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Educação UNISINOS

versión On-line ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.22 no.4 São Leopoldo oct.-dic 2018  Epub 17-Mayo-2019

https://doi.org/10.4013/edu.2018.224.04 

Artigos

O conhecimento escolar em tempos de uma pluralidade de saberes e novas formas de aprendizagem

The school knowledge in times of plurality of knowledge and new ways of learning

José Augusto Pacheco1 

Geovana Mendonça Lunardi Mendes2 

Joana Raquel Faria de Sousa1 

1Universidade do Minho. Campus de Gualtar, Rua da Universidade, 4710-057, Braga, Portugal. jpacheco@ie.uminho.pt joanarfsousa@gmail.com

2Universidade do Estado de Santa Catarina. Av. Me. Benvenuta, 2007, Itacorubi, 88035-901, Florianópolis, SC, Brasil. geolunardi@gmail.com


Resumo

Neste artigo, é abordado o conhecimento escolar em tempos de uma pluralidade de saberes e de novas formas de aprendizagem, mediante a abordagem de dois temas essenciais: a escola - entre o passado e o futuro - e a lógica de organização do conhecimento. Em cada um dos pontos, são introduzidas questões para responder à questão fundacional dos Estudos Curriculares - Qual é o conhecimento mais valioso?. Não havendo uma resposta definitiva, mais ainda com a afirmação das tecnologias digitais e seu impacto nas formas de aprender, a discussão está centrada no modo como a escola tem produzido a rutura na passagem de uma sociedade da tradição, ou da transmissão, para uma sociedade do conhecimento. Defende-se, assim, que a discussão sobre o conhecimento é fundamental, mesmo que para isso seja necessário rever lógicas e reconhecer o facto de que a tecnologia só por si não introduz mudanças significativas, se bem que o modo como agimos cognitivamente está em processo de mudança.

Palavras-chave: conhecimento; tecnologias digitais; aprendizagem

Abstract

This article addresses the school knowledge in the times of a plurality of knowledge and of new approaches to learning by two essential themes: the school - in between the past and the future - and the logic of organizing knowledge. At each point, questions were introduced to answer the foundational question of Curriculum Studies - What is the most valuable knowledge?. In the absence of a definitive answer, even more so with the affirmation of digital technologies and their impact on the ways of learning, the discussion centered on how the school has produced the rupture in the transition from a society of tradition, or transmission, to a society of knowledge. It is argued, therefore, that the discussion about knowledge is fundamental, even if it is necessary to review the logic and recognize the fact that technology alone does not introduce significant changes, although the way we act cognitively is in process of change.

Keywords: knowledge; digital technologies; learning

Introdução

Sobre a escola há os mais diversos discursos, sobretudo no modo como os professores ensinam e os alunos aprendem, com a tendência para ser ignorado o conhecimento escolar, porque a sua organização é grosso modo atribuída a decisores que estão longe da sala de aulas. Se o currículo, na sua identidade como campo de estudos, responde a uma dúvida que jamais deixará de existir - Qual é o conhecimento mais valioso -, a escola tem sempre de procurar respostas cujo conteúdo não poderá traduzir-se numa verdade definitiva. Por isso, em tempos marcados pela pluralidade de saberes e pelo uso das tecnologias digitais, de que modo a transmissão e a aprendizagem têm sido perspetivadas de modo crítico e de acordo com novos desafios que são colocados à escola de hoje?

Escola - entre o passado e o futuro

Se há uma interrogação identitária dos Estudos Curriculares é consensual que ela seja traduzida pela questão - Qual é o conhecimento mais valioso? (Pinar, 2007) -, pois é esta dúvida que está na base do processo de transformação curricular, ou seja, a seleção, organização e sequencialização do conhecimento escolar (Pacheco, 2016). Trata-se de uma interrogação colocada por Herbert Spencer, em 1859, e que jamais pode ser dissociada das respostas que o currículo, entendido como uma construção social (Goodson, 2001), procura dar em cada tempo e espaço de formação, com vista à formação de sujeitos a parir de dinâmicas educacionais estabelecidas entre nas dimensões pessoal, social e cultural. Assim, o currículo inclui posições divergentes sobre o que é o conhecimento escolar e sobre quais são os seus significados sociais, políticos e culturais, reconhecendo Michel Fabre (2003, p. 14):

Os saberes são múltiplos, tal como as formas culturais. É necessário reconhecer os seus próprios valores, a sua funcionalidade segundo os contextos, mas também acerca do mundo, de acordo com o seu poder emancipatório e o seu degrau de universalidade. Donde a ideia de registo que permite a continuidade e a rutura entre a cultura dos alunos e a cultura escolar.

Mesmo que as discussões sobre o conhecimento oscilem, como um pêndulo que não cessa seus movimentos, entre o universalismo e o relativismo, numa cadência de argumentos nem sempre contrários, sobretudo quando “subjetividade e universalidade não se excluem mutuamente, mas são as duas fases da mesma moeda” (Žižek, 2009, p. 229), o que se ensina e aprende nesta sociedade do conhecimento em que vivemos apenas pode corresponder ao conhecimento no plural (Burke, 2015) ou a uma pluralidade de saberes que os motores de buscam ajudam a potenciar, na medida em que as ferramentas informáticas são dispositivos cognitivos que tornam mais ampla e mais presente a informação.

Esta situação coloca inúmeras interrogações não só sobre a escola como lugar de conhecimento, sabendo-se que muito se aprende para além da escola, bem como sobre o significado da educação - e de modo mais concreto sobre o ensino e a aprendizagem -, reconhecendo Gert Biesta (2013) que, presentemente, se verifica a tendência para se falar mais da linguagem da aprendizagem que da linguagem da educação, cuja ligação reporta à noção de emancipação perfilhada por Theodor Adorno (2011).

E falando-se mais da linguagem da aprendizagem, bastante reforçada pelas tecnologias da informação e comunicação e pelas ideias construtivistas, sobretudo as que reportam o papel individual do sujeito na aprendizagem, verifica-se que a transmissão ou o ensino são frequentemente negligenciados, mormente quando se discute a escola do futuro e o papel dos alunos nessa escola como nativos digitais. Se a sociedade do conhecimento provoca uma rutura na transmissão e no ensino tradicionais, sobretudo no papel tentacular do mestre e na atitude de submissão do aprendente, mais uma vez a interrogação central dos Estudos Curriculares - Qual é o conhecimento mais valioso? - conduz a outras interrogações, nomeadamente sobre o que ensinar, como ensinar, o que aprender e como aprender.

Situando-se numa fenomenologia da aprendizagem, e no quadro de uma revisão de conceitos centrados na transmissão e na aprendizagem, Marie-Claude Blais, Marcel Gauchet e Dominique Ottavi (2014) revisitam teorias e práticas educacionais, no contexto da cultura dos ecrãs e da era numérica, para reconhecer, tal como previu Seymour Papert (1981), que os computadores afetam profundamente os nossos modos de pensar e aprender. De modo mais preciso, os autores reconhecem que o universo da transmissão está morto e bem morto, por um lado, e que a necessidade da escola é algo de imperativo por outro, porque a ideia de escola como “lugar consagrado às gerações que não são ainda adultas” (Blais et al., 2014, p. 245) exige “uma outra filosofia do indivíduo e da sociedade” (Blais et al., 2014, p. 251) que reconheça que há mudanças na aprendizagem que necessitam de ser repensadas. Por exemplo, a existência de uma escola de aprendizagem apressada em detrimento de uma aprendizagem profunda ou de uma aprendizagem lenta. De facto, e partindo-se de ideias defendidas por Michael Fullan e Maria Langworthy (2014), reconhecer-se-á que vivemos em países com escolas apressadas, em que os professores dão menos tempo aos alunos na sala de aula.

Tal pressa da aprendizagem é, em parte, determinada não são pelo conhecimento que é valorizado, mas também pelas mudanças na forma de aprender. Olivier Houdé (2015, p. 114), partindo da asserção de que os ecrãs mudam o cérebro, no contexto de uma revolução digital que está em curso, e sob o ponto de vista estritamente cognitivo, diz que as novas tecnologias digitais são “ferramentas de um poder inédito para colocar o cérebro em modo hipotético-dedutivo e explorar todas as possibilidades oferecidas”, introduzindo, no entanto, “um pensamento demasiado rápido, superficial e fluido: a cultura do zapping” (Houdé, 2015, p. 114), tornando-se fundamental preservar para as gerações futuras, “uma forma de inteligência (e de memória) mais lenta, profunda e cristalizada, ou fixa, como era dantes a inteligência literária desde a revolução da imprensa” (Houdé, 2015, p. 114).

Os novos recursos de aprendizagem conduzem a uma discussão sobre a escola digital e, mais concretamente, sobre o conhecimento, reconhecendo-se a tendência atual para a sua simplificação através de uma redução a competências (Young, 2010), cuja utilidade se torna instrumental no modo como o currículo é organizado e a avaliação é concretizada, com vantagem para os resultados imediatos, essencialmente traduzidos em conhecimento mais prático e transitório, que não exige formas elaboradas de pensamento. Por isso, as aprendizagens tendem a ser “mais precoces, mais rápidas e mais eficazes” (Tricot, 2015a) ao nível das tecnologias quando a escola pode continuar a ter os seus ritmos e formas de aprender, já que a mudança ao nível da sala de aula não se processa de forma imediata. Assim, a integração das tecnologias digitais na escola depende

da sua utilidade, da sua simplicidade e da sua compatibilidade com o que se passa na sala de aulas. Aprendemos que a sua utilidade reside essencialmente no efeito positivo sobre a motivação, o empenho, o prazer dos alunos; sobre a interatividade e a possibilidade de personalizar a aprendizagem para um aluno singular. Mas aprendemos que estas mais-valias em termos de utilidade se obtêm muitas vezes em detrimento da simplicidade (Tricot, 2015b, p. 125).

Perante uma escola que introduz as tecnologias digitais nas salas de aula, coloca-se, reiteradamente, desde a década de 1960, quando as máquinas de ensinar eram elogiadas, a questão da necessidade do professor e do contacto humano ao nível da relação pedagógica. Se ao longo das últimas décadas essa solução foi inviável, por mais que se multipliquem os MOOC (Massive Open Online Course), é porque a sala de aula é ainda um espaço complexo de aprendizagem, onde as crianças e jovens têm sempre a necessidade de mais escola que os torne mais inteligentes. O aprender é algo de fundamental e que não poderá fazer-se de forma apressada e intuitiva, nem a partir de respostas simples e baseadas a partir de uma possibilidade de escolhas. A este propósito, Claude Bastien (2015, p. 48), estudando as respostas de alunos e reconhecendo o papel determinante dos conhecimentos anteriores, afirma que é fundamental, na avaliação das aprendizagens,

tentar compreender o processo que conduziu o aluno a dar uma resposta e não outra. Basear-nos na exatidão ou não da resposta relativamente à resposta esperada pode ser enganador […] a resposta pode ser exata, mas o conhecimento não estar assimilado ou, inversamente, a resposta constituir um erro, mas haver um domínio do conhecimento. Indagar que conhecimentos foram ativados, como foram aplicados tendo em conta as características da situação proposta, permite compreender melhor o aluno, dar-lhe assim uma ajuda adequada e, por último, torna-lo mais inteligente.

Aliás, as tecnologias digitais direcionam os alunos para a aprendizagem por descoberta, sobretudo quando o conhecimento adquire uma configuração em rede, com consequências no processo de ensino e aprendizagem, como propõe George Siemens (2006) através do conetivismo. Nesta perspetiva conceptual, o conhecimento é descentralizado, fluido e “construído” a partir da informação, já que todo o conhecimento é informação, mas nem toda a informação é conhecimento, obrigando a uma revisão do conceito de aprendizagem significativa ligado aos trabalhos de David Ausubel (1963, 2003). Tendo formulado a teoria cognitiva da aprendizagem significativa, que opõe a aprendizagem verbal por memorização, no início da década de 1960, Ausubel focaliza a aquisição e retenção de conhecimentos como atividades essenciais para o desempenho competente, insistindo na importância das variáveis da estrutura cognitiva do sujeito no processo de aprendizagem. Deste modo, Ausubel argumenta que a aprendizagem significativa é ativa, diferenciando-se quer da aprendizagem por memorização, quer das abordagens da aprendizagem por descoberta e pela investigação, na medida em que toda a aprendizagem significativa também envolve, necessariamente, a transferência.

Um dos pontos teóricos mais fortes de Ausubel é a afirmação de que o principal processo de aprendizagem significativa é por receção e não por descoberta. Na aprendizagem por receção, o aluno interioriza os conteúdos que lhe são apresentados de modo a serem reproduzíveis; na aprendizagem por descoberta é o conteúdo que deve ser procurado pelo aluno antes de o interiorizar, como se respondesse à resolução de um problema. Com efeito, são dois tipos de processos cognitivos muito diferentes, cuja aplicabilidade ao meio escolar depende basicamente das condições de aprendizagem que as formas pedagógicas instituem nas escolas e nas salas de aula. E como reconhece Ausubel (2003, p. 53)”, a aprendizagem verbal significativa talvez seja a forma mais vulgar de ensino na sala de aula, desde que estejam disponíveis os auxiliares concretos necessários”.

A aprendizagem significativa é um conceito que largamente incorporado tanto na linguagem das competências como na linguagem dos objetivos, numa clara afirmação do processo cognitivo da retenção, e que inclui, segundo Ausubel, a aprendizagem representacional e a aprendizagem conceptual. Ora sem retenção não há mobilização de conhecimentos, isto é, não existe o domínio de um desempenho competente que se revela pela compreensão de conteúdos ligados a matérias de aprendizagem e sua aplicação em contextos específicos. É neste sentido que Ausubel (2003, p. 37), embora não discordando da aprendizagem por descoberta, pois é fundamental rever os tempos e espaços escolares em que pode ser realizada, sublinha a importância da aprendizagem significativa por retenção, afirmando que o conhecimento não é apenas a capacidade de resolução de problemas, é um estado substantivo que contém um fim em si mesmo:

Não é realista esperar-se que todas as disciplinas escolares possam ter, mesmo de um modo remoto, um valor utilitário ou implicações práticas. O valor de uma grande parte da aprendizagem escolar apenas se pode defender na medida em que melhora a compreensão que um indivíduo tem de ideias importantes na sua cultura.

Consequentemente, os conceitos de informação e comunicação são centrais nos novos olhares sobre o conhecimento escolar, em geral, e sobre a aprendizagem, em particular. A este respeito, e apesar da arbitrariedade dos discursos, Manuel Castells (2002, p. 20) esclarece o que se entende por conhecimento e informação:

Conhecimento: um conjunto de declarações organizadas sobre factos ou ideias, apresentando um julgamento ponderado ou o resultado experimental que é transmitido a outros por intermédio de algum meio de comunicação, de alguma forma sistemática … Informação são dados que foram organizados e comunicados.

Nem sempre se torna fácil distinguir estes dois conceitos, mais ainda quando se observa que a escola convive numa pluralidade de saberes que apenas são distintos pelas suas funções e pelos seus usos, como propõe Peter Burke (2003, p. 19). Conhecimento é diferente de informação. Informação: “o que é relativamente “cru”, específico e prático; conhecimento: “o que foi “cozido”, processado ou sistematizado pelo pensamento (Burke, 2003, p. 19). Em termos conceptuais, “a informação precede a comunicação, a tecnologia, a ação e o conhecimento” (Illarco, 2003, p. 10), reconhecendo João Lobo Antunes (2002, p. 322), a este respeito:

E uma das mensagens mais difíceis de transmitir aos meus alunos é, retomando o verso de Eliot3, que informação não é sinónimo de conhecimento. O conhecimento implica, de alguma forma, aquilo que chamo a metabolização da informação que é encadeada, transmitida e, o que parece muito importante, incorporada no nosso genoma humano.

Independentemente dos conceitos, os conteúdos escolares são redefinidos pela sociedade do conhecimento, sendo constantes os desafios em termos da sua seleção e organização. Como ponto de análise essencial, dir-se-á que a sociedade do conhecimento, por um lado, não altera o valor substantivo da racionalidade do conhecimento das disciplinas e, por outro, contribui para a validação da asserção do conhecimento utilitário, aliás, no seguimento da tese de Jean-François Lyotard (2006, p. 3) - a de que “o saber muda de estatuto ao mesmo tempo que as sociedades entram na dita pós-industrial e as culturas na dita pós-moderna”. Ao não permanecer intacto na sua natureza, o conhecimento “será produzido para ser vendido” e “será consumido para ser valorizado numa nova produção”, sob a forma de “mercadoria informacional” (Lyotard, 2006, p. 4-5).

O que torna divergente o currículo são as questões em torno do conhecimento, quer no que diz respeito aos aspetos cultural, político, económico e social, sobretudo com a seleção e organização em disciplinas (transformação curricular), quer no que se prende com a transformação didática (ao nível do processo de ensino/aprendizagem) (Pacheco, 2016). Porque se vive numa sociedade dominada pela informação ou, melhor dito, na sociedade que busca novas forças produtivas (Demo, 2001), “o conhecimento é um recurso flexível, fluido, sempre em expansão e em mudança” (Hargreaves, 2004, p. 34), mais ainda quando as tecnologias digitais servem de ferramenta indispensável de transformação da informação em conhecimento. Assim, a escola questiona o conhecimento a partir de informação, num processo constante de problematização teórico-prática relacionado com campos científicos.

É através das diversas áreas ou disciplinas, em que se encontra organizado, que o conhecimento se torna num instrumento poderoso de experiência humana. Apesar das diferentes fontes ou lógicas que o fundamentam, o conhecimento escolar é um conhecimento educativo, devendo reconhecer-se que tal processo não é exclusivo das escolas. Daqui nasce a problemática entre conhecimento educativo, orientado para a formação social e pessoal dos alunos, com ênfase na dimensão da educação para a cidadania, e entre conhecimento instrucional, circunscrito a uma dimensão cognitiva, de domínio de saberes específicos.

Lógicas de organização do conhecimento escolar

Na contínua procura de uma resposta para a questão fulcral dos Estudos Curriculares - Qual é o conhecimento mais valioso? - é possível abordar a temática da organização do conhecimento em planos seriados por níveis, ciclos e anos de escolarização. Isto é algo que tem sido adotado na estruturação dos sistemas educativos, dando sentido, desse modo, às formas curriculares, ou seja, aos processos e práticas de inclusão do conhecimento em áreas e disciplinas e sua materialização em programas que especificam conteúdos. É sobre estes conteúdos que têm recaído análises muito diferentes, não sendo consensual a determinação dos conteúdos a ensinar/aprender, na medida em que as opções curriculares jamais podem ser entendidas como sendo neutras e apolíticas. Por isso, há duas lógicas que têm sido utilizadas para justificar o conhecimento escolar e sua organização através de projetos curriculares.

A lógica social impõe-se pela existência de um conhecimento comum à formação e que guia a aprendizagem numa orientação marcadamente socializante. A necessidade de se escolher o que pode e deve ser ensinado originou a ideia de ordem, pelo que o currículo, tal como a biblioteca e a enciclopédia, no dizer de Peter Burke (2003, p. 94) segue determinados padrões, registando-se, também, a “tendência recorrente para a diferenciação, a especialização e até mesmo o que poderia ser chamado de balcanização”. Neste caso, a escola pressupõe um cursus, uma cultura a transmitir e, através de um elenco de disciplinas, o currículo introduz a ordem, o controlo, a sequência e a totalidade, sendo precisamente essa a definição de currículo, referenciada na Universidade de Glasgow, em 1663, isto é, curso, disciplina e syllabus, no seguimento de uma tradição medieval (Goodson, 2001).

É nesta perspetiva que a escola é vista como um local de transmissão, cuja lógica normativa ou social se foi afirmando até aos dias de hoje, sustentando Michel Fabre (2003, p. 13) que “a invenção de uma nova figura de ideia educativa passa pela reabilitação da escola como lugar de transmissão e de aprendizagem de saberes”. Mais do que uma ordem normativa, dominada por uma ou por várias disciplinas, que historicamente se afirmam e buscam novos argumentos para manterem o seu lugar na construção da escolarização, o conhecimento é uma construção social (Goodson, 2001), pelo que o “debate acerca do conteúdo do currículo é considerado como uma disputa entre ideologias conflituais” (Kelly, 1981, p. 48).

Se a educação é perspetivada como uma atividade humana, centrada nos interesses, motivações e experiências dos aprendentes, conhecer é percorrer outros percursos que não somente aqueles que sejam ditados pela ordem curricular da escola, tal como é preconizado por uma visão individual do conhecimento escolar com centramento nos interesses de quem aprende e na natureza subjetiva do conhecimento. Porém, não se torna fácil identificar e seguir os interesses dos aprendentes, sobretudo quando se reconhecem vantagens na existência de uma cultura comum, sendo preciso ter critérios para a fundamentação do conhecimento escolar.

Uma primeira discussão sobre as temáticas que a educação deve incluir na sua organização curricular é introduzida por Platão (2010). Entendendo a educação e a instrução como algo que deve ser decretado, não se devendo verificar inovações “contra a ordem estabelecida” (Platão, 2010, p. 148), mantendo-se dentro da “lei” (Platão, 2010, p. 149), ou seja, do espírito da lei e da ordem” (Platão, 2010, p. 149), já que a sua finalidade é a do “aperfeiçoamento do espírito” (Platão, 2010, p. 251), permitindo o “crescer para a maturidade” (Platão, 2010, p. 254), Platão edifica certos “princípios gerais do ensino e da educação” (Platão, 2010, p. 133), de modo que cada geração seja melhor do que a precedente:

E, além do mais, - prossegui - uma Cidade que tenha começado bem, alargar-se-á como se estivesse num ciclo de crescimento. Quero dizer que uma educação e uma instrução, mantidas na sua perfeição, formam boas naturezas e, por outro lado, boas naturezas que tenham recebido uma educação assim, tornam ainda melhores que os seus predecessores (Platão, 2010, p. 147).

Do plano curricular proposto por Platão, para que a paideia se torne numa realidade positiva através de uma educação que contém uma rigorosa definição do que deve ser ensinado em cada um dos momentos, evidenciam-se quatro ciências básicas: Música, Ginástica, Aritmética e Astronomia (Platão, 2010, p. 303). As duas primeiras representam a dualidade espírito/corpo, estando na origem da paideia. Para a formação do “belo e bom guardião” (Platão, 2010, p. 81), da Cidade, metáfora de quem aprende, Platão considera que a “educação pela música é soberana porque o ritmo e a harmonia penetram mais no fundo da alma e tocam-na mais fortemente” (Platão, 2010, p. 118), gerando a “temperança nas almas” e incluindo a literatura (Platão, 2010, p. 81), ou as letras (Platão, 2010, p. 118), ou as narrativas (Platão, 2010, p. 285).

“Depois da música, é pela ginástica” que devem ser “cuidadosamente educados, desde a infância e no curso da vida” (Platão, 2010, p. 120), os jovens, pois é a que gera a “saúde nos corpos” (Platão, 2010, p. 122), e a que se aplica “ao que cresce e perece, uma vez que é do crescer e do definhar do corpo que ela se ocupa” (Platão, 2010, p. 285). Apesar de aparecerem numa sequência curricular, entre música e ginástica há uma relação de complementaridade, sendo que “os que praticam apenas a ginástica acabam por se tornar mais brutais do que convém, e os que cultivam apenas a música, mais moles do que seria bom para eles” (Platão, 2010, p. 130), em que uma e outra se harmonizam “pelo grau de tensão ou relaxamento que lhes convier”, pois “aquele que melhor misturar a ginástica com a música e na mais justa medida as aplicar à alma, é o homem de quem, com toda a razão, diremos ser o mais perfeito e harmonioso músico, muito mais do que o que afina as cordas umas pelas outras” (Platão, 2010, p. 132).

Platão advoga uma outra ciência indispensável, “aquela ciência comum, da qual se servem todas as artes, todas as formas de pensar, todas as ciências, e que se encontra entre as primeiras que todas devem aprender” (Platão, 2010, p. 286), na educação dos jovens atenienses: “a ciência dos números e dos cálculos”, a “aritmética” (Platão, 2010, p. 286). Tal ciência torna-se num dos “requisitos indispensáveis a um guerreiro”, sendo-lhe imprescindível se quiser compreender algo de tática, e mais ainda, se quiser ser um homem” (Platão, 2010, p. 287), e até a um filósofo “porque deve emergir do mundo da geração para atingir a essência, sem o que jamais será um verdadeiro aritmeta” (Platão, 2010, p. 291). Supondo-se que essa ciência esteja adaptada ao ensino ateniense, Platão fala da que se lhe segue na ordem da aprendizagem: a geometria, necessária às operações bélicas, incluindo o saber “armar um acampamento”, “conquistar praças fortes” e “cerrar ou abrir fileiras de um exército” (Platão, 2010, p. 292).

O plano para a educação ateniense é completado pela astronomia, a ciência consagrada ao “estudo metódico da profundidade” e que “compele a alma a olhar para cima e a transitar das coisas terrenas às coisas celestes” (Platão, 2010, p. 296). A aprendizagem destas ciências é justificada pela sua “utilidade prática”, já que todas elas “têm uma utilidade que não é negligenciável” (Platão, 2010, p. 294), e processa-se pelo “estudo metódico”, tentando-se “descobrir as relações e parentesco que há entre elas” (Platão, 2010, p. 300), mediante a aplicação do “método dialético”, “o único que, destruindo de modo sucessivo as hipóteses, se eleva até ao primeiro princípio a fim de nele garantir as suas conclusões”, bem como “aquele que apreende a essência de cada coisa” (Platão, 2010, p. 302).

Ao dizer que a educação se orienta para a eudaimonia, isto é, para a busca da felicidade, que “consiste no exercício e uso perfeito da virtude”, Aristóteles (1998, p. 531) distancia-se de uma visão idealista de educação defendida por Platão e afirma a sua utilidade prática, já que “a cidade equilibrada não é obra do acaso, mas do conhecimento e da vontade” (Platão, 2010, p. 531). Escrevendo que “ninguém questiona que a educação dos jovens deva constituir preocupação premente do legislador” (Platão, 2010, p. 561), Aristóteles partilha com Platão a visão social da educação, acrescentando que ela “deve necessariamente ser uma e a mesma para todos” (Platão, 2010, p. 561), tornando-se num “objetivo público” (Platão, 2010, p. 562), obedecendo a duas condições: “visar corretamente o fim das ações” e “encontrar os melhores procedimentos” (Platão, 2010, p. 529), numa articulação entre fins e procedimentos.

Enquanto prática ou instrumento de procura da felicidade, a educação é perspetivada por Aristóteles, tal como Platão também a concebe, como uma política do cuidado, com regras a cumprir pelas crianças, desde que nascem até que se tornam adultas, nas diversas atividades educativas, que incluem quer a preparação do guerreiro, no contexto histórico das disputas entre cidades gregas e com outras cidades, quer o desenvolvimento intelectual do ser humano, colocando algumas questões sobre o seu conteúdo:

Que a educação deva ser assumida, e como deve ser realizada, são aspetos que não devem ser ignorados. Este assunto tem presentemente gerado controvérsia, na medida em que nem todos estão de acordo acerca do que deve ser ensinado aos mais novos, no que se refere à virtude, e no que diz respeito à vida melhor. Também não é evidente se é mais adequado que a educação vise as capacidades intelectuais ou o caráter da alma […] ninguém coloca reservas, é certo, ao facto de se dever ensinar as coisas úteis absolutamente indispensáveis, embora não todas (Platão, 2010, p. 563).

Tal utilidade depende do conhecimento, assim classificado por Aristóteles (1991): conhecimento científico, substantivo, ligado à sabedoria filosófica, ou seja, à perfeição e que inclui as virtudes intelectuais como a sabedoria teórica (sophia) e a inteligência (sunesis); conhecimento tácito, ou sabedoria prática, relacionada com a conduta moral, a prudência e o senso prático (phronesis); conhecimento técnico, ligado às ciências produtivas. Esta gnosiologia aplica-se, somente em parte, ao que Aristóteles propõe como plano curricular para a educação dos cidadãos, que justifica de acordo com os seguintes argumentos: “São praticamente quatro os estudos liberais que se podem ensinar: a leitura e a escrita, a ginástica, a música e o desenho”. A leitura, a escrita e o desenho, por serem úteis para a vida e terem múltiplas aplicações; a ginástica porque incute bravura.

Se bem que não o expresse neste plano curricular, e analisando-se os temas sobre os quais escreveu para os alunos da sua escola, Aristóteles salienta a importância da filosofia, da política, da física e da biologia.

Passados séculos, o ideal de uma educação clássica, próxima do pensamento de Platão e Aristóteles, é retomado pela Renascimento através do Humanismo, que marca o individualismo, o naturalismo e a crença numa cultura pandémica, como se observa pela leitura de “O Cortesão”, de Castiglione (deve saber línguas, ter conhecimentos de música, deve aprender música para tocar vários instrumentos, deve saber desenhar e pintar) e de “Pantagruel”, de Rabelais (para tirar proveitos dos estudos e das virtudes, e além de dominar ser perito no conhecimento religioso, a educação deve proporcionar a aprendizagem da astronomia, da geometria, da música e, de igual modo, conhecer todas as coisas da natureza, de modo que não haja mar, rio e fonte de que não conheça os peixes, todas as aves da terra, todos os metais escondidos no ventre dos abismos.

A lógica social da educação encontra-se, também, em Ratke e Coménio. Para aquele, citado por Sandino Hoff (2008, p. 50) , em “todas as línguas, artes e ciências, deve haver uma uniformidade, o quanto possível, no que se refere à arte de ensinar, aos livros e aos preceitos”, sendo igual para todos os aprendentes a leitura e a escrita, enquanto, para este, é a afirmação da máxima universal da didática - “ensinar tudo a todos” (Coménio, 1985, p. 149) - a funcionar nas escolas, lugar “onde absolutamente tudo seja ensinado absolutamente a todos” (Coménio, 1985, p. 155), onde “todos os homens devem ser dirigidos para os mesmos fins - a sabedoria, a moral e a perfeição” (Coménio, 1985, p. 176) e onde a ordem é a razão de tudo, permitindo, desse modo, o desenvolvimento do homem à semelhança de uma planta (Coménio, 1985, p. 127). Dada a religiosidade destes dois autores, os conteúdos da escolarização obedecem a um plano marcadamente virado para a ascese, com um pendor muito forte para a leitura de textos bíblicos e para o domínio da língua latina.

Situando-se num outro registo escolar, Kant partilha de Platão a visão do legado geracional - “a educação é uma arte, cuja prática necessita de ser aperfeiçoada por várias gerações” (Kant, 1996, p. 19) - e sublinha que o “Homem tem necessidade de cuidados e de formação” (Coménio, 1985, p. 14), permitindo diferenciar quem é culto de quem é selvagem, pelo que se torna imperioso que a educação seja raciocinada, isto é, contrária à educação mecânica, ordenada sem plano e conforme as circunstâncias (Coménio, 1985, p. 21). De acordo com os princípios que Kant descreve, a educação contribui para que o Homem seja disciplinado se torne culto e prudente e cuide da moralização, pois a educação deve estar direcionada para o “presente da espécie humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a ideia de humanidade e da sua inteira destinação” (Coménio, 1985, p. 22). Deste modo, e tendo o mesmo entendimento que Ratke e Coménio, a educação deve destinar-se a todos e não exclusivamente a alguns, tal como foi defendido por Platão (2010, p. 200):

Os filhos dos homens superiores serão de seguida levados por estas autoridades para o aprisco, para junto de amas que habitam à parte num bairro da Cidade; os dos homens inferiores, e qualquer um dos outros que tenha vindo ao mundo com qualquer disformidade escondê-los-ão, como convém, num lugar proibido e oculto, de modo que ninguém saiba o que foi feito deles.

Das matérias que Kant (1996, p. 66) inclui no plano curricular correspondente ao fim global da educação, identifica-se o estudo das línguas, a botânica, a mineralogia, a história natural, a geografia antiga e a matemática, parecendo que esta é a “única para se obter da melhor maneira essa finalidade”. Para além da aprendizagem de conteúdos, a educação, na perspetiva de Kant, está orientada para a formação do caráter ou da sociabilidade dos aprendentes, devendo estes “manter com os outros relações de amizade e não viver sempre isoladamente” (Kant, 1996, p. 82).

Ainda na esteira do enraizamento de uma lógica normativa da educação, bastante acentuada por Jeremy Bentham (2000), sobretudo na imposição de condicionamentos fortes quanto à aprendizagem dos mesmos conteúdos por todos, mediante a aplicação de uma estratégia inspetiva, a referência à educação medieval torna-se obrigatória, mormente quando se estipula para a organização curricular do conhecimento a ordem geral (Trivium) e a ordem especializada (Quadrivium), correspondentes às sete artes liberais, ou seja, por um lado, a gramática, a retórica e a lógica e, por outro, a aritmética, a geometria, a astronomia e a música. Apesar da diversidade das matérias de estudo, a educação medieval é afincadamente de natureza religiosa, como analisa Durkheim (1984): o Trivium é a exploração da palavra, é a palavra de Deus; o Quadrivium é a exploração do mundo abstrato, sendo este estudo depois daquele, já que a palavra é antes do mundo. Na definição que dá de educação, Durkheim (1984, p. 17) não só reforça a pertença geracional, bem como a importância da pertença a grupos sociais:

A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as que ainda não se encontram amadurecidas para a vida social. Ela tem por objetivo suscitar e desenvolver na criança um certo número de condições físicas, intelectuais e morais que dela reclamam, seja a sociedade política, no seu conjunto, seja o meio especial a que ela se destina particularmente.

No seguimento da normatividade da educação, Auguste Comte, fundador do positivismo, tem uma influência marcante na estruturação do conhecimento escolar. A proposta que faz, numa síntese da antiguidade clássica, da idade média e da época moderna, relativamente à hierarquia das ciências, com base na identificação da organicidade da sociedade a partir da lei dos três estados (teológico ou fictício; metafísico ou abstrato; positivo ou real), baseia-se em seis ciências fundamentais - a matemática, a astronomia, a física, a biologia e a sociologia - “constituindo a primeira, necessariamente, o ponto de partida exclusivo e a última o único fim essencial de toda a filosofia positiva” (1990, p. 224).

A lógica individual, que tem sido associada à educação de Emílio, de Rousseau (1990) tem por objetivo a formação de um homem livre, a qual passa necessariamente pela liberdade da criança. O percurso que a criança faz perante a educação é muitas vezes feito de palavreado (Rousseau, 1990, p. 56), devendo, pelo contrário, ser referenciado pela natureza: “importa que uma criança não faça nada em função dos outros, mas unicamente em função da natureza; e nesse caso, só fará o que é bem” (Rousseau, 1990, p. 83).

A educação, para Rousseau, é um percurso individual, comandado por quem aprende, como reconhece Durkheim (1984, p.372) quando escreve que para Rousseau “a única realidade da sociedade é o indivíduo”, pois, “geralmente, a criança lê muito melhor no espírito do mestre que o mestre no coração da criança” (Rousseau, 1990, p. 117). Ainda em Rousseau, a educação de Emílio faz-se sem o recurso a conhecimentos valorizados pela quantidade e acumulação (Rousseau, 1990, p. 228) e que Paulo Freire (2006, p. 67) consubstanciaria no conceito de educação bancária:

A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com os seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher, tanto melhores educandos serão. Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante […] Eis aí a conceção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los.

Os conteúdos da aprendizagem escolar, e não se encontra em Rousseau o mesmo esclarecimento de Platão, não são os conhecimentos especulativos, mas o que pode de facto aprender a partir da experiência e do trabalho manual, sendo Emílio um artífice e um agricultor, com vista ao domínio de um conhecimento total. Outros representantes da lógica individual são John Dewey (2002) e William James (2005). O primeiro (Dewey, 2002, p. 178) coloca a ênfase naquele que aprende, afirmando a sua interação, no sentido da dialética, com o meio:

A questão é a criança. São os seus poderes presentes que se devem afirmar, as suas capacidades atuais que se devem exercitar, as suas atitudes que se devem realizar. Mas a não ser que o professor saiba, judiciosa e inteiramente, a realidade que está envolvida naquilo a que chamamos currículo, ele desconhecerá o poder, a capacidade ou a atitude presentes, bem como o método de as formar, exercitar e concretizar.

O segundo (James, 2005) tem uma visão pragmática da educação, apelando à utilidade prática, aos factos, ao concreto, aos factos e à ação, de modo que a verdade do conhecimento dependa somente da sua utilidade, pois o pragmático pode ser cético mas está aberto às discussões e rejeita o dogmatismo das afirmações. Para além dos autores referenciados, que bem expressam a importância dos conteúdos na configuração do conhecimento escolar, outros abordaram esta problemática, minuciosamente estudada por Jean-Claude Forquin (1996) a partir da relação entre escola e cultura e na ligação de dois extremos, representados pelo universalismo e pelo relativismo.

Porque existe entre educação e cultura uma relação forte, a especificidade da cultura escolar pressupõe “a reelaboração de conteúdos culturais destinados a ser transmitidos às novas gerações” (Forquin, 1996, p. 13). Este continuum cultural, em que a escola participa de modo muito ativo, tem originado diferentes análises quer sobre os conteúdos4 e as suas formas de organização, quer sobre o conhecimento veiculado por um dado projeto de currículo.

Assim, a reflexão em torno do currículo é, em primeiro lugar, uma análise dos processos de seleção e organização do conhecimento e, só depois, uma interpretação dos contextos em que se processa a construção de projetos de educação e formação. Mais do que a lecionação de um conteúdo, o currículo requer a abordagem das opções políticas quanto aos processos de educação e formação, sendo a educação perspetivada a partir de referenciais interdependentes, com primazia para o Estado (Bobbio, 2014) e para o Sujeito (Foucault, 2011).

Conclusão

Mesmo que as orientações transnacionais consagrem uma visão para a escola do conhecimento ligado às competências, naquilo que pode ser traduzido pela ditadura do conhecimento útil, o facto é que continua a ser marcante a questão central dos Estudos Curriculares - Qual é o conhecimento mais valioso? Se o conhecimento escolar serve propósitos bem definidos, poder-se-á perguntar de que modo esse mesmo conhecimento muda em termos sociais, sobretudo em tempos marcados pela pluralidade de saberes, com vista a responder às lógicas social e individual da organização do conhecimento escolar ao nível de projetos curriculares para um dado percurso de escolarização.

Os conceitos discutidos neste artigo podem contribuir para uma discussão inacabada, pois é essa a sua natureza, sobre o conhecimento escolar num contexto complexo, aberto e plurirreferencial de saberes, cujo ritmo de produção é cada vez mais avassalador, mormente na cultura dos ecrãs, introduzida pelas tecnologias digitais. De facto, a escola muda radicalmente perante estes saberes, mas será que tal escola cria a rutura entre a sociedade da tradição, ligada à transmissão, e a sociedade do conhecimento, que presentemente vivemos?

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3 Thomas Stearns Eliot: Where is the life we have lost in living?/Where is the windsom we have lost in knowledge?/Where is the knowledge we have lost in information?

4 Para Edgar Morin, 2000, os sete saberes necessários à educação do futuro e que definem a missão da escola são os seguintes: as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; os princípios de um conhecimento pertinente; a condição humana; a identidade terrestre; o confronto com as incertezas; a compreensão; a ética do género humano.

Recebido: 15 de Fevereiro de 2018; Aceito: 12 de Julho de 2018

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