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Educação UNISINOS

versão On-line ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.22 no.4 São Leopoldo out.-dez 2018  Epub 17-Maio-2019

https://doi.org/10.4013/edu.2018.224.10 

Artigos

Legado freireano, feminismos e prostituição: desvelando o político-pedagógico na pesquisa em educação1

Freire’s legacy, feminisms and prostitution: Unveiling of the politician-pedagogic in research in education

Fabiana Rodrigues de Sousa2 

2Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Campus Maria Auxiliadora. Av. de Cillo, 3500, Parque Universitário, 13467-600, Americana, SP, Brasil. fabiana.sante@unisal.br


Resumo

Neste artigo, discorro sobre as dimensões política e pedagógica do fazer pesquisa em educação, lançando mão de aportes do legado freireano, dos estudos feministas e de reflexões gestadas em experiências de pesquisa desenvolvidas em diálogo com mulheres prostitutas. Ciente das tensões entre esses campos do conhecimento, teço conexões entre eles argumentando que essa aproximação revela-se fecunda no sentido de favorecer a superação da antinomia: conhecimentos populares x conhecimento científico, (inter)subjetividade x objetividade, e de questionar sistemas universalizantes que caracterizam a ciência moderna, bem como algumas perspectivas feministas. Defendo, ainda, que o diálogo entre as contribuições do legado freireano e dos estudos feministas corrobora a construção de uma ciência crítica e popular pautada no desenvolvimento de pesquisas problematizadoras capazes de visibilizar a multiplicidade de experiências, saberes e demandas de mulheres prostitutas.

Palavras-chave: intersubjetividade; diálogo; feminismos; prostituição

Abstract

In this article, I discuss the political-pedagogical dimension of research in education, using contributions from the Freire’s legacy, feminist studies and the reflections on researches developed in dialogue with prostitutes. Aware of the tensions between these fields of knowledge, I make connections between them, arguing that this approximation proves fecund in favor of overcoming the antinomy: popular knowledge vs. scientific knowledge, (inter) subjectivity vs. objectivity, and questioning universalizing systems that characterize modern science, as well as some feminist perspectives. I also argue that the dialogue between the contributions of the Freire’s legacy and feminist studies corroborates the construction of a critical and popular science based on the development of problematizing researches capable to make visible the multiplicity of experiences, knowledges and demands of women prostitutes.

Keywords: intersubjectivity; dialogue; feminisms; prostitution

Introdução

Neste artigo, discorro sobre as dimensões política e pedagógica do fazer pesquisa em educação, com base nas contribuições advindas de estudos da obra de Paulo Freire e das teorias feministas. As reflexões, aqui, apresentadas foram tecidas ao longo de investigações desenvolvidas em diálogo com mulheres prostitutas, com intenção de descortinar processos educativos gestados nas práticas da prostituição e de militância na busca por direitos e pela autodeterminação3.

A prostituição tem sido amplamente estudada por diferentes áreas do conhecimento sob diversos olhares (antropológico, histórico, epidemiológico, sociológico, etc), gerando grande volume de pesquisas e trabalhos de intervenção no campo da prostituição. Apesar do grande volume de estudos sobre essa temática, ainda são poucas as sistematizações acerca de como esses trabalhos são desenvolvidos e como se dão as relações em campo, os vínculos e interações entre pesquisadoras/es e prostitutas. A ausência dessas sistematizações dificulta o estabelecimento de relações entre pesquisa, militância e intervenções (Barreto, Grossi e Mayorga, 2013).

Todavia, são poucos os estudos sobre prostituição que se valem dos princípios da Educação Popular, notadamente, dos construtos teóricos advindos da obra de Paulo Freire. Entendo que a efetivação de pesquisas dialógicas pautadas na intersubjetividade e na problematização das realidades vivenciadas em contextos de prostituição pode favorecer essas sistematizações e relações entre pesquisa, militância e intervenções, abrindo caminhos para uma corrente crítica nas ciências humanas que permite aliar conhecimento científico, conhecimento popular e compromisso social. Essa perspectiva se revela frutífera no sentido de produzir e visibilizar multiplicidades, isto é, diferentes formas de ser e estar no mundo, possibilitando o reconhecimento e a valorização de saberes de experiência consolidados por sujeitos estigmatizados e marginalizados por tomarem parte de práticas sociais depreciadas socialmente, como é o caso das prostitutas.

Visibilizar experiências populares e os saberes delas decorrentes constitui-se, ainda, como ação fundamental no sentido de ressignificar e popularizar a ciência, e que essa popularização pode ser potencializada por meio do diálogo entre os aportes dos estudos feministas e os do legado freireano4 e da Educação Popular (Pérez-Bustos, 2010).

Destarte, neste texto, intenciono visibilizar experiências e saberes consolidados por prostitutas com quem dialoguei em pesquisas de campo concluídas em 2012 e 2014. Participaram dessas pesquisas mulheres que, então, prestavam serviços sexuais em casas noturnas de São Carlos/SP sem histórico de atuação em associação de prostitutas, como também mulheres militantes ligadas a associações e que prestavam serviços sexuais em ruas e praças de Belo Horizonte/MG, Campina Grande/PB, João Pessoa/PB e Recife/PE.

Diálogos possíveis: legado freireano e estudos feministas

O estudo sistemático da obra de Paulo Freire vem engendrando a compreensão que o fazer pesquisa em educação, assim como o próprio fazer educativo, é marcado por politicidade e criticidade. Tal como a educação, a prática de pesquisa em educação nunca é neutra, uma vez que a seleção do tema a ser investigado, a opção pelo enfoque qualitativo/quantitativo, o percurso metodológico traçado, bem como a escolha dos recursos empregados para se aproximar das pessoas participantes da pesquisa, a disponibilidade para ler a realidade com elas ou, ainda, a seleção de procedimentos para efetivar coleta e análise de dados descortinam a intencionalidade do/a pesquisador/a.

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (1995) ratifica esse entendimento, ao afirmar que quem pesquisa não é externo e neutro em relação ao fenômeno investigado, pois sua motivação para conhecer e pesquisar parte de seu engajamento ao objeto de estudo. Em vista disso, compreendemos que no processo de fazer pesquisa também nos posicionamos a favor de algo e de alguém.

A intersubjetividade assume, portanto, lugar de destaque em uma concepção de educação e de pesquisa problematizadoras que visam à humanização dos sujeitos envolvidos nos atos educativo e investigativo. Essa afirmação é corroborada por Ernani Fiori (1970), quando este destaca que é na intersubjetividade e no diálogo que os sujeitos se humanizam e se conscientizam:

O mundo comum mediatiza a originária intersubjetivação das consciências: o auto-reconhecimento plenifica-se no reconhecimento do outro; no isolamento, a consciência modifica-se. A intersubjetividade, em que as consciências se enfrentam, dialetizam-se, promovem-se, é a tessitura última do processo histórico de humanização. [...] A consciência emerge do mundo vivido, objetiva-o, problematiza-o, compreende-o como projeto humano. Em diálogo circular, intersubjetivando-se mais e mais, vai assumindo criticamente, o dinamismo de sua subjetividade criadora (Fiori, 1970, p. 10).

Na pesquisa problematizadora, abandona-se a busca pela neutralidade em função da intersubjetividade e diálogo entre pesquisadoras/es e participantes da pesquisa. O que implica em assumir a intersubjetividade como uma dimensão do fazer pesquisa, fazendo frente à perpetuação de práticas bancárias de investigação5 ancoradas em referenciais positivistas.

Oliveira e colaboradores (2014) discorrem que na pesquisa bancária e desumanizante, o/a pesquisador/a é quem diz a palavra, enquanto os ‘pesquisandos/as’ a escutam docilmente, o/a pesquisador/a é quem sabe e por isso cabe a ele/a optar e prescrever sua opção, e aos ‘pesquisandos/as’ só resta seguir a prescrição. Já na pesquisa problematizadora busca-se romper com a verticalidade pesquisador/a-pesquisandos/as:

Nessa perspectiva, a pesquisa não é outra senão sobre a realidade, o sistema-mundo; portanto, ao conhecer com o outro, sobre o mundo, nos conhecemos a nós mesmas e a nós mesmos, nos re-conhecemos no outro, nos re-conhecemos também como outras e outros, na exterioridade, como nos diz Dussel (Oliveira et al., 2014, p. 122).

Pérez-Bustos (2010) observa que a pedagogia feminista, retomando os princípios freireanos, também questiona os sistemas universalizantes de conhecimento e verdade ancorados em modos de dominação capitalista, que desconsideram os aspectos (inter)subjetivos no fazer pesquisa. Segundo a autora, a pedagogia feminista atualiza a pedagogia libertadora de Freire, incorporando-lhe questionamentos referentes às formas de dominação e opressão de gênero, raça/etnia, orientação sexual, etc.

Neste sentido, sua principal chamada para atenção será a de considerar como o potencial libertador da educação pode ver-se dinamizado e/ou limitado pelos modos em que se exerce autoridade e se reconhece (ou não) o poder epistemológico da experiência (biográfica, coletiva, histórica) e das diferenças no plano da cotidianidade do exercício educativo (Pérez-Bustos, 2010, p. 253, tradução nossa).

As teorias feministas, tal como os aportes freireanos, também afirmam o lugar da experiência e da (inter)subjetividade na construção de conhecimentos. Pérez-Bustos (2010, p. 254) destaca que “o questionamento à oposição entre razão/objetividade e experiência/subjetividade” é um aspecto central à reflexão feminista sobre a pedagogia, possibilitando problematizar o predomínio epistemológico do racional legitimado pelas práticas educativas e científicas hegemônicas, culminando no encobrimento de outras “fontes de construção de conhecimento que se configuram no domínio da experiência (biográfica e coletiva) e do emocional”.

Questionar o primado da razão/objetividade é, portanto, tarefa elementar a ser executada por pesquisadoras/es que almejam transformar a realidade percebida, bem como o próprio fazer científico, caminhando na busca pela consolidação de uma ciência popular, conforme defendia Fals Borda (2006). Para o autor, a comunidade científica moderna ocidental monopoliza o direito de definir o que pode ou não alçar ao status de conhecimento científico e, por conseguinte, ser considerado verdade. Ao adotar procedimentos ditos científicos para cristalizar relações opressivas entre seres humanos, no tocante a aspectos de classe social, gênero, orientação sexual, raça/étnica, dentre outros, tal comunidade tem legitimado a manutenção do status quo político, econômico e cultural. Destarte, o diálogo de saberes apresenta-se como um dos grandes desafios contemporâneos em todo campo do saber, de tal modo que:

[...] há campo fértil para construir e reconstruir nossas sociedades, quando se articula o conhecimento científico, formal ou acadêmico, com o conhecimento popular, reconhecendo-se a esse conhecimento popular o mesmo nível de importância científica que adquiriu o outro, o acadêmico. Que se exija, por parte da academia, o respeito ao conhecimento chamado folclórico ou popular, que é na realidade a soma das experiências vitais dos povos; sem essa experiência, sistematizada ou não, não haveria conhecimento acadêmico formal, porque o conhecimento dos povos é a origem da ciência e vem desde muito antes da criação das universidades, no século XII (Fals Borda, 2010, p. 372-373).

Diante do exposto, argumento que uma perspectiva de pesquisa dialógica, feminista e humanizadora, além de suscitar reflexões sobre o papel da intersubjetividade na construção de conhecimentos, pode gerar contribuições capazes de favorecer a superação da antinomia: conhecimentos populares e conhecimento científico.

Marco Raúl Mejía (2012) alerta-nos que para sair dessa antinomia é preciso dotar de sentido o saber:

[...] dar-lhe um status, desconstruir as diferenças instauradas pelo olhar eurocêntrico e, sem dúvida, a maneira de compreender o conhecimento científico e seu sistema de reconhecimentos e, em alguns casos, construir um campo epistêmico novo. Pensar estas relações novas significa reconhecer que os saberes surgidos das práticas e de outra forma de vida têm potência para se converter em teoria [...]. Sob estes pressupostos foi-se ganhando a certeza de que na ação existem saberes e, da mesma maneira, no nó de relações se constroem, se criam, se processam e se reconstroem, e que apesar da pouca valorização que se faz da prática, estas geram saber, conhecimento, sabedoria, emoções, sentidos, apostas políticas e éticas (Mejía, 2012, p. 24-25).

Esses saberes que se concretizam na prática e na ação são denominados por Freire (1995), como ‘saber de experiência feito’. Tais saberes são resultado da maneira espontânea com que mulheres e homens se movem no mundo e refletem, desta forma, sua leitura de mundo.

Jorge Larrosa-Bondía (2002) também discorre sobre o conceito de saber de experiência. Para ele:

O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo) (Larrosa-Bondía, 2002, p. 27).

Desvelar saberes de experiência, dialogar com participantes da pesquisa, aproximar-nos com intenção de ouvir e apreender as leituras e visões de mundo das pessoas com quem interagimos em contextos de pesquisa permitem-nos ressignificar o fazer científico e suas metodologias. É na busca pela intersubjetividade que aprendemos a questionar a pretensa neutralidade da pesquisa e a nos posicionar: “Em favor de que/quem pesquisamos? Contra o que/quem pesquisamos?

Freire (2003, p. 37) afirma que não existe “prática neutra, descomprometida, apolítica”, pois esta persegue sempre uma finalidade, um sonho e uma utopia. Sendo assim, uma questão central que se coloca a educadoras/es e a pesquisadoras/es é a do reconhecimento quanto à politicidade da educação e do fazer pesquisa em educação, em vez “insistir numa teimosia sem sucesso - a de afirmar a neutralidade impossível da educação” (Freire, 2003, p. 38).

É mister ressaltar que a impossibilidade de neutralidade e a afirmação da politicidade da educação não tem nada que ver com doutrinação político-partidária ou com a imposição arbitrária de opções, convicções e sonhos por parte de educadoras/es a educandas/os, mas sim com o posicionamento e compromisso político de educadoras/es diante das inúmeras injustiças sociais (de classe, de gênero, de orientação sexual, étnico-raciais, geracional, etc.).

Nós somos militantes políticos porque somos professores e professoras. Nossa tarefa não se esgota no ensino da matemática, da geografia, da sintaxe, da história. Implicando a seriedade e a competência com que ensinemos esses conteúdos, nossa tarefa exige o nosso compromisso e engajamento em favor da superação das injustiças sociais (Freire, 1995, p. 80).

As palavras de Paulo Freire coadunam-se a uma concepção ampla de educação comprometida com a transformação social e que não se limita ao ensino de conteúdos. Todavia, na contramão das reflexões incitadas pelo patrono da educação brasileira6, observamos no Brasil uma crescente onda reacionária de integrantes do chamado movimento Escola Sem Partido que, por meio da formulação de Projetos de Lei (PL) nas instâncias federal, municipal e estadual, vêm tentando escamotear as dimensões críticas e política da educação designando-as como ‘doutrinação política nas escolas’ ou ainda como ‘ideologia de gênero’7, procurando instituir, desse modo a educação bancária e banir das escolas a discussão e problematização de temas como gênero, sexualidade, educação étnico-racial e das opressões deles derivadas (machismo, sexismo, homofobia, racismo, etc.). Denunciar esse retrocesso e lutar contra sua implementação, nos sistemas educacionais brasileiros, apresenta-se como mais uma possibilidade fértil de diálogo entre os aportes da Educação Popular e dos estudos feministas.

As contribuições teóricas advindas do legado freireano e dos estudos feministas reiteram a importância de um fazer pesquisa dialógico que intenciona compreender a razão de ser das coisas, com base na alteridade e intersubjetividade. O que demanda aproximação, convivência metodológica e posicionamento por parte de pesquisadoras/es.

O que não podemos, como seres imaginativos e curiosos, é parar de aprender e de buscar, de pesquisar a razão de ser das coisas. Não podemos existir sem nos interrogar sobre o amanhã, sobre o que virá, a favor de que, contra que, a favor de quem, contra quem virá; sem nos interrogar em torno de como fazer concreto o “inédito viável” demandando de nós a luta por ele (Freire, 2008, p. 98).

Inédito viável é um conceito formulado por Freire (1970) para designar uma situação nova e ainda não experimentada, mas que pode ser obtida pela ação dos seres humanos no mundo a ser transformado. As ações de mulheres e homens, dentre elas o fazer pesquisa ou o exercício da prostituição, dão pistas de seus projetos de vida, seus sonhos e utopias que tanto podem se direcionar para a humanização como para desumanização.

Enrique Dussel (2007, p. 442-443) define o inédito viável como projeto de libertação da comunidade engajada na transformação da realidade, cuja práxis de libertação se configura como busca constante marcada pela denúncia dos mecanismos de opressão percebidos por meio do diálogo entre “oprimidos com consciência crítica em dialética colaboração com os educadores, intelectuais, cientistas” e pelo anúncio de alternativas de libertação. Dussel (2007) reitera que a práxis da libertação não se configura como ato final da prática educativa, mas como ação e reflexão permanentes sobre a realidade, com vistas a transformá-la. Depreende-se dai a relevância do diálogo e da intersubjetividade na formação de pesquisadoras/es comprometidas/os com uma perspectiva humanizadora e problematizadora de investigação, voltada à transformação social.

‘O diálogo é, portanto, o indispensável caminho’, diz Jaspers, ‘não somente nas questões vitais para nossa ordenação política, mas em todos os sentidos do nosso ser. Somente pela virtude da crença, contudo, tem o diálogo estímulo e significação: pela crença de que somente chego a ser eu mesmo quando os demais também cheguem a ser eles mesmos’ (Freire, 1975, p.108).

Prostitutas e a afirmação de sua agência

Minha aproximação às mulheres participantes da pesquisa se deu inicialmente com intenção de descortinar a face educativa que caracteriza a prática da prostituição, a fim de apreender, em diálogo com elas, suas visões de mundo, os significados e sentidos atribuídos à prática da prostituição e saberes de experiência consolidados em suas interações. A convivência metodológica8 com prostitutas levou-me a vislumbrar um complexo mercado do sexo e a perceber a pluralidade semântica do vocábulo prostituição que abarca muito mais que a oferta consensual de serviços de natureza sexual e/ou afetiva em troca de dinheiro, de presentes ou favores.

Em artigo, em que analisa a categoria ‘mercado do sexo’, a antropóloga Adriana Piscitelli (2016) aponta que a mesma foi desenvolvida com base em linhas teóricas informadas por perspectivas feministas, possibilitando, assim, a reflexão acerca das formas desiguais de poder que permeiam as trocas sexuais, em contextos de prostituição e/ou sexo transacional9, e de como estas se expressam na intersecção entre diferenciações de gênero, raça, classe, idade, nacionalidade, etc.

Trata-se de uma noção que não se reduz à economia de mercado, à organização das relações sociais constitutivas da esfera da produção e/ou ao âmbito no qual tem lugar o consumo. Longe disso, ela remete ao vasto terreno dos intercâmbios materiais e simbólicos mediante os quais se organiza o social (Piscitelli, 2016, p. 135).

Uma contribuição decorrente dessa categoria consiste no alerta para não limitarmos os olhares às subalternizações e ao estigma que marcam a participação de mulheres nesses intercâmbios materiais e simbólicos, mas procurarmos ampliar os horizontes considerando também “as dimensões de agência que se abrem a partir dessas trocas” (Piscitelli, 2016, p. 136).

Ao aproximar-me das prostitutas, percebi que suas experiências e projetos de vida são diversos e que não se enquadram nos cânones de certas perspectivas feministas abolicionistas, cujas lentes reducionistas acabam por fixar essas mulheres como meras vítimas destituídas de agência.

O feminismo abolicionista foi cunhado a partir de pressões oriundas de movimentos reformistas ocidentais compostos, majoritariamente, por mulheres brancas do chamado Norte Global, as quais combatiam, no final do século XIX, o tráfico de escravas brancas e, a partir da década de 1970, a escravidão sexual feminina. Nessa perspectiva é negada a possibilidade de exercício voluntário da prostituição, pois esta é entendida como a pior forma de opressão patriarcal, sendo considerada incompatível com a dignidade humana por legitimar o acesso masculino aos corpos das mulheres (Kempadoo, 2005).

Cabe ressaltar que a prostituição não é a única instituição social que legitima o acesso de homens aos corpos das mulheres, o casamento também exerce essa legitimação já que o ato sexual é um serviço tanto para a prostituta como para mulher casada (Beauvoir, 2008). No entanto, a corrente abolicionista não apregoa o fim do casamento com o mesmo afinco com que reivindica a abolição da prostituição.

Longe de representar um consenso quanto à mirada feminista sobre a prática da prostituição, a corrente abolicionista configura-se como mais um dentre os múltiplos posicionamentos sobre o tema da prostituição dentro do conjunto do feminismo. Na perspectiva feminista transnacional ou ‘do terceiro mundo’, conforme designa Kempadoo (2005), é reconhecida a possibilidade de exercício voluntário da prostituição, desse modo, tal atividade passa a ser compreendida como ‘trabalho sexual’ e como estratégia de geração de renda. No feminismo transnacional, as mulheres não são percebidas como meras vítimas destituídas de agência e paralisadas pelo poder masculino.

Nesta perspectiva, ao contrário, elas são concebidas como sujeitos atuantes, auto-determinados e posicionados de maneira diferente, capazes não só de negociar e concordar, mas também de conscientemente opor-se e transformar relações de poder, estejam estas enraizadas nas instituições de escravidão, prostituição, casamento, lar ou mercado de trabalho. A atuação e atividade feminina, dessa perspectiva, podem então apresentar-se de diversas maneiras, às vezes reinscrevendo e às vezes contestando a dominação e controle masculinos sexualizados, dependendo de condições, histórias e contextos culturais específicos (Kempadoo, 2005, p. 61-62).

Em investigação realizada com objetivo de compreender esses diversos posicionamentos acerca da prostituição dentro do ativismo feminista nacional, Aline Tavares (2015) argumenta que o debate feminista, no Brasil, se transforma em dois sentidos opostos, quais sejam: (i) o fortalecimento de discursos abolicionistas veiculados entre as grandes articulações feministas; (ii) a ampliação de articulações locais e regionais estabelecidas entre pequenos grupos feministas e associações de prostitutas com ações voltadas à garantia de direitos e ao reconhecimento da prostituição como trabalho. As parcerias entre a Associação Mulheres Guerreiras e a Marcha das Vadias, em Campinas/SP, e entre a Associação Prostitutas de Minas Gerais (APROSMIG) e a Marcha das Vadias, em Belo Horizonte/MG, são exemplos dessas articulações locais entre coletivos feministas e associações de prostitutas.

É em meio a essas disputas políticas que, ora desloca a prostituta para a posição de trabalhadora e, outrora, para a de vítima, que foi se tecendo uma das grandes questões postas no debate contemporâneo feminista: A prostituta é uma vítima ou uma trabalhadora? As respostas a essa questão geram diversos olhares e posicionamentos teóricos e, consequentemente, resultam em diferentes formas de se aproximar e interagir com prostitutas.

A antropóloga Cláudia Fonseca (2016) comenta que o diálogo entre os estudos feministas e a prostituição é profícuo no sentido de visibilizar a complexidade das realidades vividas pelas mulheres prostitutas nos mais diversos contextos, possibilitando a indagação sobre a (im)pertinência do deslocamento da categoria de trabalhadora para a de ‘vítima’. Em suas reflexões sobre esse deslocamento, conclui que a classificação de ‘vítima’ tende a ofuscar a de ‘trabalhadora’, deixando mulheres que exercem, voluntariamente, a prostituição aquém das proteções legais. Se o exercício da prostituição é entendido como sinônimo de exploração e a prostituta é relegada à condição de vítima, mulheres que exercem prostituição voluntária podem ser percebidas como ‘depravadas’ ou ‘cúmplices’ de exploração e crime. Tais representações corroboram o processo de silenciamento da prostituta e, em vez de favorecer a autodeterminação dessas mulheres, acaba por dificultá-la.

Fazendo frente a essas miradas vitimizantes, prostitutas têm afirmado sua autodeterminação por meio do estabelecimento de vínculos de apoio e de proteção com diversos setores sociais (pesquisadoras/es, integrantes de ONG, instituições estatais, etc), da solidariedade, organização e execução de ações culturais como rodas de conversa, oficinas, peças de teatro, corridas, desfiles de moda, de beleza e de simpatia, cursos de inglês e alfabetização, confecção de jornal, construção de museu do sexo, biblioteca, etc.

As associações de prostitutas vêm exercendo papel fundamental na organização dessas ações realizadas em diferentes cantos do país, visibilizando-as e sistematizando os saberes e conhecimentos decorrentes delas. O jornal Beijo da rua10 é um exemplo ilustrativo de canal em que essas mulheres veiculam suas vozes, saberes e demandas. Suas ações culturais são caracterizadas pelo uso de diferentes linguagens e recursos artísticos (música, teatro, expressão corporal, dança, etc.) e pela busca de articulação intersetorial e emprego de metodologias face-a-face que favorecem vínculos de confiança e amizade entre as pessoas participantes.

Ao tomar parte dessas ações, essas mulheres vêm tecendo sua autoconfiança, ao denunciar representações depreciativas associadas a essa prática social e às próprias prostitutas. Se nas representações sociais, comumente, veiculadas pelos meios de comunicação, as prostitutas figuram como vítimas, coitadinhas, encrenqueiras, golpistas, vetores de HIV ou doença sexualmente transmissível, mal necessário, desvio moral, femme-fatale, pervertida (Lenz, 2011); nas autoimagens decorrentes de suas ações culturais, essas mulheres figuram como sujeitos de sua prática. Sujeito é compreendido, aqui, como o ser inacabado e inconcluso de que nos fala Freire (1970), que toma o destino em suas mãos e vai se constituindo por meio da ação e reflexão no e sobre o mundo. Sujeito é aquele que reconhece os condicionamentos presentes em seu cotidiano, mas que em vez de quedar-se diante deles segue lutando de cabeça erguida, tal como afirma Luza - presidente da Associação de Prostitutas da Paraíba e participante da pesquisa. Ela destaca que a prostituta precisa aprender a seguir de cabeça erguida:

Não acredite que ninguém vai chegar aqui oferecendo espaço para você não! Você tem que ir buscar isso [...] Porque enquanto a gente ficar embaixo do tapete, ninguém vai ver a gente, né? A gente tem que sair, tem que sair é de cabeça erguida mesmo! Tem que levantar a cabeça, tem que dar a cara a tapa, não tem essa não. Porque se a gente for sair de coitadinha também não vai adiantar!

Desvelar significados que essas mulheres vão tecendo nas experiências vivenciadas em contextos de prostituição favorece a percepção de que a vida da prostituta não é marcada apenas por riscos e medo, mas também por muita ousadia. Os discursos de prostitutas descontroem a representação da “puta coitadinha” que se tornou puta em decorrência das vicissitudes de vida, pelo contrário, suas falas indicam que o fazer-se puta pode ser uma recusa em aceitar estruturas desumanizantes que permeiam outras instituições sociais tais como a família, o casamento e o trabalho (Sousa, 2014).

Para além da denúncia, as participantes da pesquisa anunciam outras formas de perceber a prostituta que passa a ser vista como uma mulher trabalhadora/profissional, uma pessoa que dedica tempo a si e aos outros, uma mulher que tem agência, capaz de organizar-se, detentora de conhecimentos e de experiências que podem educar não apenas a si, mas também às demais pessoas com quem convivem. Nesse tecido fiado a várias mãos, essas mulheres podem desenvolver o sentimento de pertença a um grupo, podem deixar de lado a timidez, construir autoconfiança, fortalecer sua autoestima e aprender a expressar o seu ponto de vista, a olhar nos olhos, a estabelecer vínculos de amizade e solidariedade, tornando-se capazes de assumirem-se como sujeitos de sua prática e de dizer a sua palavra (Sousa, 2015).

Considerações

Encerro este artigo, caminhando e perguntando11, sem a pretensão de esgotar e/ou responder às reflexões e indagações aqui lançadas, mas sim de trazer à tona algumas tensões entre os enfoques freireanos, os estudos feministas e os saberes de experiência gestados nas lutas pela autodeterminação de prostitutas, na intenção de descortinar possibilidades de diálogo entre os mesmos.

Em consonância com os aportes do feminismo dialógico de Lídia Puigvert (2001), considero que as teorias feministas comprometidas com a transformação social das relações de gênero não podem deixar de ouvir as vozes das prostitutas, bem como de todas as ‘outras mulheres’12 que, como elas, são oprimidas reiteradas vezes por serem mulheres e por apresentarem outros marcadores de diferença (mulheres trans, negras, indígenas, ciganas, lésbicas, latino-americanas, etc.). O feminismo dialógico configura-se como proposta para problematizar e ressignificar o feminismo que se pauta, prioritariamente, nos discursos e pautas formulados por mulheres acadêmicas ocidentais e que são veiculados como se fossem demandas e temas universais de todas as mulheres.

Defendo, dessa forma, que o diálogo entre os aportes freireanos e os advindos dos estudos feministas transnacionais e dialógicos apresenta-se como promissor no sentido de denunciar os sistemas universalizantes que marcam tanto a ciência moderna como algumas correntes teóricas feministas que se fecham em suas próprias pautas e formulações desconsiderando as diferentes formas de ser mulher. Para além da denúncia, esse diálogo pode nos auxiliar a vislumbrar anúncios se aceitarmos o desafio de seguir caminhando e perguntando: Como o legado freireano pode aprender com os feminismos? O que os estudos feministas têm para aprender com os aportes freireanos?

Estou ciente da complexidade dessa tarefa, pois a resposta a esses questionamentos exige uma reflexão minuciosa acerca das críticas feministas aos limites da obra de Paulo Freire13 na abordagem da categoria gênero. Essas críticas se concentram, principalmente, na linguagem sexista empregada por Freire em boa parte de sua produção intelectual e na denúncia do que Bell Hooks (2013) designa como paradigma falocêntrico da libertação, isto é, uma visão ocidental de libertação e, portanto, eurocêntrica e androcêntrica.

A fim de ampliar a compreensão desse paradigma, recorro à Catherine Walsh (2014)14 que nos esclarece que os enfoques derivados da e presentes na obra freireana estão ancorados em posturas e visões emancipatórias ocidentais. Lançando mão dos escritos de Sandy Grande, Walsh (2014) procura descortinar como as pedagogias críticas, incluindo a de Freire, reiteram concepções de democratização, libertação e subjetividade que foram erigidas nos cânones ocidentais que pressupõe o indivíduo como sujeito primário de direitos. Nesse sentido, a autora adverte-nos, com base em apontamentos da antropóloga Linda Tuhiwai Smith, que de modo recorrente:

[...] paradigmas, posturas e cosmovisões - geralmente considerados como derivações de enfoques freireanos - têm operado para negar e ocultar os pontos de vista, práticas, processos e enfoques de teóricas feministas de cor, afrodescendentes e povos indígenas, isto é, as metodologias e/ou pedagogias da experiência vivida do colonialismo, racismo e as lutas por autodeterminação e a descolonização (Walsh, 2014, p. 23, tradução nossa).

Essa crítica é pertinente, se tomarmos em conta o contexto brasileiro e as lutas pela autodeterminação das prostitutas. Pois, não raro encontramos grupos feministas abolicionistas, notadamente, ligados à igreja e/ou setores estatais, que lançam mão de concepções derivadas de enfoques freireanos para referendar suas próprias visões de mundo acerca da prática da prostituição e não com intenção de dialogar com as mulheres que se ocupam dessa atividade. Como pode ser observado em trabalhos de intervenção que visam a ‘conscientizar’ as prostitutas de modo a ‘salvá-las’ da prostituição, tais ações parecem desconsiderar que a conscientização não é uma doação feita por educadoras/es ou pesquisadoras/res a educandas/os e participantes de pesquisa, mas sim um processo construído por meio da intersubjetividade, da escuta atenta e do constante ato de perguntar.

Como conscientizar a prostituta sem desenvolver uma escuta atenta do que ela tem a nos dizer? Como dialogar com ela sem a disponibilidade para ouvi-la? Como saber de antemão o que é melhor para a prostituta sem considerar suas leituras de mundo, suas experiências, sonhos, anseios e inquietações?

As respostas a essas indagações devem ser formuladas em diálogo com as prostitutas, em pesquisas e intervenções problematizadoras capazes de abarcar os enfoques de uma pedagogia feminista, conforme expostos por Luz Maceira-Ochoa (2007). Para a autora, os processos educativos feministas configuram uma educação transformadora, pois se voltam à experiência cotidiana, colocando no centro a subjetividade e o corpo, gerando alternativas e novas formas de fazer ou de ser.

Na pedagogia feminista a aprendizagem se baseia no ‘partir de si’, ideia que indica que a aprendizagem se desenvolve a partir da própria identidade, dos próprios desejos, aspirações e necessidades, da própria cotidianidade e da experiência vital, pois só assim pode ser significativa, e colocar no centro a pessoa e as suas decisões para levá-la a sua própria transformação de acordo com seu ideal estabelecido. O ‘partir de si’ implica em significar a realidade, nomear o mundo e responder as perguntas a partir de sua própria experiência, representar o mundo para poder habitá-lo e transformá-lo, desenvolver um pensamento que dê coerência a própria vida, ter autoria da própria vida [...] (Maceira-Ochoa, 2007, p. 7, tradução nossa).

No diálogo com as prostitutas, percebi a indissociabilidade das dimensões político e pedagógica que caracterizam sua permanente busca pelo direito de falar de si. Apreendi aspectos da luta política implementada por elas, seja nos esforços estabelecidos no sentido de reconhecimento de seu protagonismo e autodeterminação, bem como nas tensões travadas a respeito das formas de designá-las: prostituta, profissional do sexo, garota de programa, putas, etc. Nas minhas notas em diário de campo e transcrições de rodas de conversa e entrevistas, observei que não há um consenso quanto a isso, percebi que mulheres com trajetória de militância em associações da região Sudeste costumam assumir o vocábulo ‘puta’, enquanto no Nordeste, comumente usam o termo ‘profissional do sexo’.

Em comentário após desfile da grife Daspu, Gabriela Leite15 (2005) defende a conotação revolucionária do vocábulo puta.

Uma organização revolucionária sempre tem que se lembrar que seu alvo não é fazer com que seus partidários escutem as convincentes palestras de líderes especialistas, mas conseguir fazê-los falar por si mesmos, para que alcancem, ou pelo menos se esforcem por alcançar, o lugar da participação política. Quando minhas amigas putas estavam lá desfilando lindas e altivas, sem vergonha de ser puta, elas estavam falando por si mesmas e sendo políticas, extremamente políticas revolucionárias (Leite, 2005, s/p.).

As palavras de Gabriela Leite e os depoimentos das participantes das pesquisas, demonstram que a prática da prostituição em si não é positiva e nem negativa, a pessoa que dela toma parte é quem a significa. Sendo assim, os significados que se desvelam por meio da autodeterminação de prostitutas são essenciais na compreensão dessa prática social.

Outra característica da pedagogia feminista é a transgressão como produto da aprendizagem. Em consonância com Hooks (2013) e Freire (1970), Maceira-Ochoa (2007) afirma que a transgressão é entendida como um movimento contra e mais além das fronteiras e dos limites estabelecidos; destarte a pedagogia feminista constitui-se como espaço de fomento aos sonhos e às pequenas e grandes revoluções, como a apontada no depoimento de Gabriela Leite.

Essas ações culturais expressam também uma ética e uma estética, à medida que desvelam estilos de vida, leituras de mundo, atitudes, saberes, valores e desejos concernentes aos modos de ser e de viver dessas mulheres. Ratificando essa assertiva, Brandão (1995, p. 108) indica que, quando grupos populares descobrem novas formas de luta e resistência, redescobrem maneiras de “atualizar” o seu saber, tornando-o orgânico e, assim, criam novas formas de associação e movimentos populares. É a partir dessas novas formas de participação popular, “nas brechas da luta política”, que são criadas e testadas “as experiências mais inovadoras de educação”.

Nessas brechas, prostitutas têm educado pesquisadoras/es de diversos campos teóricos, ensinando-nos a consolidar pesquisas dialógicas, problematizadoras e militantes. No convívio metodológico e etnográfico com essas mulheres, temos aprendido a seguir caminhando e perguntando, tal como fazem prostitutas no exercício do trabalho sexual e no planejamento e execução de distintas ações educativas e culturais. Tais ações podem ser tomadas como espaços para a pronúncia coletiva do mundo, constituindo-se como atualizações dos chamados círculos de cultura de que nos fala Freire (1970). Neles, prostitutas vêm fiando em comunhão novas formas de perceberem a si e a sua prática, gerando novas formas de atuação (Sousa, 2015).

A construção do putafeminismo é um exemplo de atuação criada por prostitutas no sentido de tomar sua história em suas mãos. Nessa perspectiva feminista, elas não apenas refutam a imagem de vítima, mas reivindicam o seu reconhecimento como feministas, problematizando a aparente oposição entre feminismo e prostituição (Sousa, 2017). O putafeminismo, ao lado de novas correntes feministas (pós-pornô, punk e transcultural), nos ensinam que a melhor proteção contra a violência de gênero não consiste em proibir ou abolir a prática da prostituição, mas em promover a tomada de poder econômico e político por parte das mulheres (Preciado, 2007).

Na luta política, prostitutas tanto aprendem como ensinam. Aprendem coletivamente a refutar a visão fatalista diante da realidade e desse modo vão construindo sua autonomia e autodeterminação. Com sua força, esperança e persistência, essas mulheres criam e propagam autoimagens plurais sobre a prostituição, forjando novas formas de perceber as prostitutas e as práticas de prostituição, e assim, nos ensinam que a libertação é processo coletivo que se constrói em comunhão, num constante caminhar, no qual nós mulheres seguiremos juntas, em solidariedade e com as cabeças erguidas.

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1Apoio: FAPESP.

3Nessa perspectiva, a definição de prostituição e as demandas e reivindicações concernentes a essa prática social devem ser realizadas pelas prostitutas e demais pessoas que dela se ocupam.

4Embora as normas ortográficas da língua portuguesa preconizem a grafia do adjetivo freiriano com a letra ‘i’, nesse texto, opto pela grafia com ‘e’.

5O termo ‘práticas bancárias de investigação’ alude ao conceito de educação bancária postulado por Freire (1970) em sua crítica à concepção hegemônica de educação centrada na transmissão de conteúdos aos alunos, como se estes fossem recipientes vazios a serem preenchidos com os depósitos feitos pelo professor.

6A lei 12.612 sancionada, em 2012, pela presidenta da república Dilma Roussef reconhece os préstimos de Paulo Freire ao país, reconhecendo-o como patrono da educação brasileira.

7Sobre esse debate consultar Paraíso (2016) e Ramos e Santoro (2017).

8Metodologia de pesquisa pautada pela intersubjetividade, na qual a convivência não se configura como uma etapa do fazer pesquisa, mas sim como o próprio processo da pesquisa (Oliveira et al., 2014).

9Sexo transacional é uma categoria empregada para aludir às trocas sexuais e econômicas que se distinguem da prostituição. No Brasil, esta categoria é também denominada como ‘ajuda’ (Piscitelli, 2016).

10O jornal foi idealizado durante primeiro Encontro Nacional de Prostitutas, realizado no Rio de Janeiro em 1987, com objetivo de expressar as vozes políticas das prostitutas, bem como seus projetos e desafios (Lenz et al., 2015).

11O termo ‘caminhando e perguntando’ foi inspirado no título do ensaio de Walsh (2014).

12As “outras mulheres” são todas aquelas que foram deixadas às margens dos discursos e lutas feministas por não serem acadêmicas ou não pertencerem a minorias culturais (Puigvert, 2001, p. 42, tradução nossa).

13Freire (2008) humildemente reconhece a validade de tais críticas, de tal forma que reconhece a marca da linguagem machista com que redigira algumas de suas obras, dentre elas a Pedagogia do Oprimido. Na Pedagogia da Esperança, o autor procura modificar sua linguagem incorporando a flexão de gênero para abarcar mulheres e homens, em vez de utilizar o vocábulo homem para designar a humanidade.

14Apesar das críticas, tanto Hooks (2013) como Walsh (2014) reafirmam seus entrelaçamentos com os aportes freireanos, em textos belíssimos, nos quais procuram dialogar diretamente com Freire, ressignificando seu legado.

15Precursora do movimento de prostitutas, no Brasil, exerceu prostituição e dedicou sua vida à luta pelos direitos e protagonismo das prostitutas.

Recebido: 13 de Abril de 2017; Aceito: 11 de Maio de 2018

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