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Educação UNISINOS

On-line version ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.22 no.3 São Leopoldo July-Sep 2018  Epub May 16, 2019

https://doi.org/10.4013/edu.2018.223.03 

Dossiê: Escola Nova Católica” em países europeus e no Brasil

Domingos Evangelista, tradutor de Ferrière: reflexões a propósito de uma tradução conservadora de l’école active1

Domingos Evangelista, translator of Ferrière’s works: Reflections on a conservative translation of l’école active

Joaquim António de Sousa Pintassilgo2 

Alda do Carmo Namora Soares de Andrade2 

2Universidade de Lisboa. Instituto de Educação. Alameda da Universidade, 1649-013, Lisboa, Portugal. japintassilgo@ie.ulisboa.pt aldanamora_81@hotmail.com


Resumo

O presente texto tem por finalidade contribuir para uma reflexão sobre o sentido das apropriações de natureza conservadora e católica da Escola Nova realizadas durante a fase inicial do Estado Novo português e é parte de um projeto mais vasto que visa delimitar os contornos daquilo que António Nóvoa designa por “pedagogia nacionalista”. Tomaremos como exemplo a produção escrita de um educador que assume, desse ponto de vista, um papel paradigmático, Domingos Evangelista, e, em particular, a tradução que fez de uma obra de Adolphe Ferrière, A Escola Activa (1934). Uma vez que usamos a noção de “tradução” em um sentido amplo, não apenas em sua versão literal, mas, em particular, em sua ligação às ideias de apropriação e de interpretação, será aqui fundamental o recurso aos contributos da História Cultural. Usaremos como fontes as obras de Domingos Evangelista cujo conteúdo analisaremos.

Palavras-chave: tradução; escola ativa; pedagogia nacionalista

Abstract

With this text, we intend to contribute to a reflection on the meaning of the conservative and Catholic appropriations of the New School, which took place in the initial phase of the Portuguese Estado Novo. This is part of a larger project that aims at describing what António Nóvoa calls “nationalist pedagogy”. We will take as an example the written production of an educator who, from this point of view, takes on a paradigmatic role: Domingos Evangelista. Concretely, we will look at his translation of Adolphe Ferrière’s L’école active (1934). Since we use the notion of “translation” in a broad sense, not only in its literal meaning but, in particular, in its connection to the ideas of appropriation and interpretation, it will be central here to draw on the contributions of Cultural History. We will use the works of Domingos Evangelista, whose content we will analyze, as sources.

Keywords: translation; active school; nationalist pedagogy

Contextualização do estudo

A transição da República para o Estado Novo, entre os anos 20 e 30 do século XX, não trouxe consigo o desaparecimento completo das ideias, das práticas educativas e das experiências institucionais ligadas à chamada Escola Nova. Essa passagem abriu antes caminho a apropriações de sentido conservador, católico e nacionalista desse movimento, ele próprio plural e multifacetado, e à subalternização ou afastamento dos educadores que tinham protagonizado, nos anos 10 e 20, a fase mais típica e intensa da Escola Nova portuguesa. No lugar de figuras como Adolfo Lima, António Sérgio, João de Barros, Álvaro Viana de Lemos, Irene Lisboa, entre muitas outras, passamos a encontrar figuras, de uma craveira menor, é certo, como Cruz Filipe, Orbelino Ferreira ou o aqui estudado Domingos Evangelista. Os clássicos, como Dewey, Decroly, Montessori, Claparède ou Ferrière, não são renegados, ainda que bastas vezes criticados, são antes alvo de reinterpretações que esvaziam a dimensão política ou social dos seus projetos e suavizam o radicalismo pedagógico que lhes é imputado, aproveitando-se a didática inovadora que deles decorre e que passa a circular, dominantemente, por via da expressão “Escola Ativa”. Domingos Evangelista surge como um dos pioneiros na tentativa de fixar uma nova versão, mais moderada, da tradição inovadora. A visita protagonizada pelo próprio Adolphe Ferrière a Portugal, em Novembro de 1930, tendo visitado escolas e se encontrado com educadores e com o próprio ministro da instrução da ditadura militar, acabou por legitimar, na prática, essa passagem de testemunho do grupo “progressista” para o grupo “conservador” da Escola Nova (Nóvoa, 1987).

Depois de um período de suspensão gradual das atividades das Escolas do Magistério Primário (as antigas Escolas Normais Primárias), decretada pelo ministro Carneiro Pacheco em 1936 e aproveitado pelo regime para transformar, de forma acentuada, o seu projeto educativo, bem como o pessoal docente nelas incorporado, as escolas reabriram na sequência da reforma de 1942. Em 1943 foram publicados os programas correspondentes ao novo plano de estudos. É para servir, no contexto então aberto, de recurso para a formação de novos professores que Domingos Evangelista, professor e gestor escolar, cujo percurso vital decorre ao longo da 1ª metade do século XX, publica, dois anos após, os seus Elementos de Pedagogia (1945a), uma das obras aqui analisadas. Desse mesmo ano é uma outra obra da sua autoria igualmente de apoio à formação de professores, o Guia de Legislação Escolar (1945b). Em coautoria com Romeu Pimenta, Domingos Evangelista publicou Livros de Leitura para as diversas classes do então Ensino Primário Elementar (1937-1939). Para além disso, tem uma abundante produção na imprensa pedagógica, designadamente na revista oficial do regime dedicada ao ensino primário - a Escola Portuguesa (1934-1974) e, para o que aqui mais nos importa, traduziu para português, em 1934, de forma muito livre mas autorizada pelo autor, a obra L’École Active do referido Ferrière (Pintassilgo, 2016b).

Domingos Evangelista e a “pedagogia nacionalista”: um discurso entre a tradição e a inovação

Em contraponto com um certo internacionalismo que caracterizava as posições de muitos dos protagonistas da fase típica da Educação Nova, a “Escola Ativa” conservadora vai mostrar-se profundamente nacionalista, em consonância com o arreigado nacionalismo que incorporava o próprio ideário do salazarismo e está presente em muitos dos discursos programáticos do chefe da ditadura em que os valores do regime são destacados. A “Pátria” é, de resto, um dos elementos da famosa trilogia da “educação nacional” - “Deus, Pátria, Família” - difundida em cartazes da propaganda escolar do regime datados dos anos 30. A escola surge, nessa ótica, como um lugar de eleição para a promoção dos valores do salazarismo, nomeadamente um intenso culto da Pátria, que representa uma versão conservadora e católica do patriotismo laico fomentado pelo republicanismo. Como no momento anterior, a Pátria surge como uma entidade idealizada, mitificada e sacralizada, identificada, em boa medida, com a sua história mas entendida também como projeto. A diferença é, agora, a sua impregnação por elementos religiosos, no sentido literal, de cunho católico, para além de uma interpretação conservadora do seu percurso e das suas principais fases. Esta ideologia está claramente presente nos escritos de Domingos Evangelista. Vejamos alguns exemplos retirados de Elementos de Pedagogia e de um artigo da Escola Portuguesa.

O nacionalismo deve, pois, ser cultivado, fazendo nascer no coração dos cidadãos de amanhã o sentimento patriótico, o culto sincero e fervoroso pelas belezas morais e espirituais da Nação” (Evangelista, 1945a, p. 17).

A escola, servindo o nacionalismo, cumpre o seu dever, porque serve a Pátria nas suas mais ricas esperanças, na sua fé mais ansiosa [...]. Caminhemos para esta escola! Realizemo-la todos. E assim teremos a íntima consolação de não só cumprirmos um dever sagrado, mas ainda a de contribuirmos para legar aos nossos filhos um Portugal grande, unido, forte e digno (Evangelista, 1937, p. 139).

Daí decorre uma crítica intensa ao internacionalismo que caracterizaria maioritariamente a Educação Nova das décadas anteriores, que teria marcado presença no Portugal republicano e que surge aqui associado a tendências, consideradas igualmente nefastas, difundidas no mesmo período, como a coeducação, a escola única e o laicismo.

A escola única, a coeducação, a escola em comunidade, o “manual training” educativo são os agentes mais importantes do internacionalismo educativo pedagógico […]. O internacionalismo é dissolvente das melhores virtudes sociais e abjura por completo a moral religiosa e cívica para criar uma moral social (Evangelista, 1945a, p. 168-169).

Para além de veículo de propagação ideológica, a escola é entendida, por Domingos Evangelista, como funcional às necessidades políticas do regime salazarista. É-lhe cometida uma missão inquestionável e necessariamente política, a de “servir o Estado” nas palavras do próprio autor.

A escola tem de servir o Estado. A escola internacionalista, sem a expressão profunda do instinto rácico e histórico das nacionalidades, sem as características imperativas da étnica e das coordenadas geográficas, é uma excelente dissociadora de energias (Evangelista, 1937, p. 139).

Ev. Backheuser [em Técnica da pedagogia moderna] ao estudar a Escola Nova tirou-lhe todo o sentido internacionalizador que alguns pedagogistas e sociólogos como PINKEVICH, DEWEY, DURKHEIM, L. FILHO, etc., lhe haviam dado. A Escola Nova, sendo a escola da vida, há de pregar o amor à pátria (Evangelista, 1945a, p. 176).

Percebe-se, nesta citação, que a apropriação conservadora que Domingos Evangelista, entre outros autores, efetuam em relação às teses da educação Nova faz parte de um programa mais vasto, em termos internacionais, de reinterpretação católica, conservadora e nacionalista dessa corrente pedagógica e que vai marcar, em boa medida, os anos 30 e 40 do século XX, no caso português mas, também, noutros casos. Os autores que no Brasil, em Espanha ou em Itália, por exemplo, são os protagonistas dessa viragem são conhecidos, lidos e utilizados pelos educadores portugueses deste grupo.

“Deus” surgia como o primeiro elemento da “trilogia” há pouco referida e a inspiração católica sempre foi uma das traves-mestras do regime, independentemente das relações marcadas por alguma ambivalência (mais numas fases do que noutras) entre o Estado salazarista e a Igreja Católica (em particular, alguns sectores dentro desta). Uma das imagens de marca do salazarismo, em contraponto com o fascismo e o nazismo, é a forte presença dos valores católicos, sendo esse mesmo o campo de origem do próprio ditador. O catolicismo é visto como um elemento aglutinador imprescindível, devendo o currículo, o espaço e o ritualismo escolares conter em permanência a sua presença. Daí a obrigatoriedade da educação moral e religiosa católica, a afixação dos crucifixos em lugar central nas salas de aula, o recurso às orações católicas em momentos marcantes do quotidiano escolar, entre outras práticas. Domingos Evangelista não podia estar mais de acordo com essa opção, aproveitando para combater o ideal de “escola laica” vigente no período da 1ª República:

Concluímos assim que a ética religiosa (a ética cristã, no caso português) comanda os fins educativos, possui autoridade e direitos bastantes para indicar a trajetória moral e mental do indivíduo (Evangelista, 1945a, p. 27-28).

A educação religiosa auxilia, melhora, aperfeiçoa a vida social, forma bons filhos, bons pais e bons cidadãos (Evangelista, 1945a, p. 291).

A moral laica não pode ter sentido... E a Constituição Política do Estado Português determina no § 3º do seu art. 43º “que a formação do carácter e de todas as virtudes morais e cívicas seja orientada pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais no país” (Católica) (Evangelista, 1945a, p. 289-290).

Escola laica? Absurdo!... É que sem um ideal profundamente humano e profundamente sentido, nada pode caminhar na vida do pensamento (Evangelista, 1937, p. 139).

Uma certa interpretação da vertente educativa da vida escolar é claramente sobrevalorizada na leitura que dela faz o salazarismo. Daí o apelo constante à assunção de “ideais” pelos educadores e à promoção desses mesmos “ideais” através da escola como forma de combater a sua pretensa neutralização axiológica que, nesta leitura, marcara a fase anterior e desprotegera a juventude. Na verdade, o que se pretende criticar é a irreligiosidade e o acatolicismo atribuídos ao republicanismo.

Saibamos, pois, formar o nosso ideal de educadores! Não pode ele ser o mesmo de há vinte anos. Novos horizontes, novos perigos, novas esperanças, nova fé, nova crença! Um novo Portugal! Fora com o ideal marasmado, sem vibração cívica, sem fé nacionalista, sem espírito cristão [...]. Educadores, a postos! Pensai bem que a juventude portuguesa é o mais belo penhor das virtudes da Raça... Cumpre-nos insculpir-lhe no âmago do seu sentimento e no recesso da sua afetividade a certeza de que Portugal percorre uma eterna vereda de glória e foi, é e será uma grande e próspera Nação! (Evangelista, 1937, p. 24).

Conduzir o indivíduo ao reto exercício da vontade, ao conveniente uso da consciência moral e a uma justa orientação dos seus sentimentos - eis o fim da educação moral. A educação física e a educação intelectual não podem ter fins contrários ao da educação moral. É esta que dá ao indivíduo o seu real valor pessoal e social (Evangelista, 1945a, p. 277).

Se a criança é sugestionável, se a imitação é fonte de numerosos procedimentos e atitudes infantis, claro é que o exemplo, o bom exemplo, deve ser o melhor processo de educação moral [...]. Fiquemos ainda em que o exemplo é tanto mais eficaz quanto mais alta for a categoria moral de quem o dá (Evangelista, 1945a, p. 211).

O educador, pelo seu exemplo, exerce nas primeiras idades dos seus educandos uma perdurável influência (Evangelista, 1945a, p. 278).

A anterior sequência de citações contém diversos elementos particularmente interessantes. Em primeiro lugar, a constatação de que o salazarismo incorpora, embora com um outro sentido, um ideal de regeneração social que se expressara em outros momentos de mudança na vida política. A “crença” num “novo Portugal”, salvo do declínio e da bancarrota pelo regime da força e da autoridade, está claramente presente nos discursos então formulados que imaginam Portugal, do passado ao futuro, como “uma grande e próspera Nação”. O apelo - “Educadores a postos” - é no sentido da sua mobilização como uma espécie de soldados do regime tendo em vista a transformação das “almas” dos jovens portugueses. O discurso da “raça” e das suas propaladas virtudes - que, na verdade, não é uma originalidade deste momento, tendo raízes bem anteriores - é empolado como parte essencial das narrativas da Pátria e do Império. Uma imagem idealizada da “juventude portuguesa” é construída, como metáfora da virilidade e em paralelo com o esforço de enquadramento e a militarização dessa mesma juventude. Essa é uma marca do fascismo e do nazismo que, embora mitigada, penetra o salazarismo. A educação moral (de pendor católico) - substituta da educação cívica laica e republicana - surge, nestes discursos, como um elemento central do projeto de educação integral tal como é reinterpretado pela pedagogia conservadora. A educação física e a educação intelectual não podem contrariar essa inspiração e sobredeterminação. Temos, finalmente, uma das grandes continuidades da pedagogia, com uso em contextos os mais diversificados, o realce dado à figura do educador como corporizando “o bom exemplo” em termos de ideais educativos. Em rutura com algumas das grandes referências da pedagogia republicana, a pedagogia do período salazarista não deixa de recorrer a alguns dos grandes tópicos da tradição pedagógica.

A apropriação conservadora da “escola ativa” mantém uma parte dos pressupostos teóricos e das propostas didáticas características da Educação Nova. Não é por isso de estranhar que uma certa retórica dicotómica do “novo” e do “velho” continuem a marcar presença, bem como algumas das grandes “bandeiras” da tradição renovadora e as correspondentes críticas aos malefícios da “escola tradicional”.

Este ensino assim, balofo e pedante [...] conduz o indivíduo a um híper-intelectualismo fora do sentido das realidades da vida [...]. A escola é preparar para a vida e pela vida. Bela fórmula. E justa (Evangelista, 1937, p. 172).

A escola do século XX é a escola nova de carácter experimental, de organização predominantemente científica, com a sua trilogia pedagógica bem definida (atividade, espontaneidade, interesse) (Evangelista, 1945a, p. 24).

Encontramos aqui, como vimos, a crítica ao intelectualismo que caracterizaria a “escola tradicional”, o seu afastamento em relação à vida e, também, a defesa do carácter científico e do experimentalismo pedagógico típicos da “escola nova”, para além de temas-chave do discurso renovador como são a atividade, a espontaneidade e o interesse. Muitas das propostas didáticas da Escola Nova são, igualmente, encaradas como muito positivas:

O plano de Dalton [H. Parkhurst] com o seu regime de tarefas, o sistema de Winnetka [C. Washburne] com o seu regime de promoções, o sistema de DOTTRENS com o seu regime de fichas e ainda o regime de equipas sugerido pelo inspetor COUSINET permitem mais ou menos que cada indivíduo se desenvolva mentalmente segundo o seu ritmo próprio sem perder de vista a vida coletiva do grupo [...]. DEWEY, de que já falámos, concebeu o Project-Method. O projeto não é mais do que um vasto centro de interesse, um problema que a criança se propõe a si mesma resolver ajudada de todos os meios que estejam ao seu alcance [...]. As excursões, as visitas de intercâmbio, os jornais (imprensa) escolares, as cooperativas, etc., são ainda excelentes meios de socialização escolar, permitindo o intenso trabalho em comum e a cooperação mais profícua (Evangelista, 1945a, p. 157-158, 160).

Se isto é verdade, também o é que Domingos Evangelista aproveita, ao mesmo tempo, para se distanciar de um conjunto de outras teses ou figuras associadas à Educação Nova.

E a escola única, a educação de anormais, a coeducação, a eugenia, a puericultura, as escolas ao ar livre, a psicanálise, o uso e o abuso dos métodos ativos deram um impulso notável à ciência da educação sem deixar de a levar, por vezes, para rumos confusos e contraditórios [...]. É utópico querer que seja a criança quem faça o próprio programa de ensino ao sabor das suas tendências biopsicológicas e que sejam sempre superiores às lógicas dos programas as lógicas dos interesses infantis. É preciso notar que no ensino existe uma intenção de adaptação social sem prejuízo do respeito pela individualidade da criança (Evangelista, 1945a, p. 23 e 259-260).

Neste caso, temos o autor a demarcar-se daquilo que ele considera serem utopias decorrentes do “uso e [d]o abuso dos métodos ativos”, onde se incluem a possibilidade de serem as crianças a construírem o seu próprio currículo, a sobreposição dos seus “interesses” e “tendências” às necessidades de “adaptação social” que ele considera, no entanto, deverem-se ajustar à “individualidade da criança”. Outros dos exemplos dados, em relação a opções da Educação Nova, também não serão, provavelmente, bem vistos pelo autor como é o caso da “escola única” ou das “escolas ao ar livre”. No caso da “coeducação”, também aí referida, a posição de Domingos Evangelista é clara:

Temos de assentar, definitivamente, que a coeducação não tem razão de existir e falseia aqueles teoremas de ordem ética e biológica já abundantemente demonstrados pela experiência da vida [...]. Se masculinizar a mulher e feminizar o homem, formando-lhes um espírito neutro e incaracterístico, é fazer educação moderna de acordo com as atuais necessidades da vida, declaro desde já que não compreendo tal educação moderna [...]. Moderna ou antiga ou futura, a educação só pode visar a isto - formar mulheres-de-casa -, verdadeiras mulheres na graça e no encanto, e formar cidadãos sadios de corpo e alma, prestando à mulher o jus do seu respeito (Evangelista, 1937, p. 287).

Neste caso, a posição do autor está em absoluta consonância com aquela que é a visão do salazarismo sobre a educação da mulher, entendida como diferenciada, e seu papel na sociedade, fundamentalmente como mãe, esposa e dona de casa. Noutros casos, a busca de uma situação de “meio-termo”, característica da “escola ativa” conservadora em relação a vários temas de pedagogia e didática, está claramente presente, como quando o autor fala dos castigos corporais:

Há, sobre o castigo corporal, opiniões variadíssimas, pronunciando-se alguns pedagogos pela sua absoluta desnecessidade e outros, ao contrário, pela sua indiscutível necessidade [...]. Como em tudo, porém, é no meio-termo que se encontra o caminho mais prudente e sensato e este tem que ser respeitador da dignidade infantil e dos direitos do educador [...]. E a lei portuguesa permitirá o castigo corporal? Leiamos o decreto nº 6.137, de 29-9-919 - Os castigos serão empregados paternalmente (Evangelista, 1945a, p. 218, 224).

Ou seja, recorrendo à ideia do “meio-termo”, e a uma citação sem comentários do respetivo preceito legal, Domingos Evangelista manifesta-se implicitamente a favor das conhecidas práticas punitivas do Estado Novo, que a memória dos atores abundantemente evoca, mas que a nova pedagogia criticava de forma radical. É igualmente numa posição de “meio-termo” que o autor se procura colocar quando, ao criticar, na perspetiva de “cristão” e de “português”, tanto a “pedagogia individualista” como a “pedagogia socialista”, reflete sobre as relações entre o indivíduo e a sociedade no terreno educativo:

O ponto de vista cristão e português coloca-se entre estes dois extremos, pois se respeita no homem as suas incontestáveis tendências para caminhar para a perfeição individual, também se lhe exige a sua cooperação social, dando à vida coletiva o seu esforço e interesse (Evangelista, 1945a, p. 167-168).

Em relação à genealogia da “escola ativa”, se é verdade que se convocam algumas das suas referências históricas mais ilustres, como Pestalozzi, Froebel, Herbart ou Spencer - que “ilustram a pedagogia do século XIX pela renovação dos métodos e pelo estabelecimento de técnicas e filosofias progressivas” (Evangelista, 1945a, p. 21) - bem como algumas das suas figuras coevas mais “sagradas”, com destaque para Montessori, William James, Tolstoi, Decroly, Dewey, Claparède ou Ferrière, também é verdade que se critica violentamente o seu mítico “pai fundador” - Rousseau - apesar de se lembrar também o seu pioneirismo:

Rousseau representa bem, pelo vigor e vitalidade da sua obra, a filosofia educativa da Revolução, com os seus graves erros de doutrina e os seus frequentes e utópicos preceitos de técnica. [...]. O “Emílio” é o baluarte de que Rousseau se serviu para sua luta demolidora. Nele se encontram expostas e desenvolvidas as mais famosas utopias naturalistas da educação [...]. Não esqueçamos, contudo, que foi ROUSSEAU quem chamou a atenção dos pedagogos para a psicologia da criança e, por esse facto, e ainda por outros, merece ser considerado como um dos fundadores da nova pedagogia (Evangelista, 1945a, p. 19-20).

De L’École Active de Adolphe Ferrière à tradução de Domingos Evangelista

A obra L’école Active de Adolphe Ferrière foi objeto de seis edições publicadas entre os anos de 1922 e 1953. Ao longo dessas reedições, a obra sofreu várias modificações, quer ao nível da forma, com a passagem, por exemplo, de dois volumes para um único; quer ao nível do conteúdo, pois de umas edições para outras foi, muitas vezes, retirado, acrescentado e reintegrado texto (Ferrière, 2004; Hameline, 1993).

Façamos, então, uma breve apresentação das diferentes edições. A primeira e a segunda edições, publicadas ambas em 1922, são compostas por dois volumes com cinco capítulos cada, a saber: Volume I - As Origens, que inclui a “Introdução”; “Capítulo I - Alguns Precursores da Escola Ativa”; “Capítulo II - A Escola Ativa antes da Guerra”; “Capítulo III - A Escola Ativa nos países de língua alemã”; “Capítulo IV - A Escola Ativa” segundo G. Kerschensteiner. Segue-se o Volume II - Princípios e Aplicações, que é composto por: “Capítulo V - Fundamentos Psicológicos da Escola Ativa”; “Capítulo VI - A atividade manual na Escola Ativa”; “Capítulo VII - Atividade intelectual na Escola Ativa”; “Último capítulo - O futuro da Escola Ativa”; “Índice de nomes mencionados”.

A terceira (1926) e a quarta edições (1930) são bastante mais reduzidas e foram publicadas apenas num volume composto, essencialmente, pelos capítulos do segundo volume das edições precedentes: “Capítulo I - Os precursores da Escola Ativa”; “Capítulo II - A atividade manual na Escola Ativa”; “Capítulo III - A atividade social na Escola Ativa”; “Capítulo IV - A atividade intelectual na Escola Ativa”; “Capítulo V - O futuro da Escola Ativa”.

Finalmente, as duas últimas edições, de 1946 e 1953, recuperam alguns dos capítulos das anteriores edições e integram outros retirados da obra L’autonomie des écoliers do mesmo autor: “Capítulo I - O que é a Escola Ativa?”; “Capítulo II - Fundamentos Psicológicos da Escola Ativa”; “Capítulo III - A atividade manual na Escola Ativa”; “Capítulo IV - A atividade intelectual na Escola Ativa”; “Capítulo V - A atividade social na Escola Ativa”; “Capítulo VI - A autonomia dos estudantes”; “Capítulo VII - Inconvenientes e vantagens da autonomia”; “Capítulo VIII - As Condições de êxito”.

A quinta edição foi traduzida para português no ano de 1965 por Jorge Babo com um prefácio de Émile Planchard (Ferrière, 1965).

A tradução aqui em análise data de 1934 e é feita a partir da 4ª edição por Domingos Evangelista (Ferrière, 1930; Ferrière, 1934). Foi editada pela Editora - Educação Nacional de António Figueirinhas, sedeada na cidade do Porto. Estruturalmente esta tradução tem 207 páginas e, para além dos capítulos já mencionados que a compõem, contém cinco textos introdutórios, que são: “Que é a Escola Ativa?”; “Prefácio à tradução Portuguesa” (da autoria do próprio Adolphe Ferrière); “Prevenção do Tradutor”; “Prefácio” da 3ª e da 4ª edições e o texto intitulado “A Escola Ativa”.

Trata-se, de acordo com António Nóvoa (2003), de uma tradução livre quer no que se refere à forma como no que se refere ao conteúdo. Domingos Evangelista, por seu lado, na curiosa peça a que dá o nome de “Prevenção do tradutor”, alerta para o facto de não estarmos perante “uma simples tradução”. Para melhor adaptar o trabalho à realidade portuguesa da época, o tradutor confessa ter eliminado algumas passagens e introduzido outras, feito comentários e atribuído subtemas ao conteúdo.

Iludem-se os que julgarem que este livro é uma simples tradução da formosa obra de Adolphe Ferrière, “L’École Active”. [...] Este livro [...] omite, aqui e além, certas páginas que pouco podem interessar a nossa ideologia pedagógica [...]. Nós continuaremos a fazer a condensação do volume, mas, em compensação, somos obrigados a, várias vezes, desenvolver em notas certas ideias bosquejadas pelo Autor no texto (Evangelista, 1934, p. XIII-XIV).

Reconhecendo ter sido o próprio Ferrière a simplificar, a partir da 3ª edição, a obra inicial, o educador português argumenta com as circunstâncias do contexto português: “procurámos ver os problemas da Escola Ativa através da dura realidade do nosso prisma rácico, das nossas organizações escolares, e até da nossa emotividade doentia de meridionais”. A razão apontada para esta estratégia criativa é a ausência, em Portugal, de “obras de vulgarização pedagógica que não pequem pela inadaptação dos seus princípios à escola portuguesa”. Assim fica explicada a ousadia de “comentar a obra do Mestre, truncá-la do que julgamos ser especulação dispensável” (Evangelista, 1934, p. XIV). Domingos Evangelista procura moderar as fórmulas mais radicais que continuam a estar presentes na obra justificando essa posição com a necessidade de um certo gradualismo justificado pelo atraso visível no ambiente pedagógico português:

As escolas novas estabeleceram, triunfalmente, a autonomia dos escolares […]. Mas na escola primária portuguesa, a ambiência, a organização, os próprios fins da escola opõem-se à liberdade do aluno, à organização dessa autonomia de si mesmo […] (Evangelista, 1945a, p. 90-91).

Enfim, a transição pode fazer-se desde já, lentamente. Pode-se insuflar um pouco de espírito novo e racional na triste escola impositiva que todos conhecemos. O que existe, já o dissemos, não serve. Mas também não queiramos fazer uma reforma radical passando da monarquia absoluta para a completa “autonomia dos educandos”. Temos de calcar o terreno lentamente, cautelosamente (Evangelista, 1945a, p. 193-194).

O prefácio é escrito pelo próprio autor traduzido, Adolphe Ferrière, deixando crer, desta forma, que a tradução gozava do seu total aval; no entanto dada a dura crítica que ele faz ao Estado, que chega a apelidar de “novo”, podemos perguntar-nos se era efetivamente assim, embora seja provável que ele esteja a pensar especificamente nos casos do fascismo e do nazismo:

É que o Estado, em muitos países, vive de compromissos; querendo satisfazer todos não satisfaz ninguém. Como se poderia esperar dele uma ação corajosa como a que consistisse em mudar as leis, em ligar-se, lealmente, à Escola Ativa [...]?

Alguns Estados jovens o compreenderam. Achavam-se bem. Mas, depois... a roda do tempo girara e o Estado “novo”, de estreita disciplina, nada tendo aprendido nem esquecido - nada aprendido da ciência e nada esquecido da tradição - surgiu bruscamente e, com uma vassoirada vingadora, destruiu o que ele chamava as teias de aranha da Escola Nova (Evangelista, 1934, p. X).

No texto preambular intitulado “Que é a escola Ativa?”, o pedagogo suíço define-a, antes de tudo e duma maneira geral, como “a aplicação das leis da psicologia à educação das crianças” (Ferrière, 1934, p. V). No já citado Prefácio proclama: “Abandonemos os termos ‘novo’ e ‘antigo’, apelando em seguida à busca do “meio justo” entre “inovação e tradição” (Ferrière, 1934, p. XII). Esta busca de uma síntese entre “tradição” e “inovação” dá conta, de alguma maneira, do percurso do pensamento do autor no sentido de uma maior moderação, o que foi, de resto, visível nas posições por ele assumidas aquando da já referida visita a Portugal. Isso pode ser igualmente atestado pela aceitação do convite de Domingos Evangelista para prefaciar a tradução. Ainda mais explícita é a crítica dirigida por Ferrière a “certos inovadores” considerados “extremistas”, ao mesmo tempo que sai em defesa de uma pedagogia que tenha como referência uma educação familiar sensata e amorosa. Parece inquestionável que é o próprio Ferrière que cauciona uma certa “domesticação” da Escola Nova:

Porque esquecem isto certos inovadores? Porque se lançam eles desacauteladamente na esteira de reformas temerárias? [...]. Todo o partido tem extremistas; a Escola Ativa os tem também [...]. Estes bons meios são os dum pai e os duma mãe sensatos e amantes dos seus filhos; são também os da Escola Ativa (Ferrière, 1934, p. XI-XII).

Outra coisa que podemos observar é que o texto original não está traduzido na íntegra. Domingos Evangelista escolheu, para a sua tradução, os excertos que melhor se adaptavam à compreensão nacional. É, no entanto, uma tradução ambígua porque se, por um lado, o tradutor tenta colocar a obra no universo, na mentalidade e na cultura escolar do Estado Novo português, por outro lado faz uma tradução bastante fiel ao original, muito literária, não aproveitando a transposição do texto de um idioma para outro para criar ambiguidades de interpretação.

As notas de rodapé, explicativas ou bibliográficas, que se encontravam no original são ou excluídas ou transpostas para o corpo do texto. Quando se trata de uma nota do autor, esta nota, na tradução, adquire a forma de uma citação e é identificada pelo acrónimo N.A. (Nota do Autor). O mesmo acontece quando há uma nova informação, um novo comentário, que não está no original; nesses casos o tradutor identifica esta informação com N.T. (Nota do Tradutor). No entanto, nem sempre é assim; a passagem que se segue não consta do original e na tradução não está identificada como uma nova informação, ou seja, não foi assinalada como sendo N.T. (Nota do Tradutor) e tendo em consideração o contexto político da época é legítimo questionarmo-nos se se tratou apenas de uma falha ou se foi uma opção intencional.

As meninas, além de participarem nos trabalhos de costura, lavandaria, engomagem, rouparia, são iniciadas nos deveres das mães de família dando todos os dias os seus cuidados constantes e afetuosos às mais pequeninas.

O funcionamento regular dos numerosos serviços do estabelecimento, a limpeza constante em que devem estar os diversos locais: dormitórios, lavabos, refeitórios, salas, oficinas, etc., a distribuição semanal das peças de vestuário, as mudanças periódicas e a reparação de roupas, pôr e levantar a mesa nos refeitórios, a repartição geral dos alimentos, a aplicação dos remédios, o tratamento de feridas e frieiras, a participação nos trabalhos culinários, a confeção de doces, etc., constituíam um conjunto de exercícios cotidianos ou periódicos que eram a melhor preparação das crianças para a vida social (Evangelista, 1934, p. 65).

Todo o conteúdo do livro foi organizado em temas atribuídos pelo tradutor com o objetivo de categorizar a informação, chamando a atenção para determinados conceitos. Finalmente, as citações que tinham por função aprofundar alguns temas foram eliminadas, o mesmo acontecendo a todas as informações consideradas suplementares. No entanto, nota-se uma preocupação em conservar o essencial do conteúdo não invalidando a sua compreensão.

Importa agora analisar com mais detalhe o conjunto das Notas do Tradutor e tentar compreender em que medida elas acrescentam ou alteram o texto. Domingos Evangelista inseriu, no conjunto do volume, 41 Notas do Tradutor, sendo estas de diferentes tipos. Passamos a indicá-los. Em 19 casos o tradutor resume textos não incluídos no corpo da obra. Noutros 19 casos encontramos referências à situação educativa portuguesa ou reflexões acerca da possibilidade de concretizar a Educação Nova em Portugal. Especificamente em 3 casos (excluindo os que se sobrepõem a outras situações), o tradutor introduz comentários, esclarecimentos ou complementos ao texto do autor. Somos aqui confrontados com uma espécie de “hipertexto” ou de uma obra dentro de outra obra. Como já foi dito, Domingos Evangelista manifesta concordância, pelo menos aparente ou tácita, em relação à maior parte das ideias apresentadas por Ferrière não sendo visíveis momentos em que essas ideias sejam distorcidas. O que o tradutor defende, no essencial, é a necessidade de adaptar esses princípios à realidade portuguesa e de promover uma “transição” lenta em direção à Escola Ativa. Vejamos alguns exemplos:

O paidocentrismo pedagógico tem de ser uma realidade, mas essa realidade só pode existir até onde o permitir a nossa tradição [...]. Na Escola Primária Portuguesa temos de nos contentar com menos do que isto [o regime de autonomia dos escolares]. Como já dissemos, Cantinas, Caixas e Cooperativas Escolares são as organizações coletivas a que podem aspirar as nossas escolas no que diz respeito a Educação Social (Evangelista, 1934, p. 84).

A Educação Ativa [...] admite graus de transição. Que a Escola Ativa não pode ser aplicada desde já na sua pureza, concebe-se; a nossa atitude tradicionalista e as nossas tendências formalistas em educação não permitem que desde já façamos derivar todo o método pedagógico da atividade funcional (Evangelista, 1934, p. 61-62).

Repetimo-lo: a Escola Ativa do Futuro é a que o formoso talento e a potente intuição psicológica de Ferrière esboçaram; mas a Escola Ativa Atual, a Escola Ativa de Transição terá de diferir daquela, sob pena de completa inexequibilidade na escola oficial [...] (Evangelista, 1934, p. 120).

Enfim, a transição pode fazer-se, desde já, lentamente. Pode-se insuflar um pouco de espírito novo e racional na triste escola impositiva que todos conhecemos. O que existe, já o dissemos, não serve. Mas também não queiramos fazer uma reforma radical passando da monarquia escolar absoluta para a completa “autonomia dos educandos”. Temos de calcar o terreno lentamente, cautelosamente [...] (Evangelista, 1934, p. 193-194).

Aceitando em tese as inovações propostas pela Escola Nova, Domingos Evangelista reconhece, como vemos, a impossibilidade de as aplicar na sua “pureza” e a necessidade de as conjugar com a “tradição”, tal como esta se apresenta nas escolas portuguesas. Manifesta-se claramente, como o próprio Ferrière já o fizera, contra uma “reforma radical” em defesa de uma “transição” lenta, cautelosa e gradual para a “Escola Ativa do Futuro”. A realidade possível é a de uma “Escola Ativa de Transição”. Um bom exemplo é o que nos é dado pelo self-government ou regime de autonomia dos educandos. Não o contestando, o tradutor constata que, no nosso caso, ele só poderia ser concretizado de forma mitigada, por via de fórmulas moderadas, como as representadas pelas “Cantinas, Caixas e Cooperativas Escolares”.

Considerações finais

A operação a que Domingos Evangelista se entrega, remete-nos para a complexidade de que se revestem as práticas de tradução e a ambivalência, neste quadro, da noção de autoria. Como nota, com pertinência, Peter Burke (2009) as práticas de tradução textual não representam apenas a transposição literal de uma língua para outra mas antes uma interpretação do texto original e a criação de uma nova obra. Alguns dos conceitos e ideias que nos são propostos pelo autor vão exatamente nesse sentido, como são os casos de “tradução cultural”, do entendimento da tradução como “negociação”, atravessada por “táticas” e “estratégias”, do reconhecimento da “liberdade” e da “criatividade” do tradutor e do recurso a “contrações”, a “extensões” e a “tradaptações”. São exatamente estes procedimentos que encontramos na tradução de Domingos Evangelista e os referidos conceitos permitem-nos compreender com outra acuidade o exercício que conduz à transformação da obra L’École Active numa outra obra A Escola Ativa ou, dito de outro modo, a constatação da existência de dois discursos paralelos no interior da obra traduzida. Tendo em vista essa compreensão, fazem todo o sentido as perguntas sugeridas por Peter Burke: Quem traduz? O quê? Para quem? Com que intenções? De que forma? Com que consequências? O excerto a seguir apresentado representa uma boa síntese da perspetiva que nos é proposta pelo autor:

Independentemente de os tradutores seguirem a estratégia da domesticação ou da estrangeirização, e de entenderem bem ou mal o texto que estão vertendo para outra língua, a atividade da tradução necessariamente envolve tanto uma descontextualização como uma recontextualização. Algo é sempre “perdido na tradução”. Todavia, o exame detido do que se perdeu é uma das maneiras mais efetivas de identificar diferenças interculturais. Por essa razão, o estudo da tradução é ou deveria ser central para a prática da história cultural (Burke, 2009, p. 46).

As reflexões desenvolvidas por Paul Ricoeur (2004) numa outra obra dedicada à tradução vão num sentido próximo quando chama a atenção para o papel de “mediador” do tradutor, situado a meio caminho entre o autor e o leitor, e enfatiza o facto da tradução, em sentido amplo, ser sempre uma “interpretação”. Deixa de fazer assim qualquer sentido o dilema, muitas vezes associado ao trabalho do tradutor e que o coloca numa posição desconfortável, entre a “fidelidade” e a “traição” ou, numa outra formulação, na necessidade de servir “dois mestres”: o “estrangeiro” e o “leitor”. Mais que um dilema trata-se de um paradoxo, adianta o autor, mas também de uma operação de risco. Como afirma Ricoeur: “Amener le lecteur à l’auteur, amener l’auteur au lecteur, au risque de servir et de trahir deux maîtres, c’est pratiquer ce que j’aime appeler l’hospitalité langagière” (Ricoeur, 2004, p. 42-43). O nosso tradutor, Domingos Evangelista, não se deixa perder nesses dilemas. Assume, sem complexos, que se trata de uma “interpretação” e que o produto final é diferente do original. Ele sente-se confortável no seu papel de “mediador”. Não busca a “tradução perfeita”, mas a mais adaptável às circunstâncias. Não abdicando da fidelidade formal da tradução, ele procura atribuir novos sentidos às palavras de Ferrière à luz da realidade portuguesa nas suas diversas dimensões. Em todo o caso, importa sublinhar uma outra questão. É o próprio processo compósito de produção do original, junto com o trabalho de “bricolage” com que Ferrière o molda nas suas diversas edições e a relativa plasticidade do seu conteúdo, que contêm em si a possibilidade de uma interpretação moderada e conservadora de L’École Active.

A tradução feita por Domingos Evangelista acaba por ser uma expressão clara das interpretações e leituras que os pedagogos conservadores, assumindo-se como intelectuais e mediadores, fazem da obra de Ferrière e, em geral, do ideário da Escola Nova, ao procederem a uma apropriação original do seu conteúdo e mesclarem representações de sentidos diferentes dando origem a um produto híbrido: a “escola ativa” portuguesa, conservadora, católica e nacionalista. Cremos ter ficado demonstrado o importante contributo que Domingos Evangelista dá para a construção da referida “pedagogia nacionalista” ao reelaborar a “tradição de inovação” proveniente da geração progressista que o antecedeu (Pintassilgo, 2016a; Pintassilgo e Pedro, 2012).

Referências

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1 Artigo publicado no âmbito de um projeto financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) com a Ref. PTDC/MHC-CED/0893/2014T.

Recebido: 09 de Março de 2018; Aceito: 22 de Maio de 2018

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