramento, para a mera transmissão de conhecimento ou, ainda, que tenha, como seu principal objetivo, às demandas do mercado de trabalho. Longe disso, pensamos numa educação que se destine à transformação social na medida em que se dedique a conceber os direitos humanos de maneira plena e orgânica na sociedade. Assim, formar para a vida com base no respeito à dignidade da pessoa humana é um fundamento essencial da Educação em direitos humanos.

No Brasil, é a partir da redemocratização dos anos 80 que os direitos humanos passaram a ocupar o proscênio. Após o período do Regime Militar no Brasil, que se estendeu de 1964 a 1985, marcado por reiteradas violações aos direitos humanos, a Constituição Federal de 1988 funcionou como um marco importante que abriu as portas para ações voltadas para a Educação em direitos humanos. Nesse ínterim, os planos nacionais de educação em direitos humanos têm respaldo na chamada constituição cidadã, que incorporou uma série de lutas dos movimentos sociais que resistiram nos anos da ditadura militar.

Ao mesmo tempo, o reforço dado pela Conferência de Viena, de 1993, no sentido de fomentar planos nacionais de direitos humanos, foi um importante incentivo ao desenvolvimento dos programas nacionais de direitos humanos2 em âmbito regional. O desenvolvimento desses planos ocorreu, no Brasil, a partir dos anos 90, e teve três edições, sendo apenas a terceira a dedicar um eixo específico para a Educação em Direitos Humanos.

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos aponta esta vertente da educação como um processo sistemático e multidimensional, orientado para a formação de sujeitos de direitos. Essas dimensões incorporam a apreensão de conhecimentos sobre os direitos humanos, a construção de uma cultura em direitos humanos, a formação de uma consciência cidadã, a criação de processos metodológicos participativos, a consolidação de práticas voltadas para a promoção, proteção e defesa dos direitos humanos (BRASIL, 2007).

Segundo o PNEDH, a Educação em Direitos Humanos é um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação de sujeitos de direitos. Dentre as dimensões dessa acepção apregoada pelo Plano, cabe destacar o “desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos contextualizados” (BRASIL, 2018), o que dialoga diretamente com a interseção entre cinema, educação e direitos humanos, como veremos adiante. Acima de tudo, a concepção de Educação em Direitos Humanos, de acordo com o Plano, pressupõe contribuir para a promoção, proteção e defesa dos direitos humanos, bem como para a reparação das violações desses direitos.

O PNEDH funciona, assim, dentro de um horizonte de elaboração e implementação de planos e programas nacionais, ao lado da criação de comitês estaduais de educação em direitos humanos. As especificidades regionais e a necessidade de monitoramento tornam essenciais à criação dos comitês estaduais que, ao lado dos planos nacionais, tornam possível a centralidade da educação em direitos humanos como política pública. Como afirma Maia (2007, p. 99), a “educação em direitos humanos é, simultaneamente, meio e fim.” Nesse sentido, refletir sobre a escola é um passo fundamental para entendermos de que maneira tal perspectiva pode se concretizar.

A escola precisa ser um espaço a ser democraticamente construído para que a Educação em direitos humanos possa se dar plenamente. Isso significa atravessar a escola em seus diversos eixos, desde a gestão até as relações que se estabelecem em sala de aula. Não se pode pensar numa Educação em direitos humanos que não esteja fundamentada num ambiente escolar que respeite o indivíduo como sujeito de direitos, e que não valorize a coletividade em sua diversidade.

A educação é um direito humano. Esse entendimento é chave para pensar a educação como campo fundamental tanto para o conhecimento do legado histórico dos direitos humanos, como também para um movimento de transformação social. Num universo marcado pela violação de direitos humanos, seja pela exclusão social, cultural, política ou econômica, a valorização da Educação em direitos humanos pode ser entendida como elementar para se pensar uma escola como espaço radicalmente democrático. Sendo assim, historicamente, a educação enquanto um direito humano encontra raízes na própria declaração de 1948.

Em sua tese de doutorado, Kitt (2006) estabelece uma divisão histórica da Educação em direitos humanos em três momentos fundamentais, o que nos ajuda a perceber este como um campo em constante construção. Para Kitt, a primeira fase teria suas raízes na cultura greco-romana e terminaria em 1947, ano anterior ao marco regulatório da declaração universal. Assim, essa duradoura fase tem sua origem marcada pelo nascimento da civilização, ainda que seja questionável entender a era greco-romana como berço da civilização como um todo. De qualquer jeito, o fato do direito romano ser a base para o que entendemos hoje como direito, e tendo os direitos humanos uma preocupação com a positivação dos direitos que nascem de suas lutas, a indicação das civilizações grega e romana antigas como gênese dos direitos humanos funciona, ainda que simbolicamente.

Esse grande período abarca momentos históricos radicalmente distintos como a era medieval, o renascimento, o iluminismo, o advento da modernidade,3 a consolidação das democracias e, talvez, poderia ser dividido em alguns subperíodos. Mas o marco regulatório da Declaração Universal dos Direitos Humanos ajuda a pensar nesse período como anterior à concepção da Educação em direitos humanos que temos hoje, de uma maneira mais geral. Além disso, é a Declaração de 1948 que cristaliza, de certa forma, uma luta de séculos, funcionando como um ponto de virada importante numa perspectiva histórica.

A segunda fase apontada pelo autor seria compreendida entre os anos de 1948 e 1994, sendo marcada pela formalização da Educação em direitos humanos como um esforço educacional pela legitimação da universalidade dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que a globalização se expandia e que inúmeras violações dos direitos humanos eram observadas, num século em que o aumento notável da pobreza e a devastação ambiental do capitalismo neoliberal se tornaram protagonistas. Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, é o primeiro documento em prol de uma Educação em direitos humanos, ainda que numa perspectiva universalizante e, muitas vezes, alheia à forma como a educação é estruturada nas mais diversas culturas.

Por fim, a terceira fase apontada por Kitt (2006) se refere ao período que vai de 1995 até o presente, sendo marcado pela proliferação da Educação em direitos humanos, sobretudo em decorrência da declaração da Década de 1995-2004 como sendo a década dedicada à Educação em direitos humanos. É nesse período que a comunidade internacional engajada nessa causa colocará seus esforços na luta pela conscientização e legitimação da Educação em direitos humanos como campo a ser defendido e difundido.

Seja como for, a localização das raízes da Educação em direitos humanos na civilização greco-romana acaba por reproduzir certo eurocentrismo, mas justifica-se por apontar o paralelismo entre a Educação em direitos humanos e a própria noção de direitos humanos forjada a partir do estoicismo grego e do direito romano e da ideia que opõe direitos e deveres como princípios que regem as atitudes do cidadão. O fato é que, após a Declaração de 1948, os defensores dos direitos humanos passam a militar dentro desse campo específico que é a Educação em direitos humanos, efetivando conquistas e avanços, notadamente a partir da década da educação, cujos desdobramentos experienciamos hoje.

4 O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

Pensar numa Educação que coloque em pauta os direitos humanos pode parecer redundante. Longe disso, é urgente a necessidade de ocupar a escola com os princípios que compõem o universo dos direitos humanos, considerando o constante desrespeito aos mesmos dentro e fora da escola. Por essa razão, foi elaborado o PNEDH - Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, lançado em 2006 e publicado em 2007, num esforço conjunto da então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, do Ministério da Justiça, do Ministério da Educação e da Unesco.

Trata-se de um plano-projeto de direitos humanos para a esfera da educação e que considera o universo da Educação como espaço-tempo privilegiado para formar e consolidar princípios, valores e atitudes capazes de transformar cada ser humano, conforme apontado nas Diretrizes Nacionais (BRASIL, 2013). Fruto da luta de pessoas e instituições que se dedicam à implementação dos direitos humanos e que encontram, no Brasil e no mundo, diversas resistências que vão do preconceito contra a pauta dos direitos humanos ao assassinato de seus militantes, o PNEDH coloca no papel algumas diretrizes e organiza um pensamento do que deve vir a ser a presença dessa pauta no ambiente escolar.

Seria legítimo pensar num hiato entre o que é proposto pelo PNEDH e as ações que, efetivamente, colocam em prática aquilo ao que o Plano se refere. Voltado para todas as instâncias da Educação e lançando seu alcance em todas as esferas, o PNEDH registra, em seus incisos, as diretrizes para a Educação Básica, Superior e Não-Formal, bem como para a Educação dos Profissionais dos Sistemas de Justiça e Segurança e para a Educação e Mídia.

No que concerne à Educação Básica, que nos interessa aqui, o PNEDH tem como uma de suas prerrogativas que

e) a educação em direitos humanos deve ser um dos eixos fundamentais da educação básica e permear o currículo, a formação inicial e continuada dos profissionais da educação, o projeto político pedagógico da escola, os materiais didático-pedagógicos, o modelo de gestão e a avaliação. (BRASIL, 2007, p. 32).

Fica claro que a intenção é atravessar a escola como um todo, e não apenas a sala de aula, com as questões ligadas aos direitos humanos. Não precisamos ir muito longe para percebermos a distância que existe entre aquilo que o Plano coloca em pauta e a sua prática nas escolas, basta refletirmos sobre os modelos de avaliação que, muitas vezes e cada vez mais, são implementados pelo próprio Estado, num movimento de fora para dentro da escola, numa perspectiva totalmente avessa ao que seria uma Educação atravessada, de fato, pelas questões que giram em torno dessa pauta.

Se pensarmos, também, nas ações programáticas colocadas pelo Plano, encontramos o seguinte texto: “9. Fomentar a inclusão, no currículo escolar, das temáticas relativas a gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, pessoas com deficiência, entre outros.” (BRASIL, 2007, p. 33). Nesse ínterim, tratando mais diretamente do currículo escolar, o Plano lança uma série de eixos temáticos a serem incorporados pela escola. Em caráter genérico, o que temos em pauta são temas, mas inexiste um direcionamento no sentido de como os temas devem ser abordados. Mais do que isso, o que se coloca é o risco de que a pauta dos direitos humanos entre na escola como mais um conteúdo a ser apreendido e memorizado. Como fazer aflorar no aluno o respeito pelo outro, não porque uma cartilha lhe impôs essa demanda, mas pelo despertar de uma sensibilidade que vê o Outro como exterioridade plena (LÉVINAS, 1988; 2012), como alguém que existe não a partir do meu olhar, mas que existe em si, em toda a sua complexidade e profundidade, e que deve me respeitar na mesma medida em que precisa ser respeitado?

Segundo Lévinas (2012), a centralidade do Eu motivou inúmeras tragédias pelo desejo de dominação do Outro. Quebrar essa centralidade do Eu talvez seja o maior dos desafios quando pensamos numa Educação em direitos humanos. No entanto, vale refletir, também, sobre quais as possibilidades reais da escola atual incorporar plenamente a pauta dos direitos humanos.

Para Bourdieu, a escola cumpre a função de legitimar as desigualdades sociais ao ignorar as diferenças: “[...] tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura.” (BOURDIEU, 2015, p. 59). Em que medida já nos afastamos com segurança do cenário escolar desenhado por Bourdieu? Pensar a Educação atravessada pelos direitos humanos é marcar essa distância, e é também transformar a escola organicamente, é reinventá-la fazendo surgir, a partir daí, novas possibilidades de subjetivação e alteridade.

Vale salientar que nosso entendimento dos processos de subjetivação, bem como a valorização da alteridade, estão na contramão da noção de identidade, tal como formulada na modernidade. É importante marcar distância desses processos de padronização e de homogeneização no sentido de garantir a singularidade dos sujeitos. “Não é o sujeito que produz as práticas de significação, são elas que vão constituir os sujeitos.” (HENNIGEN; GUARESCHI, 2006, p. 65). Nesse sentido, numa perspectiva cultural, ocupar a escola com práticas que constituam sujeitos singulares tem uma grande importância, suprimindo os movimentos homogeneizantes que acabam por apagar as diferenças. De maneira complementar, é preciso entender a alteridade (LÉVINAS, 1988; 2012) como filosofia da diferença, passo fundamental para pensar a escola na contemporaneidade.

Diferença, por sua vez, não se confunde com diversidade, ainda que estas apareçam quase como sinônimos em muitos estudos no campo da Educação. Em A diferença e a diversidade na educação, Abramowicz, Rodrigues e Cruz (2011) aferem que o uso da diversidade e da diferença como sinônimos contribui para os processos de apagamento das diferenças. “Sob o manto da diversidade o reconhecimento das várias identidades e/ou culturas, vem sob a égide da tolerância.” (ABRAMOWICZ; RODRIGUES; CRUZ, 2011, p. 91). Para os autores, a tolerância seria mantenedora das hierarquias e a diversidade pode ser cooptada pelo capital no sentido de atender a demandas de mercado e de consumo. Assim, a diferença se opõe à identidade e deve ser valorizada enquanto diferença, indo ao encontro da alteridade. Contudo, a diversidade também tem um caráter positivo no contexto dos direitos humanos, na medida em que lança luz à pluralidade de culturas, orientações sexuais, à diversidade étnica etc.

Em outro ponto das ações programáticas sinalizadas pelo Plano, a escola imaginada pressupõe o respeito à alteridade.

25. Propor ações fundamentadas em princípios de convivência, para que se construa uma escola livre de preconceitos, violência, abuso sexual, intimidação e punição corporal, incluindo procedimentos para a resolução de conflitos e modos de lidar com a violência e perseguições ou intimidações, por meio de processos participativos e democráticos. (BRASIL, 2007, p. 35).

Voltamos à colocação inicial: pensar os direitos humanos na Educação não deveria ser redundante? No ponto de fuga do quadro desenhado pela PNEDH está uma escola sonhada, livre de preconceitos, violências e abusos, o que expõe nossa relação complexa com a Educação. Preconceitos não nascem em árvores; eles são regados, cultivados e passados de geração a geração, e a escola tem dado uma grande contribuição para isso, ao lado de outras instituições, como a família e a igreja, que compõem a sociedade. A violência atravessa a escola, seja na legitimação das desigualdades, seja na relação hierarquizante entre professores e alunos, entre homens e mulheres, entre equipe pedagógica e corpo docente, entre secretarias de educação e comunidade escolar, entre alunas e alunos mais velhos e os mais jovens.

Essa escola é a mesma que convive com as diretrizes da Educação em direitos humanos. Muitas vezes, os alunos se deparam com práticas pedagógicas radicalmente democráticas de um professor, mas são obrigados a se submeter a regimes autoritários impostos por outro professor. É dentro desse panorama que precisamos encarar o desafio da Educação em direitos humanos. Nesse sentido, trabalhar a partir das diretrizes colocadas pela Década da Educação não é tanto uma opção, mas um dever de todas e todos nós que habitamos a sala de aula e o espaço escolar. Disso depende, também, a afirmação da escola como um espaço plenamente democrático.

5 O CINEMA E O AUDIOVISUAL NA ESCOLA

O cinema, em especial, e o audiovisual, em geral, podem e devem entrar nesse cenário, mas não de qualquer forma. Pensar o cinema na escola dentro de uma perspectiva levinasiana requer uma reorganização dos lugares, redesenhando a escola que conhecemos e transformando-a na mesma medida em que afloram as subjetividades, sensibilizando a comunidade escolar em torno da arte. Resta claro que o cinema entrou na escola há muito tempo, e essa entrada precedeu as primeiras reflexões sobre a relação cinema e educação, quanto mais o imbricamento desses pelo viés dos direitos humanos. Mas é chegada a hora de conceber o cinema que se quer na escola, necessariamente, como desestabilizador, contribuindo para o surgimento do novo, de uma nova escola como célula de uma nova sociedade. É nesse sentido que promovemos o encontro do cinema com a Educação em direitos humanos.

Ao criar uma aliança entre cinema, educação e direitos humanos, encontramos algo que permanece ausente da educação tradicional. Colocar o aluno no lugar de protagonista é possibilitar novos olhares sobre cada conteúdo trabalhado pelo professor. Muito se fala em protagonismo discente, mas é preciso escapar de um certo modismo no uso do termo e que pode resultar em mera retórica. Para que o protagonismo ocorra de fato, as relações que marcam o espaço escolar precisam estar abertas à mudança. O mais importante é pensar de que maneira esse protagonismo se dá na educação e em como é possível colocar em ação uma relação que tenha como premissa a ativação dos processos de subjetivação e sensibilização dos alunos.

Não raramente, a realidade que o aluno encontra dentro da escola é marcada por relações hierarquizantes, sistemas rígidos de avaliação que chegam a ser, em alguns casos, violentos, diluição e apagamento das diferenças. Isso nos faz acreditar em que, para além do mérito de muitos projetos, apenas a tradução destes como política pública trará alguma garantia de uma transformação real, um primeiro passo efetivo para a construção de uma nova escola.

Isso, naturalmente, não é fácil. Sobretudo se pensarmos que a escola é fruto de um sistema e que este não gerará, espontaneamente, uma escola capaz de minar as estruturas do próprio sistema que a originou (BOURDIEU, 2015). Portanto, se a escola cumpre, em muitos sentidos, uma função de legitimar as desigualdades sociais, não nos resta alternativa a não ser reinventar a escola (CANDAU, 2013). O PNEDH é o resultado de uma luta que vê na política pública um passo fundamental, mas que encontra uma escola pouco afeita à mudança. Sua implementação é complexa e tirar o Plano do papel é um dos grandes desafios da Educação. O cinema e o audiovisual são aliados importantes, mas não deixa de ser sintomático que o próprio Plano, ao discorrer sobre Educação e Mídia, coloque a mídia no lugar de complemento da Educação.

A contemporaneidade é caracterizada pela sociedade do conhecimento e da comunicação, tornando a mídia um instrumento indispensável para o processo educativo. Por meio da mídia são difundidos conteúdos éticos e valores solidários, que contribuem para processos pedagógicos libertadores, complementando a educação formal e não formal. (BRASIL, 2007, p. 53).

Essa ideia flerta com a proposição de um cinema utilizado como suporte a partir da perspectiva dos conteúdos difundidos. Permanece ausente a noção de que a própria experiência estética proporcionada pelo cinema, em particular, e pela arte, em geral, carregue o germe da transformação e dos processos de subjetivação e de sensibilização dos atores envolvidos. Nesse sentido é que defendemos o cinema na escola como arte, na perspectiva de autores como Bergala (2002) e Fresquet (2011; 2013).

Sobre o cinema na escola, alteridade e diferença, Fresquet (2013, p. 62) afere que

O cinema provoca o devir da escola, prevê uma “outra escola”, renovando-se pelo exercício que só a alteridade permite. Eu diria que o cinema inclina a escola para frente, mas também para trás, para os lados, ele a deixa de “pernas para o ar” mais de uma vez; basicamente, ele a desestabiliza. Pelo seu jeito de estrangeiro irreverente, pode construir a diferença e transformar equações pré-estabelecidas entre espaço e tempo.

Nesse mesmo sentido, Bergala (2002) considera a alteridade como central ao pensar cinema como arte na escola, mas o autor chama atenção para a vocação da instituição-escola de afastar a experiência com a alteridade: “Por sua natureza, a instituição tem a tendência de normalizar, amortecer e até mesmo absorver o risco que representa o encontro com toda forma de alteridade [...].” (BERGALA, 2002, p. 20). Com efeito, o cinema na escola como arte faz parte de uma luta, de um engajamento no campo do cinema e educação, de uma visão de mundo que acredita na possibilidade transformadora do cinema.

Ao estabelecer um item separado para Educação e Mídia, o PNEDH, de alguma maneira, promove uma separação entre as outras instâncias da Educação e a mídia que atravessa nossas vidas de maneira tão intensa, seja através dos órgãos midiáticos, seja através da arte. Dentre as ações previstas nesse item, o Plano tem como duas de suas prerrogativas:

2. Sensibilizar proprietários(as) de agências de publicidade para a produção voluntária de peças de propaganda que visem à realização de campanhas de difusão dos valores e princípios relacionados aos direitos humanos;

[...]

21. Sensibilizar diretores(as) de órgãos da mídia para a inclusão dos princípios fundamentais e direitos humanos em seus manuais de redação e orientações editoriais. (BRASIL, 2007, p. 54-56).

Seria ingênuo acreditar na sensibilização dos proprietários de agências de publicidade ou dos órgãos de mídia para quaisquer pontos da pauta dos direitos humanos. Resta claro que essas instâncias de poder são mobilizadas por outros ativos, próprios aos interesses da elite e do mercado, muito distantes dos que norteiam a comunhão dos direitos humanos com o cinema e a educação. Como, então, pensar numa mudança possível dentro de um cenário que nos coloca como exceção num sistema que barra intencionalmente o avanço de uma perspectiva da educação atravessada pelos direitos humanos?

Defendemos que, apesar do PNEDH atribuir uma abordagem separada para a mídia, na qual se inserem o cinema e o audiovisual, é fundamental que a presença dos direitos humanos na Educação Básica seja pautada pela possibilidade de atravessamento por determinado uso de sons e imagens no espaço escolar. A contemporaneidade é marcada pela mídia e é de extrema importância considerarmos a presença dessa mídia na escola. E a presença que desejamos quando consideramos o cinema e o audiovisual é que as práticas pedagógicas assumam o potencial de arte dentro desse contexto, propiciando processos de transformação e criação através de sons e imagens.

Para a efetivação desse quadro, apoiamo-nos em algumas possibilidades. A primeira delas é a certeza da necessidade de valorização de professoras e professores que, vale dizer, não se confundem com a instituição-escola. Com efeito, não raramente encontramos professores cujos trabalhos caminham na contramão de uma escola mantenedora das desigualdades sociais, docentes que reinventam a educação em sua sala de aula, que se deixam atravessar pelos direitos humanos em suas práticas, metodologias, visões de mundo, que promovem a entrada do cinema na escola a partir das experiências estéticas e de linguagem da arte, e não como suporte para determinado conteúdo programático.

Nesse sentido, é preciso acreditar nos movimentos de sensibilização dos educadores, seja nas faculdades de formação de professores, seja em cursos livres. A convicção de que não há mudança possível sem a participação do professor é algo necessário para que qualquer ação seja bem sucedida, não importa se fruto de uma política pública ou de uma ação isolada, colocada em prática numa única escola.

A segunda certeza é a importância do protagonismo de alunas e alunos. Se a escola tradicional busca, literalmente, uniformizar, apagar as diferenças, hierarquizar, é preciso inverter essa lógica, minar o sistema por dentro. Observando o funcionamento da maioria das escolas, podemos ver com facilidade as diversas maneiras através das quais os alunos são silenciados. E isso não ocorre, diga-se de passagem, por uma deliberação ou por uma ação consciente dos atores envolvidos. É a forma como a escola se organiza que pode promover a opressão sobre alunas e alunos, seja no apagamento das diferenças, seja na violência das avaliações que não potencializam os diversos saberes discentes, seja nas relações de poder que se impõem. O protagonismo dos alunos inverte a lógica escolar, desenha uma nova escola, e a (des)organização que o cinema e o audiovisual podem promover é libertadora.

Nessa perspectiva, cinema e audiovisual são aliados poderosos da Educação em direitos humanos. Nas duas formas básicas de existência do cinema na escola na atualidade, encontramos intensas possibilidades que contribuem para uma educação que transforme alunas e alunos em cidadãos conscientes de sua condição de sujeitos de direitos. Essas duas formas consistem, basicamente, na realização e na exibição audiovisual.

No primeiro caso, quando alunas e alunos se organizam em torno de uma câmera, ou mesmo de um celular, para realizar um produto audiovisual, a reinvenção dos espaços da escola se dá de maneira radical e as relações que se estabelecem a partir dessa possibilidade, se bem conduzida pelo professor, pode ser absolutamente libertadora para todos os envolvidos. No segundo caso, a exibição de filmes e vídeos, com roda de debates e abordagem de temas relevantes, é fundamental para que a escola se torne cada vez mais permeável ao mundo atual, marcado por sons e imagens de maneira intensa. Aqui, também, é a condução do professor, acreditando sempre no protagonismo de alunas e alunos, que fará com que essa exibição se dê dentro dos parâmetros de uma Educação em direitos humanos, na medida em que, através de uma abordagem ética e estética das obras audiovisuais, as diferenças e a diversidade poderão ser valorizadas em suas especificidades.

Segundo Migliorin (2015), responsável pelo projeto Inventar com a Diferença - cinema, educação e direitos humanos,4 realizado pela Universidade Federal Fluminense, as possibilidades do cinema na escola envolvem política, ética e estética. O modo como os direitos humanos podem atravessar o cinema na educação é um sinal de que não é necessário, e talvez seja mesmo contraindicado, estabelecer uma pauta obrigatória dos direitos humanos a ser discutida através dos filmes realizados. Esta contraindicação seria uma medida necessária para enfrentar a resistência de grupos e pessoas a certos temas caros à luta pelos direitos humanos. Porém, ao acreditarmos na tríade cinema-educação-direitos humanos, entendemos que tais temas não seriam o ponto de partida, mas aflorariam no processo de realização de sons e imagens e na exibição destes na sala de aula, a depender da forma como os dispositivos são formulados.

Para Migliorin (2015), os dispositivos, que estão na base teórico-metodológica do projeto, são fomentadores do encontro entre cinema, educação e direitos humanos de maneira particular. Através de alguns direcionamentos, esses dispositivos consistem em pequenas regras que funcionam como ponto de partida para que o encontro com o cinema aconteça. A questão é que esses dispositivos estão atravessados pelos direitos humanos em sua própria essência. Não se trata, portanto, de qualquer cinema na escola, mas de um cinema transformador, que reorganize, ou desorganize, as relações e espaços convencionais para fazer surgir novas possibilidades de encontro.

Nossas propostas de exercícios partiam assim de dispositivos em que múltiplos atores se colocariam juntos, experimentando a criação sem palavra de ordem, desfazendo hierarquias, tensionando o real e, na melhor das hipóteses, permitindo que os jovens percebessem e inventassem um mundo - com seus conflitos e possibilidades - com o cinema. (MIGLIORIN, 2015, p. 81).

Aprendemos, com Freire (2019), que a educação não pode tudo. “Se a educação pudesse tudo, não haveria por que falar nos limites dela. [...] E é exatamente não podendo tudo que pode alguma coisa” (FREIRE, 2019, p. 39). O que projetos como Inventar com a Diferença nos ensinam é que existem inúmeras possibilidades a partir do encontro da educação com o cinema e os direitos humanos. A abrangência por todo o território nacional e os números apontados por Migliorin são impressionantes. Ao mesmo tempo, não deixa de ser muito pouco perto de um cenário de perpetuação de preconceitos que atravessam as comunidades, de maneira geral.

Conquistas como a do PNEDH, que por sua própria existência traduz a luta de mulheres e homens engajados na causa da Educação em direitos humanos, bem como projetos como o Inventar com a Diferença, indicam esse alguma coisa de que nos fala Freire. A partir do encontro com o cinema, vislumbramos muitas possibilidades no horizonte da Educação em direitos humanos que vão ao encontro da valorização das diferenças, na reinvenção dos espaços dentro da escola, na redefinição das relações entre alunas/alunos e professoras/professores, e destes com a comunidade escolar como um todo.

Assim, a tríade cinema-educação-direitos humanos se apresenta como oportunidade para que a escola siga se reinventando, e para que possamos sair da sala de aula transformados através das possibilidades colocadas por esse encontro.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Promover a integração entre cinema, educação e direitos humanos não é das tarefas mais simples. O que se coloca em pauta é a mudança de um sistema de ensino pouco afeito às transformações necessárias para que essa integração ocorra de fato. Refletir sobre o cinema e a educação atravessados pelos direitos humanos significa repensar cada um desses campos, transformando-os.

Não há como repensar a educação tradicional hoje sem colocar em discussão o que o PNEDH desenha para a Educação; da mesma forma, não é possível colocar o Plano em ação sem questioná-lo, sem entender que se trata apenas de um ponto de partida capaz de suscitar um novo universo de relações nas escolas, sem considerar que uma Educação que não seja atravessada pelos direitos humanos não é, sequer, Educação no sentido pleno. Não se trata de oferecer uma cartilha sobre direitos humanos, mas de possibilitar experiências estéticas que revelem o Outro e que nos transformem na mesma medida.

Nesse sentido, a partir do encontro com o cinema e os direitos humanos, a escola adquire novas possibilidades de se reinventar. O cinema promove uma desorganização dos espaços rígidos no interior da escola. O protagonismo de alunas e alunos pode se dar, aqui, a partir da relação que estes estabelecem com a câmera, com professoras e professores, com os demais funcionários da escola ao longo das gravações, ou mesmo entre os colegas da turma, durante as negociações e criações no exato momento da realização de um conteúdo audiovisual. Esse mesmo protagonismo estará presente na exibição audiovisual, que pode ser resultado da participação dos discentes, e das pactuações destes com os docentes, desde a escolha dos temas, até a definição dos debates sobre os filmes.

Através da realização e exibição audiovisual, e de uma relação pautada pela horizontalidade entre professoras/professores e alunas/alunos, os docentes passam a dividir com os discentes o protagonismo que o cinema, atravessado pelos direitos humanos, pode propiciar. Seja na criação conjunta de um conteúdo audiovisual, seja na exibição de obras audiovisuais que promovam a valorização da diversidade na escola, o que encontramos na tríade cinema-educação-direitos humanos é a possibilidade de efetivar esse protagonismo de discentes e docentes. Assim, ao entrar na escola, o cinema promove uma reorganização dos espaços e das relações. Acreditamos na força dessa tríade como mobilizadora de novas possibilidades de interação, dentro e fora da sala de aula.

Para pensar o cinema na escola de um modo transformador, é preciso que ele esteja atravessado pelos direitos humanos. É através do protagonismo de alunas/alunos e professoras/professores, e de uma reflexão constante sobre nossas práticas pedagógicas, que se torna possível efetivar o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos como horizonte educacional. Assim, o cinema e o audiovisual têm um papel estratégico na superação do hiato entre o que o PNEDH estabelece e o cotidiano escolar.

REFERÊNCIAS

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2O primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos, no Brasil, foi lançado em 1996, através do Decreto Presidencial 1904. O segundo PNDH foi lançado em 2002, através do Decreto Presidencial 4229. Finalmente, o terceiro PNDH, lançado em 2009, através do Decreto Presidencial 7037.

3Sobre a questão da modernidade, é digno de nota o trabalho do grupo de pesquisa MCD (Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade), que propõe um “giro decolonial” a partir de uma crítica à modernidade ocidental (OLIVEIRA; SALGADO; QUEIROZ, 2019). A decolonialidade pressupõe romper com a hegemonia do pensamento europeu que se perpetua, inclusive, na sala de aula. Nesse sentido, repensar a escola e a sala de aula passa, também, por rever os conteúdos e valorizar os conhecimentos tradicionalmente invisibilizados por séculos de dominação da Europa sobre o continente americano.

4O projeto teve sua primeira edição no ano de 2014. De alcance nacional, ocorreu nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal, graças ao patrocínio que foi possível através da então Secretaria de Direitos Humanos, atingindo centenas de escolas e gerando milhares de vídeos realizados por alunas, alunos e professores sob a perspectiva dos direitos humanos. Para mais informações, ver o site do projeto (INVENTAR COM A DIFERENÇA, 2020).

1 Pós-Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense; alexandreguerreiro@hotmail.com

Recebido: 20 de Julho de 2020; Aceito: 24 de Agosto de 2021

Endereço para correspondência: Rua Humberto de Campos, 382/501, Rio de Janeiro, RJ; alexandreguerreiro@hotmail.com

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