SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número2As políticas de expansão para educação superior dos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016): inclusão e democratização?Sulear as práticas: uma direção a partir do parentesco intelectual entre Paulo Reglus Neves Freire e Boaventura de Sousa Santos índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educação UNISINOS

versión On-line ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.23 no.2 São Leopoldo abr./jun 2019  Epub 30-Abr-2020

https://doi.org/10.4013/edu.2019.232.05 

Artigos

O pathos da ação: notas sobre responsabilidade docente e singularidade

The action’s pathos: notes on teacher’s responsibility and singularity

Diogo Bogéa1 

1 Professor de Filosofia na Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). diogobogeaa@hotmail.com


Resumo

Investigação acerca do conceito de “responsabilidade” e suas implicações na compreensão contemporânea da “responsabilidade docente”. A tradição moderna fundamenta o agir responsável numa concepção de sujeito racional, consciente, autoconsciente. A ação responsável pressupõe, nesse registro, um saber que legitima o poder afirmativo de um agente livre para agir ou não agir. Buscaremos, a partir da referência à filosofia de Nietzsche e ao pensamento de Derrida, pensar a dimensão do pathos na ação, além de trazer à tona uma compreensão da responsabilidade enquanto “resposta” à singularidade do “outro” que nos interpela. Trata-se de uma experiência da responsabilidade que se inscreve numa dimensão “indecidível” entre saber e não saber, poder e não poder, afirmatividade e passividade.

Palavras-chave: Responsabilidade; pathos; singularidade

Abstract

Investigation on the concept of “responsibility” and its implications in the contemporary comprehension of the “teacher’s responsibility”. The modern tradition grounds the responsible action with the notion of a rational, conscious and self-conscious subject. Responsible action presupposes, in this record, some kind of knowledge which legitimates the affirmative power of the free agent to act or not to act. We’ll try, from the reference to the philosophy of Nietzsche and Derrida’s thinking, to bring the dimension of pathos to understand human action. We’ll also try to bring up the comprehension of responsibility as “response” to the singularity of the “other” that calls us. It’s an experience of responsibility with an “undecidable” dimension between knowing and not-knowing, power and impotence, affirmation and passivity.

Keywords: Responsibility; pathos; singularity

Responsabilidade e ação humana

Quando falamos em “responsabilidade”, nos referimos à “ação” humana e, assim, já nos inserimos, mais ou menos conscientemente, nas redes conceituais que a tradição ocidental nos legou. Quando falamos em “ação”, portanto, geralmente nos referimos a um “pôr em movimento”, “fazer” ou “realizar” que traz consigo a marca de uma certa “afirmatividade” historicamente imiscuída nos termos “ativo”, “atividade” em oposição à “passividade” ou ao “padecer” do que “sofre” e do que é “coagido”. Dessa maneira, ao falar em “ação”, nos referimos a um “agente” até certo ponto “livre” para agir da maneira como age.

A Idade Média concedeu ao agente o “livre-arbítrio” para obedecer ou desobedecer aos desígnios de Deus, submetendo o agir humano às recompensas e castigos divinos neste ou no outro mundo. A modernidade consolidou a configuração do “agente” como “sujeito” racional, consciente e auto-consciente. Sujeito “responsável” capaz de agir segundo “fins” e “fundamentos” racionalmente estabelecidos. Um sujeito que, porque racional e consciente, sabe o que faz e porque faz o que faz e, enquanto tal, é responsável por seus atos.

Para Locke ação é poder ativo da vontade que realiza ou não uma ação. O que determina nossas ações é uma uneasiness (Locke, 2012, II, XXI, § 29), uma inquietação da mente que busca evitar o desprazer presente e buscar um bem (um prazer) ausente. Uneasiness se confunde com os desejos. Desejos, portanto, de evitar desprazeres presentes e buscar “bens”, isto é, prazeres, ausentes (Locke, 2012, II, XXI, § 31). Não precisa haver concordância entre os desejos e a vontade. A vontade é o que determina efetivamente o agir ou não agir, ainda que os desejos possam nos indicar direções contrárias. O agente é “mais livre” na medida em que tem um maior poder de escolher realizar ou não uma ação. Ainda que sejamos constantemente perturbados pela uneasiness desejante, fomos agraciados por Deus com o poder de suspender a vontade, suspender a realização dos desejos para considerar, ponderar, examinar os “bens” em questão a fim de escolher “bens” maiores do que a realização imediata que os desejos demandam.

Para que nós, míopes criaturas, não nos enganássemos, em nosso estado de ignorância, sobre qual é a verdadeira felicidade, foi-nos dado o poder de suspender qualquer desejo particular e impedir que determine a vontade e nos engaje numa ação. Isso é ficar parado, se não temos certeza do caminho: examinar é consultar um guia. O agente que pode ou não agir no sentido dessa deliberação, que não restringe a liberdade, é livre, pois pode escolher, segundo queira, ir ou ficar. (Locke, 2012, II, XXI, § 50)

Quero chamar a atenção aqui para essa noção de “agente”, como uma espécie de “núcleo” racional e consciente, capaz de colocar-se numa posição de neutralidade a partir da qual pode analisar, examinar, ponderar, isto é, exercitar os poderes de sua razão no teatro da sua consciência para então, por fim, decidir.

A noção moderna de sujeito racional responsável é também o fundamento da distinção kantiana entre o mundo natural como “reino da necessidade” e o mundo humano como “reino dos fins”. Kant descreve o humano como um estranho “híbrido” tensionado entre o “reino da necessidade” e o “reino dos fins”. O humano está encravado no “reino da necessidade” tanto no que, enquanto ser corpóreo está submetido às leis da física, quanto por agir segundo suas “inclinações naturais” mais imediatas, seus desejos e apetites particulares excitados por objetos de uma satisfação imediata. No entanto, o humano, único ser racional de que se tem notícia, é capaz de agir segundo fins racionalmente estabelecidos que superam suas inclinações e apetites naturais imediatos. Kant, que não é nenhum ingênuo, reconhece a quase impossibilidade de se delinear uma distinção segura entre uma ação puramente racional e uma ação motivada por inclinações e apetites particulares. Nosso “caráter sensível”, moldado por nossas inclinações e apetites naturais é o que, enquanto fenômeno, nos é acessível. Nosso “caráter inteligível”, que determina nosso agir segundo fins puramente racionais, ou seja, fins universais que se aplicam a todo e qualquer ser racional, não nos é acessível, pois, justamente, é “inteligível” e nós só temos acesso aos fenômenos… (Pecorari, 2010, pp. 47-48) Por isso a “lei moral” nos impõe o dever de agir “como se” conhecêssemos as finalidades racionais do nosso agir: “como se nossas ações pudessem se converter em leis universais”. Assim poderíamos dar nossa pequena contribuição à evolução humana, cuja história, apesar da aparente caoticidade das redes conflitantes de inclinações particulares, é secretamente guiada por uma razão astuciosa que conduz, num prazo muito longo para ser sequer compreendido nos estreitos limites de uma vida humana particular, nosso progresso evolutivo enquanto espécie (Kant, 2011, pp. 4-10). Para nos manter comprometidos com essa difícil tarefa, os “ideais regulativos” vêm nos incentivar a agir “como se” houvesse Deus, “como se” tivéssemos “livre-arbítrio” e “como se” tivéssemos uma alma imortal (Kant, 2009, pp. 504-512). No Estado Constitucional nos aproximamos ao máximo do exercício de nossa auto-nomia, pois obedecemos a leis auto-impostas pela razão que nos caracteriza essencialmente. Leis que, transcendendo o particular, aproximam-se da universalidade dos fins da razão (Kant, 2011, p. 17).

Fiz questão de trazer esse dois grandes representantes do pensamento moderno, sendo um inglês do século XVII e um alemão do século XVIII porque sem muita dificuldade, reconhecemos neles as bases metafísicas daquilo que, cotidianamente, chamamos, com o senso comum, de “ação humana”. Embora em Kant haja uma “opacidade” em relação ao agir humano que decerto prepara o terreno para a contemporaneidade e o reconhecimento de motivações inconscientes da ação, há ainda um “saber”, um “conhecimento”, o conhecimento da “lei moral”, que se dá como fundamento da liberdade e da responsabilidade enquanto poder de agir conforme determinações racionais.

No decorrer de nossas vidas cotidianas parece bastante natural que imaginemos todo o tempo sermos um “eu” autossuficiente, um núcleo individual, racional, consciente e auto-consciente dotado de um complexo mundo interior onde habitam nossos próprios pensamentos, sentimentos, gostos, lembranças e planos. Um “eu” que pensa, que fala, que sente, imagina, lembra, planeja; um “eu” que escolhe, de acordo com as circunstâncias, agir desta ou daquela maneira. E ora imaginamos que as escolhas desse “eu”, à medida que se mostrem boas ou más, determinam seu caráter, tornando ele próprio “bom” ou “mau”, ou bem imaginamos em outros casos que esse “eu” traz consigo, em essência, a bondade ou a maldade que determina o destino das suas escolhas. De um modo ou de outro, em geral não duvidamos do fato de sermos um “eu” individual, apelidado por um “nome próprio”, que consta em nossa “identidade”, aquela que, com uma foto antiga e um número aleatório, se dá como prova de que nós somos nós mesmos. Um “eu” individual que como uma espécie de “centro de comando”, a cada vez, a partir de um diálogo interior que põe em cena um exame ponderado das causas e consequências, das circunstâncias mais diversas, passadas, presentes e futuras envolvidas num determinado caso, finalmente “escolhe” fazer ou não fazer, ir ou não ir, falar ou não falar, agir ou não agir. Curiosamente, mesmo que a realidade teime em contradizer esse “modelo”, dificilmente nos desapegamos dessas crenças relativas a nossas vidas.

Mas estas bases metafísicas não se restringem à nossa vida cotidiana. Elas estruturam uma certa concepção de “subjetividade” e de “ação humana” que marcam presença constante nas Ciências Humanas atravessando, muitas vezes com o sabor de uma certeza inquestionada e inquestionável, algumas de nossas melhores teorias sociológicas, historiográficas, antropológicas, filosóficas e também educacionais. Afinal, é somente a compreensão moderna de “sujeito” que torna possível pensar relações sociopolíticas em termos de “contratos” que só se podem estabelecer entre sujeitos racionais, bem como as ainda atuais discussões quanto à garantia de direitos individuais dos sujeitos sociopolíticos e quanto à possibilidade de “conscientização” desses mesmos sujeitos em relação a suas condições sócio-históricas. Isso para não falar na aposta, sempre mais ou menos frustrada, de que na arena política, os sujeitos se deixem guiar pela razão, abdiquem da força das armas e bombas de efeito moral em favor do diálogo; e coloquem a cada vez os bens públicos, comuns e universais acima de seus interesses particulares.

Nietzsche certa vez disse que os “filósofos do futuro”, seriam aqueles que se permitiriam o “perigoso 'talvez' a todo custo” (Nietzsche, 2005b, p. 10). O próprio Nietzsche levanta um perigoso “talvez” em relação ao núcleo das teorias modernas da “ação humana”: talvez o próprio “agente”, o próprio “sujeito” não passe de uma ilusão, uma “muito persistente”, como certa vez disse Einstein, mas ainda uma ilusão. Enfrentar esse perigoso talvez nos leva a experimentar um abalo que ameaça fazer desmoronar por completo nossas ilusões cotidianas pessoais e também nossas ilusões sociopolíticas.

A dimensão do pathos

Num aforismo de Aurora, Nietzsche diz:

Aquilo que os homens têm mais dificuldade em compreender é sua ignorância sobre si mesmos, desde os tempos mais remotos até nossos dias! Não apenas em relação ao bem e ao mal, mas também em relação a coisas muito importantes! A antiga ilusão segundo a qual saberíamos perfeitamente e em todos os casos como se efetua a ação humana, continua viva”, mas “as ações nunca são o que parecem ser. (Nietzsche, 2004, § 116)

Quando pensamos em todas as determinações envolvidas em uma “ação”, será que sobraria ainda espaço para um “eu” livre que escolhe agir de uma maneira e não de outra? Em cada ação estão envolvidas circunstâncias as mais diversas, circunstâncias de todas as ordens: circunstâncias próprias da nossa constituição fisiológica; circunstâncias sociopolíticas; circunstâncias econômicas; circunstâncias climáticas; circunstâncias tecnológicas; bem como os hábitos de comportamento, de compreensão e de “respostas emocionais” advindos de um longo histórico de relações interpessoais - com familiares, amigos, amantes, conhecidos, estranhos - com todas as “afecções” físicas e psíquicas que essas relações envolvem e que deixam marcas mais ou menos profundas naquilo que chamamos de “nosso caráter”. Entram em jogo também uma vasta gama de “saberes” dos mais diversos tipos advindos das mais diversas fontes. Será que “por trás” ou “para além” de todas essas circunstâncias pode haver um “eu”, um “núcleo” ou “centro de comando” que, levando-as em consideração, “escolhe” agir?

São essas circunstâncias múltiplas e variadas, que estão em jogo em cada evento ou ação, que Nietzsche chama de “forças”. Com isso ele não faz distinções a priori entre o que seria do âmbito “natural”, “físico”, “fisiológico” e o que seria do âmbito “mental”, “espiritual” ou do âmbito “social”, “cultural” e “político”. Por isso ele fala em mais de uma ocasião em “forças” “físicas, dinâmicas ou psíquicas”, assim como aplica a mesma dinâmica de forças a âmbitos tão diversos como “um órgão fisiológico, uma instituição de direito, um costume social, um uso político, uma determinada forma nas artes ou no culto religioso” (Nietzsche, 2009, II, § 12). Quer dizer: todas as circunstâncias em jogo, advindas desses diversos âmbitos, atuantes nesses diversos âmbitos, são forças. Forças que, em seu jogo conflituoso, em seus multinivelados entrelaçamentos e atravessamentos determinam o “ser” e o “agir” dos diversos entes.

Quando agimos, as perturbações e estabilidades advindas de nossa constituição fisiológica; as perturbações e estabilidades advindas de nossa constituição psíquica; as noções morais, religiosas e normas jurídicas vigentes; as instituições sociopolíticas vigentes; as pequenas dinâmicas presentes nas relações interpessoais, isto é, o desejo de corresponder à expectativa do outro, ou de frustrá-la; o desejo de impressionar, de manipular, de controlar, de provocar, de atrair - de múltiplas maneiras - o outro... Tudo isso são forças que, entrelaçadas numa malha complexa de relações, determinam nosso “agir” e, por conseguinte, nosso “ser”.

Se a modernidade nos habituou a encontrar desde o princípio e como princípio a autocertificação da “presença-a-si” de um “eu” autoidêntico, imediatamente acessível para uma experiência interior, o “perigoso talvez” lançado por Nietzsche, nos faz repensar o modo de constituição daquilo que chamamos nosso “ser”. Seguindo o esquema moderno, costumamos imaginar que somos “causa” de ações, mas nossas ações são determinadas por uma multiplicidade de forças em jogo e esse agir - ou não agir - de uma maneira ou de outra é que vai determinando, a cada vez, nosso “ser”. Citando mais uma vez Aurora, Nietzsche diz: “és tu que és feito! Em cada momento de tua vida! A humanidade desde sempre confundiu o ativo e o passivo, esse foi seu eterno erro de gramática” (Nietzsche, 2004, § 120).

Sim, a gramática, ou, de uma maneira mais ampla, a linguagem, não cessam de re-produzir e reforçar a ilusão de que haja aqui um “sujeito”. As frases têm sujeito. Dizemos “eu sou”, “eu posso”, “eu quero”, “eu sei”... e esse modo de dizer traz consigo todas as bases metafísicas e preconceitos modernos em relação ao “ser” e ao “agir” do humano. Há uma “metafísica da linguagem”, diz Nietzsche, que nos obriga a estipular “unidade”, “identidade”, “duração”, “substância”, “causa”, “materialidade”, “ser”, “Eu”, “Agente”, “Sujeito” (Nietzsche, 2006, p. 27-28). Derrida, no documentário “D'ailleurs” disse: “ninguém nunca viu um 'eu' andando por aí e, não obstante, sem que ninguém o tenha visto antes, o tempo todo há referências ao 'eu' através das inúmeras formas de discurso”. Inclusive, é importante que se diga: quando falo nos diversos âmbitos de circunstâncias ou forças: fisiológico, psíquico, cultural, político, o faço apenas pela pressão determinativa da linguagem, ou, paremos de culpar a linguagem, o faço porque me falta a criatividade poética necessária para expressar a realidade complexa, intrinsecamente inter-relacional e inter-constitutiva desses diversos campos, que se encontram em verdade entrelaçados de tal maneira que é mesmo impossível distingui-los e apreendê-los numa suposta pureza.

A teoria dos sistemas (Bertallanffy, 2009) e a teoria das redes (Capra, 2006) nos ajudam a pensar um, digamos assim, “modo de ser” sem núcleo e sem centro de comando, bem como um “agir” sem agente. Um sistema é um “todo” composto por inter-relações entre partes que assumem funções relacionais em função da dinâmica do todo que elas próprias compõem. Ou seja, as partes compõem um todo, que, por sua vez, determina o “ser” e o “agir” das partes. A relação é mútua, de mão dupla, é inter-constitutiva. Partes e todo interferem um sobre o outro num jogo indefinido de determinações e interações mútuas. Mas um sistema “complexo” não é apenas “composto” por partes, ele é, por definição, um sistema no qual o “todo” é maior do que a soma de suas partes. Ou seja, com o método analítico, dividindo o sistema em partes simples e investigando cada uma delas, não somos capazes de compreender o “modo de ser” e de operar do todo. A interação das partes, gera uma espécie de configuração de certa forma imprevisível, que apresenta um modo de ser e operar específico que não se encontrava nas partes isoladamente mas que “emerge” - e essa é a própria definição de emergência - a partir da rede de interações mútuas das partes.

Sistemas complexos desenvolvem padrões de comportamento, padrões de resposta a estímulos diversos, desenvolvem hábitos, memórias comportamentais, e, agindo e reagindo sobre as circunstâncias - ou forças - que os afetam, desenvolvem uma maneira específica de “perceber” o mundo à sua volta. É isso que Nietzsche chama de “perspectiva” e de “interpretação”. Essa maneira específica que um sistema complexo desenvolve para inter-agir com o mundo, o que, por sua vez, concomitantemente desenvolve uma maneira específica de “perceber” mundo (Nietzsche, 2008).

Quero propor que nós mesmos sejamos uma espécie de “sistema complexo” desse tipo. Sistemas complexos que, como diriam os existencialistas, não têm uma essência que preceda sua existência, isto é, não têm um “ser” soberano vigente para além das interações circunstanciais que o constituem. Sistemas complexos não têm um “centro de comando” único. Faz parte da sua constituição a divisão de tarefas, a especialização, a associação e desassociação das partes, o revezamento de comandantes e subordinados diante das circunstâncias. Algumas correntes das ciências naturais, assumindo mais ou menos inadvertidamente bases metafísicas morais, apostam na “cooperação” entre as partes para explicar sua dinâmica. Nietzsche, mais realista, aposta na vontade de poder. (Nietzsche, 2005b) Assim, faz parte da constituição de um sistema complexo a luta entre as partes, as circunstâncias ou forças que o constituem. Há um conflito constante que produz negociações, associações, dominações, hierarquizações, especializações, configurando um sistema complexo sem um centro de comando único, neutro, que direciona o sistema e que “age” de tal ou qual forma. O conflito generalizado produz estabilizações e configurações de domínio que, de acordo com seus interesses, perspectivas, interpretações, direcionam o comportamento do sistema de acordo com as circunstâncias.

Nietzsche frequentemente chama essas circunstâncias, forças ou “configurações de forças” que nos constituem de “instintos”, “impulsos”, “vontades” ou “pulsões”. Com isso, chegamos à seguinte compreensão: as forças que nos constituem são “inconscientes”, isto é, não dependem de uma consciência para existir, não estão sob o domínio de um “centro consciente” que as percebe e as direciona. As forças que nos constituem são pulsionais: elas pressionam na direção de sua própria satisfação, pressionam como uma uneasiness que exige alívio.

Num belo aforismo de Aurora, Nietzsche fala do “apetite” dos impulsos “sedentos” e “famintos” que “constituem nosso ser”. Impulsos que exigem satisfação - ou o exercício da sua força, ou o desafogo dela, ou o preenchimento de um vazio”, impulsos que querem “se satisfazer”, “se manifestar”, “se exercer”, “se aliviar”, “se expandir”. Em sua luta por satisfação, esses diferentes impulsos, em diferentes momentos, se apropriam de diversas situações e lhe conferem uma “interpretação”, lhe atribuem “causas”, “motivos”, “razões” específicas, produzem em nós reações e afecções diferentes (Nietzsche, 2004, § 119). “Satisfação”, para essas pulsões, é exercício de “poder”. Luta-se por “poder”. Nietzsche intercambia a palavra “poder” com “domínio”, “assenhoreamento”, “mando”, “apropriação”, “agir sobre”, “resistir a”, “ambição despótica” de “cada pulsão” que “gostaria de impor” sua “perspectiva” “como norma para todas as outras” (Nietzsche, 2008, p. 260).

De acordo com essa dinâmica pulsional, “pensar”, “querer”, “sentir”, “fazer” estão longe de ser “ações” simples realizadas por um “agente”. O que chamamos “pensar”, “querer”, “deliberar”, “calcular” é, em geral, a ínfima parte que se torna consciente, as pontas de iceberg conscientes de um mesmo processo de lutas, conflitos e inter-relações de forças, impulsos, instintos, pulsões, cuja parcela mais expressiva se desenrola como inconsciente. (Nietzsche, 2001, § 354)

Dessa forma, tanto o “eu” psicológico - intelectual, espiritual, nos moldes cartesianos - quanto o “eu” biológico - o “corpo” - são reconduzidos à dimensão pulsional. Ou seja, segundo a exposição de Nietzsche não há “espírito em si” e nem “corpo material em si”: há complexidades pulsionais que se organizam em configurações hierárquicas de domínio. O corpo, diz Nietzsche, é “uma estrutura social de muitas almas”, muitos instintos, impulsos, pulsões que se dão como “ânimo” para isso ou aquilo. E a “alma”, por sua vez, é uma “estrutura social dos impulsos e afetos” (Nietzsche, 2005b, p. 19).

O que o filósofo à custa de intrincados encadeamentos lógicos pena para esboçar, Fernando Pessoa expõe com clareza e leveza invejáveis nos 16 primeiros versos de Não sei quantas almas tenho:

Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem acabei.

De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem;

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.

(Pessoa, 2017)

Aporias e desafios da responsabilidade

Muito bem, mas onde fica então o agir responsável? Ora, nós respondemos por tudo isso! Respondemos pelas de-cisões que “cortam fora” muitas possibilidades e nos fazer de-cair de pronto numa determinação. Respondemos, não cessamos de responder... Nós mesmos somos esse responder constante pelas decisões e eventos que com mais ou menos violência nos determinam. Talvez - mais um perigoso talvez? - o “agir responsável”, o “agir” e o “responder”, estejam muito mais na dimensão do pathos do que naquela da afirmatividade ativa. Na palavra pathos

Confluem os lastros semânticos do pathetikos, pathetiké, pathetikon: o patético, o emocionante, o impressionante, o sensível. Trata-se do pathos: os gostos, as emoções, os sofrimentos, o que se experimenta, a prova, a experiência, o acontecimento, o infortúnio, a paixão. É também o pathos lógikos, pois as afecções experimentam graus variáveis de enfermidade, relacionados ao pathé, pathés, isto é, ao estado passivo, ao sofrimento, à aflição, inclusive por se carregar um corpo, sendo propriedade dele esses estados de pathé. Por isso, é pathema, pathematos, pois trata-se de enfermidade, aflição, desgraça e todo evento que afeta o corpo ou a alma, nos lançando em estados pathetos, pateta, patético, muito sofrido. (Medeiros, 2015, p. 136)

Nós somos efeito dessas decisões e dessas respostas, nós sofremos com elas, padecemos delas, somos a cada vez construídos e determinados por elas. Mas não nos apressemos em assumir o até certo ponto confortável lugar de “vítimas”. Nós somos o que se fez de nós e somos nós mesmos, e ninguém mais, que temos de responder por isso.

Mas, como responder? A inquietação da pulsão de poder, vendo-se ameaçada pela experiência abissal do infundado, do fundo sem-fundo da existência, começa a exigir uma resposta segura, bem fundamentada, que nos coloque novamente “no controle”. Mas não nos apressemos. Cada um de nós é absolutamente singular. Mas, não à maneira moderna, como um “sujeito isolado” (Do Valle, 2014) presente-a-si. Cada um de nós é absolutamente singular justamente na medida em que somos efeito de uma combinação única e irrepetível de circunstâncias que, em seu jogo conflituoso nos produzem como uma configuração singular, não redutível à “soma das partes”. No entanto, os poderes instituídos no nosso tempo - teorias científicas, modos de produção econômicos, configurações políticas, a família, os dogmas morais e religiosos - não cessam de tentar nos enquadrar numa definição pré-estabelecida que sufoca nossa singularidade e exige que pensemos e nos comportemos de acordo com o “papel” que nos foi designado.

Poderíamos talvez nos perguntar até que ponto um agir a partir de normas de conduta pré-estabelecidas é realmente “responsável”. Será que o chamado “agir moral” não é muito mais uma delegação da responsabilidade a “instâncias superiores”? Até que ponto é responsável um agir que precisa de “ideais regulativos”? Que responsabilidade é essa que precisa se portar “como se” houvesse Deus, “como se” houvesse livre-arbítrio e “como se” houvesse vida após a morte sujeita a todos os castigos e recompensas cabíveis? Mas, se não há nada disso, então tudo é permitido? Não, pelo contrário. Muito pouco é permitido. Quase nada é permitido, porque as instituições do nosso tempo estão sempre aí com seus mecanismos de controle e dominação, sempre prontas a legislar sobre nosso comportamento.

Se há uma Ética envolvida nesse pensamento é a Ética do “cultivo de si”, tal como enunciada por Nietzsche. Se não temos um “ser” previamente dado, uma essência previamente definida, quer dizer que estamos permanentemente “em construção”. “Tornar-se quem se é”, princípio nietzschiano da cultura - da cultura como “cultivo de si” - não significa retomar e reencontrar um “eu” previamente dado em sua pureza. Mas, assumir para si a difícil tarefa de trabalhar incansavelmente na construção de um “eu”, na construção de um “si mesmo” enquanto singularidade. Isso exige que se produza mecanismos de “suspeita” e resistência em relação aos valores estabelecidos como “senso comum” da época. Exige que nos engajemos numa “negociação interminável” com as forças, circunstâncias e pulsões que nos constituem. Exige que nos dediquemos à tarefa artística da nossa própria formação, isto é, a tarefa de fortalecer em nós as pulsões artísticas que nos constituem e que podem dar forma à nossa multiplicidade constitutiva, uma forma singular, aberta, inclusiva e maleável, porém firme em sua maleabilidade. Uma forma tão harmônica quanto dissonante, ao mesmo tempo múltipla e singular. Nas palavras de Nietzsche, “uma prodigiosa multiplicidade que, apesar de tudo, é a antítese do caos”. Isso, mais uma vez, não significa de maneira alguma que “tudo” seja permitido. Muito pelo contrário, o “cuidado de si” envolve uma rígida auto-disciplina que passa muito longe de se permitir “tudo”.

Lutando por nossas singularidades, preparamos também o caminho para os outros, para quem sabe proporcionar as condições que despertem nos outros de hoje e de amanhã, o desejo de lutarem, também eles, por suas singularidades. Desafio da responsabilidade que Derrida, em Force de loi (2010) e Donner la mort (2006) não cessa de recolocar para nós: “como fazer justiça à singularidade dos outros?”. Questão limítrofe entre o cálculo e o incalculável, que não cessa de exigir respostas nossas.

Angústia da resposta: como responder? Como responder diante do outro singular que nos interpela? Como responder de modo a fazer justiça à singularidade do outro que nos interpela? É possível responder? É possível porque o outro é o mesmo que eu. O problema do outro é o mesmo que o meu: a mesma uneasiness, as mesmas sinas e as mesmas bênçãos de ser não apenas carne, nem apenas inteligência, mas uma “carne inteligente, embora às vezes doente” (Pessoa, 2017), que, enquanto tal, padece.

E, no entanto, o mesmo pathos, os mesmos “patetas”, se fazem em cada caso, em cada combinação única e irrepetível de circunstâncias que nos torna quem somos - com mais ou menos violência, mais ou menos à revelia -, absolutamente singulares. E isso, a singularidade absoluta do outro, torna a resposta impossível! Angústia da resposta: como responder ao “pateta” singular que agora me interpela? Não se pode... É impossível. Mas, aporias da resposta: ainda assim, querendo ou não, podendo ou não, responde-se! Responde-se ao outro, com palavras ou com gestos, em prosa ou em verso, com barulho ou com silêncio, responde-se. Sempre já respondemos. E essas respostas nos fazem também quem somos.

Aporias e desafios da responsabilidade docente

A experiência contemporânea da sala de aula constitui um lugar privilegiado para uma experiência de estranhamento, de deslocamento, de abertura ao outro, de espanto e de abismo. Experiência, portanto, do thaumazein, do espanto que está na origem do filosofar. “Dar aula” é uma certa experiência existencial de ausência de fundamentos, de “estar” ou “mal-estar-aí”. O “Estado”, a “Escola”, a “Universidade” enquanto instituições, a “direção”, o “programa”, o “currículo”, as “diretrizes” e “parâmetros”, bem como as “correntes pedagógicas” pretendem se dar como fundamentos seguros da prática docente. Mas a experiência efetiva da sala de aula, o estar-lançado-em-meio à rede de encontros caóticos com muitos “outros” engendra um acontecimento a cada vez singular que extrapola os fundamentos e que não se deixa capturar, direcionar, que transborda, escapa, e recusa a estabilidade prometida pelos fundamentos.

“Dar aula” é abrir-se ao “outro”, à singularidade de um “outro” desconhecido ao qual nos dirigimos sem qualquer garantia de que nos escuta, de que nos acolhe, de que nos compreende (ao menos da maneira que gostaríamos que nos compreendesse). Dar aula é “estar-lançado” em meio à mais radical alteridade. A sala de aula é uma rede de “outros” singulares que nos atravessam com olhares, palavras e gestos mais ou menos indecifráveis.

“Dar aula” é abrir-se a uma certa experiência de “não-saber” e, portanto, de não estar no controle, de não estar no comando, de não ter o domínio da situação, isto é: não saber como exatamente a proposta inicial será cumprida, não saber que tipo de demanda, “corte”, “desvio” virá do “outro” - que tipo de postura os alunos vão assumir, que tipo de perguntas vão fazer. Mesmo as condições materiais (uma falta de luz, uma falta de material, um temporal) podem influir de maneira inesperada. Nunca podemos saber como os alunos estão se sentindo em relação à aula, de que maneira cada um está processando, acolhendo ou rejeitando nossas palavras, gestos e ideias. Nunca sabemos que “efeito” a aula terá sobre cada aluno. Algumas aulas simplesmente “ficam”, e continuam a participar do processo de formação do caráter do aluno por toda a vida. Algumas decorrem como se nunca tivessem acontecido.

A tradição moderna - seja para reafirmar ou criticar essa condição - tende a colocar o professor no lugar do “saber” e do “poder”. Partindo da concepção de sujeito como núcleo autoidêntico racional e consciente, muitas reflexões sobre educação tendem a apresentar o professor como detentor de um saber que é “transmitido” de maneira “tradicional” ou “libertadora”, mas também como detentor de um poder autoritário de vigilância, punição e imposição que se exerce sobre o aluno. Bem, ainda que ocupando uma certa posição de “saber” e de “poder”, gostaríamos de chamar a atenção para essa dimensão da atividade docente geralmente negligenciada pelas reflexões filosóficas e educacionais: o estar-lançado numa posição necessariamente atravessada pelo não-saber, fundada mesmo no abismo do não saber e do não poder, do não estar no controle, do estar constantemente exposto ao “outro”, ao abalo, a uma experiência singular que guarda sempre algo de incalculável.

A responsabilidade docente exige, por um lado, um saber prévio que qualifique e garanta o agir como responsável. Por outro lado, onde fica a responsabilidade de um agir que se baseia inteiramente num saber pré-determinado? A resposta ao outro a partir de um saber pré-determinado sacrifica a singularidade do outro. E, no entanto, como qualificar como responsável um agir puramente arbitrário, deixado unicamente ao sabor dos caprichos e idiossincrasias individuais? E não há solução para isso: a estrutura tensionada, partida, num conflito não resolvido - e não resolvível - entre apropriação e expropriação, sujeição e assujeitamento, presença e ausência, saber e não saber - é também a estrutura da subjetividade e, consequentemente, da responsabilidade, a qual permanece irredutível, “indecidível” (Derrida, 2001, p. 49). Tensão “aporética” exposta por Derrida entre a dimensão calculável do direito e da regra e a dimensão incalculável da justiça e da indecidibilidade: “O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável” (Derrida, 2010, p. 30).

Com isso, não pretendemos negligenciar a dimensão dos saberes prévios, das fundamentações e métodos que constituem e devem constituir a formação docente. É parte insubstituível do processo de cultivo de si a dedicação disciplinada aos estudos, aos saberes, aos fundamentos e métodos que constituirão o repertório teórico-conceitual com o qual um professor, a cada vez, deverá trabalhar, isto é, experimentar, articular e rearticular de múltiplas e diversas formas de acordo com as exigências singulares da sua atividade. Como ressaltamos no parágrafo anterior, um agir “puramente arbitrário” nada teria de responsável. No entanto, chamamos a atenção apenas para a dimensão incalculável do não-saber e do não-poder que atravessam todo processo de formação humana. Processo que, quanto mais aberto aos abalos e abismos provenientes da abertura à alteridade, quanto mais aberto aos riscos da experimentação e da autotransformação, torna-se ainda mais exigente em termos de dedicação disciplinada à árdua tarefa de construção de si.

Calcular o incalculável: dissimetria abissal “entre o Direito e a Justiça”. Dissimetria radical entre programa geral e experiência singular da aula, dissimetria abissal entre “plano-de-curso”, “plano-de-aula”, “currículo”, “diretriz”, “parâmetro”, “regulamento” e a experiência encarnada, abissal - no que escapa a toda tentativa de fundamentação - e a cada vez singular de “dar aula”. Calcula-se: fazemos planos de curso, planos de aula, observamos currículos mínimos, diretrizes e parâmetros, mas o acontecimento singular da aula, que se faz na abertura ao “outro”, na relação ao outro, aos muitos outros que então nos atravessam, constitui o elemento incalculável, que insiste em escapar sempre a todo cálculo e a todo programa. A aula propriamente dita constitui o ponto de articulação impossível entre o calculável e o incalculável.

A partir desses referenciais que colocam em questão a concepção moderna de sujeito - provocando abalos em suas estruturas básicas -, podemos nos colocar em condições de compreender a formação humana como problema e como desafio: tornar-se quem se é, cultivar e construir a si mesmo como humano e também como professor é deixar sobrevir o abalo, fazer a experiência abissal de não poder contar com fundamentos e métodos absolutamente seguros. Tudo o que temos para enfrentar essa difícil empreitada - que é a tarefa de uma vida - é a arte da experiência - do experimento, da experimentação, da tentativa. Por isso Nietzsche, ao falar sobre os “filósofos do futuro” ou sobre os “espíritos livres” insiste na noção de experiência como arte de experimentar, de fazer experimentos consigo próprio. Nas palavras de Nietzsche, o humano que assume a difícil tarefa do cultivo de si “sente o fardo e a obrigação das mil tentativas e tentações da vida - ele arrisca a si próprio constantemente” (Nietzsche, 2005b, p. 96). Ele sente crescer em si “o ponto de interrogação de uma curiosidade cada vez mais perigosa” (Nietzsche, 2005a, p. 10), que o leva a enfrentar a cada vez o “perigoso 'talvez' a todo custo” (Nietzsche, 2005b, p. 10). Assim, ele se permite experimentar “maneiras de pensar múltiplas e opostas” a fim de, quem sabe, conquistar para si “o perigoso privilégio de poder viver por experiência e oferecer-se à aventura” (Nietzsche, 2005a, Prefácio, § 4).

O exercício da Filosofia constitui essa experiência limítrofe que nos permite produzir, para nós e para os outros, resistências e possibilidades, bem como maneiras de transfigurar artisticamente as determinações em forma singular. Não é fácil, nem é uma ciência exata. Também não é nenhum imperativo categórico, nem tem ideais regulativos. É um desafio. Desafio que se aceita ou não: o desafio de responder “por” nossa singularidade e fazer justiça à singularidade dos “outros”. Desafio de um pensamento que se permite experienciar a desconstrução:

Trata-se de um pensamento que responde à exigência infinita de se fazer justiça à singularidade (…). Isso se dá por uma suspeita permanente, e não por intermédio de métodos, critérios e referências estáveis que orientem o pensamento. O pensamento desconstrucionista é, antes, um pensamento conscientemente desorientado, e só assim, segundo Derrida, verdadeiramente responsável. (Duque-Estrada, 2004, p. 63)

Isso envolve muitos riscos. No exercício da Filosofia arriscamos nossa identidade, nossas crenças, nossa sanidade, nossas vidas. Mas, talvez não haja nada mais arriscado do que deixar-se absorver pelo caldo homogeneizante das opiniões correntes, pensando e agindo “como todo mundo”, abrindo mão de nossas singularidades em troca do conforto que nos oferecem as ilusões de fundamentação, estabilidade e segurança.

Referências

BERTALLANFY, L. 2009. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis, Vozes, 360 p. [ Links ]

CAPRA, F. 2006. A teia da vida. São Paulo, Cultrix, 256 p. [ Links ]

DERRIDA, J. 2006. Dar la muerte. Barcelona, Paidós, 170 p. [ Links ]

DERRIDA, J. 2010. Força de lei. São Paulo: Martins Fontes, 145 p. [ Links ]

DERRIDA, J. 2001. Posições. Belo Horizonte, Autêntica, 127 p. [ Links ]

DUQUE-ESTRADA, P.C. 2004. Alteridade, violência e justiça. São Paulo, Loyola, 248 p. [ Links ]

DO VALLE, L. 2014. Para além do sujeito isolado. Revista Brasileira de Educação, 19(57): 495-512. [ Links ]

KANT, I. 2011. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo, Martins Fontes, 171 p. [ Links ]

KANT, I. 2009. Crítica da razão pura. São Paulo, Martin Claret, 540 p. [ Links ]

LOCKE, J. 2012. Ensaio sobre o entendimento humano. Rio de Janeiro, Martins Fontes, 822 p. [ Links ]

MEDEIROS, N; MAGNO, Md. 2015. Razão de um percurso. Rio de Janeiro, Novamente, 318 p. [ Links ]

NIETZSCHE, F. 2005a. Humano, demasiado humano. São Paulo, Cia das Letras, 315 p. [ Links ]

NIETZSCHE, F. 2004. Aurora. São Paulo, Cia das Letras, 336 p. [ Links ]

NIETZSCHE, F. 2001. A Gaia Ciência. São Paulo: Cia das Letras, 362 p. [ Links ]

NIETZSCHE, F. 2005b. Além do Bem e do Mal. São Paulo, Cia das Letras, 248 p. [ Links ]

NIETZSCHE, F. 2006. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo, Cia das Letras, 154 p. [ Links ]

NIETZSCHE, F. 2008. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. G. COLLI; M. MONTINARI (Org). Berlin, New York: Walter de Gruyter, 1967-77. Tradução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Publicada no Brasil como A vontade de poder. Rio de Janeiro, Contraponto, 513 p. [ Links ]

PECORARI, F. 2010. O conceito de liberdade em Kant. Ética e Filosofia Política, 12(1): 44-59. [ Links ]

PESSOA, F. Não sei quantas almas tenho. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/277. Acesso em: 05/10/2017. [ Links ]

PESSOA, F. O amor é que é essencial. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/361. Acesso em: 05/10/2017. [ Links ]

Recebido: 04 de Junho de 2018; Aceito: 21 de Dezembro de 2018

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons