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Educação UNISINOS

On-line version ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.22 no.3 São Leopoldo July-Sep 2018  Epub May 16, 2019

https://doi.org/10.4013/edu.2018.223.11 

Artigos

Do aprendizado: as lições do professor-Deleuze1

From learning: The lessons of teacher-Deleuze

Christian Fernando Ribeiro Guimarães Vinci2 

2Universidade de São Paulo. Faculdade de Educação. Av. da Universidade, 308, Cidade Universitária, 05508-040, São Paulo, SP, Brasil. christian.guimaraes.vinci@gmail.com


Resumo

Este artigo procurará retomar uma discussão surgida recentemente na França, interessada em demonstrar a íntima relação entre a atividade docente de Gilles Deleuze e a sua filosofia, e pensar suas implicações para o conceito deleuziano de aprendizado. Pouco trabalhado pelo filósofo francês, que dedicou apenas duas de suas obras para discutir tal noção, o conceito de aprendizado, a partir dessa produção francesa contemporânea, adquire um local de destaque no interior do pensamento de Deleuze e pode vir a contribuir com o estudo de muitos pesquisadores brasileiros interessados em articular a filosofia deleuziana com temáticas educacionais. Atestando a íntima relação entre o professor-Deleuze e o pensador-Deleuze, uma nova e interessante vereda de sua filosofia vem à tona e nos auxilia a pensar uma educação balizada por um conceito outro de aprendizado.

Palavras-chave: Gilles Deleuze; aprendizado; pesquisa educacional

Abstract

This article aims at retaking a recent discussion in France, interested in the demonstrating the intimate relationship between Gilles Deleuze’s teaching activity and his philosophy, and at considering its implications for the Deleuzian concept of learning. Little worked out by the French philosopher, who devoted only two of his books to discuss such a notion, the concept of learning, from this contemporary French production, acquires a place of prominence within the thought of Deleuze and can come to contribute with the study of many Brazilian researchers interested in articulating the Deleuzian philosophy with educational themes. Attested to the intimate relationship between the teacher-Deleuze and the thinker-Deleuze, a new and interesting path of his philosophy arises and helps us think of an education marked out by another concept of learning.

Keywords: Gilles Deleuze; learning; educational research

Introdução

Os conceitos são exatamente como sons.

Gilles Deleuze

Há muito os pesquisadores do campo educacional têm buscado aprender com Gilles Deleuze, realizando trabalhos em companhia de seu pensamento. O autor de Diferença e Repetição demonstrou ser um aliado poderoso para aqueles interessados em pensar uma pedagogia avessa ao primado da representação, base de toda a tradição educacional ocidental (Gallo, 2012). O filósofo francês incita-nos a pensar uma pedagogia outra, preocupada em “liberar todo pensamento daquilo que o entrava e o deforma” (Schérer, 2005, p. 1185). Uma pedagogia que não busca formar, educar ou avaliar, mas construir espaços singulares de aprendizado. Aprender, para os autores envoltos com o pensamento deleuziano, não significaria tomar posse de um saber que residiria alhures - em um professor ou mesmo no mundo das ideias - e capaz de ser mensurado e/ou aprimorado por meio de técnicas educativas, mas implicaria antes um encontro, violento e contingencial, com signos heterogêneos que, munidos de múltiplos sentidos, são interpretados e acabam por gerar pensamento.

Para Deleuze (2010), o encontro regeria o aprendizado e o aprender possuiria uma selvagem conotação processual, sendo impossível controlar, retardar ou acelerar o processo. Uma sala de aula comportaria, em um único espaço-tempo, inúmeros aprendizados, ocorrendo em diferentes ritmos e disparados por diferentes encontros com signos os mais variados ou a partir de um mesmo signo interpretado de diferentes formas. Não é possível saber ou mensurar como alguém aprende, sob quais condições e o quanto aprende, tampouco podemos pensar em um método capaz de garantir um aprendizado eficiente de uma miríade de saberes. Sob um tal diapasão, desaba toda e qualquer “pretensão da pedagogia moderna em ser uma ciência” com “a possibilidade de planejar, controlar, medir os processos de aprendizagem” (Gallo, 2012, p. 4). A educação, graças a esse acento deleuziano, é colocada em regime de imanência: interessam os processos singulares de aprendizado, os signos envolvidos e a violência causada pelos mesmos, e nada mais.

Não são poucos os trabalhos em Educação preocupados em aprofundar e/ou esmiuçar essa discussão acerca dessa outra noção de aprendizado, trazendo novos elementos para o debate. Deleuze, por conseguinte, tornou-se um autor influente no campo das pesquisas educacionais. Alguns autores (Gallo, 2012; Yonezawa, 2013) concordam que, embora Deleuze jamais tenha escrito sobre educação, a sua filosofia comporta inúmeros elementos relevantes para pensarmos a área. É curioso como esses mesmos pesquisadores, embora recordem que o filósofo francês foi professor de Filosofia em liceus e em universidades, tendem a ignorar essa sua faceta professoral e focar-se unicamente na parca discussão deleuziana sobre a noção de aprendizado. Esse conceito, convém lembrar, não recebeu uma atenção detida por parte de Deleuze, que dedicou apenas duas de suas obras para discuti-lo (Deleuze, 1988, 2010).

Ora, ao dissociar o professor-Deleuze do pensador-Deleuze, esses autores acabam por passar a impressão de que a prática docente deleuziana pouco ou nada contribuiria para sua filosofia e vice-versa. Ademais, com o argumento de que Deleuze pouco ou nada escreveu sobre educação, tomam por certo que questões ligadas ao campo pedagógico pouco preocuparam o filósofo - excetuando-se, claro, a temática do aprendizado. Na contracorrente dessa visão, recentemente vimos surgir, em França, uma gama variada de autores que buscam recuperar a imagem de um Deleuze pedagogo. Essa produção recente tem recuperado uma faceta inaudita da filosofia de Deleuze, a de professor, e, concomitantemente, demonstrado que não é possível distinguir a prática docente do pensamento deleuziano. O intuito desse artigo será o de revisitar essa produção francesa recente para pensar a relação entre o ofício docente exercido por Deleuze ao longo de sua vida e a sua filosofia, oferecendo, assim, subsídios para a discussão que tem tomado corpo na pesquisa educacional brasileira. Como o resgate de certos registros de aula de Deleuze, ou do professor-Deleuze, podem nos auxiliar a compreender uma outra faceta de sua filosofia e, por conseguinte, conceder ao conceito de aprendizado um outro estatuto?

Um professor popular

Em um amplo salão na Université d’Avignon, sentado na única cadeira disponível no recinto, um homem, sobriamente trajado de preto, profere uma aula para um auditório vazio. Quando muito, um ou outro curioso adentra ao espaço, aventurando-se timidamente por aquele estranho ambiente, no qual ninguém ousa se demorar muito. A ausência de cadeiras é um grave entrave, pois dificulta aos passantes melhor se acomodarem para extrair as lições proferidas pelo pretenso mestre. Àqueles mais ousados é permitido sentar-se no chão e mesmo recostar-se nas paredes, para uma apreciação mais adequada da lição em curso, caso assim o desejem. O professor, parecendo ensaiar luto, agita-se em sua cadeira, gesticula com suas mãos afoitas, e vocifera com uma rouca voz, com um ensaiado acento gutural.

Essa “aula”, na verdade, integrou o programa de um famoso festival de artes, o Festival d’Avignon, e foi ministrada não por um professor, mas por um artista performático. Tratou-se de uma conferência destinada a todos, tendo em vista se tratar de um espaço aberto ao público, e ao mesmo tempo dirigida a ninguém, uma vez que não são oferecidas condições mínimas para permanência no local. Poderíamos, então, considerar essa apresentação como uma metáfora adequada para descrever a situação do professor diante de seu alunado? Essa seria uma interpretação possível, mas, a princípio, não foi essa a intenção do artista. Este também não buscou transmutar uma aula em objeto artístico ou, ainda, pedagogizar a sua arte, tornando-a mais palatável ao grande público. Não se tratou de uma aula-metáfora ou de uma aula-performática, muito menos de uma aula sobre performance. Era uma aula, apenas. Singular e nada convencional, sem dúvida, mas ainda assim uma aula, com todos os ritos e encenações típicos de um professor em classe.

Para além da cena ali montada, havia um conteúdo sendo trabalhado seriamente pelo artista: o performer discorreu sobre a história do cinema e lançou muitas questões de cunho filosófico aqui e acolá. Não tratou de nenhum assunto concernente à performance, pelo contrário. Essa palavra, ou outras sinônimas, não apareceram em nenhum momento de sua fala. Em certa altura da apresentação, o artista propôs uma distinção entre três tipos de imagens cinematográficas: imagem-percepção, imagem-ação e imagem-afecção. Essa tipologia, para muitos, soa conhecida. São categorias trabalhadas pelo filósofo Gilles Deleuze em seu livro Cinema: a imagem-movimento (Deleuze, 1985). Seria, então, uma aula ou um seminário sobre o pensamento deleuziano? Tampouco, embora muitos festivais de arte tragam, como parte integrante de sua programação, conferências públicas sobre pensadores variados que, vez ou outra, trataram de questões concernentes ao campo das artes visuais ou do corpo. Não, não era uma aula sobre Gilles Deleuze, mas uma aula de Gilles Deleuze.

Robert Cantarella, performer francês, realizou essa curiosa apresentação, sugestivamente intitulada de Faire le Gilles, no ano de 2012. De lá para cá, houveram muitas outras encenações e o trabalho acabou sendo gravado e está integralmente disponibilizado na rede mundial de computadores3. A gravação contou, ademais, com inúmeras exibições públicas na Cinémathèque Française, dado o crescente interesse suscitado por essa obra singular. Mas o que motivou tamanha curiosidade por parte do grande público? Afinal, a performance em si limitou-se a replicar ipsis litteris o conteúdo proferido por Deleuze em uma de suas aulas, mais precisamente aquela do dia 26 de janeiro de 1982, também disponível on-line e passível de ser acessada por qualquer curioso4. Tratou-se, em linhas gerais, de uma repetição. Cantarella reproduziu não apenas o conteúdo, mas todo o gestual deleuziano - reconstruído a partir da entrevista realizada pelo artista com ex-alunos de Deleuze.

Conforme descreve o artista em sua página na internet, não se tratou de criar uma simples e banal imitação de Deleuze, uma caricatura ou algo que o valha, mas de repetir os efeitos suscitados por uma gama de conceitos deleuzianos. O artista parte da premissa que, ao trabalhar com determinados conceitos filosóficos em aula, Deleuze, com seus gestos e com as mudanças no timbre de sua voz, expressaria os efeitos desse material sobre seu corpo. Considerando ainda que a filosofia, como defenderam Deleuze e Guattari (1992), jamais foi uma atividade reflexiva, mas inventiva, Cantarella defende que uma aula de filosofia, por conseguinte, deveria funcionar como um laboratório de experimentações de pensamento, mais do que um espaço para esclarecimento de dúvidas ou explicação de alheios sistemas de pensamento. O aparato conceitual filosófico trazido por Deleuze em suas exposições, nesse sentido, não passava de um objeto para ser sentido mais do que compreendido. A sua voz, aliada ao seu gestual professoral, ofereceria um vislumbre do funcionamento da maquinaria filosófica deleuziana que Cantarella, com sua performance, procura resgatar. O intento do artista é recuperar a força de pensamento expressa na atividade docente de Deleuze, os modos como as suas aulas afetavam e ainda afetam uma variada gama de pessoas.

Ora apresentado como um ogro, com uma voz gutural e assustadora, ora como o anti-pedagogo por excelência, por recusar qualquer proeminência de seu saber em relação ao dos demais, Deleuze foi, sem sombra de dúvida, uma espécie muito particular de professor. Não por outro motivo, o mercado editorial - sobretudo o francês - há muito tem se interessado em divulgar, seja através de suportes audiovisuais ou simples transcrições, suas falas públicas, seminários e as aulas que ministrava. A editora Gallimard, por exemplo, começou a publicar, a partir de 2001, os volumes da coleção À voix haute. São, ao todo, três volumes contendo o registro em áudio de diversos cursos ministrados por Deleuze em Vincennes, cada volume foi organizado tematicamente: o primeiro, Spinoza: immortalité et éternité (2001), cobre os cursos dos anos de 1978 e 1981; Leibniz: âme et damnation (2003), os seminários de 1986 e 1987; e, por fim, Cinéma (2006a), as aulas dadas no intervalo 1981-1984. Em 2006, Frederic Astier (2006) organizou e publicou as transcrições dos cursos ministrados por Deleuze entre os anos 1979-1987, no volume Les cours enregistrés de Gilles Delezue (1979-1987); trata-se de um registro mais extenso e completo do que aquele privilegiado pela coleção da Gallimard. No Brasil, contamos apenas com uma publicação similar, aquela intitulada Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981) e resultado do esforço de um grupo de pesquisadores ligados à Universidade Estadual do Ceará que utilizaram como base para a sua tradução uma antiga versão espanhola. Os pesquisadores brasileiros, ademais, têm disponível transcrições em espanhol publicadas pela editora argentina Cactus, que, desde 2003, tem se esforçado em publicar em formato brochura a transcrição de todas as aulas ministradas por Deleuze disponíveis na rede mundial de computadores. O material, portanto, é vasto e de fácil acesso - ao menos para aqueles que possuem como primeira ou segunda língua o francês ou o espanhol. Contamos também, para além desse material, com a entrevista concedida por Deleuze à Claire Parnet intitulada Abecedário, também disponível on-line.

À publicação desse material, seguiu-se uma gama de trabalhos voltados a discutir a prática docente de Deleuze. Pioneiro, Claude Jaeglé, com seu Portrait oratoire de Gilles Deleuze aux yeus jaunes (2005), inaugurou a leva de trabalhos preocupados em registrar o importante papel professoral assumido por Deleuze em Vincennes e como o seu ofício de professor contribui para a compreensão de sua filosofia. Ao trabalho de Jaeglé seguiram-se os estudos de Sébastien Charbonnier (2009), Gilles Boudinet (2012) e Charles Soulié (2015). É curioso notar esse interesse recente por uma faceta pouco explorada de Deleuze, a de professor, e o modo como esses autores, de maneiras distintas, correlacionam a prática docente deleuziana com elementos próprios à sua filosofia. Para todos, sem exceção, haveria um elemento, da ordem do afeto, importante nas aulas ministradas por Deleuze que encantava os seus ouvintes e que, de algum modo, prolonga os intentos de sua filosofia.

Um professor aberrante

Em um ensaio curioso, construído a partir dos registros disponibilizados pela editora Gallimard até então, Jaeglé (2005) inicia o seu relato apresentando um Deleuze calmo e doce. Tal qual uma fera que, a fim de melhor armar o bote, enlaça o seu ouvinte com suaves cantigas. Diz-nos o autor:

Sua voz [Deleuze] é paciente, a princípio. O timbre de sua voz mantém uma espécie de baixa tensão. A voz de um homem que controla o seu apetite enquanto você se colocar diante dele, imóvel, em uma sala fechada. O público e o orador se observam. Há um elemento culinário presente em suas palavras: engordar a atenção, alimentar o pensamento, digerir a obrigação de ensinar... Mas se é vital comer, também é vital evitar ser comido (Jaeglé, 2005, p. 8, tradução nossa).

Há um encanto por trás de cada palavra proferida pelo mestre. O professor prepara para abater sua vítima, devorá-las tal qual um ogro o faria, mas ao mesmo tempo procura se defender dos ataques que lhe são dirigidos. Para tanto, os rituais e certas performances docentes são essenciais. Esse elemento, de caráter performativo, é notado também por Charles Soulié (2015) que enxerga o professor-Deleuze como um personagem teatral. O autor de Diferença e Repetição ensaiava suas aulas, repetidas e infinitas vezes. Esses ensaios destinavam-se a potencializar o aspecto emotivo de suas falas, pois, como nota o autor: “quando dava aula, Deleuze solicitava o afeto ou a sensibilidade de seu público” (Soulié, 2015, p. 303). Outro autor, Gilles Boudinet (2012), endossa esse caráter performativo típico e concorda com Soulié ao afirmar que Deleuze aproximava-se mais de um artista ou de um músico do que propriamente de um professor. Boudinet, ademais, lembra como o formato das aulas ministradas por Deleuze, similares aquilo que denominamos de aulas magnas, conferia um aspecto solene às suas falas. O filósofo francês, aproveitando-se desse formato, raramente concedia espaço para discussões ou para o jogo professoral de perguntas e respostas - evitava ser comido, diria Jaeglé. Era uma forma, argumenta Boudinet, de evitar armar uma cena na qual alguém assumisse uma proeminência em relação aos demais. Deleuze recusava-se, em suas aulas, a assumir o papel de formador de almas. E, para tanto, havia um ritmo, densamente ensaiado, que devia ser solenemente respeitado.

Esse ensaio deleuziano era exaustivo, o próprio Deleuze (2007) notou, certa feita, que uma aula necessita de muito tempo de preparação para obtenção de alguns poucos minutos de inspiração. E era necessário que uma aula servisse para inspirar, tanto o orador quando os estudantes, pois elas funcionavam como laboratórios de pesquisa, espaço para experimentação de novos problemas e hipóteses. “Dá-se um curso sobre aquilo que se busca e não sobre o que se sabe” (Deleuze, 2007, p. 173). Estamos diante de uma concepção pedagógica muito particular, sem sombra de dúvida. E essa concepção, nota ainda Boudinet (2012), permite colocarmos certas questões do campo educacional sub judice. Pensando nessas questões, os autores supramencionados debruçam-se sobre o legado do professor-Deleuze, pois ali, nota sobretudo Charbonnier (2009), veríamos essa concepção outra em atuação e poderíamos, assim, compreender a proeminência do conceito de aprendizado no interior do pensamento deleuziano. Mas o que havia de tão peculiar nos cursos ministrados pelo filósofo francês para chamar-lhes tanto a atenção?

As aulas de Deleuze começavam sempre com um clima acolhedor. François Dosse (2010), resgatando o relato de alguns ex-alunos de Deleuze, narra o início típico de muitas de suas aulas:

Deleuze chega, e a sala já está cheia de estudantes, a ponto de se ter dificuldade de entrar. O lugar onde Deleuze deve

ficar já está tomado por uma infinidade de gravadores. Ele então interpela a plateia: “Vocês são gentis. Sinto prazer em ver que há tanta gente, mas eu precisaria pelo menos de um lugarzinho onde possa colocar meus livros”. Ele trazia sempre debaixo do braço um grande número de volumes que empilhava cuidadosamente e nos quais se encontravam folhas de anotações que nunca tocava (Dosse, 2010, p. 292).

Disso, costumeiramente, seguia-se uma historieta jocosa. Conta-se que, certa vez, Deleuze narrou aos seus alunos como, ao adentrar no trem, acabou se confundindo e trocou de mala com um senhor que estava ao seu lado. Tendo se apercebido da confusão tarde demais, Deleuze se viu privado de suas anotações e de seus livros. Por sorte, aquele senhor estava lendo um livro de Proust e isso poderia ser de grande serventia para a aula daquele dia, embora Deleuze pretendesse falar aos seus alunos sobre Espinosa. Relatos como esse são comuns ao longo da Biografia Cruzada escrita por Dosse e dão mostras da leveza e da acolhida tipicamente deleuzianas.

Quando menos esperavam, entretanto, seus alunos deparavam com uma modificação em sua voz, que assumia um tom agressivo e conduzia-os a um clima dantesco (Jaeglé, 2005). A calmaria reinante naquele recinto concedia espaço para a tensão, o ogro se preparava para dar o bote. Normalmente eram os momentos no qual um conceito emergia, no qual o professor começava a discutir com afinco temáticas filosóficas. A voz de Deleuze contava a história obscura por trás de um conceito, e essa história era narrada a partir de modificações em sua voz, como se “a substância do conceito resultasse de uma operação sonora oculta” (Jaeglé, 2005, p. 13, tradução nossa). Essa operação sonora pode ser identificada com um grito.

De fato, em diversas ocasiões em seus cursos, Deleuze faz-nos notar a importância do grito para a produção do conceito. Só criamos conceitos, de acordo com o pensador, por necessidade, quando do encontro com um problema que violenta o nosso pensar. Esse encontro nos faz gritar. Deleuze (2006b), em uma de suas conferências dedicadas à Leibniz, reconhece uma íntima relação entre o grito e o conceito, o grito expressa o conceito mas não se confunde com este. Tratar-se-ia, antes, de uma expressão afetiva imanente a qualquer aparato conceitual, e por esse motivo Deleuze defende a necessidade de atentarmos tanto para o grito dos filósofos quanto para as suas criações conceituais. O grito expressa o problema, a necessidade e a urgência inerentes à atividade filosófica por vias não-filosóficas, vias afetivas. Assim, a voz de um pensador, quando pego em flagrante delito, é importante. O pensamento, em seu exercício aberrante, pode ser pronunciado por meio de um conceito, a fim de ser melhor compreendido, mas esse por si só não basta, sendo necessário uma espécie de “dinâmica vocal alheia a qualquer espírito de compreensão” (Jaeglé, 2005, p. 19, tradução nossa). Para compreender um conceito, deleuziano ou não, é preciso atentar para o som emanado por ele, reparar em seu grito.

Essa visão é compartilhada por um outro ex-aluno de Deleuze, Charbonnier (2009). De acordo com o autor, existe uma pedagogia deleuziana assentada no grito e este não é audível apenas pela leitura de seus livros. Os cursos de Deleuze, defende Charbonnier, produzem um desequilíbrio de pensamento naqueles que os escutam ou naqueles que os assistiram, desequilíbrio responsável por criar uma situação insuportável. Nessa nova ambiência, sufocante, apenas um grito conceitual é capaz de nos fazer respirar. As transcrições e as gravações das aulas de Deleuze, nesse sentido, são fundamentais para compreendermos os gritos que movem o pensamento deleuziano rumo à criação de uma ou outra de suas noções.

É curioso notar como, para todos esses autores, a didática deleuziana passa da mais completa calmaria, as aulas de Deleuze sempre começavam com um clima ameno e acolhedor, para a mais desgastante tensão. O aprendizado, por vias afetivas, tal qual o concebe Deleuze, parece necessitar desses altos e baixos, dessa performatividade singular nos dizeres de alguns (Vinci, 2015), para acontecer.

Jaeglé, buscando compreender o modus operandi dessa didática, reconhece quatro entonações vocais típicas no professor-Deleuze, quais sejam: (a) o travesso; (b) o palhaço; (c) o anfitrião; e, por fim, (d) o moribundo. São os quatro tipos de entonações vocais que, somadas, possibilitam ao ogro armar a sua armadilha. O travesso, brincando com os seus ouvintes, segue colocando perguntas infantis e bobas, conduzindo os seus alunos por um caminho que, à primeira vista, soa inocente; o palhaço, por sua vez, é a figura metódica, responsável por resgatar as perguntas colocadas pelo travesso e toma-las com seriedade, como em um jogo de mágica; o anfitrião surge então para mostrar a importância do circo armado por seus dois predecessores, os problemas abertos pelo colocação de perguntas que soam tão infantis em um primeiro momento; e, por fim, o moribundo instaura o silêncio. Os dois primeiros momentos correspondem aos instantes iniciais da exposição deleuziana, quando o pensador brinca com o seu público e instaura uma ambiência calma e acolhedora, leve. O grande momento das aulas de Deleuze, ou ao menos aquele de maior tensão, de acordo com Jaeglé, é o da passagem do anfitrião para o moribundo.

O anfitrião é o professor propriamente dito, trabalharia a favor daquilo que Deleuze e Guattari denominaram de professor público, em contraposição ao pensador privado: “o professor não cessa de remeter a conceitos ensinados (o homem-animal racional), enquanto o pensador privado forma um conceito com forças inatas que cada um possui de direito por sua conta (eu penso)” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 83). O professor público, por conseguinte, é o único momento no qual Deleuze lança mão da relação tradicional professor-aluno. A figura do professor público é encarnada na voz do anfitrião, essa figura ardilosa que não trabalha em prol da filosofia propriamente, mas sim de uma certa imagem dogmática de pensamento na qual a filosofia, longe de ser uma atividade criativa, não passa de um exercício reflexivo banal.

Contudo, mesmo com o anfitrião em cena, Deleuze se rebela contra essa imagem de professor público. Como nota Charbonnier (2009), embora trabalhasse em classe com a mais tradicional história da filosofia, Deleuze produzia deslocamentos nos autores que lia, apresentava uma leitura séria e rigorosa, mas também, ao mesmo tempo, distorcida. Não que as leituras deleuzianas estivessem erradas, pelo contrário, eram interpretações que, muitas vezes, revolucionaram os estudos de um determinado autor - como foi o caso de Espinosa. Também não se tratava de mais um caso em que Deleuze fazia um filho pelas costas de um filósofo, conforme relatou em sua carta à Michel Cressole (Deleuze, 2007). A distorção aparecia nas convocações deleuzianas, certas formulações em que o professor público cedia espaço para o pensador privado5. Eram momentos em que o pensamento emergia em toda a sua potência, por meio de uma variação vocal que colocava uma questão ou apontava para uma distorção produzida, e que culminava em um profundo silêncio. Mas o que traziam essas aberrantes formulações deleuzianas?

Deleuze, lembra uma vez mais Charnonnier (2009), convocava seus alunos para uma nova sensibilidade filosófica a partir do estudo de autores clássicos. Seu intuito, como pedagogo, era fazer nascer em seus ouvintes uma paixão, afetá-los. Para tanto, era necessário resgatar os gritos dos autores com os quais trabalhava, assim como era preciso gritar também. Era preciso, conforme Jaeglé, devorar e ser devorado.

Por essas e outras estripulias cênicas, Deleuze é apresentado por Gilles Boudinet (2012) como o anti-pedagogo por excelência. Deleuze não foi um formador de almas, não conduziu seus alunos nos caminhos do correto saber, tampouco procurou adestra-los. Buscava fomentar encontros intensivos apenas, que podem funcionar ou não. Deleuze se esforçava para que seu teatro, sua estética educacional como defende Boudinet, pudesse propiciar o maior número de encontros intensivos possíveis. Para o professor-Deleuze é necessário deformar os discentes, afastá-los da concepção corrente sobre o que significa pensar, qual seja: haveria um pressuposto de que todos naturalmente pensam e que esse pensar é sempre direcionado para a busca da verdade, e para acessá-la basta utilizar ou aprender um método ou coisa que o valha (Deleuze, 1988).

As aulas de Deleuze estariam em consonância com a sua noção de aprendizado? Para os autores supramencionados, sim. O filósofo, tal qual defendeu em Proust e os signos, dizia o seguinte acerca do aprendizado como um encontro violento com um signo:

Há sempre a violência de um signo que nos força a procurar, que nos rouba a paz. A verdade não é descoberta por afinidade, nem com boa vontade, ela se trai por signos involuntários. O erro da filosofia é pressupor em nós uma boa vontade de pensar, um desejo, um amor natural pela verdade. A filosofia atinge apenas verdades abstratas que não comprometem, nem perturbam. [...] A verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e a procurar o que é verdadeiro. O acaso dos encontros, a pressão das coações são os dois temas fundamentais de Proust. Pois é precisamente o signo que é objeto de um encontro e é ele que exerce sobre nós a violência. O acaso do encontro é que garante a necessidade daquilo que é pensado (Deleuze, 2010, p. 14-15).

E, mais adiante na mesma obra:

O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação verdadeira. [...] Pensar é sempre interpretar, isto é, explicar, desenvolver são a forma da criação pura. Nem existem significações explícitas nem ideias claras, só existem sentidos implicados no signo; e se o pensamento tem o poder de explicar o signo, de desenvolvê-lo em uma Ideia, é porque a Ideia já estava presente no signo, em estado envolvido e enrolado, no estado obscuro daquilo que força a pensar (Deleuze, 2010, p. 91).

Pensar não é algo natural e não diz respeito à verdade, mas está atrelado a um encontro tal qual acima descrito, e não podemos deixar de crer que essa concepção influenciou a estética pedagógica do professor-Deleuze. O aprendizado deleuziano, por esse motivo, não visa ensinar a pensar ou ofertar balizas que permitam aos seus alunos se orientar no pensamento, pelo contrário. Os cursos de Deleuze eram espaços de desaprendizado. E, como nota Charbonnier (2009) e Boudinet (2012), apenas nesse espaço aberrante, no qual desaprendemos a pensar o pensável para nos depararmos com o impensável possibilitado pelo encontro violento com signos heterogêneos, é que a filosofia pode ser concebida como uma atividade criadora e não reflexiva. Para tanto, é necessário operar toda uma outra sensibilidade ou um outro processo de aprendizado. E, por esse motivo, as formulações do professor-Deleuze são importantes e convém ser levadas em consideração.

A sensibilidade filosófica ou o aprendizado do inapreensível

Em uma de suas aulas, dedicadas à Espinosa, Deleuze argumenta:

Seria muito bom saber a Ética de memória. Decorem-na! Aprender Kant de memória não tem nenhum sentido, não serve para nada. Aprender Espinosa de memória serve para a vida. Em qualquer situação vital, vocês se perguntarão: “À qual proposição isto me remete?”. Sempre haverá uma em Espinosa (Deleuze, 2008, p. 146, tradução nossa).

Esse tipo de convocação era algo constante nos cursos de Deleuze. O filósofo, bonachão e simpático, costumava arrancar gargalhadas de sua plateia ao lançar bordões como o supramencionado. Jaeglé (2005), atento às convocatórias do antigo mestre, argumenta o quanto, para Deleuze, o importante não era o aprendizado de uma teoria ou de um sistema filosófico, mas os sentimentos vitais evocados por ela: “Nada de teoria. Sentimento, hein!” (Jaeglé, 2005, p. 17, tradução nossa), dizia o professor-Deleuze em certas ocasiões. Daniel Lins, um outro ex-aluno do autor de Diferença e Repetição, costuma se recordar de uma evocação similar: “Não é para vocês compreenderem, pois, se eu tivesse me dirigido à compreensão de vocês, creio que isso seria muito obscuro. É para que sintam alguma coisa” (Deleuze in Lins, 2009, p. 108). Evocações como essas foram registradas por diversas pessoas, conforme podemos depreender dos relatos utilizados por Dosse (2010) na construção de sua Biografia Cruzada.

Esses momentos, típicos daquela calmaria que antecedia o ataque do ogro - conforme os dizeres de Jaeglé -, faziam parte do ritual pedagógico deleuziano e operavam, em sua maioria, num campo crítico muito singular. Deleuze, mormente aquele de Nietzsche e a filosofia, sempre buscou privilegiar a força vital de um pensamento em detrimento dos juízos que deveriam lhe servir como norte. Essa força, por conseguinte, seria da ordem da sensação mais do que da razão. Graças à uma tal premissa, o pensador pode construir as bases que norteariam a sua visão da filosofia como atividade criativa. Essa recusa do juízo lhe possibilitaria escapar de certas limitações implicadas por essa noção. Como nos lembra Lins (2004, p. 32):

O problema com a concepção comum do juízo, que consiste em dele fazer uma faculdade para reconhecer o verdadeiro do falso, é antes seu poder anestesiante que separa o pensamento da vida, confinando-o no universo fechado - entre quatro paredes - e estéril da consciência e que, se acreditando autônomo, impõe sua forma ao real e não exprime nada além da sua reprodução. [...] O perigo - aqui há de fato um sério problema - com as filosofias do juízo se manifesta na sua confiança absoluta na consciência e na sua capacidade de verdade.

O juízo, para Deleuze e diferentemente das filosofias que o tomam como elemento fundante da consciência, não possuiria qualquer relação com a verdade, não seriam a expressão de um alhures que deveria nortear os nossos julgamentos e o nosso espaço de experiência. Ao impor sua forma ao real, ainda conforme Lins, o juízo tende apenas a criar as condições de possibilidade para a sua reprodução e, assim, impediria a realização de toda e qualquer experimentação. O pensamento, nesse caso, restaria refém de uma imagem, que lhe ditaria normas e caminhos para o seu correto exercício. Longe dessa seara, Deleuze e Guattari defendem que o pensamento seria pura experimentação, algo que escapa e todo e qualquer condicionante - seja ele histórico ou transcendente:

Pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que se está fazendo - o novo, o notável, o interessante, que substituem a aparência de verdade e que são mais exigentes que ela. O que se está fazendo não é o que acaba, mas menos ainda o que começa. A história não é experimentação, ela é somente o conjunto das condições quase negativas que tornam possível a experimentação de algo que escapa à história. Sem história, a experimentação permaneceria indeterminada, incondicionada, mas a experimentação não é histórica, ela é filosófica (Deleuze e Guattari, 1992, p. 143).

Por conta dessa concepção outra, a filosofia é compreendida como uma atividade criativa e não reflexiva. A filosofia deleuziana e deleuze-guattariana, por não se fiar nos juízos, escapa sempre das balizas impostas ao real, diz sempre daquilo que não pensamos ainda ou do impensável. Pensar, sob a égide da experimentação, é criar e, desse modo, escapar da estreita visão imposta pela faculdade do juízo.

Essa concepção, singular, coloca toda uma série de questões para o campo pedagógico. Ora, o que ensinar se não há verdades de direito? E, mais, como fomentar em nossos alunos esse pensar-experimentação? Deleuze, como bom pedagogo, colocava-se constantemente essas questões e, em muitas daquelas convocatórias que lançava em aula, costumava lembrar os seus alunos da importância de pensar de um modo outro e evitar partir em busca das verdades primeira. Por economia vocabular, talvez, esse pensar fosse sempre atrelado ao sentir. Para o exercício do pensamento, em moldes deleuzianos, é preciso amar ou se alegrar com algo. Não foram poucas as ocasiões, seja em entrevistas ou em aula, nas quais o filósofo assim comentou:

Se não se admira alguma coisa, se não se ama alguma coisa, não há razão alguma para se escrever sobre ela. Espinosa ou Nietzsche são filósofos cuja potência crítica e destruidora é inigualável, mas essa potência brota sempre de uma afirmação, de uma alegria, de um culto da afirmação e da alegria, de uma exigência da vida contra aqueles que a mutilam e a mortificam. Para mim, é a própria filosofia (Deleuze, 2006b, p. 186).

E, em uma de suas aulas:

Defendo, antes, que vocês estabeleçam relações moleculares com os autores que leem. Encontrem aquilo que lhes atrai, não passem sequer um segundo criticando algo ou alguém. Nunca, nunca, nunca critiquem. E caso alguém venha a lhes criticar, digam “de acordo” e prossigam, não há nada a fazer. [...] Eu acredito que não há nada mais triste do que jovens avançando em idade incapazes de encontrar os livros que realmente amam. E, geralmente, não encontrar os livros que ama, ou não amar a nenhum, dá um mau humor... acaba por gerar aquele sabe tudo sobre todos os livros. É uma coisa comum. Nós tornamos amargos. Vocês conhecem a amargura desse tipo de intelectual que se volta contra os autores pelo simples fato de não ter encontrado aqueles que realmente ama... aquele ar de superioridade conferido pela força de ser um boçal. Tudo isso é muito nojento. Seria preciso que, em última instância, apenas mantenhamos relações com aquilo que amamos (Deleuze, 2008, p. 161, tradução nossa).

Nessas incitações deleuzianas, notadas também por Charbonnier (2009), observamos um modo de pensar que não busca o estabelecimento de uma verdade primeira. A filosofia, para Deleuze, não deve trabalhar em prol do estabelecimento de um sistema de valores e de quadros norteadores de nosso julgamento; em outros termos, não deve ser concebida como uma limitadora de nosso espaço de experiência. Antes, deve ser capaz de nos afetar, de produzir alegria ou amor. Nesse diapasão, a tarefa de um professor não seria proporcionar uma explicação adequada das ideias de um ou outro pensador, mas produzir condições nas quais encontros afetivos possam ocorrer. De certo modo, a noção de aprendizado deleuziana está no coração da prática pedagógica do pensador. Para Deleuze, lembremos:

Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos. Quem sabe como um estudante pode tornar-se repentinamente “bom em latim”, que signos (amorosos ou até mesmo inconfessáveis) lhe serviriam de aprendizado? Nunca aprendemos alguma coisa nos dicionários que nossos professores e nossos pais nos emprestam. O signo implica em si a heterogeneidade como relação. Nunca se aprende fazendo como alguém, mas fazendo com alguém, que não tem relação de semelhança com o que se aprende (Deleuze, 2010, p. 21).

Um pedagogo não sabe como o seu aprendiz aprende, mas com certeza não é pela assimilação de conteúdos objetivos. O aprendizado é um caminho obscuro, no qual experimentamos signos heterogêneos. O professor, por conseguinte, não é aquele que concede aos seus alunos pontos para serem decorados ou plenamente compreendidos, uma aula jamais é um espaço de exegese, mas alguém que convoca os seus alunos para uma jornada por um mar de signos singulares e estranhos. Deleuze, relembrando dos relatos acerca de suas aulas, gostava de ministrar cursos sobre Espinosa a partir de um livro de Kant - único objeto disponível após uma confusão em algum trem. Era um signo heterogêneo, a partir do qual uma relação outra pode vir a ser construída. Como se orientar nesse mar?

As aulas de Deleuze, bem como seus escritos, exigem sempre uma leitura em intensidade. Sobre esta, diz-nos o filósofo francês:

Essa outra leitura é uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. [...] Essa outra maneira de ler se opõe à anterior porque relaciona imediatamente um livro com o Fora. Um livro é uma pequena engrenagem numa maquinaria exterior muito mais complexa (Deleuze, 2007, p. 16-17).

O pedagogo-Deleuze, munido dessas premissas, armava sua maquinaria, ensaiava os modos como cada engrenagem - um livro de Proust em uma aula de Espinosa, uma piada sobre Kant etc. - seria posta em funcionamento e seguia adiante, cada aluno se conectaria com aquilo que lhe afetasse. Não sabia se isso culminaria em um aprendizado ou não, mas isso pouco parecia lhe importar. Algumas vezes, há sinestesia e o ritmo do mestre é selecionado pelo aluno. O que resulta disso? Impossível saber.

Essa concepção de aprendizado trabalhada por Deleuze segue por uma via completamente selvagem. Não há qualquer certeza pré-estabelecida em uma aula, jamais sabemos se aquilo que estamos fazendo em classe servirá para alguma coisa e tampouco é possível saber o que irá despertar o amor ou a alegria em um aluno. Esse caráter indômito não deve nos conduzir a um certo sentimento niilista, de que nada é possível, mas justo o contrário. Gallo (2012) coloca essa discussão em termos de desapego:

O desapego que precisamos exercitar como professores é a preparação para nosso desaparecimento; se somos capazes de, ao emitir signos, mobilizar nos alunos o acontecimento aprender [...], então já não somos necessários depois disso. Abrimos o caminho; que caminho será esse, cada aluno escolherá, inventará e trilhará, em sua singularidade (Gallo, 2012, p. 9).

Justamente por não sabermos quais os resultados daquilo que propomos em uma aula, só nos resta experimentar toda e qualquer situação a fim de abrir caminhos. E por onde cada aluno irá enveredar nesse tipo de experimentação é um mistério, são inúmeras as criações possíveis e inúmeras as possibilidades pensarmos algo para além do tacanho real ao qual estamos submetidos por imperativos de muitas ordens.

Considerações finais

Dada essa rica discussão, não surpreende o interesse de tantos estudiosos por essa faceta professoral de Deleuze. Não podemos negar que há uma relação muito visceral entre as suas aulas e a sua filosofia, tendo esta sido forjada ou não em parceria de Guattari. Resgatar o registro de suas aulas, ademais, auxilia-nos a pensar a centralidade do conceito de aprendizado no corpus deleuziano e deleuze-guattariano para além daquilo registrado em nas obras escritas por esses autores. Não obstante pouco trabalhado, esse termo possui ressonâncias na prática docente deleuziana, e, por esse motivo, resgatar os registros das aulas ministradas por Deleuze possibilita-nos apreender o modo como a crítica outra almejada pelo filósofo operaria em ato.

Por fim, vale lembrar que o pedagogo-Deleuze, ao tratar em uma de suas aulas da questão do aprendizado, argumentou:

Vivi sobre um ritmo, no qual esperava perpetuamente o efeito de um corpo exterior sobre o meu - chamamos o mar de corpo, correto? Esperava o efeito. Podia ter alguma alegria. Sim, havia algumas pequenas alegrias: “Oh, é divertido!”, “Viu que bela onda?”, “Venci, dessa vez ela não me derrubou”. [...] Todos nós passamos por isso e aprendemos qualquer coisa. Isso é uma análise do que significa aprender. Aprender é isso. O que é o aprendizado? Começar, pouco a pouco, a selecionar. O que é saber nadar? É saber que um corpo tem certos aspectos. Trata-se de saber organizar um encontro. Aprender é sempre organizar um encontro. [...] Quando vocês alcançam esse saber-viver, podem dizer que possuem a sua potência. Antes, só poderiam dizer que tendiam a aumentá-la (Deleuze, 2008, p. 307-308).

O aprendizado, conforme é possível depreender do excerto supramencionado, possui uma íntima relação com o saber-viver, uma forte conexão com a busca pela potencialização de nossa vida ou com o nosso perseverar na existência - retomando o acento espinosano presente na fala de Deleuze. Não é possível, pois, compreender a filosofia vitalista deleuziana sem recorrer a esse grito expresso pelo conceito de aprendizado. As aulas de Deleuze, bem como tantas outras discussões esparramadas por suas obras, auxiliam-nos a resgatar esse elemento afetivo que norteia as suas discussões. Para os pesquisadores do campo educacional, ademais, elas trazem questões pedagógicas interessantíssimas e permitem nos desvincular da noção de que Deleuze pouco ou nada disse sobre Educação. Talvez, de fato, pouco ou nada tenha sido, mas Deleuze jamais deixou de se preocupar com questões concernentes à essa área, e suas interpelações, cada vez mais presentes no campo conforme atesta estudo recente (Vinci, 2014), podem ser de grande serventia para a pesquisa educacional em desenvolvimento no nosso país.

Referências

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1Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

3Todas as informações aqui compiladas, bem como um vídeo da performance, estão disponíveis no site de Robert Cantarella (s.d.).

4A aula em questão, bem como inúmeras outras, estão disponíveis site “La voix de Gilles Deleuze en ligne” (Deleuze, s.d.).

5Há uma fórmula professoral utilizada por Deleuze que, na concepção de Charbonnier (2009), marcaria esses momentos de distorção, qual seja: “Não o diz dessa forma, mas verão no seu [Spinoza] texto que é a mesma coisa” (Deleuze, 2008, p. 223, tradução nossa). Essa fórmula, na qual Deleuze aponta para a distorção produzida e ao mesmo tempo a faz equivaler com o dito literal do filósofo analisado, é uma constante nas obras deleuzianas, escritas ou não em parceria com Guattari. À guisa de exemplo, vale lembrar do excerto d’O Anti-Édipo: “Nietzsche não o diz assim, mas o que importa?” (Deleuze e Guattari, 2010, p. 253).

Recebido: 21 de Julho de 2017; Aceito: 27 de Setembro de 2017

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