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Educação UNISINOS

versión On-line ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.22 no.3 São Leopoldo jul.-set 2018  Epub 16-Mayo-2019

https://doi.org/10.4013/edu.2018.223.07 

Dossiê: Escola Nova Católica” em países europeus e no Brasil

Escolanovismo católico em manuais de pedagogia de Everardo Backheuser (1934-1948)1

Catholic new school in pedagogical manuals by Everardo Backheuser (1934-1948)

Maristela da Rosa2 

Gladys Mary Ghizoni Teive3 

2Secretaria de Estado da Educação - Santa Catarina. Rua João Pinto, 111, Centro, 88010-410, Florianópolis, SC, Brasil. maristeladarosasc@gmail.com

3Universidade do Estado de Santa Catarina. Av. Madre Benvenuta, 2007, Itacorubi, 88035-901, Florianópolis, SC, Brasil. gladysteive@gmail.com


Resumo

A partir das concepções de campo de Pierre Bourdieu e de apropriação e representação de Roger Chartier, caracterizamos o projeto educacional backheusiano, representado pelo escolanovismo católico expresso em Técnica da Pedagogia Moderna de 1934 e Manual de Pedagogia Moderna de 1948. Para tanto, entrecruzamos estes manuais, a Encíclica Divini Illius Magistri, de 1929, texto norteador do pensamento pedagógico de Everardo, e o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, documento seminal do movimento escolanovista no Brasil. No campo de luta entre os ideais de educação católicos e escolanovistas, Backheuser emergiu como representante de uma “terceira via” ao propor uma educação integral transversalizada pelo catolicismo, que representou a sua apropriação da Escola Nova. Este projeto mostra a intervenção católica na configuração e na difusão da Escola Nova e indícios de uma versão singular do escolanovismo que foi disseminada entre os professores primários nas décadas de 1930 e 1940.

Palavras-chave: Escolanovismo católico; manuais de pedagogia; Everardo Backheuser

Abstract

From Pierre Bourdieu’s field conceptions and Roger Chartier’s conceptions of appropriation and representation, we characterize Backheuser’s educational project, represented by the Catholic New School expressed in Técnica da Pedagogia Moderna (1934) and Manual de Pedagogia Moderna (1948). In that respect, we interweaved these manuals, the Encyclical Divini Illius Magistri, of 1929, guiding text of Everardo’s pedagogical thought, and Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, of 1932, the seminal document of the New School movement in Brazil. In the field of struggle between Catholic and New School ideals of education, Backheuser emerged as a representative of a “third way” by proposing a comprehensive education crossed by Catholicism that represented his appropriation of the New School. This project shows the Catholic intervention in the configuration and diffusion of the New School and indications of a singular version of the New School thought that was disseminated among the primary teachers in the 1930s and 1940s.

Keywords: Catholic new school; pedagogical manuals; Everardo Backheuser

Introdução

Nos anos trinta do século vinte, no Brasil, a disputa pela dominação do campo educacional inflamou-se e grupos que antes convergiam, romperam e fundamentados em diferentes claves filosóficas, se organizaram e agiram a partir de estratégias distintas, assumindo novas posições. Nessa conjuntura, a luta por dominação política resultou em uma batalha pelo controle do campo, onde se destacaram dois grupos de educadores - pioneiros e católicos - os quais estabeleceriam relações consensuais no que se refere à educação como causa cívica de redenção nacional, e de oposição quanto às estratégias por meio das quais os fins propostos seriam atingidos. Ambos os grupos intentavam normatizar as práticas escolares e promover mudanças na mentalidade dos professores, assegurando o controle da orientação doutrinária do sistema educacional. O campo dos debates educacionais se reconfigurou. Deixado de lado o consenso inicial em torno da causa cívico educacional (década de 1920), os dois grupos assumiram posições divergentes no campo teórico/doutrinário da Pedagogia (década de 1930). Enquanto os pioneiros levantam as bandeiras da educação nova: escola única, ensino público e laico, os católicos se organizaram e lutaram por uma escola dual, de ensino particular e religioso. Pelo controle do sistema educacional, ambos os grupos agiram no sentido de normatizar as práticas escolares, o pensamento e a conduta dos professores, com estratégias distintas.

Apesar da luta pelo controle ideológico da escola estar travada, a cisão entre pioneiros e católicos não deve ser tomada de forma absoluta, pois ambos os grupos compartilhavam um objetivo comum - a educação como formação da nacionalidade (Carvalho, 2003). Então, cabe questionar: a militância pedagógica católica exerceu apenas o papel de deter a propagação dos ideais escolanovistas ou havia um enunciado católico sobre o escolanovismo? Inferimos que ao analisar os manuais de Pedagogia escritos por um dos representantes do grupo católico seria possível identificar indícios de uma espécie de escolanovismo católico. Portanto, não se pode deixar sem registro a apropriação realizada por alguns integrantes do grupo católico dos pressupostos da chamada Pedagogia da Escola Nova. Apropriação esta, calcada na filosofia católica que servia de lente para o julgamento das novas Pedagogias.

Nessa direção, nos interessa dar a ver que, já na segunda metade da década de 1930, o tom da disputa ainda era acirrado entre as partes, entretanto, as mudanças ocorridas na passagem das décadas refletiam a abertura do ideal católico para obras que antes eram proibidas por se configurarem como os excessos da Pedagogia Moderna (Carvalho, 2003). Os católicos passaram a filtrar esses excessos daquilo que não fosse compatível com as prescrições da Encíclica Papal (1929) - de acordo com Carvalho (2003), este documento impunha limites à “heterodoxia pedagógica” e regrava a sedução que o escolanovismo vinha causando nos meios católicos - e conciliar os escritos de Dewey, Claparède, Decroly e Kilpatrick, por exemplo, às censuras do documento eclesiástico e de autores católicos como Everardo Adolpho Backheuser que foi “expoente de um escolanovismo católico” (Rosa e Teive, 2017).

Percebe-se então, que a militância católica não teve apenas ações reativas ao movimento escolanovista em solo brasileiro. Embora conservassem a essência de seu ideário cristão, procuravam colocar suas práticas de atuação em sintonia com o momento histórico em que estavam inseridas. Esse grupo é responsável pela difusão da Pedagogia da Escola Nova no Brasil, em especial, no início da década de 1930, quando, utilizando-se de estratégias - Associação de Professores Católicos do Distrito Federal; Congresso Católico Brasileiro de Educação (CCBE); cursos, publicação de periódicos, entre os quais, a Revista Brasileira de Pedagogia e o Boletim da Associação de Professores Católicos, manuais de Pedagogia4, etc. - objetivavam conquistar os professores de escolas confessionais e também públicas, normatizando as suas condutas e orientando doutrinariamente as suas práticas escolares. De acordo com Carvalho (2003, p. 106), ainda que algumas lideranças católicas fossem a favor de um combate fervoroso à nova Pedagogia, “predominou a tendência de incorporá-la, depurando-a de tudo o que contrariasse os preceitos católicos”.

Dentro do grupo católico, destacamos Everardo Adolpho Backheuser, um católico escolanovista. Descendente de portugueses, alemães e franceses, nasceu em 1879 em Niterói no Rio de Janeiro e faleceu no ano de 1951. Foi engenheiro, geógrafo e professor da Escola Normal de Niterói e do Colégio Pedro II, entre outras instituições. Além dos cinquenta anos de exercício no magistério, dedicou-se às atividades político-administrativas e jornalísticas.

Em 1924, participou da fundação da Associação Brasileira de Educação - ABE, instituição com a qual rompeu em 1931. Em 1928, como numa homenagem póstuma, realizou o desejo de sua primeira mulher, convertendo-se ao catolicismo no dia da sua missa de corpo presente5. Errerias (2000) dá a entender que Backheuser havia se afastado do catolicismo. Havia sido educado em uma família que não seguia firmemente a religião, depois ingressou no Liceu onde conviveu com professores que combatiam o catolicismo, o que acabou influenciando sua postura diante da religião. Após a conversão, começou a atuar fortemente no movimento de agremiação de professores católicos e da Campanha em prol do Ensino Religioso.

Logo que Backheuser se aposentou como professor, ficou interessado na reforma que Fernando de Azevedo iniciara no Rio de Janeiro em 1927 e passou a colaborar com o mesmo. Na Alemanha conheceu de forma mais profunda o ideário da Escola Nova, e, logo que voltou, assumiu a direção de cinco escolas municipais do Distrito Federal para experimentar alguns métodos e analisar os resultados. Nesta época, iniciou a Cruzada Pedagógica pela Escola Nova e publicou o boletim A Escola Nova. Promoveu atividades como exposições pedagógicas, excursões programadas, cinemateca, bibliotecas escolares. Dois anos após o seu rompimento com a ABE tornou-se membro fundador da CCBE (1933). Teve textos publicados em vários periódicos, como: revista Escola Nova; Revista Brasileira de Pedagogia e Boletim dos Professores Católicos (Barreira, 1999).

Situando a posição e as estratégias de Everardo Backheuser no campo educacional em disputa, interessa compreender: como esse professor de base católica se apropriou dos postulados do movimento da Escola Nova e os representou nos seus manuais edificando um projeto educacional escolanovista transversalizado pelo catolicismo?

Para fundamentar teoricamente este texto tomamos emprestadas as concepções de campo de Pierre Bourdieu e de apropriação e representação de Roger Chartier. Compreende-se por campo um universo onde estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem arte, literatura, ciência, etc. Esse universo é um mundo social como os outros, mas obedece a leis sociais específicas. A noção de campo designa esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias (Bourdieu, 2004). Compreendemos o campo como um espaço estruturado de posições, onde os agentes - por meio de estratégias - se enfrentam pela manutenção e pela obtenção de determinadas posições. Essa concepção bourdieusiana é uma ferramenta importante para perceber as estratégias católicas para a conformação do campo pedagógico e, sobretudo, o circuito de Backheuser, integrante do grupo católico e o projeto educacional representado nos manuais que escreveu.

Para compreender as apropriações e representações de Backheuser nos manuais que orientaram os docentes para as práticas escolanovistas, recorremos às concepções concebidas na perspectiva do historiador francês Roger Chartier, para quem a apropriação é um “processo por intermédio do qual é historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma significação” (Chartier, 1990, p. 24-26). Essa noção destaca a pluralidade dos modos de emprego e a diversidade das leituras, sendo, portanto, considerada como a possibilidade de formas diferenciadas de decodificação, interpretação e reapresentação. Um texto é compreendido como um bem cultural, uma produção de representações sociais e culturais e, um mesmo texto aplica-se à situação do leitor e é recebido à maneira do receptor, pode ser lido, interpretado, ressignificado e apropriado de diferentes formas por diversos leitores em variados tempos e espaços. Por meio da prática de apropriação se dá a operação de sentido por parte do leitor. Como bens culturais, os textos são sempre produzidos de acordo com ordens, regras, convenções e hierarquias específicas; portanto, o ato da criação inscreve-se numa relação de dependência em face de regras, poderes e códigos de inteligibilidade. Contudo, o texto escapa a tais dependências, justamente pelas diferenças de apropriação, pois ela é socialmente determinada de maneira singular, segundo costumes, classes e inquietações que também serão dependentes de princípios de organização e diferenciação socialmente compartilhados ou das representações coletivas. Consideramos a apropriação como prática criativa, como atividade produtora de sentidos singulares e de significações que não se reduzem apenas às intenções dos autores dos textos, porque “face a um texto, é historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma significação” (Chartier, 1990, p. 121).

De acordo com a perspectiva chartieriana as práticas criativas de apropriação criam usos ou representações. Para o historiador, a noção de representação apresenta dupla dimensão, por um lado, faz ver uma ausência, por outro lado, apresenta uma presença. A primeira supõe uma distinção clara entre o que representa e o que é representado e a segunda se refere à apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa (Chartier, 1991). Assim, se a representação “reapresenta” algo ausente fazendo da ausência uma presença, é aqui compreendida como a expressão de apropriações criativas ou inventivas. Partimos da premissa de que os textos, como bens culturais, são produzidos de acordo com regras, poderes e hierarquias específicas e propomos a compreensão da seguinte questão: calcado na filosofia católica, como Backheuser se apropriou e representou os princípios escolanovistas nos seus manuais?

Tomamos o autor dos manuais como um agente produtor de sentido, como um leitor. Alguém que fez a leitura de um repertório, textos específicos que traziam os princípios cardeais escolanovistas, e, que a partir de suas lentes (e dos autores em quem fundamentou os seus argumentos), se apropriou desses escritos de forma sui generis. Recriando-os a partir de suas vivências, experiências e interesses, inventando novas leituras de um mesmo texto e expressou nos seus manuais a representação da sua apropriação. Incluímos estes manuais na rede de iniciativas editoriais arquitetadas pelo grupo dos católicos, estes impressos escolanovistas católicos integraram uma rede de artefatos como anais de congressos, revistas e boletins os quais tinham como objetivo o controle pedagógico e organizacional do professorado. Já que o objetivo maior era a adesão dos professores à Escola Nova ressignificada pelos católicos, nada tão eficaz quanto agir no âmbito didático, lugar de poder que possibilitava ao grupo católico desacreditar alguns dos princípios doutrinários e as práticas escolanovistas dos pioneiros, como estratégia de constituição e legitimação de um enunciado escolanovista católico. Os manuais de Pedagogia adotados como fontes e tomados como objetos de análise deste trabalho atendem e, em grande medida, são decorrentes, principalmente, da solidificação do ideário pedagógico da Escola Nova em voga entre as décadas de 1930 e 1960 no Brasil. De acordo com Valdemarin (2010), estes artefatos desenvolveram um repertório pedagógico, sugerindo modos de uso do ideário em questão e “operando num sistema prévio de ideias, [produzindo] versões praticáveis da teoria nas condições específicas da escola brasileira daquele tempo” (Valdemarin, 2010, p. 131).

Nas seções seguintes, de forma resumida, analisamos os manuais supracitados, enfatizando os sumários e os autores citados por Backheuser. Na seção em que tratamos do primeiro manual, o esforço é no sentido de perceber, de forma especial, como o autor organizou o impresso e em quais autores fundamentou seus argumentos e o seu ideal de Escola Nova. Quando versamos sobre o segundo manual, o objetivo principal é identificar as mudanças e permanências em relação ao primeiro e, destacar pelo menos um dos pontos chave utilizados pelo autor para definir e defender o seu projeto educacional, a interlocução entre ciência e religião católica. Já nas considerações finais, sintetizamos esse projeto de Escola Nova que atravessa os dois manuais, e a partir da nossa apropriação como autoras definimos o que compreendemos como o escolanovismo católico backheusiano.

Técnica da Pedagogia Moderna

Em 1933, Backheuser, a pedido de Alceu Amoroso Lima, ministrou um curso sobre Escola Nova no Instituto Católico de Estudos Superiores, no Rio de Janeiro. No ano seguinte, este curso foi sintetizado no livro Técnica da Pedagogia Moderna (Teoria e Prática da Escola Nova), publicado pela Civilização Brasileira S.A. Desde a abertura do livro o autor tenta efetuar uma depuração sobre os diferentes tipos de Escola Nova, esculpindo, a partir da sua leitura criativa de ideias de outros autores e educadores a fim de validar, o seu próprio ideal de Escola Nova: uma educação integral calcada na filosofia católica.

No capítulo I, “Considerações Gerais”, Backheuser comenta a incoerência da expressão Escola Nova e as suas diferenças em relação à Escola Tradicional chamando a atenção para as transformações necessárias nas escolas diante das mudanças ocorridas no meio social. Além disso, trata dos lugares da família, da Igreja e do Estado na formação da criança. E no capítulo II, versa sobre os “Princípios Cardeais da Escola Nova”, nas esferas pedagógica, psicológica, filosófica e política. Em relação à esfera pedagógica ele situa a iniciativa, a cooperação e o preparo para a vida pela vida, como instrumentos para a educação nova. Cada um destes aspectos é abordado de forma aprofundada em capítulos próprios. Ainda nessa parte, o autor cita a variedade de Escolas Novas existentes e algumas dúvidas que emergem desta temática.

O capítulo III trata da “Escola Única” e apresenta a defesa do ensino particular em oposição à ideia de monopólio estatal do ensino. O autor conceitua três aspectos da escola única: coeducação, escola da democracia e escola neutra e laica. Fundamentado na Biologia e na Psicologia o autor argumenta contra a coeducação e defende o que chama de “a escola da democracia”, uma escola pública e gratuita que seja acessível para todas as camadas sociais. Como educador católico, calcado na Encíclica, faz a crítica à escola neutra e laica, afirmando que o Estado não é neutro, uma vez que suas ações são decorrentes de escolhas pautadas em algum tipo de princípio, filosofia ou ideologia. Da mesma forma a escola também não seria capaz de ser completamente neutra.

O capítulo IV é dedicado à “Pedagogia e as suas ciências correlatas”: Psicologia, Biologia, Filosofia e Sociologia; e também Ciências, Artes, Ética, Moral e Religião. Sobre a Educação Moral e Religiosa o autor retoma a reflexão no capítulo V a respeito da “Educação Integral”, onde elege seis áreas da educação que devem ser trabalhadas com o educando no seu cotidiano escolar: educação física, científica, artística, econômica, social e política e, por fim, moral e religiosa.

Nos capítulos VI, VII e VIII o autor desenvolveu os aspectos que classificou como “pontos cardeais da Escola Nova”: “Iniciativa, Cooperação e Educação para a Vida”. O capítulo que versa sobre a iniciativa, trata dos meios que podem ser empreendidos para motivar a criança e despertar seu interesse pela escola. No capítulo sobre cooperação, descreve como se pode melhorar a articulação entre pais, alunos, professores, escola e lar. No capítulo VIII discorre sobre a finalidade da Escola Nova, e também da educação, defendendo o conceito cunhado por Decroly: “a Escola Nova educa para vida e pela vida”. No capítulo IX, define “O papel do mestre na Escola Nova” além de defender a Escola Nova das críticas de que ela seria “a escola da indisciplina” e o lugar onde a importância e autoridade do professor são apagadas em benefício da valorização da iniciativa e da vontade da criança em aprender. O capítulo X intitulado “Detalhes da técnica da Escola Nova”, traz os centros de interesse, o tabuleiro de areia, as excursões e os museus escolares. Nesse último capítulo cita rapidamente alguns planos de educação europeus e americanos.

Para fundamentar os seus argumentos apoiou-se em autores renomados tanto da Pedagogia renovada quanto da Pedagogia católica, e, fazendo críticas e se apropriando desses autores vai justificando suas teses. O mais citado foi Franz De Hôvre, autor de livros como que versam sobre o pensamento de diversos educadores católicos europeus que foram referências para os educadores brasileiros. Outros representantes da Pedagogia católica foram citados como o bispo Félix Antoine Philibert Dupanloup, teólogo, jornalista e político francês e a Encíclica Papal ou seu autor, Pio XI, além de John Lancaster Spalding, pedagogo católico norte-americano.

Dos representantes do movimento escolanovista em escala mundial, Backheuser remeteu-se a Johann Heinrich Pestalozzi, pedagogo suíço que tem como um de seus principais legados a sistematização do método de ensino intuitivo e das lições de coisas e é lembrado por ter “psicologizado” a educação; John Dewey, pedagogo norte-americano; Jean-Ovide Decroly, médico e educador belga que defendia a ideia de que as crianças apreendem o mundo com base em uma visão do todo; Georg Michel Kerschensteiner, pedagogo alemão que criou a escola do trabalho; e, Édouard Claparède, cientista suíço, que inspirado na Psicologia e na Biologia, defendia a necessidade de estudar o funcionamento da mente infantil e de estimular na criança um interesse ativo pelo conhecimento. William Heard Kilpatrick, filósofo norte-americano, discípulo de Dewey, que cunhou o termo “Método de projeto”, argumentando que a aprendizagem deve ter lugar num palco fora da escola e envolver esforços para identificar as necessidades reais da comunidade foi citado pelo autor tanto quanto Jean-Jacques Rousseau. Lourenço Filho também foi aludido por Backheuser, assim como Delgado de Carvalho. Este último nasceu em Paris, participou dos debates em torno da consolidação da ciência geográfica no Brasil, e também forneceu elementos para mudar a prática do ensino da disciplina de Geografia em nível secundário.

Autores ligados à grande área da Psicologia também foram mencionados, como Johann Friedrich Herbart, filósofo alemão do século XIX que inaugurou a análise sistemática da educação e mostrou a importância da Psicologia na teorização do ensino, bem como Yung, psiquiatra e psicanalista suíço, fundador da escola analítica da Psicologia e discípulo de Freud. Outro autor freudiano, Alfred Adner, médico e psicólogo austríaco foi citado assim como o próprio Sigmund Freud.

O manual analisado se insere na arena de disputa educacional vigente na primeira metade da década de 1930, mas, além dos debates, traz também diálogos entre os católicos e escolanovistas, a começar pelo prefácio do padre Leonel Franca, que indica elementos de tensão e discussão sobre a educação. Backheuser fundamenta a sua argumentação a favor de uma determinada concepção de Escola Nova fazendo referência a vários educadores, tanto escolanovistas quanto católicos. Este impresso difundiu um discurso sobre a Pedagogia da Escola Nova onde alguns dos enunciados escolanovistas foram refutados enquanto outros foram ressignificados. Portanto, é relevante compreender essa operação criativa de depuração como o processo que Carvalho (2003) chamou de “apropriação tática”. Interpretando os enunciados escolanovistas a partir das suas práticas Backheuser expressou, neste manual, a sua própria representação (Chartier, 1990) de Escola Nova, o seu projeto educacional.

A sua concepção de educação significa formar também a dimensão espiritual do aluno, integrando ciência e religião, razão e espiritualidade. É importante considerar que o pensamento católico de Backheuser inspirou-se na Encíclica Divini Illius Magistri de Pio XI, lente através da qual Backheuser contemplou, se apropriou e representou a Escola Nova. Para o autor pode-se considerar a Encíclica como “franco apoio aos princípios básicos de uma bem sucedida Escola Nova” (Backheuser, 1934, p. 46). Esse documento, cujo ponto crucial é a relação indissociável entre educação e catolicismo, expressa os conceitos e princípios destinados a orientar a atuação da Igreja Católica no campo da educação e, dessa forma, pode ser entendido como uma das estratégias católicas para a disseminação do seu ideário no referido campo.

Errerias (2000, p. 38) refere-se ao manual de 1934 como uma sistematização que se propôs “a separar o joio do trigo para que a Escola Nova continue a ser católica e para que a escola católica possa ser nova”. Assim, o autor do manual circunscreveu alguns conceitos da Escola Nova ao catolicismo e demonstrou que era legítimo ao professorado católico ser escolanovista, porque “a parte boa” do escolanovismo emanava do catolicismo. Estabelecido esse diálogo, a Igreja teria competência científica para continuar legislando sobre os fins da educação. Compreendemos Técnica da Pedagogia Moderna como o resultado, a síntese do processo de apropriação criativa realizada pelo seu autor de textos de autores escolanovistas, católicos e os ligados à Psicologia. A análise das prescrições teóricas e técnicas do projeto educacional que este impresso comunica, traz indícios de como o escolanovismo católico backheusiano almeja uma educação integral baseada numa concepção espiritualista de homem, de vida e de universo. Ao expressar a sua representação de Escola Nova ele vai se distanciando dos autores que denominou comunistas e ou socialistas, como Dewey e seu principal seguidor no Brasil, Anísio Teixeira, porque, na sua opinião, se aproximavam de uma concepção de base experimentalista e materialista, portanto, diferente da sua. Para fundamentar os seus argumentos se apropriou de vários autores, apesar de muitas vezes não citá-los, tanto leigos quanto católicos e, em especial, daqueles tratadistas da Escola Nova e os da área da Psicologia, essencialmente, os ligados ao ramo psicológico que julgou mais adequado à perspectiva pedagógica que propôs.

A partir do esquema teórico chartieriano, entende-se que o ato de criação inscreve-se numa relação de dependência em face de regras, de poderes, de códigos de inteligibilidade e que as representações sempre estão inseridas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e dominação. Na perspectiva chartieriana, a representação das práticas sempre terá razões, códigos, finalidades e destinatários particulares. Essa teorização fornece condições para compreender que a leitura que Backheuser fez da Escola Nova e as produções de sentido que realizou a partir dessa leitura foram historicamente construídas e determinadas por conflitos e interesses que tinha naquele momento. Investindo seus interesses e o seu capital cultural ele se apropriou dos autores que julgou serem adequados para fundamentar os seus argumentos na construção da sua representação da Escola Nova. Portanto, este agente é tomado como um leitor que se apropriou de determinadas teses, de autores estrategicamente selecionados para compor um novo texto, constituindo-se então, como autor de uma nova representação instituída a partir dos seus esquemas teóricos e das suas próprias práticas.

Manual de Pedagogia Moderna

A 1ª edição desta obra data de 1934 e foi estudada na seção anterior. A 2ª data do ano de 1936, texto que foi sendo desenvolvido durante o período de existência da CCBE e, em 1942, foi reeditado com o título de Manual de Pedagogia Moderna (Teoria e Prática). Na 3ª edição, as modificações envolveram a atualização de dados, a reordenação dos antigos capítulos e a inserção de alguns novos. Essa metamorfose, como esclarece o autor, teve o intuito de transformar o livro em um compêndio de Pedagogia para uso das Escolas Normais e Institutos de Educação. O manual foi publicado novamente em 1948 (4ª edição)6 e em 1954 (5ª edição). A mudança anunciada pelo autor no prefácio da 3ª edição pode ser notada em todo o livro, a começar pelo título. A organização do manual também é diferente, pois, deixa de contar com 10 capítulos subdivididos em temáticas, e passa a apresentar 6 seções subdivididas em 15 capítulos e, o número de páginas é superior, de 311 passou para 409.

No manual de 1934, o primeiro capítulo versa sobre a expressão Escola Nova e os seus usos, aproveitando para cotejá-la com a escola tradicional. Em 1948, a seção I “Conceito de Educação e de Pedagogia” é composta pelo capítulo I “Apresentação do Problema”, que aborda uma visão geral da pedagogia como arte e como ciência e, também a questão de Educar para a vida total. Esse último assunto vem contemplar o espaço que o primeiro manual dedicou a Educar para a vida e pela a vida no capítulo VIII.

O capítulo IV, “A Pedagogia e as ciências correlatas” do primeiro manual dá ênfase à Biologia; Psicologia (Estruturalística); Ética ou Moral; Filosofia, Sociologia e Ciências, Letras e Artes. No segundo manual, essa temática aparece na seção II “Ciências Basilares da Pedagogia”, no capítulo II intitulado “Ciências basilares e correlatas da pedagogia”. Todas as citadas acima são novamente aludidas, e aqui há a inclusão da Biotipologia.

Técnica da Pedagogia Moderna destinou os capítulos II, III, VI e VII para tratar dos Princípios Cardeais da Escola Nova entre os quais os aspectos filosófico, psicológico e político; a questão da Escola única, a Iniciativa e a Cooperação. Em Manual de Pedagogia Moderna, todos esses temas foram agrupados na seção V novamente intitulada Princípios Cardeais da Escola Nova. Então, tratou-se novamente das mesmas questões divididas em capítulos: IX “Considerações preliminares”, onde foram trazidos os aspectos da Escola Nova; X “A iniciativa”; XI “A Cooperação” e XII “A escola única”.

Antes a questão do Papel do mestre na Escola Nova já permeava todo o texto, entretanto, teve o capítulo IX especificamente destinado a ele. Depois essa temática, que novamente permeou todo o conteúdo do manual, foi inserida na seção IV “Os educadores e a educação”. Foram incluídos dois capítulos: VII “Os Educadores”, onde é tratada a função do professor e VIII “Educação Integral”. Neste último foram acrescentadas a Educação Cívica e a Doméstica. No manual anterior, a Educação Integral foi tratada no capítulo V.

No primeiro manual o capítulo X tratou dos “Detalhes da Técnica da Escola Nova”. Onde o autor tratou das Excursões; Centros de interesse; Método de projetos; Planos americanos e europeus; Dramatizações e Museus escolares. Esses mesmos assuntos aparecem no manual reformulado na seção VI “Problemas de Pedagogia Prática”, correspondente aos capítulos XIII, XIV, XV e XVI. São incluídas também a questão da Matrícula, da Organização das classes e do Julgamento e seleção dos alunos. É nessa parte que Backheuser trata dos testes de homogeneização das classes, e, onde se pode notar a influência da Psicologia. Tomando a Psicologia como a ciência capaz de estudar e entender a alma do indivíduo, Backheuser demonstra a fundamental importância deste ramo científico juntamente com a Biotipologia para erigir o seu projeto educacional.

Além da inclusão descrita no parágrafo acima, Manual de Pedagogia Moderna traz o acréscimo da seção III intitulada “Fatores da Educação”, na qual o autor aborda o capítulo III “A personalidade”; capítulo IV “Do mimetismo em pedagogia”; capítulo V “O interesse em pedagogia” e capítulo VI “O ‘meio’ em pedagogia”. A questão aludida no conteúdo sobre a personalidade mostra o quanto o autor estava inserido no contexto que reivindicava a inclusão da Psicologia na Pedagogia no sentido de compreender a infância para agir sobre ela. Para Backheuser esta compreensão seria capaz de despertar o interesse da criança para o aprendizado, a chave para a moldagem tanto do corpo quanto da alma do educando.

Esta análise dos sumários demonstra que o autor não excluiu as temáticas tratadas em 1934, elas foram novamente ressaltadas em 1948. Houve algumas reformulações, reorganizações, porém, o que se destaca aqui são as principais inclusões. Backheuser continuou preocupado com a explicação conceitual da Escola Nova, propondo metodologias inspiradas no movimento renovador, apropriando-se de autores dos campos das pedagogias (renovadora e da católica), e, em especial daqueles ligados à Psicologia e a Biotipologia, e defendendo o seu próprio ideal de educação, tal qual o fez na 1ª edição de Técnica da Pedagogia Moderna.

Não obstante, em Manual de Pedagogia Moderna, reforça novamente a reintrodução da religiosidade nos currículos escolares oficiais e, além de trazer a Educação Cívica e a Doméstica para compor a educação integral que defende, e advoga em favor da incorporação da Psicologia e também da Biotipologia no campo educacional. Interessa então, matizar o quanto a questão religiosa e essas ciências são importantes para Backheuser, no sentido de compreender a personalidade da criança, despertar o seu interesse e edificar o projeto educacional, aqui denominado escolanovismo católico backheusiano. Tal qual no primeiro manual, Backheuser manteve as interlocuções com autores de matizes escolanovistas e católicos e também de representantes da Psicologia e da Biotipologia para fundamentar o discurso presente no seu manual e, por conseguinte, o seu projeto educacional.

Na 1ª edição Backheuser estava empenhado na discussão dos princípios fundantes da Escola Nova visando esclarecer e mostrar a aplicabilidade das orientações escolanovistas ao seu público alvo, o professorado. Nas palavras dele, naquela edição formulou uma “campanha metódica em prol da Escola Nova” (Backheuser, 1948, p. 259). Para tanto, partiu das discussões teóricas acerca do pensamento educacional indo até o papel do professor no processo de ensino. Há naquela edição uma preocupação em esclarecer os princípios escolanovistas e em sistematizar estes pressupostos além de advertir para o cuidado na execução, quando trata da metodologia. O primeiro manual é marcado pela intenção de fundamentar e sistematizar o conhecimento sobre a Escola Nova e mostrar a aplicação prática de seus princípios.

Na edição de 1948, há ainda uma preocupação com a compreensão sobre Escola Nova, e também com as orientações práticas sobre a ação docente. Contudo, há uma ênfase particular na necessidade de compreender a personalidade da criança para agir sobre ela, por meio do interesse. Nesse sentido, o autor destaca a Psicologia e a Biologia como essenciais para essa compreensão e reforça possíveis interfaces que vislumbra entre a ciência e a religião, o que, por meio da perspectiva chartieriana podem ser compreendidas como indícios da apropriação que fez dos pontos cardeais da Escola Nova.

Apesar dos temas se repetirem várias vezes, comparando as duas edições, percebemos a reformulação de alguns títulos e em alguns momentos, o próprio autor cita a diferença entre as edições. A grande marca desse segundo manual é o esforço empreendido pelo autor em estabelecer diálogos entre a ciência e a religião católica, sobretudo pelo uso da Psicologia, dos testes psicológicos para a homogeneização das classes e da Biotipologia para desvendar a alma da criança; e de compreender o estudo da personalidade como chave para pôr em marcha uma educação integral que visa à moldagem do corpo e da alma a partir do interesse.

A todo tempo Backheuser incitou a interlocução entre ciência e religião, desde que aquela fosse pensada à luz desta, acatando parte dos princípios escolanovistas e recusando aqueles que não considerava compatíveis com o seu pensamento, fortemente fundamentado no catolicismo. Foi assim que privilegiou a Psicologia e também a Biologia em detrimento da Sociologia, porque esta ciência pagã, no seu entendimento, concorria com Deus, porque ditava as finalidades da vida frente ao indivíduo. Foi assim que assumiu a defesa de uma educação integral que partisse do interesse da criança, ensinasse o princípio da colaboração e, incluindo o Ensino Religioso, educasse para a vida terrena e para além dela, para o plano sobrenatural. Depreende-se que para produzir esses bens culturais - os manuais - Everardo Backheuser transitou pelo campo educacional a partir de certas motivações e necessidades, movimentou determinadas práticas (modos de fazer) e representações (modos de ver), as quais, com a circulação deste impresso, foram difundidas alimentando e produzindo novas práticas, novas leituras, novas apropriações e representações.

Considerações finais: o escolanovismo católico backheusiano

Compreendemos o escolanovismo católico backheusiano como a representação de Everardo Backheuser sobre a Escola Nova. Uma espécie de terceira via entre o “velho” representado pela chamada escola tradicional e o “novo” representado pela modernidade escolanovista. Um projeto educacional que, ancorado na Encíclica Papal Divini Illius Magistri, depurou a Escola Nova daquilo que contrariasse os preceitos católicos e que buscou aliar razão e espiritualidade, ciência e religião. Os manuais apresentados aqui são veículos que comunicam essa representação que tomou da Escola Nova a metodologia e do catolicismo a filosofia.

Backheuser se apropriou taticamente da Escola Nova porque defendeu uma Pedagogia científica, advogando em favor da apropriação das ciências fontes da educação mais adequadas à sua filosofia: a Psicologia e a Biologia, defendendo o uso da Gestalt e da Biotipologia como instrumentos a serem colocados em prática pelos professores na edificação da sua proposta de educação integral. Esta educação integral, bandeira comum aos tratadistas escolanovistas, católicos ou não, esteve baseada no tripé: iniciativa, cooperação e preparo para a vida pela vida. Nos seus manuais, defendeu detalhadamente a importância de cada um desses instrumentos para o desenvolvimento da pedagogia nova. Fundamentado nesses elementos, sugeriu a construção de uma escola ativa, que levasse em conta o interesse da criança e que fomentasse a iniciativa e a atividade. Para tanto, forneceu orientações metodológicas, sugerindo que os professores fizessem uso de recursos didáticos diferenciados como o método de projetos, as excursões, os centros de interesse, a organização de museus escolares, entre outros, apropriando-se de autores escolanovistas renomados mundialmente e também de alguns autores ligados à Psicologia.

Entusiasmado com a apropriação da Psicologia e da Biotipologia pela Pedagogia, e, também, com o estímulo ao interesse da criança, tratou de defender a importância do conhecimento e da compreensão da personalidade infantil. Nessa direção, indicou o uso de testes psicológicos para selecionar os alunos do ponto de vista do preparo escolar para agrupá-los em classes homogêneas, e, também para conhecer a personalidade da criança e então, agir sobre ela. E aqui, novamente, entra em sintonia com os pioneiros.

As concepções de educação e de homem por ele defendidas estão direcionadas para a transcendentalidade e para o cidadão cristão, respectivamente. A escola, através de seus conteúdos e práticas, deveria contribuir para formar a criança para a vida presente e também para o plano sagrado, e aí está a inclusão estratégica da filosofia católica. A formação da personalidade infantil, entendida por ele como um conjunto de faculdades intelectuais e espirituais, em todos os aspectos: físicos, psíquicos, estruturais e biotipológicos, deveria ser projetada tanto para a vida terrena, como defendiam os pioneiros, quanto para o plano eterno. Em relação a esse último aspecto, apropriando-se de autores da Pedagogia Católica se posicionou contrário a alguns dos princípios básicos presentes nos documentos seminais da Escola Nova, como por exemplo, a coeducação, a laicidade e a neutralidade. Para combater a coeducação buscou argumentos na Biologia. Para contrapor-se à laicidade e à neutralidade alicerçou-se na necessidade imperiosa de uma orientação religiosa, espiritual das crianças, defendendo a importância da educação moral por meio da inserção do Ensino Religioso nos currículos escolares. Era o seu interesse um currículo transversalizado pelo catolicismo.

Para Backheuser a finalidade da educação seria a formação integral do eu transcendental, a preparação da criança para a vida eterna, para o plano sobrenatural. E essa é, junto com a proposição de uma escola metodologicamente ativa, uma das principais marcas do escolanovismo católico backheusiano. É por esse viés que ele fazia a interlocução entre ciência e religião. E foi justamente essa interlocução que deu o tom ao seu modelo pedagógico que se ocupou em agir sobre a personalidade e desvendar a alma da criança, despertando o seu interesse e dando-lhe uma educação que visava a sua vida em outro plano. Ao ancorar a prática pedagógica na filosofia católica, criou, nesse aspecto, um abismo em relação à Pedagogia da Escola Nova porque, ao fazê-lo rechaçou alguns dos seus princípios centrais.

Num contexto em que o científico se apresentava como proposição da verdade, a Psicologia Gestáltica como possibilidade de compreensão científica do ser humano acabou por permitir-lhe “comungar” da ciência sem se afastar do transcendental. Ele apresentou esse ramo psicológico como capaz de fornecer o embasamento para uma educação harmônica e integral, que permitiria o despertar de todas as estruturas da alma e também do corpo, que, para ele, era a base física da alma. Nesse sentido, a Psicologia se configurou um útil instrumento na sua luta pela hegemonia do pensamento católico e para a edificação do seu escolanovismo. Exemplar do pensamento pedagógico católico e expoente de um escolanovismo singular, no território contestado de debates entre tradição e modernidade, Backheuser se destacou como um dos educadores que se apropriou do “novo” calcado em “velhas” lentes.

Referências

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1Esse texto é desdobramento da tese de doutorado intitulada Escolanovismo Católico Backheusiano: apropriações e representações da Escola Nova tecidas em Manuais Pedagógicos (1930-1940), desenvolvida no Programa de Pós-graduação, Doutorado em Educação, da Universidade do Estado de Santa Catarina, entre os anos de 2013 e 2017.

4Quando se trata de manuais pedagógicos escolanovistas não se pode esquecer a obra Lourenço Filho (2002), fundamental na estratégia de divulgação das novas bases educacionais assentadas em um conjunto de conhecimentos então recentes, provenientes da Biologia, da Psicologia e da Sociologia. Fundamentos esses que dão origem a princípios gerais da Escola Nova: atividade, interesse e motivação.

5Quando perdeu a primeira mulher - católica devotada - teve uma visão sobrenatural. Viu o busto sorridente de Ricarda e sobre o seu ombro repousava o braço de Deus, conforme as bíblias escolares o costumam representar. Diante dessa experiência, em 1928, decidiu se converter ao catolicismo.

6Infelizmente não foi possível encontrar nenhum exemplar da 3ª edição (primeira edição do manual reformulado) datada de 1942. Para esta pesquisa foi estudada a 4ª edição, de 1948. Não foram encontradas fontes que demonstrassem modificações em relação à edição de 1942.

Recebido: 12 de Março de 2018; Aceito: 15 de Maio de 2018

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