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Educação UNISINOS

versión On-line ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.23 no.2 São Leopoldo abr./jun 2019  Epub 30-Abr-2020

https://doi.org/10.4013/edu.2019.232.08 

Artigos

Invisibilidade social e leitura literária de crianças - um estudo sobre “Os Invisíveis”, de Freitas e Moriconi

Social invisibility and children’s literary reading - a study of Freitas & Moriconi’s “Os Invisíveis”

Rosa Maria Hessel Silveira1 

Darlize Teixeira de Mello2 

Liége Freitas Barbosa3 

1 Professora colaboradora convidada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). rosamhs@gmail.com

2 Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Curso de Pedagogia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA); Professora na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre. darlize.mello@ulbra.br

3 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Educação (ULBRA). liegebarbosa@gmail.com


Resumo

O artigo objetiva analisar gestos de compreensão leitora de alunos dos anos iniciais de escola pública frente à obra “Os Invisíveis”, de Tino Freitas e Renato Moriconi, do acervo PNBE Anos Iniciais - 2014, a qual tematiza, com qualidade estética, a invisibilidade de atores sociais no mundo contemporâneo. O trabalho resulta do projeto de pesquisa “Percursos e representações da infância em livros para crianças - estudo de obras e leituras” (apoio CNPq). A análise das falas dos alunos, na conversa mediada, assim como de seus desenhos e textos mostrou sentidos negociados na sessão de leitura e aponta para articulações entre o tema da invisibilidade social e as vivências próprias, assim como para a relevância de narrativas desafiadoras em turmas de anos iniciais. O estudo buscou inspiração tanto em discussões sobre a presença de temas difíceis na literatura infantil (Colomer, Evans), como sobre a relevância do partilhamento da leitura literária (Chambers, Roche e outros).

Palavras-chave: Literatura Infantil; Conversas sobre leitura; Invisibilidade social

Abstract

This paper aims to analyse gestures of reading understanding from early-year students in public school towards Tino Freitas’s and Renato Moriconi’s work ‘Os Invisíveis’ from the collection PNBE Anos Iniciais - 2014, which portrays with aesthetical usefulness social actors’ invisibility in the contemporary world. The work comes from the research project “Pathways and representations of childhood in books for children - study of works and readings” (CNPq support). The student speech analysis, in the mediated conversation, and their drawings and texts have shown negotiated meanings in the reading session and has pointed to articulations between the subject of social invisibility and students’ own experiences, and to the significance of challenging narratives in early-year groups. The study has drawn on discussions about the existence of difficult subjects in children’s literature (Colomer & Evans) and significance of sharing literary reading (Chambers, Roche and others).

Keywords: Children’s literature; Conversations about reading; Social invisibility

Palavras iniciais: literatura para crianças, temas difíceis e conversas sobre leituras

Se há consenso em relação aos slogans que proclamam a importância de fomentar o gosto pela leitura na escola, desde os primeiros anos que as crianças a frequentam, tal consenso não se mantém em relação à escolha dos livros e às estratégias de trabalho com a leitura literária no espaço escolar. Quais livros são adequados e interessantes para as crianças e que princípios sua abordagem deveria seguir são tópicos por vezes considerados menores ou, então, suscitam controvérsias. Na medida em que o presente trabalho segue alguns pressupostos em relação a essas duas questões, as discutiremos brevemente para, em seguida, apresentarmos o seu escopo.

Quanto à questão da adequação de livros para crianças, nos deteremos mais especificamente sobre as suas temáticas, uma vez que a obra sobre a qual nos debruçaremos foge às temáticas pueris tradicionais. Sabe-se que a presença e ausência de determinados temas nas histórias e livros endereçados às crianças estão conectadas com as concepções de infância correntes em diferentes contextos sociais e culturais. Desta forma, um conceito de infância como idade da inocência se relaciona tanto com a apresentação de enredos considerados mais ingênuos, alegres, pueris, quanto com a higienização, nas histórias, de passagens mais violentas, de temáticas consideradas adultas e excessivamente complexas para os pequenos. Um exemplo por todos conhecido foi (e ainda é) o da amenização de passagens violentas dos contos de fada (de origem popular secular) para pequenos leitores, com a supressão ou substituição de cenas “fortes”: em certas versões do Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, o lobo não devora a vovó, mas esta se abriga no armário etc. Vinganças e suplícios foram convenientemente expurgados de muitos desses contos populares, de tal forma que é comum que leitores adultos se espantem ao tomarem contato com versões seculares de tais contos, ainda não “depurados” das cenas consideradas inadequadas.

Nas últimas décadas, entretanto, várias tendências e fenômenos acabaram por motivar a inclusão de determinadas abordagens nas obras para crianças, o que, aliás, apenas corrobora a sua íntima ligação com o contexto social e cultural em que são produzidas. Assim, o borramento de fronteiras entre o mundo infantil e o mundo adulto; o esgarçamento de fronteiras geográficas e a influência da globalização (com o incremento dos deslocamentos humanos, por um lado, e, por outro, o influxo das velhas e novas mídias, implicando a compressão espaço-tempo); a crescente visibilização de grupos minoritários e anteriormente subalternizados, agora reivindicando seus direitos de inclusão, e - especificamente no Brasil - a inserção no campo curricular de vários temas antes ausentes das preocupações pedagógicas (vejam-se os Temas Transversais) são algumas das transformações que repercutiram de forma significativa na literatura infantil e, no que aqui nos interessa, nas temáticas por ela exploradas.

Como resultado, constata-se a emergência e/ou expansão da presença de temas pouco frequentados anteriormente pela literatura infanto-juvenil. Que temas são estes e como são eles denominados? Fazendo uma breve retrospectiva sobre o caso brasileiro, Zilberman (1987), em esboço histórico da literatura nacional, relembra a publicação da Coleção do Pinto, nos anos 80, que buscou trazer temas “adequados para uma criança mais crítica”, inseridos numa “representação verista do contexto social” (pobreza, alcoolismo, problemas ambientais etc.) ou familiar. Já Paiva (2008), partindo da questão “De que fala a literatura infantil?”, buscou identificar as temáticas predominantes no conjunto de obras inscritas no PNBE4-2008 (Educação Infantil e Anos Iniciais), num total de 1735 títulos. Naquele momento e recorte, a autora identificou a escassez dos “títulos que tratam de temas delicados (morte, medo, abandono, separação)” (p.39), com alguma expressividade da abordagem da morte.

Para além do Brasil, podemos apontar o estudo de Teresa Colomer (2003), que, após ampla pesquisa de títulos premiados na Espanha, aponta o incremento de novas áreas temáticas, provocadas por mudanças ocorridas no mundo a partir dos anos 60 e 70: “novas atitudes morais” frente à infância e emergência de “novos temas sociais”, entre outras. A autora aponta, como marco diferenciador novo em tais livros, a psicologização da narrativa infantil e juvenil, face à problematização “de qualquer sistema moral, que pretenda separar nitidamente o bem e o mal” (Colomer, 2003, p.263).

Janet Evans (2015), pesquisadora britânica, aborda livros infantis que considera controversos e desafiadores, declarando sua opção de não estudar determinadas obras apenas por tratarem de “temas difíceis” ou “delicados”, mas de focalizar aqueles que o façam de forma “não segura”, “surpreendente” e desafiadora: seriam estes, diz a autora, que efetivamente afetariam os leitores. Listando adjetivos que poderiam caracterizar tais livros, como estranhos, inusuais, controversos, chocantes, perturbadores, filosóficos, a autora, a partir de estudos feitos com a leitura de alguns desses livros por crianças, procura mostrar como estas enfrentam, nas suas vidas, desafios tão fortes como os que são mostrados nessas obras, o que pode nos levar a pensar sobre esta questão no panorama brasileiro. À pergunta “tais livros seriam um desafio à inocência?” responde Evans que melhor do que negar o acesso a tais livros provocativos, os adultos poderiam partilhar sua leitura com as crianças e conversar sobre eles. Ela também registra que frequentemente as ilustrações afetam a forma como a história desses livros é vista, o que também será possível verificar no caso da obra que trabalhamos.

Finalizando este breve esboço sobre temas polêmicos nos livros infantis, constata-se que, se há várias dessas obras no panorama brasileiro, talvez poucas delas sejam efetivamente “desafiadoras”. O didatismo permeia a maioria dos livros sobre temas controversos e difíceis, observando-se a preocupação dos autores em “passar uma mensagem” para os jovens leitores, possivelmente com um interesse comercial das próprias editoras; este é o caso, por exemplo, dos livros sobre os “diferentes”, de forma geral, que, constituindo um acervo de 560 títulos, foram estudados por pesquisa de Silveira et al, na qual se concluiu que havia o “predomínio de títulos francamente pedagógicos, em que a literariedade, o inusitado e a criatividade pouco comparecem, submersos no discurso informativo e moralista” (2012, p. 28).

Com relação ao trabalho mediado a partir das leituras de livros literários, uma das vertentes mais promissoras atuais é a que atribui importância à conversa posterior à leitura, em que se compartilham sentidos entre os leitores. Chambers (2007), um dos estudiosos de leitura que mais se tem dedicado à exploração dessa possibilidade, relembra o papel essencial da conversa em nossas vidas, “em boa medida porque a maioria de nós, como se costuma dizer, não sabemos o que pensamos, até nos ouvirmos dizendo isso”5 (2007, p. 12). A tese do autor é de que “conversar” sobre o que se leu é uma atividade enriquecedora, que pode ser mediada proficuamente por professores e deveria ser feita com regularidade. Obviamente, no espaço escolar, por toda a tradição pedagógica relacionada à leitura e a uma didática engessada, há que se fugir do risco de que a discussão da leitura descambe para uma “verificação de compreensão correta”, cujos exemplos povoam as lembranças de todos nós.

A partir de muitas experiências - próprias e com as quais tomou contato - Chambers (2007) traz várias sugestões sobre o que evitar (se se quer fugir ao acento didatizante), asseverando que perguntas muito pedagógicas levam o leitor a descobrir “o livro que a professora quer que os alunos encontrem”, e não levam a uma conversa cooperativa, na qual uma comunidade de leitores descobre coisas além “das que cada um descobriria sozinho” (p. 10). O estudioso britânico não está sozinho na valorização desta abordagem, em especial entre autores que defendem a ideia de um letramento ou pensamento crítico, como Roche (2015, p. 49), que assim se posiciona:

A leitura seguida do diálogo é uma extensão da ideia de Bakhtin (1981) de que todo o ato de ler envolve diálogo, mesmo se é apenas entre o leitor e o livro. [...] Acredito que leituras em voz alta interativas sejam espaços genuínos e autênticos para um engajamento efetivo com literatura.

Também Davila e Souza (2013, p. 1214), ao discutirem o uso de textos polêmicos em sala de aula, na sua relação com a formação e prática docente, trazem o pensamento de Rice, para o qual “Dialogar sobre o texto é tão importante quanto ler o texto”. Estabelecidos brevemente dois dos focos de interesse que embasam o presente artigo - a presença de obras literárias para crianças sobre temas difíceis e a importância da conversa compartilhada em sala de aula após a leitura - passemos à contextualização do estudo.

Contextualizando o estudo - a pesquisa, o ambiente sociocultural e a turma

Este trabalho, produzido na vertente dos Estudos Culturais em Educação, se insere na pesquisa “Percursos e representações da infância em livros para crianças - estudo de obras e leituras” (apoio CNPq), realizada no NECCSO - Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade, sediado no PPGEducação UFRGS. A equipe de pesquisa é integrada por pesquisadores de três universidades brasileiras e da rede municipal de ensino de Porto Alegre - RS. O objetivo geral do projeto é analisar os gestos de compreensão leitora de alunos dos anos iniciais de escolas públicas, frente a um conjunto delimitado de obras ficcionais em circulação. O público-alvo são alunos entre nove e 12 anos do 4º e 5º anos do Ensino Fundamental de escolas públicas de Porto Alegre - RS.

Em uma de suas dimensões, a pesquisa envolve sessões de leitura e discussão (conversas mediadas) de tais obras, previamente selecionadas pela equipe de pesquisadores, por critérios como qualidade estética, variedade de temáticas e abordagens, e pela presença de personagens crianças como protagonistas. As sessões de trabalho na escola também incluem a realização de atividades variadas com os alunos, como produção de textos, montagens, colagens e desenhos que visem a explorar as leituras que as crianças fazem das obras.

Neste texto, apresentaremos um recorte dos dados produzidos pelos alunos a partir do trabalho com o livro “Os Invisíveis”, de Tino Freitas e Renato Moriconi, integrante do acervo PNBE Anos Iniciais do Ensino Fundamental - 2014.

Para compreendermos as múltiplas relações que os alunos estabeleceram com a obra analisada a partir de suas experiências, faz-se relevante caracterizar brevemente o contexto sociocultural da escola e da turma em questão, considerando, com Smith (1999, p. 74), que “[...] Tudo o que entendemos sobre o mundo é uma síntese de nossa experiência, e as nossas lembranças específicas que não puderem ser relacionadas com a nossa síntese, com as nossas regras gerais, farão pouco sentido para nós”.

A escola em questão pertence à rede municipal de ensino de Porto Alegre e está localizada na região leste da cidade, bairro Bom Jesus, na Vila Nossa Senhora de Fátima. De acordo com estudos de Mello (2006), a partir do IBGE (Censo, 2000), o bairro Bom Jesus é um bairro populoso, com uma população predominantemente jovem. Outros dois elementos centrais a serem destacados, considerando dados estatísticos populacionais, são o componente étnico-racial e o componente de baixa renda. A região leste da cidade, em que se insere o bairro, tem o segundo maior percentual de população negra da capital e possui o maior percentual de pessoas com renda de dois salários-mínimos, caracterizando, assim, uma população de baixa renda. Em relação ao trabalho dos membros da família, a partir de dados obtidos em saída de campo realizada na comunidade pelos professores da escola (Mello; Mello, 2015), constatou-se que, no trabalho masculino, é grande a diversidade de ocupações, como eletricista, montador, padeiro, mecânico, predominando o trabalho na construção civil, como serventes de obras, ou a prática de “fazer bicos”. No trabalho feminino, registram-se ocupações como balconista, donas de casa e execução de trabalhos de limpeza, predominando o trabalho como faxineiras ou empregadas domésticas. Nessas famílias, a preocupação básica é, sobretudo, com moradia e alimentação, as condições básicas de sobrevivência. Quanto à escolaridade, constatou-se que, na maioria dessas famílias, os pais são analfabetos e/ou possuem apenas o ensino fundamental incompleto. Assim, observa-se que o acesso à palavra escrita e a uma variedade de objetos da cultura letrada - em especial, de livros - está bastante restrito ao ambiente escolar.

A turma em que foi realizado o trabalho aqui focalizado correspondia ao 5º ano do ensino fundamental de nove anos, em 2017, sendo composta por 29 alunos. Essa turma vinha sendo acompanhada pelos pesquisadores desde o 4º ano (2016), e a grande maioria dos alunos, portanto, já conhecia a equipe. Os alunos da turma em questão frequentam a escola desde o jardim B e, nos seus três primeiros anos de escolaridade, compuseram uma das turmas de educação integral: do ensino fundamental (1º ciclo), frequentando a escola nos turnos da manhã e tarde6. De um modo geral, observa-se que esse grupo tem uma boa proficiência de leitura e escrita. Outro elemento a ser considerado da turma é a ocorrência da participação dos familiares no acompanhamento escolar de suas crianças.

Como se caracteriza a obra trabalhada com os alunos?

“Os Invisíveis”, de Tino Freitas e Renato Moriconi, consiste em uma obra brasileira de ficção com inspiração realista, que aborda a invisibilidade de vários atores sociais no mundo urbano contemporâneo. Seguindo uma das tendências dos livros infantis atuais, o projeto gráfico conjuga elementos da linguagem verbal e visual, articulados para compor a narrativa, que extrapola os limites da palavra. As ilustrações são compostas exclusivamente por duas cores: laranja e preto, tendo como pano de fundo a cor branca, criando a base que sustenta a representação de diferentes ações.

A narrativa, em 3ª pessoa, com um texto verbal econômico distribuído em páginas de formato grande, assim se inicia: “Era uma vez um menino com um superpoder: na sua família, só ele via os invisíveis”. Aludindo, de certa forma, aos superpoderes dos heróis infanto-juvenis, os autores subvertem tal referência. Ao apresentar o protagonista (um menino) como detentor do poder de enxergar pessoas que seus familiares não “viam”, em diferentes lugares: nas esquinas, na saída do mercado, no meio da rua (lixeiro, malabaristas de farol [sinaleira], músico de rua, pedinte), a narrativa de certa forma se insere em uma tradição de alguns livros para crianças: aqueles que “afirmam a força da sinceridade infantil diante do jogo de aparências cultivado pelos adultos” (Prieto, 1999, p. 118), dentre os quais, conforme a autora, a narrativa mais representativa é o conto de Andersen, A Roupa Nova do Rei.

Voltando à obra, a narrativa traz também uma situação em que o próprio protagonista, menino, se sentia um invisível: quando seus pais estavam focados no computador ou na TV, por exemplo. Com o passar do tempo, na medida em que se torna adulto, o menino passa a não mais perceber o carteiro, o lixeiro, o varredor de rua, o artista de rua e outras figuras que estão à margem da sociedade, excluídas: “E assim o tempo passou... ele entrou para a faculdade... conseguiu um emprego... e se casou... E o menino envelheceu esquecendo que um dia teve um superpoder”.

Na obra, o foco de luz laranja, retratando o superpoder do menino, ilumina o que somente ele vê (ver figura 1): a presença inicial (e posterior ausência) dessa cor ao longo das páginas marca a passagem da infância para a vida adulta. Os “personagens invisíveis” também são retratados como transparentes em relação ao ambiente. Assim, cores, texturas, silhuetas, movimento e posição das imagens se articulam no espaço total das páginas, conferindo à obra movimento e auxiliando o leitor a focar o olhar no que o menino, protagonista, vê. A sensibilidade da infância vai dando lugar à frieza e insensibilidade da vida adulta, quando a indiferença de “estar acostumado” torna algumas pessoas invisíveis em meio à vida cotidiana.

Figura 1: 

É interessante observar que as figuras humanas, nas diferentes cenas da narrativa, são representadas de forma quase esquemática, apenas por silhuetas e perfis, sem detalhes de rosto, propiciando apenas a identificação dos personagens por seu gênero, atividade e faixa etária. Tal característica vem ao encontro da ausência de nomes próprios dos personagens - ninguém é nomeado no texto verbal (são usadas denominações genéricas: menino, pai, mãe, avô, avó). Em harmonia com seu título, a obra7 tematiza, pois, a invisibilidade social no mundo contemporâneo, a partir da conjugação de elementos verbais e figurativos criativos que guiam o olhar e os significados, apresentando uma narrativa original, sugestiva, que foge às lições explícitas e estritamente pedagógicas.

Para contribuir com o tema da invisibilidade dos atores sociais na contemporaneidade, retomamos aqui o conceito de “invisibilidade pública”, cunhado por Costa (2004), doutor em Psicologia que se passou por gari e conviveu nove anos com garis da Cidade Universitária de São Paulo, em uma experiência que resultou em sua tese. Por meio de uma pesquisa de caráter etnográfico e de observação participante, Costa focou a invisibilidade pública como a expressão de manifestações de humilhação social, às quais são submetidas as pessoas de classes pobres que executam o que ele denominou de “trabalho subalterno não qualificado”. A respeito do ofício de gari, ele sustenta que este “aparece acentuadamente atravessado por um fenômeno de gênese e expressão intersubjetivas: a invisibilidade social - espécie de desaparecimento psicossocial de um homem no meio de outros homens” (Costa, 2004, p. 43). Segundo o pesquisador, nesse ofício as atividades são atribuídas a uma classe de homens “historicamente condenados ao rebaixamento social e político”.

Conforme ressalta o autor, estaríamos tratando aqui de um desaparecimento que não parece físico e que pode ser disparado por diferentes vias. Os uniformes, por exemplo, valeriam como signos de posição social (de trabalho, de classe, hierárquica) e contribuiriam para a construção social do desaparecimento público dos sujeitos (Costa, 2004, p. 45). Para ele, a invisibilidade pública pode ser definida como a manifestação de dois fenômenos psicossociais nas sociedades capitalistas: humilhação social e reificação: a primeira, como problema político e fenômeno histórico na vida das pessoas das classes empobrecidas, ao indicar a exclusão desses sujeitos em âmbitos como o governo da cidade e do trabalho. Já a reificação se relaciona com o valor mercantil atribuído às pessoas, às relações humanas e instituições nas sociedades industriais, o que faz com que as relações de trabalho sejam vistas como objetos, apagando o fator humano desse contexto (Costa, 2004, p.48-49).

Observe-se que o tema da invisibilidade social ganha um tratamento estético de grande expressividade na obra trabalhada. Freitas (um dos autores, em cujos livros é frequente a preocupação social) acredita na importância da fantasia, mas destaca que trabalhar com a realidade é outro caminho possível para a literatura infantil “para que a criança enxergue o que leu em seu cotidiano e se relacione com isso” (Freitas, 2013). Mesmo sendo uma obra de ficção, esta apresenta uma sólida ancoragem realista, lançando mão de uma metáfora que se constrói tanto através do texto - a referência textual aos “invisíveis” - quanto através dos recursos imagéticos mencionados. A narrativa, assim, conota a complexidade dos diferentes momentos da vida e das próprias relações sociais, apontando para uma entrada no mundo adulto que acarreta também a naturalização das diferenças e posições sociais.

Como foi a proposta de trabalho com a obra?

Para além do planejamento habitual de trabalho com os livros (motivação prévia, leitura, conversa e discussão), a sessão de trabalho com a obra Os Invisíveis teve como preocupação, especificamente, promover a articulação das vivências do personagem menino, o protagonista que via os invisíveis, com as experiências cotidianas das crianças - tanto no sentido de elas retratarem cenas com pessoas invisíveis quanto de revelarem situações em que elas mesmas se sentiram dessa forma.

Anteriormente à leitura da obra, foi realizada uma conversa inicial a fim de explorar algumas expressões que pudessem ser desconhecidas pelos alunos e foram levantadas algumas hipóteses sobre a temática e o enredo da obra, possibilitando a construção de contextos mentais compartilhados. De acordo com Solé (1998, p. 105), considerando estudos de Edwards e Mercer, a criação de contextos mentais compartilhados refere-se “[...] àquilo que os participantes de uma tarefa ou conversa compartilham sobre ela e que pode garantir uma compreensão compartilhada, pelo menos em suas características gerais”, sendo esse um conhecimento útil para a interação dos alunos com o texto. Somente após esse momento de conversa inicial, foi realizada a abertura do livro e leitura expressiva conjunta, feita por uma das pesquisadoras e acompanhada pelos alunos que, em dupla, tinham acesso a um exemplar da obra.

Após a leitura, foi realizada a sessão de conversa sobre a obra, a partir de perguntas desencadeadoras como: O que acharam da história? Do que mais gostaram e do que não gostaram? É possível ver os detalhes dos rostos das pessoas? Qual era o superpoder do menino?, que se multiplicavam a partir das respostas. Nesse momento, os procedimentos metodológicos da pesquisa permitiam “recolher” da situação de sala de aula o processo de interação pela linguagem, as formas discursivas, os relatos, os diálogos, as interpretações, a discussão de problemas cotidianos8, destacando-se, assim, dimensões textuais e contextuais, a partir do compartilhamento de ideias e da produção de significados.

Considerando a contextualização realizada, podemos observar como a sessão de leitura foi conduzida de forma dialógica, permitindo a discussão de significados, a partir da interação estabelecida frente às brechas e os vazios a serem preenchidos pelo compartilhamento de ideias.

Análises: a mediação e a negociação de sentidos no trabalho interpretativo

Um dos compartilhamentos feitos, a partir da obra, considerando a temática da invisibilidade de atores sociais ou do lugar da criança na família e fora dela, provocou, no grupo de alunos, certa perplexidade. As falas dos alunos da turma, a partir da questão: Quem são os “invisíveis” - o que eles fazem ?, com respostas como: A10(a)9: Os trabalhadores...; A8(a): Lixeiro!; A3(o): O homem fazendo malabares pra ganhar dinheiro...; A3(o): As pessoas boas...evidenciam os sentidos que as crianças trouxeram de suas vivências, relacionando o que viram no texto com o que vivem ou conhecem de seus contextos sociais.

Nesse sentido, durante a discussão dessa questão com a turma, observou-se certo conflito entre os alunos frente à seguinte situação: muitos deles achavam que os mendigos não eram invisíveis. Evidentemente, a metáfora utilizada nos textos verbal e visual não foi capturada por todos os leitores, num primeiro momento. Alguns alunos disseram que, então, eles próprios também tinham superpoderes, pois também viam os mendigos, e, possivelmente conseguiriam vê-los mesmo enquanto adultos. Sabemos que, por meio de inúmeros mecanismos de negação e exclusão, os pedintes, o lixeiro, o varredor de rua, o artista de rua e outras figuras tomaram, no imaginário social de alguns grupos sociais, o lugar da invisibilidade, da não-existência; no entanto, para alguns alunos da pesquisa os sujeitos invisíveis da obra são visíveis, uma vez que se aproximam de seus grupos familiares, pois, como já explicitado, alguns familiares têm ocupações semelhantes, como lixeiro, por exemplo. Novamente, observa-se aqui a mobilização que os alunos fazem das referências de suas vivências imediatas. E, nisso, vemos a relevância dessa leitura - de um livro sobre “tema difícil” - para esse grupo de alunos, pois não negam seu grupo de pertencimento; pelo contrário, discordam do olhar do protagonista da obra, apontando o quanto esse ignora o outro, ao entrar na idade adulta e deixar de “ver os invisíveis”: A3(o): “Ele parou de ver os invisíveis, mas os invisíveis [voz superposta] - A11(a): Enxergam ele, não pararam de ver ele...”; A3(o): “Ah! Ele só tinha poder de ver o invisível quando era criança! Porque agora ele cresceu e não acredita mais nisso!”; A3(o): “Ele tá parecendo o pai dele... Ignorando...”; A10(a): “Porque ele não tem mais essa imaginação”;A3(o): “ Adulto não tem imaginação, eu acho”.

Outra discussão realizada foi sobre como as crianças se sentiam invisíveis para os seus familiares ou em outros espaços sociais, uma vez provocadas pela questão: Já se sentiram invisíveis algumas vezes? Algumas manifestações foram: A3(o): [...] “meu pai, ele fica conversando com adulto, ou se ele se junta com os amigos dele, ele não dá atenção mais nunca mais pra mim, né”; A2 (a): “Minha mãe no celular, fico invisível”; A10(a): “Ah, no shopping ninguém se olha...”.

Vê-se, assim, como a articulação entre as experiências vivenciadas e a experiência de leitura se fez presente na busca de respostas e nos diálogos provocados pelas questões feitas.

A leitura de cada leitor é modulada pelas suas experiências de vida incluindo, neste rol, seus afetos, suas incertezas, seus dilemas cotidianos. [...] Os processos de leitura e compreensão não apenas variam de sujeito para sujeito, mas também de acordo com a situação concreta em que o texto está sendo lido (Dalla Zen; Silveira, 2013, p. 55).

Em outro contexto de discussão desta obra, com outros leitores, talvez, as questões de invisibilidade fossem mais próximas às situações do protagonista, relacionadas às questões de trabalho, e nem tanto a relações interpessoais ou de espaços sociais. Nas situações de conversa oral, pudemos observar o quanto os alunos dessa turma interagiram com a obra, estabelecendo muitas relações com seu cotidiano. Após esse momento de discussão oral, foram realizadas atividades escritas, sempre interligadas à discussão provocada pela obra, retomando os sentidos negociados durante a sessão de leitura.

Para o trabalho escrito, foram propostas três atividades envolvendo escrita e desenho, das quais, neste artigo, só nos ocuparemos, de forma conjunta, das duas primeiras. Na primeira atividade - um trabalho individual (usando folha de papel vegetal) - os alunos foram convidados a desenhar duas cenas, em dois lugares diferentes (escola, bairro, praça e outros) em que fossem representadas pessoas invisíveis ou quase invisíveis, tal como havia sido sugerido no enredo da obra. As pessoas invisíveis deveriam ser desenhadas, recortadas do papel vegetal e coladas em cada uma das cenas. Na segunda atividade, os alunos foram solicitados a escrever sobre alguma vez em que tivessem se sentido invisíveis, ressaltando onde e quando essa invisibilidade teria ocorrido.

Em muitos desenhos da rua, as pessoas “invisíveis” desenhadas pelas crianças foram pedintes, trabalhadores como garis, varredores de rua, vendedores ambulantes - de balões, de comida, de café, e, mesmo, músicos que tocam na rua. Observe-se que a inspiração desses invisíveis, em grande parte, veio da própria obra, conjugada às vivências das crianças. Também houve vários desenhos de crianças “invisíveis” na pracinha, porque ninguém brincava com elas. Vejamos algumas dessas representações.

Figura 2: 

Figura 3: 

Nos desenhos acima, os lugares escolhidos para a cena foram o interior de um ônibus - provavelmente um veículo de transporte público - e a rua. Na Figura 2 percebemos uma dupla invisibilidade marcada na imagem de uma pessoa com deficiência (cadeirante) que também é músico/artista de rua. Sua presença parece não ser notada, sua música não é ouvida. A menina, na cena, está totalmente virada para o lado e aparece distraída com seus fones de ouvido. No livro, também há um músico tocando violão, mas em outro ambiente (que não o ônibus); além disso, o desenho da criança também apresenta uma condição que não aparece na história original: a deficiência física representada por uma pessoa em uma cadeira de rodas.

Na Figura 3, mudam os personagens: um pedinte estende a mão para um rapaz que, indiferente a ele e virado para o lado oposto, carrega uma sacola cheia de compras na mão direita e, na outra, segura o que parecem ser notas de dinheiro (nota-se que aqui o desenho apresenta uma cena bastante semelhante a uma das cenas do livro). A ideia de invisibilidade (e de indiferença), neste caso, se relaciona com dois elementos comumente associados aos pedintes: pedido por comida e por dinheiro (pedidos, em sua maioria, não atendidos). Além da rua, praças também foram cenários escolhidos para desenhar os invisíveis - desta vez ligados a profissões como gari ou catador de resíduos.

Figura 4: 

Figura 5: 

Na Figura 4, ganha destaque a indiferença da menina que, despreocupadamente, atira o lixo no chão - para insatisfação da profissional de limpeza, que, além de ser alvo da indiferença e certo “ar de desprezo”, ainda terá mais trabalho pela frente, “reparando” o ato daquela. A pessoa invisível, no desenho, pode ser identificada como uma empregada doméstica ou diarista que utiliza uniforme profissional com avental e luvas. Lembramos Costa (2004, p. 45), quando destaca o papel do uniforme como signo de posição social, trabalho, classe e hierarquia, contribuindo em alguma medida para o desaparecimento público de determinados sujeitos, como nos indica o desenho ora analisado.

Já na Figura 5, chama atenção a nomeação da dicotomia pobreza versus riqueza - a criança desenhista apõe as legendas “pessoa rica” e “pessoa pobre”. Ainda que tal dicotomia não fosse nomeada no texto original - em que os invisíveis aparecem apenas como silhuetas de personagens - é evidente que as personagens invisíveis do espaço público não são personagens economicamente privilegiadas: desde o mendigo, até o gari. Durante a exploração da história, na conversa sobre o livro, os alunos fizeram essa associação, estabelecendo a dicotomia pobreza versus riqueza como um marcador de invisibilidade. A criança desenhista, então, generaliza seu entendimento, para que não haja dúvidas sobre as diferenças econômico-sociais entre as duas meninas desenhadas: a menina pobre veste camiseta larga e shorts. A menina rica, com longos cabelos escuros, veste vestido rosa bem acinturado no estilo das princesas dos desenhos animados.

O registro da própria invisibilidade

Mesmo que a primeira parte da atividade não tivesse solicitado tal dimensão, várias crianças desenharam a si próprias como invisíveis. Em sua maioria, as cenas retratam os lares onde vivem e cujas relações familiares criam um ambiente para que elas se sintam invisíveis. A reprodução da própria invisibilidade verificada nos desenhos se conecta com a proliferação de relatos orais na conversa com os alunos em sala de aula, após a leitura conjunta da obra. Nesse sentido, a atividade proposta retoma os sentidos negociados durante a sessão de leitura e aponta para sentidos inesperados - tanto no que diz respeito ao tema da invisibilidade no contexto de uma turma de 5º ano, quanto para a relevância de narrativas desafiadoras em turmas de anos iniciais. Identificamos, tanto na fala quanto nos desenhos tipos diferentes de relato:

a) a invisibilidade em relação a parentes e amigos:

Figura 6: 

Figura 7 

As crianças relataram uma série de momentos de invisibilidade que envolviam amigas da mãe, avós, dindas, primos, amigos do pai, entre outros. A falta de atenção das pessoas em relação a elas é descrita de diferentes maneiras, como, por exemplo, por A38(a): “A minha vó cuida de uma guriazinha e o meu irmão sempre fica brincando com ela, daí quando eu vou chamar ela pra brincar, ele só fica dando atenção pra aquela guriazinha e não dá pra mim também...”. A sensação de invisibilidade também pode estar atrelada ao sentimento de ciúmes de um irmão menor ou recém-nascido, fato que geralmente concentra a atenção dos familiares adultos: A26(a): “Quando a minha irmã nasceu, a amiga da minha mãe - que era minha dinda - ia todo dia me ver. Depois que a minha irmã nasceu, aí quando vê eu... bem assim: ‘oi dinda’, daí ela ‘ai nenenzinha’”. Além dos adultos, histórias com outras crianças (primos e amigos) também são recorrentes nesse “sentir-se invisível” ou ignorado: A3(o):“Aí eu chamei meu primo pra vir jogar junto comigo, aí ele tava com um amigo dele lá, né? Nem sei quem é, aí ele ficava brincando com ele assim e me ignorando... Aí eu falei: 'primo vem aqui, eu quero brincar contigo' e ele 'não, não quero, não quero', nem dava bola pra mim...”.

b) a invisibilidade em função da presença de eletrônicos/telefones celulares:

Figura 8: 

Figura 9: 

Outro ponto a ser destacado é um tipo específico de invisibilidade que emergiu nas falas das crianças: a inconformidade com a falta de atenção dos pais devido ao envolvimento deles com aparelhos eletrônicos e telefones celulares. Tanto em desenhos quanto nos relatos escritos, foi possível observar situações nas quais elas se sentem ignoradas porque seus parentes ficam conectados por muito tempo nos aplicativos e na internet. Uma das meninas relatou: A2(a): “Eu chamo ela [a mãe] pra me dar o telefone dela, e ela fica assim ó” [faz gesto com a mão que significa esperar um pouco]. Já outra menina escreveu: “Olha, quase todo o dia minha mãe fica no celular, quando eu chamo ela, diz que já vai, aí eu espero e ela não vem. Chego de um passeio ou da escola com ela, e ela vai direto para o celular. Eu vivo assim”. Percebe-se, dessa forma, que a cultura digital está significativamente presente na vida cotidiana das famílias, e o quanto essa realidade parece interferir no convívio familiar e na rotina de uma criança em relação às suas necessidades/expectativas por atenção. Nesse sentido, compreendemos que as crianças, mesmo que não pertençam a classes econômicas privilegiadas, não estão à parte do contexto de transformações no ambiente comunicacional; pelo contrário - estão imersas nele e dele não escapam.

Para além da conversa sobre o livro, complementando as falas dos alunos, também podemos buscar exemplos escritos elaborados em resposta à parte 2 do trabalho: as crianças foram solicitadas a escreverem sobre alguma vez em que se sentiram invisíveis. Elas relataram situações como: o pai fica na rua jogando dado e não dá atenção; quando a mãe toma chimarrão, fica um tempo no celular, fica conversando com as amigas ou, mesmo, quando está com outro filho pequeno no colo e não dá atenção a elas. Nos relatos escritos também ocorre de alguns se sentirem invisíveis quando um amigo, um irmão, uma prima não dão atenção porque estão envolvidos com outra pessoa.

Perpassa todos estes relatos a exposição do sentimento de rejeição ou solidão, que independe de classe social, origem étnica, condição econômica, mas constitui uma experiência muito humana. Este “sentir-se ignorado” pode provir tanto por ação de parceiros crianças (o irmão, o primo) como de adultos (o pai, a dinda). De certa forma, diz respeito à própria aprendizagem universal de partilhamento de atenção e afeto, e das perdas que acompanharão todas as histórias pessoais dos sujeitos. Tal sensação de invisibilidade e abandono, entretanto, tem se agudizado contemporaneamente em determinados contextos sociais, pelo uso de aparelhos eletrônicos e telefones celulares que conectam os que estão longe e desconectam as pessoas face-a-face, o que foi retratado em uma cena da obra e reverberou nas falas e produções das crianças.

Considerações finais

Ao final do breve relato do percurso de abordagem de uma obra, entendemos que o trabalho desenvolvido evidencia um processo de leitura que possibilitou a interação entre diferentes mediadores de sentidos: leitor, autor, obra, pesquisadores e professora.

Nessa interação, muitas questões estavam envolvidas: intenções e conhecimentos prévios dos leitores, os diferentes elementos da obra (texto, imagens, suporte), as intenções e valores do autor frente ao tema que aborda e aos leitores presumidos por ele (Casmanie, 2017). De certa forma, temos a sensação de que o trabalho corrobora o que Chambers (2007, p. 16) aponta sobre a leitura: “a leitura não tem que ser somente um passar das vistas sobre as palavras, mas uma ‘ação dramática composta por muitas cenas interrelacionadas’”. Nessa ação dramática do ato de ler, falar e escrever sobre a obra trabalhada, podemos observar os alunos nas seguintes situações e papéis: reescritores; intérpretes; atores; receptores ativos e sensíveis ao texto e críticos: comentadores, explicadores e estudiosos dos textos (Chambers, 2007).

Destaca-se, também, o papel da mediação durante a sessão, em que os leitores tiveram a possibilidade, no processo de interação com a obra, com os pesquisadores e com os colegas, de construir diferentes leituras, uma vez que não houve a imposição de um único significado. Deste modo, a mediação da leitura possibilitou, além da leitura do texto, criar novos sentidos, elucidando marcas do contexto e das condições históricas concretas, através de relações com outros textos, entre textos, linguagens e imaginação.

Abordar a leitura sob esse viés multifacetado, plural aponta que não só de palavra vive o leitor de um texto: há inter-relações que se estabelecem entre diferentes linguagens expressivas. Portanto, ao ler um texto podemos articular impressões e sentidos advindos de experiências de leitura com as demais linguagens. Imagens que se desenham em nossas retinas, sons que evocam memórias vividas, que acolhem nossa possibilidade de atribuir sentidos reconfigurados a palavras e objetos já vistos, saberes já cristalizados (Silveira et al, 2012, p. 35).

Para finalizar, vale destacar nossa compreensão de que é fundamental que temas polêmicos e desafiadores, por meio de obras literárias e de um trabalho produtivo de leitura em sala de aula, integrem o currículo escolar, o que é possibilitado por várias obras selecionadas em acervos do PNBE ou de outros acervos qualificados. Tais obras possibilitam aos alunos se confrontarem com seu cotidiano, discutindo “enigmas” da existência humana e a complexidade das relações sociais na sociedade contemporânea (Paiva, 2008). Pensamos, com a autora, que

Não há necessidade de ser um leitor sofisticado para reagir a dramas humanos exatamente com essa oscilação entre imaginação e existência concreta de quem experimenta esteticamente os efeitos da literatura. Por um lado, o leitor vai compartilhar do drama narrado dentro de um quadro mais amplo que são os dramas da humanidade, mas ele também pode se relacionar com o drama, transformando-se de espectador a parte do enredo que se desenrola, por meio de identificações pessoais (Paiva, 2008, p. 45- 46).

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4 O PNBE - Programa Nacional de Biblioteca da Escola foi criado em 1997, com o objetivo de democratizar “o acesso de alunos e professores à cultura, à informação e aos conhecimentos socialmente produzidos ao longo da história da humanidade” (Ramos e Paiva, 2012, p. 298). O programa vinha sendo executado, até 2016, pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e pelo Ministério de Educação. O Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da Faculdade de Educação/UFMG, de 2006 a 2016, assumiu a responsabilidade de analisar e selecionar (para posterior distribuição pelo MEC) obras de literatura e referência destinadas às escolas de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e estabelecimentos com turmas de Educação de Jovens e Adultos e Educação Especial (Ramos e Paiva, 2012, p. 298; Cademartori, 2013, p.13).

5 Todas as traduções de citações, neste texto, são de responsabilidade das autoras.

6 No contexto da escola, observa-se que a inclusão destes alunos na escola desde os cinco anos, no espaço do jardim B, e o atendimento na turma de educação integral foram elementos significativos para o sucesso dos processos de alfabetização e letramento.

7 Além de ter sido selecionada para os acervos do PNBE 2014 Anos Iniciais, a obra também integrou o Catálogo de Bolonha.

9 A numeração das crianças visa apenas proteger o sigilo de seus nomes e mostrar a diferenciação dos enunciadores; a indicação do gênero - menino OU menina - é feita pela utilização de (a) ou (o).

Recebido: 12 de Junho de 2018; Aceito: 06 de Novembro de 2018

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