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Educação UNISINOS

On-line version ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.22 no.4 São Leopoldo Oct.-Dec 2018  Epub May 17, 2019

https://doi.org/10.4013/edu.2018.224.09 

Artigos

Pedagogia feminista: narrativas autobiográficas, saberes e fazeres de mulheres camponesas1

Feminist pedagogy: Autobiographical narratives, knowledge and practices of peasant women

Marcia Alves da Silva2 

2Universidade Federal de Pelotas. Faculdade de Educação. Rua Alberto Rosa, 154, Centro, 06010-770, Pelotas, RS, Brasil. profa.marciaalves@gmail.com


Resumo

O texto aborda uma experiência acadêmica que tem a intencionalidade de colaborar com a construção de uma pedagogia feminista que incorpore as questões de gênero, sem abandonar a proposta pedagógica advinda da educação popular, mas, ao contrário, dialogando com essa produção focando na intencionalidade do feminismo. A proposta é interdisciplinar e se ancora, especialmente, na área de educação, na sociologia do trabalho e nos estudos de gênero, a partir do resgate de histórias de vida em oficinas de artesanato com grupos de mulheres camponesas assentadas, participantes do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no interior do município de Pinheiro Machado, estado do Rio Grande do Sul. Como objetivo, temos o propósito de contribuir para um processo de emancipação e empoderamento dessas mulheres camponesas mediante a implantação de cursos de artesanato para as mulheres envolvidas.

Palavras-chave: gênero; campesinato; pesquisa biográfica

Abstract

The text discusses an academic experience that has the intention to collaborate for the construction of a feminist pedagogy that incorporates gender issues, without abandoning the pedagogical proposal from the popular education, but, on the opposite, dialogues with this production focusing on the intentionality of feminism. The proposal is interdisciplinary and is especially anchored in the area of education, sociology of work, and gender studies, from the rescue of life stories in workshops with groups of settled peasant women, participants of the Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) within the city of Pinheiro Machado, State of Rio Grande do Sul. As a goal, we aim at contributing to a process of emancipation and empowerment of these peasant women through the introduction of handicraft courses for the women involved.

Keywords: genre; peasantry; biographical research

Origem da proposta como introdução

Este trabalho tem origem numa caminhada acadêmica que já dura mais de dez anos e que envolve pesquisa, ensino e extensão e tem sido realizada com diversos grupos de mulheres na região sul do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Este texto se refere ao trabalho que vem sendo realizado com mulheres assentadas do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no interior do município de Pinheiro Machado, estado do Rio Grande do Sul.

Tendo uma trajetória de estudo e pesquisa na interface das áreas de educação e trabalho, a incorporação da temática feminista teve início quando a proponente realizou seu doutoramento em Educação. O curso começou em 2006 e, na época, a pesquisa que originou a tese foi realizada com um grupo de mulheres artesãs que se organizavam em uma cooperativa popular nos moldes da economia solidária. Nessa época, a autora já exercia a docência universitária, mas também atuava como educadora em uma incubadora de economia solidária, e foi essa experiência que a colocou em contato com a cooperativa.

No que se refere ao exercício da pesquisa acadêmica, a autora já havia trabalhado com pesquisa qualitativa. Sua formação se deu na perspectiva da educação popular e, para essa escola de pensamento, a pesquisa participante aproxima a pesquisadora das pessoas pesquisadas, dando objetivos a ambos os polos da relação investigativa. Dessa forma, a pesquisa participante se coloca numa dimensão de que a pesquisa tenha propósito significativo para o grupo pesquisado, de forma que se torne um instrumento a ser colocado à disposição do grupo (Brandão, 1985, 1999). Com Paulo Freire (1979, 1987, 1997), aprendemos a importância da apropriação de ciência na construção de um processo que vise ao empoderamento e à autonomia das pessoas. Assim, os processos educativos e a própria prática da pesquisa devem ser construídos a partir do contexto social, histórico e cultural de quem aprende. Essa perspectiva descortina as trajetórias das pessoas, dando visibilidade e importância científica aos seus contextos de vida.

O uso de narrativa tem sido uma opção muito utilizada em investigações no campo da educação, tendo em vista essa perspectiva de trazer à tona as trajetórias das pessoas envolvidas. O campo educacional, em especial advindo da educação popular, no que se refere à pesquisa qualitativa e, mais especificamente, à pesquisa autobiográfica, vem descortinando outros contextos, antes invisibilizados pelos métodos e técnicas metodológicos construídos com base em uma concepção positivista e racionalista de conhecimento, produzida ao longo da tradição da modernidade. No entanto, podemos acrescentar que, se nós podemos aprender com a contribuição metodológica da pesquisa participante, podemos aprender também com a pesquisa autobiográfica e com os estudos feministas. São as interações entre esses variados campos do saber que podem provocar as rupturas tão desejadas na ciência tradicional, construindo outras metodologias que abarquem aspectos do conhecimento alijados historicamente da produção científica. Esse tem sido o propósito da proponente.

Durante a realização do doutorado, a proponente conheceu a perspectiva da pesquisa formação e começou a fazer as primeiras leituras da obra de Marie-Christine Josso. A primeira obra de Josso que leu foi Experiências de vida e formação (Josso, 2004). A pesquisa formação deu novo impulso à forma como já trabalhava e percebia a possibilidade emancipatória da pesquisa, reconhecendo o sujeito investigado como participante ativo do processo investigativo. Foi assim que a tese de doutoramento se desenvolveu, incorporando a perspectiva da pesquisa formação e, dessa forma, trazendo à tona e dialogando com as histórias de vida das mulheres artesãs da cooperativa já mencionada.

Com a intenção de visibilizar os trabalhos femininos, o artesanato é utilizado na pesquisa como uma importante ferramenta para trazer à tona as trajetórias de vida das mulheres envolvidas, pois se tem um entendimento de que o artesanato faz parte de muitas dessas vivências, já que a atividade artesanal está muito vinculada aos espaços domésticos e privados em que, historicamente, se constituíram enquanto espaços de presença das mulheres.

Nessa perspectiva de trabalho, a proponente desenvolveu a pesquisa denominada Artesã e professora: aproximação entre trabalho feminino e docência, entre os anos 2011 e 2014, com financiamento do CNPq (Edital Universal) em 2013. Nessa experiência investigativa, realizaram-se oficinas de artesanato com mulheres, que se constituíram em importantes espaços de ensino, pesquisa e também de extensão. Nessa investigação, também houve a intenção de abordar as trajetórias de gênero na constituição da docência, elemento que vem sendo trabalhado pela proponente na sua prática docente na formação de professoras/es.

Essa experiência se ampliou e incentivou a construção de um grande Programa de Extensão, financiado no ano de 2014 pelo Edital Proext. O Programa foi denominado Gênero, educação e arte: artesania, arte popular e formação em oficinas de criação coletiva , que buscou articular diversas iniciativas, expandindo as oficinas e os grupos de mulheres participantes. O Programa de extensão buscou incorporar grupos com perfis distintos de mulheres da região, incluindo: professores/as e alunos/as da rede de ensino, discentes da Universidade, mulheres agricultoras assentadas do MST e, também, mulheres catadoras da periferia da cidade. A união dessas diversas iniciativas e sua configuração em um Programa articulou pesquisa, ensino e extensão nas ações implementadas.

Finalizado o Programa dos grupos de mulheres atendidas, hoje se mantém o trabalho com as agricultoras, e se formam novos grupos de participantes nas áreas de assentamentos, inclusive ampliando-se o trabalho que se iniciou em 2014. Dessa forma, teve início o projeto denominado Trabalho artesanal com mulheres do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que realiza oficinas de artesanato com três grupos de mulheres assentadas do MST no interior do município de Pinheiro Machado - RS, pois, em função do sucesso das atividades realizadas desde 2014, a partir da iniciativa e do interesse dos próprios grupos, buscamos continuar com o projeto, aprofundando suas ações.

A partir dos estudos de gênero, o conceito de divisão sexual do trabalho (Kergoat, 2003; Hirata e Kergoat, 2007) tem se constituído no referencial teórico que possibilita a abordagem das trajetórias de gênero e trabalho feminino, enquanto o referencial das histórias de vida (Ferrarotti, 2014) buscam dar conta das narrativas das envolvidas. Importante salientar a humildade que se procura ter com as mulheres envolvidas, reconhecendo seus saberes e incorporando seus desejos e opiniões em todo o processo. Isso quer dizer que partimos do conhecimento delas, jamais impondo nosso olhar sobre o grupo, mas, sim, construindo com o grupo a caminhada coletiva de todas as envolvidas, sejam tanto as assentadas como as próprias acadêmicas.

A experiência implementada com as mulheres dos assentamentos tem a intencionalidade de trazer uma colaboração na construção de uma pedagogia feminista que incorpore as questões de gênero, sem abandonar a proposta pedagógica advinda da educação popular, mas, ao contrário, dialogando com essa produção e focando na intencionalidade do feminismo.

Este texto se organiza da seguinte forma: inicialmente, é desenvolvida uma abordagem sobre o patriarcado, buscando-se uma definição para o termo. A seguir, desenvolvem-se aspectos vinculados à construção metodológica da proposta que vem sendo executada para, na sequência, apresentar aspectos referentes ao processo de construção da pedagogia feminista, fazendo dialogar a perspectiva feminista adotada com aspectos advindos da educação popular. Por fim, é apresentado o trabalho que vem sendo realizado com as mulheres assentadas.

Construindo uma definição do patriarcado

Quanto ao estabelecimento de relações assimétricas de poder entre os sexos, Heleieth Saffioti desenvolveu, em sua obra, a temática do patriarcado e nos mostrou o quanto ele tem sido impedidor da emancipação feminina. Para a pesquisadora, patriarcado é um “sistema de relações sociais que garante a subordinação da mulher ao homem” (Saffioti, 1987, p. 16). Uma das frentes em que se percebe essa “subordinação” é na divisão do trabalho, conhecida como divisão sexual do trabalho. De acordo com Kergoat (2003), essa divisão possui dois grandes princípios organizadores: o princípio de separação (onde se diferenciam os trabalhos, como sendo de homens ou de mulheres) e o princípio de hierarquização (onde um trabalho masculino é mais valorizado que um trabalho feminino). Na realidade, esses princípios são aplicados graças a um processo específico de legitimação, que a autora denomina ideologia naturalista, que “empurra” o gênero para o sexo biológico, reduzindo, dessa forma, as práticas sociais a “papéis sociais” sexuados, os quais remetem ao destino natural da espécie. No entanto, em sentido oposto, a teorização em termos de divisão sexual do trabalho afirma que as práticas sexuadas são construções sociais, elas próprias resultado de relações sociais.

Lagarde y de los Ríos, em pesquisa publicada sob o título Los cautiverios de las mujeres (2005), aborda o trabalho como uma das categorias utilizadas em investigação sobre as mulheres mexicanas, trazendo, dessa forma, uma grande contribuição para a teorização sobre a divisão sexual do trabalho, especialmente na América Latina. A autora levanta o seguinte questionamento: a divisão do trabalho é natural ou historicamente constituída? O fato de que homens e mulheres pertencentes às mais diversas sociedades se dediquem a diferentes atividades tem sido compreendido como inerente à diferenciação sexual e relacionado com especificidades físicas, intelectuais, emocionais, de acordo com cada sexo. É, portanto, dessa forma que as ideologias sexistas têm compreendido a relação sexo e trabalho. Em função desse caráter a-histórico e inerte, as ideologias sexistas e racistas, de cunho biológico, são as que têm se mantido por maior tempo e com maior êxito na reprodução das ordens sociais. Heleieth Saffioti tem denunciado o caráter de naturalização desse processo em sua obra já há algum tempo, conforme aparece na passagem a seguir:

A sociedade investe muito na naturalização deste processo. Isto é, tenta fazer crer que a atribuição do espaço doméstico à mulher decorre de sua capacidade de ser mãe. De acordo com esse pensamento, é natural que a mulher se dedique aos afazeres domésticos, aí compreendida a socialização dos filhos, como é natural sua capacidade de conceber e dar à luz (Saffioti, 1987, p. 9).

No entanto, é importante ressaltar a necessidade de se pensar gênero não só em relação à subordinação da mulher ao homem ou à divisão sexual do trabalho, mas em conjunto com duas outras categorias fundamentais: classes sociais e etnia. As trajetórias dessas categorias não são as mesmas, pois elas possuem diferentes histórias, porém elas se constroem e reconstroem a partir de suas articulações, tendo em vista as sociedades às quais elas se referem e ao momento histórico vivido. Por outro lado, elas possuem um ponto em comum: a presença do patriarcado como determinador de relações sociais.

O conceito de patriarcado traz em seu bojo a estrutura hierárquica que confere aos homens o exercício de poder sobre as mulheres e também de alguns homens sobre outros homens. É importante lembrar que essa estrutura é reproduzida também pelas próprias mulheres, pois o patriarcado estabelece uma relação na qual atuam as duas partes, tanto homens como mulheres. Podemos confirmar isso em uma pesquisa recente realizada no país pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), denominada Tolerância social à violência contra as mulheres, cujos dados apontam que a população brasileira, ainda nos dias atuais, demonstra grande conformidade com valores e ideais típicos do patriarcado. Conforme a pesquisa, 63,8% dos/as participantes concordam com a afirmação de que “os homens devem ser a cabeça do lar” (IPEA, 2014).

Metodologicamente falando...

Já afirmamos que o artesanato é visto aqui como uma importante ferramenta para a abordagem do universo feminino. As oficinas se materializam como espaços de construção coletiva e de trocas de experiências de vida onde, aos poucos, a intenção é que as mulheres envolvidas valorizem o que fazem, reconheçam o artesanato como arte e como trabalho feminino e não como algo ‘menor’ e que possa, inclusive, se constituir como uma possibilidade de geração de renda.

Os momentos coletivos possibilitam a troca de experiências de vida dessas mulheres, constituindo-se num fortalecimento delas enquanto grupo. Acreditamos que o coletivo é muito mais do que a soma de diversos indivíduos, mas que, no caso das mulheres envolvidas, o coletivo possa contribuir para um amadurecimento nas lutas de gênero, articuladas ao movimento MST, do qual elas fazem parte. Dessa forma, as oficinas de artesanato e criação coletiva se constituem em espaços de diálogos, formação e trocas de experiências, a partir da compreensão entre as envolvidas dos seus próprios processos de aprendizagens com a ressignificação de suas práticas existenciais e de trabalho. Nesses encontros, buscamos a abordagem de suas histórias de vida a partir de relatos que afloram nesses momentos.

Como objetivo geral, temos o propósito de contribuir para um processo de emancipação e empoderamento de mulheres camponesas em assentamentos do MST no interior do Município de Pinheiro Machado - RS, por meio da implantação de cursos de artesanato para as mulheres envolvidas. O artesanato funciona aqui como uma importante ferramenta metodológica de trabalho, pois, além de oferecer uma aprendizagem que pode auxiliar na ampliação da renda dessas famílias, também se torna um espaço onde são encaminhadas outras atividades de formação na área de gênero (como filmes, palestras, debates, etc.), onde as mulheres envolvidas podem se repensar a partir do conhecimento da trajetória das mulheres no mundo e na história.

Especificamente, busca-se: - Fortalecer o intercâmbio entre a Universidade e os movimentos sociais: (i) construir e consolidar um espaço de convivência e de formação, numa perspectiva existencial e profissional, em direção à revisitação de suas trajetórias de vida e de trabalho; (ii) promover a circulação de saberes entre as envolvidas, instrumentalizando-as, a partir de suas práticas e de suas experiências, a trabalhar com materiais alternativos e criar novos, visando qualificar o trabalho que já realizam, enriquecendo seus próprios processos; (iii) coletar depoimentos e narrativas das envolvidas sobre suas trajetórias formativas e suas identidades de gênero, buscando resgatar suas histórias de vida no mundo do trabalho feminino e no próprio movimento social no qual fazem parte, visando articular a prática da extensão com a prática investigativa; (iv) ampliar os referenciais de gênero e trabalho feminino a partir da aproximação do tema artesanato e gênero com o grupo; (v) consolidar o trabalho do grupo do CNPq Educação, Gênero e Trabalho Artesanal.

Busca-se fortalecer e consolidar um ambiente de convivência e de formação nos assentamentos do MST participantes, materializado em oficinas de artesanato, ministradas por uma equipe de acadêmicas (graduação e pós-graduação), que também são artesãs. Além disso, trabalhamos com a abordagem das histórias de vida como forma de aproximação das trajetórias individuais, as quais compreendemos não isoladas em suas individualidades - muito pelo contrário - mas como materialidades de formas de estar no mundo que são constructos do processo histórico social que os constroem. Por isso, acreditamos que só vamos poder construir alternativas contra o patriarcado se compreendermos efetivamente como ele se consolida nas nossas próprias trajetórias, tanto de vida como de trabalho.

Para a efetivação das oficinas, optou-se por uma metodologia bastante prática, com base numa abordagem direta e tendo referência em Paulo Freire, compreendendo que o aprendizado é algo dinâmico e construído coletivamente, respeitando os saberes individuais. É importante ressaltar que a escolha pelas técnicas de artesanato a serem trabalhadas são escolhidas, coletivamente, pelas próprias mulheres, em conjunto com a equipe que coordena o projeto.

As mulheres participantes vêm descobrindo o artesanato passo a passo na construção de suas identidades. Muitas relataram que jamais tinham pensado que o fato de suas mães costurarem ‘para dentro ou para fora de casa’, ou o fato de trançarem um simples chapéu de palha pudesse ser visto como um artesanato. Muitas relatam também que não querem o artesanato dentro de suas vidas apenas como sinônimo de rendimentos, mas que, para além da venda do material, buscam deixar a casa mais bonita, mais alegre e bem enfeitada. São construções de afetos, vivências e reflexões que elas vão construindo ao longo do trabalho.

Esses grupos de mulheres vêm construindo uma identidade coletiva, de grupo, percebendo que, juntas, elas podem muito mais. Hoje elas já constituem um grupo com nome, logotipo, e participam de feiras, eventos, etc. Dessa forma, o projeto vem apoiando as atividades que defendem a aproximação dessas mulheres como forma de um melhor convívio social entre elas, como uma forma de ampliação e fortalecimento da autoestima, construindo-se a cidadania e estimulando a emancipação dessas mulheres na luta pelo seu direito de aprender o novo e serem protagonistas de sua própria história, atrizes comprometidas com a transformação da realidade onde vivem, além de buscarem sua autonomia econômica sem deixar de lado suas atividades no lar e na agricultura, fortalecendo a luta pela reforma agrária neste país.

Sobre a pedagogia feminista

A pedagogia feminista não é algo completamente novo. Em diversos países da América Latina (nos perece que ainda pouco no Brasil), já se constitui uma série de experiências educativas que poderíamos denominar uma pedagogia feminista baseada na educação popular. No entanto, o que vemos basicamente é a formulação de oficinas e atividades pedagógicas que ocorrem em espaços não formais de educação, que são levadas a cabo por educadoras populares feministas (Ochoa, 2008). Dessa forma, é fundamental que se sistematizem essas experiências e, mais do que isso, que se constituam as bases teórica, epistemológica e metodológica de uma pedagogia feminista. Esse é o principal desafio deste trabalho.

Com Paulo Freire (1987), nos alimentamos de um legado muito importante que ele nos deixou, que nos inspira a:

  • uma profunda crença na pessoa humana e na sua capacidade de educar-se como sujeito da história;

  • uma postura política firme e coerente com as causas do povo oprimido, temperada com a capacidade de sonhar e de ter esperanças, com a ousadia de fazer e de lutar no que se acredita, junto com a humildade de quem sabe que nenhuma obra grandiosa se faz sozinho e que é preciso continuar aprendendo sempre;

  • um jeito do povo se educar para transformar a realidade, isto é, uma pedagogia que valoriza o saber do povo, ao mesmo tempo que o desafia sempre mais.

Para compreendermos o processo educacional hegemônico em nossa sociedade e como ele forma e atua sobre os/as sujeitos/as, podemos utilizar o conceito de Paulo Freire que nos auxilia na compreensão sobre as opressões naturalizadas ao longo da história, denominado por ele de situações-limite. De acordo com Freire (1987), as situações-limite são situações entendidas pelos indivíduos como inevitáveis, constituintes da vida em sociedade, edificadas sob a pretensa normatividade. As situações-limite podem, dessa forma, ser entendidas também como a invisibilidade histórica de alguns grupos sociais, no caso, as mulheres.

Como situações-limite, percebemos o patriarcado e diversos outros sistemas de opressão, como o racismo e o capitalismo, entre outros. Para superarmos esses sistemas e, em especial, no caso do patriarcado, precisamos fomentar de diferentes formas o que Freire chamou de percebido-destacado, que é o desencadeamento desse processo de consciência. Esse caminho percorrido resultará no inédito viável, que é a construção efetiva para a transformação do que antes era natural e inevitável - a opressão - em finitude possível e, assim, o que se torna de fato inevitável é o enfrentamento. É transpor a barreira do ser para o ser mais (Freire, 1987).

A busca por uma Pedagogia Feminista é, portanto, recriar e repensar o método de Freire, sem, de modo algum, deslegitimá-lo. Pelo contrário, é problematizar elementos pouco aprofundados anteriormente e que, inclusive, constitui algo sempre trazido por ele, como um de seus maiores anseios: a renovação de sua teoria. Sendo assim, com a base dessa proposta imersa na pedagogia do oprimido é que necessitamos, então, a partir da caracterização do mundo patriarcal, enfrentá-lo. E a distinção central que estamos propondo entre a educação não sexista e a pedagogia feminista é que a última será pensada e executada por mulheres, para mulheres e também para homens, ainda que reconhecendo que o processo seja diferenciado para ambos.

Sobre as mulheres participantes do projeto

Os grupos de mulheres que o projeto atende apresentam características bem distintas. De um lado, encontramos mulheres mais desprendidas da dominação patriarcal, mas que sentem culpa por deixarem seus filhos e atividades domésticas para trás no dia que o projeto realiza oficinas, o que demonstra o processo de naturalização do serviço doméstico como sendo tarefa exclusiva da mulher, vinculada ao aspecto biológico.

Do outro lado, vemos um grupo de mulheres que não se imaginam deixando seus maridos e filhos sem o almoço de cada dia, visto que, no dia em que o projeto atende de forma integral - o que inclui o almoço coletivo como forma de unificar o grupo - estas mulheres retornam para suas casas no almoço para cumprirem as tarefas que tomaram para si como obrigação naturalizada. Dessa forma, não almoçam com o grupo.

Quando questionadas sobre o papel que a mulher desempenha em torno do lar, do serviço doméstico, dos filhos e da dedicação exclusiva ao marido, recolhemos relatos diversificados sobre esse assunto. Vejamos alguns:

“Mas o marido que se vire com o almoço, eu não vou deixar de aprender para ficar pilotando fogão”.

“Hoje foi um dia que meu filho ficou responsável com o almoço, ele me disse: mãe pode ir com calma que eu tomo conta de tudo!”.

“Meu marido diz que serviço doméstico é coisa de mulherzinha, por isso não posso nem pensar em ensinar meus filhos a cozinhar, quanto mais a lavar a louça, fazer algum serviço na casa”.

“Meu filho foi para o quartel e levou castigo, porque não sabia nem arrumar a própria cama, não sabia esticar bem os lençóis, por isso levou castigo... Meu marido disse que era pra eu ensinar, mas pra mim não é certo isso, foi minha família que me ensinou desse jeito”.

“Agora é tarde demais para tentar mudar, acostumamos eles desse jeito”.

É interessante analisar que não é o projeto que estimula o certo e o errado frente às questões de divisão sexual do trabalho doméstico. As narrativas partem das próprias participantes, que trazem queixas como forma de aliviar as tensões diárias que o machismo exerce e que encontram nas oficinas o direito de falar, de serem ouvidas, de aprenderem e criarem, consequentemente, um novo estágio de consciência por meio de informações formais e informais.

Nossa metodologia de trabalho sustenta-se na perspectiva da educação popular baseada na obra de Paulo Freire, pois compreende que o aprendizado é algo dinâmico e construído coletivamente. É por isso que a escolha das técnicas a serem trabalhadas nas oficinas são escolhidas coletivamente pelas próprias participantes. Aliar artesanato à conscientização ambiental é também um dos pontos trabalhados em nossa pesquisa como forma eficaz de envolver as participantes e tornar interativos os esforços para a conservação dos recursos naturais. A produção artesanal pode desestimular o consumo exagerado, oferecendo, por meio da reutilização de materiais, uma forma de resistência.

As oficinas oportunizam às participantes a aprendizagem de muitas técnicas diferentes de artesanatos. Dentre essas técnicas, podemos citar o artesanato confeccionado com sucata natural que utiliza a palha de milho, cascas de ovos, galhos, folhas e sementes, o artesanato com sucata industrializada que utiliza jornais, caixas de papelão e garrafas pet, além de artesanatos que demandam um pouco de gasto, que são os produzidos com EVA, tecidos, massa de biscuit, decóupage, caixas de MDF e giz de cera. Os produtos derivados desses materiais dão origem a bonecas de palha de milho, mosaicos, cestarias em jornal, caixas de remédios, maquiagem, casinhas de passarinho, vasos para flores, chaveiros, tiaras, panos de copa, tapetes, toalhas de mesa, jogos americanos, artefatos com massa de biscuit, enfeites para eletrodomésticos e estamparia de giz de cera, entre outros.

Fonte: Acervo do Projeto - período 2015-2016.

Figuras 1 e 2 Artesanatos produzidos durante as oficinas do projeto - Município de Pinheiro Machado. 

Figures 1 and 2 Crafts produced during the project workshops - Pinheiro Machado Municipality. 

Fonte: Acervo do Projeto - janeiro de 2016.

Figura 3 Grupo de mulheres Assentamento Campo Bonito, participantes do Projeto de Extensão - Município de Pinheiro Machado. 

Figure 3 Women group Settlement Campo Bonito, participants of the Extension Project - Municipality of Pinheiro Machado. 

Como é possível perceber, o artesanato tem sido uma importante ferramenta metodológica para trabalhar as relações de gênero e tem por objetivo a valorização da mulher camponesa, a organização e a autonomia dos grupos, o combate ao machismo, a violência e a exploração. Esse conjunto de orientações de nossos encontros é expresso, vivenciado e construído permanentemente nos diferentes momentos de nossas oficinas, por meio de debates, filmes e palestras. A imagem a seguir mostra um desses momentos.

Considerações finais

Durante esses anos de pesquisa e extensão com quatro grupos de mulheres assentadas da reforma agrária, buscamos contribuir no processo da valorização da mulher camponesa por meio de debates, palestras e oficinas de caráter tanto artesanal quanto feminista.

Nesse período, foi possível perceber um crescimento significativo do reconhecimento do artesanato como trabalho e gerador de renda, visto que os produtos já circulam em feiras da Reforma Agrária e exposições acadêmicas. Além disso, no que se refere ao empoderamento feminino e sua organização, temos como exemplo o fato de os grupos estarem sendo procurados por unidades acadêmicas para ministrar oficinas e falar sobre a vida da mulher camponesa. Nesses momentos, elas se tornam protagonistas e, para elas, serem ouvidas e terem a oportunidade de levarem seus saberes para a Universidade é um momento especial de empoderamento.

Ochoa (2008) assinala alguns desafios que o processo de construção de uma pedagogia feminista deve superar, que concordamos deva ser assumido pelas educadoras feministas. Sistematicamente, podemos listá-los abaixo:

  • (1) Vincular pedagogía y epistemologia;

  • (2) Un nuevo lenguaje y universos de sentido;

  • (3) Pedagogizar el conflicto y el poder;

  • (4) Ampliar la discusión para la integración intergeneracional;

  • (5) Desarrollo de investigaciones;

  • (6) Incidencia en políticas públicas;

  • (7) La reflexión y acción en el contexto de la globalización (Ochoa, 2008).

Lagarde y de los Ríos nos traz o conceito de sororidad, que contribui sobremaneira para a construção da pedagogia feminista. Etimologicamente, entendemos sororidade como um termo com sua origem no latim soror, que significa irmã e idad, que significa relativo a ou qualidade de. Para a autora,

La sororidad es una dimensión ética, política y práctica del feminismo contemporâneo. Es una experiência subjetiva de las mujeres que las conduce a la búsqueda de relaciones positivas y a la alianza existencial y política, cuerpo a cuerpo, subjetividade a subjetividade com otras mujeres, para contribuir a la eliminación social de todas las formas de opresión y al apoyo mutuo para lograr el poderio genérico de todas y el empoderamiento vital de cada mujer (Lagarde y de los Ríos, 2016, p. 25).

A sororidade tem sido desenvolvida como uma resposta ao que a autora chama enemistad, como sendo a concretude de uma concepção de antagonismo e enfrentamento entre as próprias mulheres, baseadas em concepções misóginas patriarcais, em que as diferenças de classe, etnia, de idade, profissionais, ideológicas, políticas e sociais em geral são utilizadas como forma de desagregação, desunião, confrontos e conflitos - isso tudo mantendo o patriarcado como pano de fundo e as relações de poder a ele imanentes.

Portanto, a Pedagogia Feminista precisa ser entendida enquanto o inédito-viável que buscamos, pois, se a situação-limite que estamos discutindo aqui é o patriarcado e, por consequência, o percebido destacado é a indignação sentida pelas mulheres pelas violências diárias sofridas, a construção do inédito viável precisa ser essa nova proposta pedagógica de ação-reflexão, em que, canalizando a insatisfação com o sistema, agimos.

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1 Apoio: CNPq, Proext.

Recebido: 20 de Agosto de 2017; Aceito: 24 de Abril de 2018

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