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Educação UNISINOS

versão On-line ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.23 no.1 São Leopoldo jan./mar 2019  Epub 18-Jun-2019

https://doi.org/10.4013/edu.2019.231.07 

Dossiê: Mulheres na História da Educação formação e profissionalização

A escola transformando vidas de mulheres negras, ribeirinhas, na região fronteiriça Brasil-Bolívia em meados do século XX

The school transforming the lives of black, riverine women in the Brazil-Bolivia border region in the middle of the XX century

Anselmo Alencar Colares1 

Maria Lília Imbiriba Sousa Colares2 

1Universidade Federal do Oeste do Pará. Rua Vera Paz, s/n, Bairro Salé, Santarém – PA, Brasil.

2Universidade Federal do Oeste do Pará. Rua Vera Paz, s/n, Bairro Salé, Santarém – PA, Brasil.


Resumo

O artigo aborda aspectos históricos da formação e profissionalização de professoras no Vale do Guaporé-Mamoré, na fronteira Brasil-Bolívia, discorrendo sobre questões singulares naquele contexto: mulheres negras que foram pioneiras na ação pastoral educativa de Dom Rey, bispo católico oriundo da França que se preocupou com o atendimento educacional das populações que se encontravam à margem da ação do Estado. Resulta de pesquisa bibliográfica e de campo apoiando-se em memórias das protagonistas, abrangendo as décadas de 30 a 60 do século XX. A escolarização possibilitou para aquelas mulheres acesso a outros direitos que requerem a compreensão dos códigos da escrita, produzindo significativas transformações em suas vidas e nas de outras pessoas. Sem qualquer apologia, pode-se afirmar que a escola viabilizou a profissionalização de inúmeras pessoas que viviam sem perspectivas de inserção social, como aquelas mulheres negras e ribeirinhas da região do Vale do Guaporé-Mamoré, em Rondônia.

Palavras-chave:  Escola de Dom Rey; memória; profissionalização de mulheres

Abstract

The article deals with historical aspects of the formation and professionalization of teachers in the Guaporé-Mamoré Valley, on the Brazil-Bolivia border, discussing singular issues in that context: black women who pioneered the educational pastoral activity of Dom Rey, a Catholic bishop from France was concerned with the educational assistance of the populations that were on the margins of state action. It results from bibliographical and field research based on memories of the protagonists, covering the decades from 30 to 60 of the twentieth century. Schooling made it possible for those women to have access to other rights that require the understanding of the codes of writing, producing significant transformations in their lives and that of other people. Without any apology, it can be said that the school made it possible to professionalize numerous people who lived without prospects of social inclusion, such as those black and riverside women from the Guaporé-Mamoré Valley, region of Rondônia.

Keywords:  School of Dom Rey; memory; women’s professionalization

A história registra uma quase exclusividade masculina nas instituições escolares e na formação que se estabeleceu no Brasil. Segundo Aragão e Kreutz (2010, p. 109), “[...] desde o período colonial, a educação feminina era restrita ao lar e para o lar, ou seja, aprendiam atividades que possibilitassem o bom governo da casa e dos filhos”.

No período colonial, as mulheres tiveram acesso restrito ou nulo à escolarização, podendo, em alguns raríssimos casos, estudar em casa, com preceptores (situações de famílias ricas), ou em conventos visando à vida religiosa. Essa situação paulatinamente foi se modificando com a permissão para a frequência às salas de aula para as meninas, desde as reformas pombalinas ocorridas na segunda metade do século XVIII e a abertura e instalação de escolas régias, embora o ensino fosse feito separadamente por sexo, com conteúdos e objetivos muito diversificados. Ao final do século XIX, estatisticamente havia uma menina para cada menino frequentando escolas públicas.

As mulheres passaram a ter direito à instrução tardiamente, não apenas no Brasil, pois, mesmo nos países onde os sistemas educacionais se desenvolveram no contexto da Revolução Francesa, ainda prevaleceu a visão de que a instrução feminina constituía ameaça aos costumes estabelecidos, pelos quais a mulher ocupava um lugar inferior na hierarquia social. Mesmo quando romperam com as barreiras do acesso à escolarização, enfrentaram grandes dificuldades para ingressar na carreira docente e nas profissões que exigiam formação escolar ou eram consideradas tipicamente para homens. Todavia, apesar dos óbices limitantes, elas foram conquistando espaços e hoje constituem maioria nas redes educacionais e em muitas atividades profissionais, entre as quais o magistério.

Fleuri (2015, p. 63) observa que “[...] a categoria dos docentes brasileiros é constituída por um público eminentemente feminino, adulto, casado, com família nuclear, de classe média baixa”. Vê-se, porém, que a superioridade numérica não é suficiente para se afirmar que foram superadas as barreiras, as visões preconceituosas e as várias formas de expressão da inferioridade que uma análise qualitativa facilmente revela. O aumento numérico se deveu às mudanças ocorridas na economia, especialmente a partir do século XIX, abrindo possibilidades para as meninas ingressarem nas escolas, mesmo que ainda sendo orientadas para os trabalhos manuais, domésticos, em detrimento do aprimoramento na escrita, leitura e aritmética. Essa afirmativa pode ser corroborada com o teor do Decreto Imperial de 15 de outubro de 1827, data que é consagrada como sendo o Dia do Professor. Análises realizadas por Almeida (1998) mostram que o citado ordenamento legal permitia o ingresso de meninas nas escolas, porém estabelecia um currículo com disciplinas voltadas à leitura, à escrita, às quatro operações matemáticas, à moral cristã, à doutrina católica e às prendas domésticas, direcionando para a formação de donas de casa.

Na década de 1870, as transformações se intensificaram com as reformas na organização da economia e no sistema político, cujo objetivo era alcançar a modernização do país. As crescentes urbanização e industrialização demandavam um contingente de pessoas preparadas para o mercado de trabalho, por isso a qualificação docente tornava-se necessária, incluindo as mulheres.

A entrada das mulheres no exercício do magistério – o que, no Brasil, se dá ao longo do século XIX (a princípio lentamente, depois de forma assustadoramente forte) – foi acompanhada pela ampliação da escolarização a outros grupos ou, mais especialmente, pela entrada das meninas nas salas de aula (Catani, 1997, p. 78).

Sob a influência da concepção positivista, a educação deveria se iniciar na família, por isso se atribuiu à mulher o papel de educar e passar valores morais às novas gerações. Sua aceitação na carreira docente foi possível com argumentos de que é da própria natureza da mulher ser generosa, acolhedora, amorosa e paciente. O magistério, portanto, representava uma extensão do lar: a mulher possuía dons naturais para educar seus filhos e agora, como professora, era a pessoa ideal para educar os alunos. A educação, por ser essencial para o desenvolvimento do país, passava por diversos debates e discussões, destacando-se, dentre eles, a questão da coeducação, tema sobre o qual a igreja católica sempre se posicionou contra. Foi somente com a instituição da República que essa influência diminuiu e que a ideia de laicidade do ensino prevaleceu. Conforme Novaes (1994, p. 21), “A República surge defendendo na sua constituição o princípio de laicidade do ensino, libertando a instrução oficial das amarras da igreja católica”.

Com o advento da República e sob a influência das concepções que lhe deram o suporte ideológico, cresceu o número de mulheres alfabetizadas nos grandes centros e o ingresso delas na docência, porém contraditoriamente gerou as condições materiais para que muitas professoras fossem contratadas por salários inferiores. Com a ampliação das indústrias e o crescente urbanismo, os homens foram em busca de outros empregos, que melhor remunerassem, o que possibilitou um maior número de vagas disponíveis no magistério para as mulheres. Consoante Almeida (1998, p. 23-24), “[O] fato de não ingressarem nas demais profissões, acessíveis somente no segmento masculino, e a aceitação do magistério, aureolado pelos atributos de missão, vocação e continuidade daquilo que era realizado no lar, fizeram que a profissão rapidamente se feminizasse”.

Almeida (1998, p. 63) conclui que “As profissões voltadas para as elites e para o sistema produtivo e tecnológico sempre se encontram plenamente qualificadas, prestigiadas e bem remuneradas”. Por outro lado, quando “[...] direcionada[s] para o atendimento da população de baixa renda, o sistema capitalista consegue levá-la[s] a perder sua qualificação profissional e seu poder aquisitivo”.

Quanto à formação profissional para a docência, foi no decorrer do século XIX que se criaram as primeiras escolas normais brasileiras: em Niterói, em 1835; na Bahia, em 1836; e no Rio de Janeiro, em 1880. Em São Paulo, a primeira escola normal foi inaugurada em 1846, porém sofreu repetidos fechamentos, por falta de verbas, e só foi reaberta definitivamente em 1880. Segundo Novaes (1994, p. 20-21), em “[...] Minas Gerais, a primeira escola, implantada em 1840, sofreu processo similar até 1906, quando foi instalada, exclusivamente, ao sexo feminino”.

Em Rondônia, na região de fronteira Brasil-Bolívia, teve lugar uma ação educacional singular, a partir da atividade missionária realizada pelo primeiro bispo de Guajará-Mirim, Dom Rey3, voltada à escolarização e formação de professoras e concomitantemente à educação e profissionalização em geral. Recuperar das memórias e inserir na história educacional passagens da formação e do desenvolvimento profissional daquelas mulheres negras, reafirmando o prestígio que alcançaram, tem o intuito de fazer justiça ao esforço que realizaram para superar as enormes dificuldades, enfrentar as barreiras sociais e permanecer no imaginário local como exemplos de dignidade, perseverança e dedicação.

O locus e o contexto: aspectos singulares

Neste artigo, mesmo que de forma sintética, abordamos aspectos da formação e do desenvolvimento profissional daquelas mulheres que protagonizaram um momento significativo da história educacional. Durante os anos de 2010 a 2012, quando trabalhamos na Universidade Federal de Rondônia, no Campus de Guajará-Mirim, conhecemos algumas das professoras, já aposentadas, que haviam estudado na “Escola de Dom Rey” e vimos que eram tratadas com muita reverência e respeito tanto por pessoas envolvidas no campo da educação quanto por aquelas de outras áreas. Logo compreendemos que era importante fazer registros de suas memórias para a escrita da história da educação de Rondônia.

O espaço geográfico onde as mulheres referenciadas neste texto foram protagonistas, rompendo obstáculos e preconceitos diante da vontade de aprender a ler e a escrever, compreende uma grande extensão de terras e águas. O Rio Guaporé nasce na extremidade setentrional da Serra dos Parecis em Mato Grosso, seu curso tem um total de 1.717 km, sendo 1.500 km navegáveis, que corre em direção ao Norte do Brasil, onde se encontra com o Rio Beni, boliviano, formando o Rio Mamoré. Daí a utilização do termo Vale do Guaporé-Mamoré, neste texto, para situar o leitor e caracterizar fisicamente a região de abrangência do objeto de estudo. Quanto aos aspectos históricos, para que possamos entender melhor o contexto, as concepções vigentes e os rompimentos, é importante mencionarmos as tensas relações entre brancos, negros e indígenas no lento e violento processo de colonização.

Há vários trabalhos sobre a atuação de negros na região, revelando a intensa exploração de mão de obra escrava nas construções da cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade e do Forte Príncipe da Beira, no final do século XVIII. Os estudos também descrevem os negros aquilombados sob a organização de Tereza de Benguela4, em busca da liberdade e da dignidade de viver, sem as imposições da coroa portuguesa e dos senhores que se tornaram proprietários das terras.

Naquele espaço, desenvolveu-se uma das experiências mais significativas sobre educação de mulheres negras. A Escola de Dom Rey já foi objeto de estudos e pesquisas que abordam a formação de mulheres negras em um contexto adverso e bastante peculiar em função das características de uma região de fronteira e de toda a complexa história da construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, cuja população à época – característica que, em grande parte, ainda se mantém – era composta por uma mistura de negros e índios, negros e bolivianos e índios e bolivianos; havia brancos em quantidade pouco significativa.

Resultam desse contexto complexo, histórico e territorial as condições objetivas que “produziram” as meninas escolhidas por Dom Rey para serem escolarizadas e tornarem-se professoras, integrando-se na causa que o bispo havia abraçado por compreender o papel evangelizador da educação e a importância da escolarização nas transformações sociais e econômicas requeridas pela região sob sua responsabilidade espiritual. Assim, concordamos com a indagação, seguida de resposta, feita por Dutra (2010, p. 107-108) em sua dissertação de mestrado:

[...] O que tornou essa experiência diferente das outras vivenciadas em outras localidades brasileiras? O fato de que havia um contingente de meninas negras a serem educadas e que, por sua vez, teriam se tornado sujeitos de suas próprias ações. [...] muitas foram designadas a ocupar cargos de prestígio nas mesmas localidades onde exerceram o magistério. E podem-se observar, neste trabalho, todas as oportunidades de exercício de cidadania que essas mulheres negras puderam experienciar nas localidades de suas competências/jurisdição ou responsabilidade. [...] Elas, as professoras, leitoras de cartas, a povoar e alimentar a imaginação das famílias sedentas de notícias dos entes queridos, com as suas entonações de voz, expressões faciais e palavras de conforto [...]. Elas, as professores, fazendo as vezes dos padres, quando da ausência destes, dando a extrema-unção aos enfermos, fazendo as orações, confortando as almas com as palavras certas, proferindo belas palavras nas festanças comunitárias e/ou particulares (de aniversários, por exemplo).

História e memória das professoras negras: aspectos metodológicos gerais

Procuramos, então, conhecer mais sobre a trajetória de estudos e de desenvolvimento profissional daquelas professoras, considerando suas experiências como significativas no processo de formação dos estudantes do curso de Pedagogia. Assim, apoiamo-nos em leituras na temática da história oral que dão ênfase para “[...] a história dos professores, suas experiências, o desenvolvimento profissional individual e coletivo em contextos e épocas diferentes” (Fonseca, 1997, p. 30).

Desde os primeiros contatos com as professoras, notamos que havia maior riqueza de detalhes nas narrativas quanto mais se aproximavam do plano pessoal e que a pesquisa seria uma oportunidade rara de dar-lhes voz e torná-las efetivamente integradas na história, sem perderem a própria identidade, uma vez que suas memórias5 são únicas – singulares – e expressam sentimentos e experiências que, embora sejam marcas da vida privada, estão imbricados na memória coletiva e constituem importante fonte para a escrita da história educacional.

Vale observar que, entre os romanos, a memória era indispensável à arte retórica, destinada a convencer e emocionar os ouvintes. E, na Grécia antiga, a memória era vista como um dom a ser exercitado, carregado de mística e importância. A deusa Mnemosine, mãe das musas – protetoras das artes e da história –, possibilitava aos poetas lembrarem-se do passado e transmiti-lo aos mortais. As musas dominavam a ciência universal e inspiravam as chamadas artes liberais. As nove filhas de Mnemosine eram: Clio (história), Euterpe (música), Talia (comédia), Melpômene (tragédia), Terpsícore (dança), Erato (elegia), Polínia (poesia lírica), Urânia (astronomia) e Calíope (eloquência). Assim, de acordo com essa construção mítica, a história é filha da memória, mas nem por isso a história ciência garantiu o prestígio para a memória. Só com o passar do tempo é que foi havendo maior compreensão de sua importância, a ponto de garantir seu lugar no mundo acadêmico.

Das leituras que realizamos, agrupamos os textos em três grandes correntes, as quais, embora apresentem similitudes, também comportam diferenças. Uma delas apresenta a história oral como uma técnica; a outra lhe dá status de disciplina; e a terceira a vê como uma metodologia. De nossa parte, assumimos a compreensão de que os depoimentos orais, fundamentados na memória, fornecem valiosos elementos para a escrita e a compreensão dos acontecimentos históricos. Consoante Alberti (2005, p. 31-32):

Sendo um método de pesquisa, a história oral não é um fim em si mesma, e sim um meio de conhecimento. Seu emprego só se justifica no contexto de uma investigação científica, o que pressupõe sua articulação com um projeto de pesquisa previamente definido. Assim, antes mesmo de se pensar em história oral, é preciso haver questões, perguntas, que justifiquem o desenvolvimento de uma investigação. A história oral só começa a participar dessa formulação no momento em que é preciso determinar a abordagem do objeto em questão.

Foi considerando a história oral como técnica, mas não unicamente nesse sentido, que incentivamos a realização de pesquisa de iniciação científica tendo como objeto de estudo as primeiras escolas de Guajará-Mirim e como fontes as suas primeiras professoras, já aposentadas, mas ainda lúcidas e dispostas a contribuírem com a formação de docentes/pesquisadores. Neste caso, as memórias, registradas durante a realização de grupos focais, foram objeto de análises associadas à concepção teórico-metodológica com a qual temos realizado outros estudos, qual seja, o materialismo histórico-dialético. Ressaltamos que, ao utilizarmos a oralidade como fonte, estamos dialogando com as correntes revisionistas da história que reconhecem e valorizam as experiências e os relatos de uma grande parcela da sociedade, constituída de analfabetos, excluídos do “mundo dos letrados”, mas não desprovidos de memórias.

Por tratar-se de uma pesquisa de base, os cuidados iniciais incluíram leituras coletivas e definição de critérios para a identificação e a seleção de informantes que tivessem maior tempo de atuação no magistério em Guajará-Mirim. Como assinala Alberti (2005, p. 31-32):

A escolha dos entrevistados não deve ser predominantemente orientada por critérios quantitativos, por uma preocupação com amostragens, e sim a partir da posição do entrevistado no grupo, do significado de sua experiência. Assim, em primeiro lugar, convém selecionar os entrevistados entre aqueles que participaram, viveram, presenciaram ou se inteiraram de ocorrências ou situações ligadas ao tema e que possam fornecer depoimentos significativos.

Definidos os nomes, demos início a um processo de familiarização com as pessoas, buscando obter a confiança delas para quando da realização das entrevistas individuais ou no formato coletivo de grupo focal, o qual se mostrou mais adequado. O lembrar em uma entrevista é um processo recíproco que exige compreensão de parte a parte. O historiador precisa sempre perceber como uma pergunta está sendo respondida da perspectiva de uma outra pessoa (Thompson, 2002).

Houve também um processo de sensibilização sobre a importância dos seus depoimentos, de suas memórias, para que as informações pudessem ser registradas, escritas, divulgadas. Foram entrevistados três professoras e um professor, com idades entre 68 e 85 anos. O trabalho foi publicado em livro intitulado Pesquisa educacional na Amazônia: relatos de iniciação científica (CNPq/Pibic) em Rondônia. Algumas partes dos depoimentos serão apresentadas no presente texto, juntamente com outros registros disponibilizados em publicações de pesquisadores que se dedicaram ao estudo dessa temática.

Como já mencionado, a entrevista coletiva, no formato de grupo focal, mostrou-se mais produtiva. Todavia, não devemos nos iludir de que é possível a um entrevistado idoso lembrar-se de tudo, por isso devemos possibilitar situações em que o maior número de lembranças possam aflorar. Daí a importância de leituras prévias, de recolhimento de outras informações paralelas e, acima de tudo, de muita atenção no momento da entrevista para perceber quando é momento de deixar fluir a conversa e quando é necessário intervir com uma pergunta que possa tornar a informação prestada mais consistente, com riqueza de detalhes. Ouvindo e valorizando as vozes do passado e do presente, será possível minimizar os esquecimentos e combater as atitudes que levam ao apagamento da memória, seja individual, seja coletiva.

O trabalho singular de Dom Rey na formação e profissionalização das “meninas negras”

Falar do percurso formativo e do desenvolvimento profissional das professoras negras destacadas neste artigo requer a dedicação de algumas linhas para abordar o trabalho do primeiro bispo de Guajará-Mirim, que, ao ver as condições de vida das comunidades pobres, formulou e implantou um programa progressista de assistência educacional e religiosa para combater a exclusão social, o abandono e a irresponsabilidade do Estado. No exercício de suas atividades pastorais, percorrendo o Vale, verificou a ausência de escolas e professores(as). Começou, então, o trabalho de recrutamento de meninas em lugares como Vila Bela, Rolim de Moura, Carvalho e Pimenteiras. Uma das professoras ouvidas para a elaboração deste texto relatou que “Dom Rey queria com essas meninas, quando elas terminassem, que elas voltassem para sua origem e lá atendessem o povo não só como professora, mas como enfermeira e conselheira ao mesmo tempo” (Colares et al., 2008, p. 99).

Dom Rey mobilizou esforços e buscou cooperação tanto das comunidades como do poder público com a contrapartida que incluía pagamento de salários e fornecimento de materiais para as atividades educacionais. Para que recebessem as luzes da instrução escolar, as meninas eram entregues aos cuidados de Dona Emília Guerra (conhecida como Dona Pretinha), a diretora do internato.

Dona Emília foi adotada pelas meninas, que a chamavam de madrinha. Dona Pretinha teria sido uma professora de uma escola (Escola Reunida) em Guajará e foi preterida por motivos políticos, e Dom Rey, ao saber de suas experiências com educação, convidou-a para conduzir o internato e acompanhar as internas. De acordo com as declarações, ela conduzia o internato com mãos de ferro, quando precisava castigava6 (Dutra e Cá, 2008, p. 6).

Nada absurdo considerando o padrão vigente na época em termos de métodos de ensino e a rigidez que deveria ser observada na disciplina, principalmente em se tratando de mulheres. Os ideais de nacionalismo, eugenia e higienismo também estavam presentes, mesmo naquela localidade distante dos centros onde os discursos dos intelectuais responsáveis pelo futuro da educação brasileira ecoavam com maior intensidade. Para que uma mulher pudesse ingressar no mundo público objetivando afirmação profissional, antes precisava adquirir, conforme Müller (1999), competência doméstica. Sendo capaz de racionalizar as atividades no seio da família, zelar pela saúde de sua prole e de seu cônjuge, de acordo com os preceitos da ciência, seria capaz também de bem desempenhar-se no domínio público.

Por esse prisma, admitiam a escolarização de mulheres e sua inserção profissional, notadamente no magistério. Como observa Louro (2006, p. 463) em texto denominado “Mulheres na sala de aula”:

Com a ‘feminização do magistério’, as assim chamadas ‘características naturais femininas’ são articuladas às tradições religiosas da atividade docente, dando-lhes uma outra conformação. A professora é consagrada mãe espiritual; a Oração do mestre, escrita por Gabriela Mistral, é bem representativa: ‘Senhor! Tu que me ensinastes, perdoa que eu ensine e que tenha o nome de mestre que tiveste na Terra. Dá-me o amor exclusivo de minha escola: que mesmo a ânsia da beleza não seja capaz de roubar-me a minha ternura de todos os instantes [...]. Dá-me que eu seja mais mãe do que as mães, para poder amar e defender, como as mães, o que não é carne da minha carne. Dá que eu alcance fazer de uma das minhas discípulas o verso perfeito e deixar gravada na sua alma a minha mais penetrante melodia, que assim há de cantar, quando meus lábios não cantarem mais’. De inúmeras formas, essa e outras orações não apenas foram repetidas em festas do Dia do Professor ou do Dia das Mães, mas deram sentido ao cotidiano e produziram uma representação de mulher professora.

Entre as professoras entrevistadas no âmbito das atividades do projeto de iniciação científica já mencionado, duas foram “entregues” por seus pais aos cuidados do Bispo Dom Rey e participaram efetivamente da história educacional da região do Vale do Guaporé-Mamoré. Nas memórias, aparece fortemente o orgulho em educar, mesmo que isso implicasse uma sobrecarga de trabalho, porque havia a recíproca das famílias.

Entrevistada A: [...] Nós tínhamos vocação, eu sonhava em ser professora [...], os professores eram interessados e respeitados e os alunos também. Isso é a chave da coisa. [...] os pais, mesmo eles sendo analfabetos, incentivavam os filhos para irem à escola, não faltar, mandavam estudar e fazer a tarefa (Colares et al., 2008, p. 97).

Entrevistada C: [...] Então o que acontecia com essas pessoas, elas sentiam muita dificuldade, não tinham um lugar para aprenderem a ler. As pessoas que tinham condições financeiras mandavam os filhos estudarem para fora. O que aconteceu é que se criou uma escola chamada reunida, mas não era escola oficial, simplesmente era um local onde as pessoas mais humildes, a maioria filhos de seringueiros, pudessem ter uma orientação educacional [...]. Dom Rey conversava muito com a gente, ele ficou apavorado com o grande analfabetismo que tinha ali. Então ele já veio descendo o Rio Guaporé fazendo contato com aquele povo humilde e pobre, esse povo que ele fazia questão de amparar, e conhecendo-os quando chegou aqui [...]. Os pais preparavam as meninas. Na subida, ele avisou todo mundo da data em que ele voltaria. Prepararam-nas para ele trazer as meninas. Ele trabalhou nessa casa até virar uma escola, comprou um terreno do seu Clóvis, pai da Marcela, para ampliar. E hoje é a casa da embaixada (Colares et al., 2008, p. 98).

Dom Rey criou 33 escolas no Vale do Guaporé. Em 1933, fundou em conjunto com Dona Emília Guerra (Dona Pretinha) o “Colégio Santa Terezinha”, que, em 1935, foi entregue aos cuidados de cinco irmãs calvarianas: Irmã Martha do Calvário e Irmã Rafael, francesas; Irmã Martha de Jesus, irlandesa; Irmã Maria Agostinho e Irmã Maria Antonieta, brasileiras (oriundas de São Paulo). A Irmã Maria Agostinho faleceu de hepatite seis meses após sua chegada em Guajará-Mirim. O Colégio Santa Terezinha, sob os cuidados das irmãs calvarianas, passou a chamar-se “Colégio Nossa Senhora do Calvário”, tendo como finalidade promover a educação das moças ribeirinhas, futuras educadoras e animadoras das comunidades do interior. “Entrevistada A: Dom Rey queria com essas meninas quando elas terminassem que elas voltassem para sua origem e lá atendessem o povo não só como professora, mas como enfermeira e conselheira ao mesmo tempo” (Colares et al., 2008, p. 99).

Os pais tinham total confiança nas educadoras, razão pela qual não interferiam nas decisões, mesmo que estas resultassem em castigos corporais que eram compreendidos por eles como parte de um aprendizado necessário. Os principais castigos mencionados pelas entrevistadas foram: ficar de joelhos no milho, escrever várias vezes a coisa correta a ser feita, ficar sem almoço e submeter-se à palmatória.

Entrevistada C: elas ensinavam com todo aquele carranquismo da época. Aprendia-se na base da palmatória [...]; mamãe contava que meu irmão, coitado, chegava a cair no chão e tudo para aprender. Às vezes, a língua não dava para pronunciar uma sílaba, então a professora o fazia pronunciar aquilo a preço de castigo, a preço de palmatória. Quando eu entrei na escola (como professora), já tinha acabado esse negócio do castigo. Já havia entrado a lei e não era para usar mais esse tipo de castigo, de ficar de joelho, usar a palmatória e outros tipos de castigo. Mas eles (os pais) queriam que nós entrássemos naquele método. Mas eu disse que não. ‘Eu não vou satisfazer vocês e castigar; se tem a lei, vamos obedecê-la. Nós temos uma maneira de ensinar sem precisar disso, porque, com uma boa explicação, com calma, a criança aprende melhor’. Às vezes, tinha um aluno que ficava nervoso, chorava no quadro de giz, ou, às vezes, com quem tinha que ir ao quadro de giz para armar aquela conta de matemática, unidade debaixo de unidade, dezena em baixo de dezena, a gente tinha que ensinar aquela operação matemática com muito carinho. Uma coisa que eu pensava era que, se eu tivesse um filho e, quando mandasse para a escola, o meu filho viesse de lá com a mão dessa altura de inchada e vermelha de apanhar de palmatória, eu não iria gostar e não iria aceitar (Colares et al., 2008, p. 102).

Em Guajará-Mirim e seu entorno brasileiro, não há registros de funcionamento de escola antes de 1913, ano em que surgiu a primeira Escola do Alto Madeira, quando à época ainda pertencia ao estado do Amazonas. Segundo Albuquerque e Freitas (2016, p. 3), “O poder público não via a necessidade de abrir escolas na localidade [Vale dos Rios Guaporé e Mamoré], pois entendia como reduzido o aglomerado de pessoas, de forma que não justificava o investimento”. Esses pesquisadores também relatam que, em 1924, o Coronel Paulo Cordeiro da Cruz Saldanha assumiu a educação em Guajará-Mirim, quando “[...] criou a primeira escola no vilarejo e, com o êxito obtido, posteriormente criou o Instituto Paulo Saldanha, destinado a adultos. Posteriormente vieram as Escolas Reunidas [...]” (Albuquerque e Freitas, 2016, p. 3).

Finalizamos este tópico com o depoimento de uma das meninas que estudou e se tornou professora graças ao trabalho pastoral de Dom Rey, no qual demonstra o carinho, o respeito e a gratidão para com o bispo de origem francesa que tanto se identificou com as causas dos mais necessitados nas terras distantes e esquecidas da Amazônia rondoniense.

Entrevistada E: Meu pai era soldado da borracha. [...] Era do Rio Grande do Norte e minha mãe, do Piauí. O patrão dele, que era sindicalista, dizia: ‘Olha, bota a menina no colégio que é melhor para ela’. E me levaram para Porto Velho, num convento, mas não foi muito bom. Eu não fui bem recebida por causa de preconceito de ser filha de seringueiro. [...] quando cheguei lá, eu fiquei olhando, achei bonito, tudo diferente. A freira disse para meu pai: ‘Olha, o senhor aguarde aqui que eu vou chamar o nosso bispo, porque só a interna que fica aqui, porque aqui é comandado pelo bispo’. Eu disse baixinho: ‘Ih! Meu Deus! Será que eu vou ficar fora de novo?’ [...]. Ele sempre dificultava muito para entrar interna para o convento, não era qualquer pessoa que ele deixava. E ele, só de olhar para a minha cara, já disse: ‘Não! Ela pode ficar! Essa menina vai ser alguma coisa na vida!’. Ele disse para mim assim: ‘Ela vai ser alguém na vida, vai ser um dos meus seguidores’ (Colares et al., 2008, p. 108-109).

Considerações finais: das memórias para a história

As meninas eram selecionadas para futuras educadoras com 7 anos completos, mas uma de nossas entrevistadas havia sido recrutada com apenas 6 anos. Para convencer Dom Rey de sua vontade, apelou para o choro. Juntamente com sua irmã que já havia atingido a idade mínima, integrou o grupo constituído de 30 meninas que foram preparadas para o exercício do magistério. A vida religiosa também era desejável, mas nenhuma seguiu esse percurso.

As educadoras e alfabetizadoras dessas meninas foram as próprias freiras, com a orientação de Dom Rey. O regulamento do internato era muito rígido com horários de estudos, regras disciplinares, horários para os atos de religiosidade, mas também contemplava brincadeiras. Todas tinham uma caderneta em que eram registradas todas as ocorrências. Quando Dom Rey voltava de suas viagens, inspecionava as cadernetas; quando se deparava com alguma alteração, ele sentava e conversava com a aluna, querendo saber o que tinha acontecido. Se o assunto era grave, ele a colocava de castigo, dizendo que ela estava ali para ser alguém na vida e que aprenderia muito com as irmãs. As alunas também eram elogiadas quando as anotações revelavam bons resultados nos estudos.

Entrevistada C: [...] a menina que ganhava nota baixa ele chamava-a junto de sua mesa para dizer o porquê que ela ganhou aquela nota baixa. E, quando a irmã ia falar o porquê da nota baixa, ele dizia que queria que ela falasse com as próprias palavras dela, daí a menina começava a chorar, tinha muito medo, pois ele era um pai, mas, na hora do castigo, ele castigava, falava sério mesmo com a gente, com aquela palavra séria de você chorar. Você sentia que ele primeiro dava aquele conselho, fazia-nos ver de onde nós viemos e se nós gostaríamos de voltar para aquela vida de analfabetismo, para aquela vida. Então, ele fazia a gente ver tudo aquilo do passado, e que nós teríamos que ter um futuro brilhante [...]. Todo mês, nós éramos observadas, isso eu gostava do colégio. Eu entrei em 1938 e fiquei cinco anos no colégio e, apesar dos pesares, eu gostava do colégio (Colares et al., 2008, p. 100-101).

Os pais tinham orgulho de ver suas filhas lendo e ensinando outros a ler. Mesmo que eles próprios fossem analfabetos, sabiam que era muito importante para elas e para a família também. Já alfabetizadas e prontas para ensinar, elas eram auxiliares das freiras nas salas de aula. Quase sempre iniciavam no jardim de infância. Após adquirirem experiência, assumiam uma classe. No caso de uma das entrevistadas, isso se deu quando ela contava com apenas 13 anos de idade.

Entrevistada E: Eu comecei a ajudar a Irmã Maria Celeste, quando eu terminei o primário, em 1955. Eu tinha 13 anos, comecei ajudando no jardim da infância. Eu ensinava às crianças cantos, ginástica, tinha o horário de ir para igreja, depois voltávamos todo mundo; eu fazia a chamada, eles levantavam a mão, tinha alguns muito inteligentes. E depois eles tinham o horário de fazer a leitura, com figuras, tinha o abecedário, depois nós cantávamos o abecedário todinho. E começava assim: [cantando] ‘Vamos brincar de escola, eu sou o professor, agora respondam: - Presente, sim, senhor!’. Aí chamava: ‘Zezinho?’. ‘Presente!’. Maria só chamava três. ‘Agora vamos sentar, a aula vai começar. Agora podem sentar, a aula vai começar, a, b, c’. O abecedário todinho assim, depois a gente ia e colocava a figura e dizia: ‘Essa é a letra a’; e a gente escrevia a letrinha ‘a’ (Colares et al., 2008, p. 101-102).

A partir de 1940, houve uma grande presença de imigrantes na região devido à extração da borracha e à conclusão da estrada de ferro. Mas a infraestrutura da cidade de Guajará-Mirim era bastante precária para abrigar a população crescente. Havia a carência de diversos profissionais, em especial de professoras para atender aos filhos dos trabalhadores atraídos pela oferta de empregos. Era comum em uma única sala de aula funcionarem várias séries. Como a escassez de material didático era grande, as próprias professoras os confeccionavam aproveitando tudo o que a natureza oferecia, como as sementes de seringueiras, folhas, animais, como as aves e as formigas, entre outros elementos.

Os relatos mostram que o aprimoramento profissional daquelas professoras ocorreu de forma lenta e à custa de muitos sacrifícios pessoais. Iam estudar em Porto Velho, capital, no período de férias escolares, ficando hospedadas em escolas ou em casas de parentes, praticamente sem qualquer ajuda financeira. Ao relembrarem aquele período, apontam as dificuldades, mas também revelam uma enorme satisfação em terem tido a oportunidade de se “aperfeiçoarem”.

Entrevistada C: A gente vibrava com o curso de férias (em Porto Velho); nós ficávamos interessadas para saber e aprender novas técnicas de ensino. Acabando o método do bê a bá, terminando o método de soletrar. [...] Antes se soletrava ca + sa era casa, então era assim. Mas aí, quando apareceu o novo método de alfabetização, então acabou aquele sistema de soletrado, o aluno já tinha que conhecer aquelas letras, juntar uma com a outra, já sabendo que o ‘c’ e o ‘a’ juntos formavam a sílaba ‘ca’, ou, por exemplo, o ‘f’ e o ‘a’ formavam ‘fa’, então já foi esse método que foi introduzido para nós nessa mudança. Esse método eu achei que também teve vantagens para o aluno que tinha dificuldades. Mas a gente do mato não tinha muito material didático. Tínhamos mesmo materiais rústicos, mas a gente usava mesmo assim. Por exemplo: tinha a semente da seringueira, para a matemática, porque 2 + 2 são 4, então a gente já tinha e só não usava quem não queria mesmo (Colares et al., 2008, p. 105-106).

Entrevistada A: Na época, meu trabalho era assim, com desenho e as letras ao lado; vieram as cartilhas, também com desenhos ao lado. A gente usava muita observação. Eu fazia excursão em volta da escola, levava os alunos para verem o que estava acontecendo em volta de sua escola, para verem também os pássaros, aprenderem e conhecerem os nomes deles, as araras, papagaios e outros. Nessa época, tinham muitos. As crianças tinham contato com a natureza e com isso eu adaptava a matemática. Usávamos muitos meios da natureza. Com brincadeira, eu usava as crianças, aplicando os números ímpares ou pares. Eu colocava várias crianças lá na frente, aí eu chamava uma criança, e essa criança vinha na frente, e eu perguntava: ‘Essa criança tem par?’; ‘Não?’; ‘Então, esse número é ímpar. E qual é esse número ímpar? Esse número é o um’. Então, se elas estão se familiarizando com elas mesmas, é melhor do que ficar nas carteiras dentro da sala de aula. [...] Naquela época, se fazia as crianças lerem todos os dias; eu dizia: ‘Vamos tomar a lição’. A criança tinha a lição marcada, e liam em casa, os pais ajudavam. Os que sabiam ler ajudavam, ensinavam, aí voltavam com tudo na ponta da língua (Colares et al., 2008, p. 106).

Entrevistada C: Eu lecionava no turno da manhã para alfabetização, 1ª, 2ª e 3ª séries [atualmente 1º, 2º, 3º e 4º anos, respectivamente]. Aqueles da alfabetização sentavam numa fila, e o quadro era grande, e eu dividia o quadro bem no meio. Então, para aqueles que sabiam escrever, eu colocava um texto ou uns números no quadro, e eles copiavam. Os da alfabetização, que ainda não tinham a coordenação motora, desses eu levava o caderninho para casa, colocava a tarefa no caderninho, eles levavam para casa e faziam aquela tarefinha feia ou bonita, mas sei que no outro dia eles traziam feitas. Aí o outro lado do quadro era designado para 2ª e 3ª séries. Mas de manhã eu dava matemática, português, logo no início da aula. Soltava para o recreio, depois do recreio, era gramática e exercícios (Colares et al., 2008, p. 106-107).

Na trajetória de educadora para professora qualificada (expressão utilizada por uma das entrevistadas e aqui mantida para caracterizar uma passagem que foi motivo de orgulho e até sinônimo de status), surgiram dúvidas em relação aos novos métodos e às leis educacionais, especialmente quanto à separação de disciplinas e troca de nomes. Essas dúvidas foram suscitadas porque elas já estavam acostumadas com os métodos anteriores, e os pais também cobravam, argumentando que o método antigo era melhor baseados em queixas de seus filhos diante das dificuldades de se adaptarem aos novos conteúdos.

Com a pesquisa, conseguimos resgatar parte das memórias e transformá-las em história. Reafirmamos nosso entendimento de que, sem o conhecimento e a valorização da história, não dignificamos os feitos de nossos antepassados. Lembrar é também importante para refazer o que já se fez e repensar com as experiências acumuladas.

A profissionalização feminina para o exercício da docência resultou de um longo caminho repleto de obstáculos, o que não impediu que fosse percorrido e, em sendo, gradativamente também sofresse modificações. A criação das escolas “mistas”, no final do Império, e a implementação dos grupos escolares, na primeira década do século XX, possibilitaram o aumento e a diversificação do campo de trabalho, absorvendo a presença de mulheres professoras. Todavia, ainda prevaleciam antigas restrições para a inclusão de mulheres na escolarização e no exercício das profissões. As docentes recebiam autorização para lecionar nas classes onde havia meninos até uma determinada idade, geralmente entre 12 e 14 anos, “acolhidas” pela construção do discurso da “vocação natural” da mulher para o magistério. Elas eram dotadas, consoante afirmavam médicos, pais, membros do clero, governantes, de mais coração e ternura, qualidades “naturais” para que exercessem sua profissão nas escolas. Entretanto:

Um olhar atento perceberá que a história das mulheres nas salas de aula é constituída e constituinte de relações sociais de poder. É mais adequado compreender as relações de poder envolvidas, nessa e em outras histórias, como imbricadas em todo o tecido social, de tal forma que os diversos sujeitos sociais exercitam e sofrem efeitos de poder. Todos são, ainda que de modos diversos e desiguais, controlados e controladores, capazes de resistir e de se submeter (Louro, 2006, p. 478).

Assumir que a escola transformou vidas de mulheres negras, ribeirinhas, como consta no título deste artigo, tornou-se possível, justificável e factível de comprovação como resultado das leituras e entrevistas e da compreensão da importância da memória para a elaboração da história, embora não percamos de vista que elas expressam representações passíveis de serem questionadas, porém não podem ser desprezadas.

[...] A questão não será, pois, perguntar qual ou quais as imagens mais verdadeiras ou mais próximas da realidade e quais as que a distorcem, mas sim compreender que todos os discursos foram e são igualmente representações; representações que não apenas espelharam essas mulheres, mas que efetivamente as produziram. Em outras palavras, as representações de professora tiveram um papel ativo na construção da professora, elas fabricaram professoras, elas deram significado e sentido ao que era e ao que é ser professora. Ao se observar tais representações, não se está apenas observando indícios de uma posição feminina, mas se está examinando diretamente um processo social através do qual uma dada posição era (e é) produzida (Louro, 2006, p. 464).

As análises resultaram das questões levantadas e de suas respectivas respostas quanto ao percurso formativo e ao desenvolvimento profissional de algumas meninas negras que se tornaram professoras. O texto, fazendo parte de um dossiê que trata de formação e profissionalização de mulheres, teve o propósito de resgatar e valorizar os esforços, as lutas e as conquistas históricas que possibilitaram os avanços posteriores na região do Vale do Guaporé-Mamoré. E, mesmo que em determinados tempos e espaços tenham sido pequenos, como talvez seja visto por algum(a) leitor(a), é importante pensar que no conjunto tornam-se expressivos e constituem a base legítima sobre a qual se pode construir uma sociedade em que homens e mulheres sejam respeitados em seus direitos, entre os quais se inclui o de estudar e de exercer as mais diversificadas atividades profissionais.

Encerramos com a voz escrita de uma das professoras negras que inspirou a realização da pesquisa que deu origem a este texto:

Entrevistada C: Ficamos muito agradecidas de ver que vocês estão querendo descobrir tudo aquilo que Rondônia tinha encapado, vamos dizer assim, num embrulho, num pacote, ali que ninguém se interessava em abrir para ver, para dar valor, o significado, como funcionou. Então, é como um pessoa que vê um objeto, às vezes, um objeto de grande valor, mas ela nem liga para saber como é que funcionou no passado essas coisas. Então, a gente vê pessoas que vêm de fora resgatando tudo isso [...]. Outro dia, nós fomos homenageadas com o título de ‘As primeiras professoras de Dom Rey’, e um ex-aluno meu, o Joãozinho, que estava com a irmã dele, me pediu um abraço. [...] O que eu mais deixo para os professores que estão se formando hoje, principalmente aquelas mais novinhas, é o amor nas crianças: ‘Seja amiga de seus alunos’ (Colares et al., 2008, p. 113-114).

3Pierre Ele Rey (Dom Francisco Xavier Rey) nasceu na aldeia de Fauch, na França, em 29 de junho de 1902. Ingressou no noviciado dos franciscanos e foi ordenado sacerdote em 1929. Nomeado prelado em 1931, recebeu do Papa Pio XI, em 1932, a incumbência de tomar conta da Missão de Guajará-Mirim. Foi sagrado bispo em 9 de setembro de 1945. Não foi apenas o primeiro bispo de Guajará-Mirim, mas um incansável lutador pela melhoria das condições sociais do povo e da infraestrutura da cidade de Guajará-Mirim e da região do Vale do Guaporé. Faleceu em Porto Velho no dia 20 de janeiro de 1984 (Caravita e Arruda, 2002).

4 Dutra e Cá (2008, p. 4), apoiados em Fernandes (2003, p. 162), citam que “[A] crioula forra Maria Eugênia de Jesus, tida como insolente e que por isso deveria ser enviada para o Forte de Coimbra ou Príncipe da Beira [...]. Mulheres como Maria Eugênia, cativas ou libertas, com diferentes relações familiares, compuseram a população do forte. O número de mulheres participando no cotidiano do forte não difere dos contingentes femininos trabalhando em outros ambientes edificados. Para os anos de 1776-1797, Jovam Vilela da Silva identificou [...] que a participação feminina totalizava 25 a 30%”.

5O entendimento de memória buscamos em Le Goff (2003, p. 419), quando este afirma que: “[...] pela memória temos a propriedade de conservar certas informações que, por nos remeter a um conjunto de funções psíquicas, permite-nos atualizar impressões e informações passadas ou que representamos como passadas”. A memória não é um fenômeno de interiorização individual, mas sim uma construção social e um fenômeno coletivo, dessa forma sendo modelada pelos próprios grupos sociais. A memória não é o passado, mas a rememoração desse passado feita no presente de um indivíduo, sendo determinada pelas condições presentes do momento. E, como afirma Burke (2000, p. 73), “As memórias são maleáveis, e é necessário compreender como são concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa maleabilidade”.

6Em 1935, Dona Pretinha adoeceu, viajou para Manaus, quando vieram as primeiras religiosas para dar continuidade ao trabalho de Dom Rey.

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Recebido: 10 de Julho de 2018; Aceito: 02 de Novembro de 2018

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