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Educação UNISINOS

On-line version ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.23 no.3 São Leopoldo July/Sept 2019  Epub May 04, 2020

https://doi.org/10.4013/edu.2019.233.04 

Artigos

Comum: por um princípio pedagógico

Common: as a pedagogical principle

Cleriston Petry1 

Angelo Vitório Cenci2 

1 Professor no Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e do Mestrado Profissional em Filosofia (núcleo UFMT). cleripetry@hotmail.com

2 Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação, Mestrado e Doutorado, da Universidade de Passo Fundo (UPF). angelo@upf.br


Resumo

O objetivo desse estudo é refletir sobre o sentido da educação a partir do conceito de “comum”, repercutindo-o em proposições pedagógicas. Para tanto, interpretamos o “comum” como princípio de ação a partir das obras de Pierre Dardot e Christian Laval. O comum pode fazer frente ao avanço apropriador da razão neoliberal e a argumentação conduz à exigência da ressignificação do Direito a partir da “ação comum”. Dado que os autores não se ocupam sistematicamente com as consequências de seu estudo para a educação, nossa proposta supõe que a educação escolar pode ser um dos espaços/tempos privilegiados de instituição (ou restituição) do comum ao “livre uso”. Assim, conduzimos nossa argumentação à Hannah Arendt, repensando o sentido da escola como introdução dos “novos” no mundo a partir da ação pedagógica que restitui o “comum” ao “livre uso”, na medida em que põe-em-comum palavras, atos e o mundo (como conteúdos) e exige dos adultos a “ação comum”.

Palavras-chave: Comum; Ação Comum; Neoliberalismo

Abstract

The objective of this work is to reflect on the meaning of education through the concept of “common”, reproducing pedagogical propositions. For this purpose, we interpret “common” as a principle of action based on the works of Pierre Dardot and Christian Laval. The common may withstand the appropriator advance of neoliberal reason and the argumentation leads to the necessity of redefining the Law, as no longer coming from the legislative or governmental activity, but from the “common action”. Given that the authors do not systematically occupy themselves with the consequences of their study for the education, our proposal supposes that the scholar education may be one of the spaces/periods privileged to institute (or reinstitute) the common to the “free use”. Thus, we conduct our argumentation towards Hannah Arendt, rethinking the meaning of school as an introduction of the “newcomers” into the world through the pedagogical action that restitutes the “common” to the “free use”, to the extent that it places-in-common words, acts and the world (as contents) and it requires from the adults the “common action”.

Keywords: Common; Common action; Neoliberalism. Education

Introdução: do contexto neoliberal à defesa do “comum”

Depois dos anos 1970, com os movimentos contestadores e a crise do Petróleo, o capitalismo se adaptou às novas injunções, pondo em questão a dominação burocrática e promovendo profundas mudanças nas relações dentro das empresas. Ao mesmo tempo, surge uma “nova razão do mundo” (Dardot e Laval, 2016). Essa nova racionalidade evidencia que o “neoliberalismo” “não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais” (2016, p.7). Se fosse somente uma questão ideológica, bastaria confiar nos defensores do Estado Social ou nos Socialistas e nas respectivas mobilizações contra a destruição dos direitos sociais e do Estado em prol do mercado. Mas, a situação é mais complexa do que uma simples disputa entre esquerda e direita. O neoliberalismo prefigura a formação de um novo homem e de novas relações baseadas na competição e na concorrência.

A lógica do mercado, supostamente mais eficiente, é estendida a esferas como o próprio governo, por meio da utilização de um léxico da gestão empresarial, fundado em imperativos das empresas privadas que comandam as agendas dos Estados (Dardot e Laval, 2016, p.278). Por isso, a velha doutrina do laissez-faire está ultrapassada. A crítica não pode basear-se numa concepção do neoliberalismo imprecisa. Hoje a racionalidade neoliberal tem outras implicações: a participação direta do Estado para a consolidação do “neoliberalismo”, seja por alterações em dispositivos constitucionais que congelem gastos públicos, seja na proteção dos mercados, na apropriação de uma lógica exógena à política e à educação para um “novo homem”, o empresário de si mesmo, o gestor de sua vida. Daí Estados que passam a postular o fim dos direitos sociais e do próprio sistema de seguridade social.

A “razão neoliberal” não deseja um “Estado Mínimo”, oriundo da falha doutrina do laissez-faire, mas um Estado forte, protegido de ataques e demandas assistenciais e protetor do livre mercado e da concorrência. Ademais, a atuação do Estado ocorre, também, por meio da educação, inserindo a lógica empresarial na “administração” das escolas, na competição e na concorrência entre instituições e entre alunos. Homens capazes de serem flexíveis, adaptáveis, mutáveis, que anseiam por buscar ser mais, competindo numa sociedade em redes em que toda relação pode ser lucrativa e/ou concorrencial3.

Diante desse cenário, Pierre Dardot e Christian Laval publicaram Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI, num esforço teórico de pensar uma alternativa ao estado de coisas que estamos vivendo, desde as crises econômicas, o avanço da “razão neoliberal”, às catástrofes naturais, evidentemente conduzidas a um nível crítico pelo capitalismo apropriador e destruidor.

A “Queda do Muro de Berlin” simbolizou a falência do Estado Comunista, seguida da guinada neoliberal, da crise da democracia social, do enfraquecimento do salariado organizado e do aumento do ódio xenofóbico e do nacionalismo. O “espírito do capitalismo”, para usar as intuições de Luc Boltanski e Ève Chiapello (2009), se apropria de elementos que são externos a si mesmo, com o objetivo de desarmar a crítica. Axel Honneth (2009, p.402) escreverá sobre as “contradições paradoxais” mostrando que o capitalismo se apropria de um vocabulário emancipatório que realiza o contrário do que se propunha. Richard Sennett (2009, p.69), por sua vez, estudando as transformações do capitalismo, argumentará que a liberdade defendida na crítica dos anos 1960 se converteu numa liberdade amoral, promovendo a angústia, o desarraigamento, a desconfiança e a falta de lealdade. Todavia, para Dardot e Laval os ideários socialistas e comunistas não são suficientes para desarmar a crítica, muito menos são padrões que possam garantir a instituição do Comum como alternativa, visto que tais experiências apenas desapropriaram proprietários privados para convertê-los em propriedade do Estado.

Ainda sobre o “neoliberalismo” Dardot e Laval argumentam que ele submete o tempo na forma do “cosmocapitalismo”, fundado no princípio da concorrência que destrói as barreiras protetoras entre os países e dos respectivos cidadãos. Tudo acontece como se não fosse mais possível e viável resistir às injunções internacionais para instaurar um “neoliberalismo” internacional. A soberania dos Estados é fragilizada, pois esses se veem na urgência de concorrer por mercados, por empresas e por ter um sistema financeiro livre e altamente atrativo para investidores desterritorializados. O Socialismo ou o Comunismo são ideologias e racionalidades que não resistem ao avanço global do capitalismo e uma das respostas é o velho nacionalismo - que reaviva certos ressentimentos e é incapaz de romper com a “tragédia dos comuns” (Dardot e Laval, 2017, p.14). O “Neoliberalismo” pode ser um novo cercamento dos comuns: “a ‘pilhagem’ realizada pelo Estado e pelos oligopólios privados daquilo que até então era de domínio público, do Estado Social, ou estava sob o controle das comunidades locais” (Dardot e Laval, 2017, p.105)4.

A grande apropriação de nossa era “acarreta fenômenos maciços de exclusão e desigualdade, contribui para acelerar o desastre ambiental, transforma a cultura e a comunicação em produto comercial e atomiza cada vez mais a sociedade em indivíduos consumidores indiferentes ao destino comum” (Dardot e Laval, 2017, p.109). Diante desse cenário, pouco otimista, os autores supracitados postulam o Comum como possibilidade de mobilizar e constituir uma crítica capaz de fazer frente ao avanço apropriador dos interesses individuais, empresariais, privados e/ou do Estado. Na sequência, trataremos do comum como princípio de ação e como princípio pedagógico-educacional.

“Comum”, um princípio de ação

Comum é diferente de “público”, portanto maior e mais abrangente do que o Estado. Na era neoliberal não se pode pôr esperança cega no Estado, pois esse tende a ser mais e mais assimilado à lógica do privado (Dardot e Laval, 2016). O “comum” concerne a um princípio de ação que repercute na obrigação e responsabilidade mútuas ligadas ao exercício de responsabilidades (Dardot e Laval, 2017, p.25). Partindo do conceito originário de koinon, Dardot e Laval compreendem que o “comum” não diz respeito a uma coisa, objeto ou bem. Refere-se ao agir comum e a pôr em comum palavras e pensamentos. Como tal, é oriundo das atividades dos homens e tarefa daqueles que se engajam e constituem um regime de reciprocidade.

Nesse sentido, “comum” é uma “práxis” fonte de normas, excluindo formas de dominação (Dardot e Laval, 2017, p.34), na medida em que as normas são instituídas pela “ação comum” e não oriundas de um legislador externo à esfera de ação. Assim, o Direito deve ser repensado não como esfera de governo que, na era neoliberal legitima a apropriação, mas tarefa dos indivíduos que atuam, geram normas e instituem um direito, no sentido da coobrigação, da coparticipação. “O comum, ao menos no sentido de obrigação que todos impõem a si mesmos, não pode ser nem postulado como origem que deve ser restaurado, nem dado imediatamente no processo de produção, nem imposto de fora, do alto” (Dardot e Laval, 2017, p.100, grifos dos autores).

O “comum” precisa ser pensado por uma lógica que exclui a apropriação, pois não se trata de um “bem”. Por isso, a ideia de “bem comum” deve ser rechaçada, na medida em que implica a noção de propriedade e seu respectivo direito. Se há um “bem” deve haver um sujeito proprietário. O “bem comum” está inscrito na lógica da propriedade, além de reestabelecer postulados autoritários “que atribuem ao Estado, a ‘sábios’, a ‘especialistas em ética’ ou então à Igreja o cuidado de dizer o que é Bem Comum”, argumentam Dardot e Laval (2017, p.28)5. Ademais, há uma tendência em se pensar o “comum”, a partir de “Bem Comum”, como “naturalizado”, cabendo à autoridade ou ao grupo estabelecer a posse comum. Isso rechaça a ação, no sentido de que agir é instituir, iniciar, começar outra vez, descartando a priori a pluralidade humana, “condição básica tanto da ação como do discurso” (Arendt, 2005, p.205)6.

A atividade relativa ao “comum” se refere à instituição, à criação e não à apropriação. “O comum político é radicalmente exterior à propriedade, porque não é um ‘bem’, e somente existe propriedade, privada ou comum, daquilo que é um bem” (Dardot e Laval, 2017, p.250, grifos dos autores). Há, portanto, um “comum” que não pode depender exclusivamente do Estado como instituidor e, após o fim da utopia socialista, não tem sentido renovar a confiança exclusiva no Estado como protetor ou administrador do “comum”.

A obrigação, no paradigma do “comum”, não advém de uma fonte externa com autoridade a qual elimina a liberdade. A obrigação é originária da coobrigação oriunda da participação e, portanto, da instituição do “Direito Comum”, não do “Direito Legislativo”. Esse emana de uma autoridade soberana ou da vontade de um legislador, não da ação. Sobre tal interpretação, Dardot e Laval acreditam se contrapor a Arendt, quando a autora argumenta que as leis não eram resultado da ação dos cidadãos, mas de um legislador externo. Portanto, as leis são obras, típicas do homo faber, não dos indivíduos que atuam em comum. Trata-se de produção, pois o legislador “fabrica” as condições de possibilidade da liberdade política que exige um espaço permanente e capaz de garantir a liberdade e a igualdade frente à irrupção do “novo”, do “inédito”7.

Uma teoria do “comum” não pode se justificar pelo recurso do Estado, muito menos do Mercado e, nesse sentido, deve se fundar num paradigma que não o da propriedade. A propriedade exclui as coisas do comum e, desde os romanos, constitui o estatuto do Direito, isto é, os direitos são justificados e consolidados a partir do direito de propriedade que se supõe inalienável. Um dos postulados modernos para a defesa do direito de propriedade é a hipótese do “homem racional egoísta” ou do “homem econômico”, a generalização do espírito de Lujín8: “cada indivíduo é estimulado a se comportar de forma egoísta para maximizar seu ganho, sem se preocupar com o preço que será pago coletivamente em consequência do seu comportamento” (Dardot e Laval, 2017, p.154). Tal concepção pode justificar tanto a preponderância do Mercado, como a do Estado proprietário, produtor e garantidor do comum e daqueles bens que o Mercado é incapaz de produzir. Porém, o “homem racional egoísta” ou o “homem econômico” não é um dado natural, uma essência. É um produto social, consequência da educação e do desenvolvimento capitalista (Dardot e Laval, 2017, p.155).

É difícil pensar no comum se se mantiver a absolutização do direito de propriedade. Porque o capitalismo necessita ampliar a apropriação da vida, não reconhece limites. É por isso que Boltanski e Chiapello (2009) argumentam que se trata de um sistema absurdo, tendo em vista que se mantém pelo regime contábil do lucro, cuja saciedade é impossível. O imperialismo é a forma “política” do capitalismo. Atualmente, o advento do acionista, do capitalismo financeiro, dos juros da dívida pública e da apropriação da inovação por meio das patentes.

Dardot e Laval recorrem então a Proudhon, cuja ideia de que toda a propriedade é um roubo pressupõe que o capitalista não aufere seus lucros da “mais-valia” extraída do trabalho individual, mas da “força coletiva” produtora. Essa se refere às relações estabelecidas, à diversidade das funções e à harmonia entre as trocas e as relações. A propriedade é um “instrumento jurídico de apropriação privada dos frutos do trabalho comum” (Dardot e Laval, 2017, p.219) e o capitalismo e o comunismo se assemelham por se apropriarem dessa força e de seus resultados, destituindo-os do uso comum. O conhecimento, portanto, mesmo quando produzido individualmente é sempre resultado de um coletivo, de relações estabelecidas, no passado e no presente, cuja transmissão vincula pessoas e gerações. A inovação não acontece do nada, mas surge na medida em que o criador (ou os criadores) pressupõe os conhecimentos existentes, de uso comum. O capitalismo, por seu turno, tem a tendência de mobilizar a ciência para seu próprio proveito e, por isso, há que se preservar os lugares privilegiados da ciência contra a lógica apropriadora do capital, mas também do Estado, financiador e, mesmo que seja defensor do “público”, isso não significa que não se aproprie do comum. Por fim, “se o comum tiver de ser instituído, ele só poderá sê-lo como inapropriável - em hipótese alguma como objeto de um direito de propriedade” (Dardot e Laval, 2017, p.245).

Apesar dessas críticas, não entendo que Dardot e Laval defendam o fim de toda propriedade, em especial, da propriedade privada, mas a limitação desta pelo direito instituído pela “ação comum”. Contudo, a reflexão se limita a isso. E não há nada na propriedade ou no privado passível de defesa diante de tal crítica? Penso que Arendt fornece indicativos interessantes para se pensar que não há mundo comum sem a existência de propriedade, especialmente porque a autora concebe a propriedade sem a vinculação ao capital ou ao capitalismo; isto é, por se fixar numa análise da propriedade pressupondo a apropriação no contexto do capitalismo, Dardot e Laval excluem um aspecto importante do privado que é a proteção em relação ao público e ao comum.

Para Arendt, a esfera privada possui uma dupla dimensão, negativa e positiva. A negativa tem o sentido de privação, ou seja, estar privado de coisas essenciais para a vida humana: “estar privado da realidade que provém de ser visto e ouvido pelos demais, estar privado de uma <<objetiva>> relação com os outros que provém de encontrar-se relacionado e separado deles através da existência de um mundo comum” (2005, p.78). Isso significa que a negatividade da esfera privada reside na comparação com a vida pública, no mundo comum. Os homens existem como singulares apenas quando aparecem num espaço público, constituindo a realidade. Aparecemos por meio do discurso e da ação e, ao mesmo tempo, constituímos um mundo ou construímo-lo fabricando. O privado é o lugar do labor, da sobrevivência, da manutenção da vida e da espécie. Laborando não somos únicos, mas exemplares, não distinguidos dos demais seres humanos.

Disso deriva o aspecto positivo da privatividade: em tal esfera os seres humanos se dedicam àquelas coisas que não podem aparecer em público com o risco de se perverterem ou perverterem a política, é o caso dos sentimentos ou das necessidades urgentes da vida. Não há uma existência total na esfera pública, no comum, que seja incorruptível. Nesse espaço somos julgados pelas aparências e, em se tratando de educação, o espaço privado é fundamental, pois significa cuidado e proteção. “No mundo público, comum a todos, as pessoas são levadas em conta”, diz Arendt (2007, p.236) e por isso as crianças precisam de um lugar em que possam, com segurança, crescer e ser amadas.

Arendt, distintamente de Dardot e Laval, pensa o conceito de propriedade restrito à esfera privada o que significa dizer que quando o Estado expropria não há, por consequência, a criação de uma propriedade pública, embora possivelmente estatal. Primeiro, pois “público” não tem, em Arendt, o pressuposto da propriedade, mas de lugar ou esfera da aparência, da relação, da comunicação. Em segundo lugar, as experiências totalitárias destruíram tanto a esfera privada quanto a vida pública: a realização do domínio total. O que restou aos indivíduos era a segurança da intimidade ou da consciência. Segundo Arendt, a esfera privada se define (ou se definiu) pela propriedade, cujo significado era, para os seres humanos, “ter um lugar em alguma parte concreta do mundo e, portanto, pertencer ao corpo político, quer dizer, ser o cabeça de uma das famílias que juntas formavam a esfera pública” (2005, p.80). Na experiência grega antiga, ser pobre não implicava não ser proprietário, visto que havia a distinção entre propriedade e riqueza que se perdeu com a Modernidade. A riqueza, por sua vez, nunca fora sagrada como a propriedade, muito menos sua substituta - havia escravos ou estrangeiros que eram ricos, mas não proprietários e, por isso, não poderiam participar da esfera pública, na qualidade de cidadãos. Com a Modernidade, como comentei, a propriedade se confundiu com a riqueza e essa se converteu em capital, podendo ser constantemente reinvestido sem vinculação com as necessidades, típicas do conceito anterior de propriedade.

Nesse contexto, houve o avanço do “social”, ou seja, a transformação do interesse privado em interesse público. Mas esse interesse do indivíduo proprietário, com a indistinção entre riqueza e propriedade, ameaça a existência da segunda, no sentido de que todos os cidadãos deveriam ter um lugar tangível e mundano para si mesmos (Arendt, 2005, p.85). Se há a priori a relevância da defesa da propriedade privada como o lugar possuído privadamente no mundo, tal propriedade escapa da ação comum instituinte no sentido criador, mas não no declarador. Especialmente, pois, a propriedade era uma das condições para a vida pública.

Se a esfera privada está relacionada à propriedade, a esfera pública é o próprio mundo, enquanto comum a todos (Arendt, 2005, p.73). Tal como para os pensadores franceses, “comum” (koinon) difere do privado (espaço apropriado). Contudo, em Arendt, seu sentido é mais restrito, visto que o “comum”, relativo ao “mundo” não implica a natureza ou a Terra. Diz respeito aos objetos fabricados pelas mãos dos homens e aos assuntos humanos. É a artificialidade contra a naturalidade. “Mundo comum” é o que une e separa, permitindo que entre os atores haja um espaço-entre, sem que os indivíduos sejam exprimidos uns aos outros, não se identificando. É esse “comum” que falta na sociedade de massas e no totalitarismo. “Comum”, segundo Arendt, “é o que temos em comum não somente com nossos contemporâneos, mas também com aqueles que estiveram antes e com os que virão depois de nós” (2005, p.75). O “comum” rompe as barreiras temporais e não as submete como o neoliberalismo (Dardot e Laval, 2017, p.12). Por isso, ele existe antes da chegada das novas gerações e existirá depois de sua partida. Isso não impede que o comum possa ser criado, pela fabricação, ou instituído/constituído pela ação comum e legado às gerações vindouras.

Na perspectiva de Dardot e Laval, assim como de Arendt, não há um sujeito do comum, do mesmo modo que ele não fica a total disposição do Estado. Apesar de o Estado poder administrá-lo, em Arendt. Administrar não é apropriar-se, mas garantir que o “comum”, instituído pela ação, seja um também um espaço duradouro e permanente capaz de resistir à chegada e a saída dos seres humanos. Portanto, como argumentei, o comum deve ser o inapropriável, não natural. Dardot e Laval distinguem, assim, o “ser-comum” do “ser-em-comum”. O primeiro deriva-se de uma ontologia, o segundo de uma prática. “Ser-em-comum” é um princípio de ativação da política e da limitação do político, como apropriação do Estado. É ser com, numa relação, não um vínculo externo. A existência do comum depende da política e a política depende do comum. Não há comum sem ação política, do mesmo modo, não há política que não institua o comum para se preservar. O comum, portanto, é um princípio de ação.

Proposições pedagógico-educacionais acerca do “comum” como princípio

No contexto de ataque ao “comum” a escola pública sofre interferências e demandas que a destituem de seu sentido, qual seja, introduzir as “novas gerações” no “mundo”, no “comum”, na medida em que as crianças e jovens nascem no mundo e para o mundo, segundo Arendt (2007, p.223). Se as “novas gerações” são novas em relação a si mesmas e ao mundo, a escola deve inseri-las nas linguagens, hábitos, tradições e heranças que lhes antecedem e que continuarão a existir depois delas (Almeida, 2011, p.21). Mas, o “mundo”, enquanto “comum”, ou está sendo apropriado pelo Estado ou pelo Mercado, na atividade privativa dos indivíduos e suas empresas. O neoliberalismo é a racionalidade que assemelha as atividades do Estado e do Mercado apropriador. Quais as consequências disso para a educação?

A generalização da concorrência e a ultra-responsabilização dos indivíduos por sua sorte repercutem educacionalmente quando as relações pedagógicas e a estrutura escolar não apenas legitimam a competição, por meio dos exames e das classificações, como atuam favorecendo as consequências da competição, da seleção, da hierarquização e, assim, da exclusão, da marginalização e do fracasso. E o problema se agudiza quando a justificativa para o estado de coisas naturaliza as desigualdades e as injustiças desse “sistema” ou, ainda, simplesmente quando educadores, coordenadores e diretores “dão de ombros” ante os resultados dos “insatisfatórios”, como se a culpa fosse exclusivamente dos alunos. Para Andreas Gruschka, a sociedade burguesa instaura um princípio de frieza que auxilia os indivíduos a “sobreviverem” em suas condições e a aceitar que as promessas do Iluminismo se contradigam com as práticas. “Sem o distanciamento da desgraça no nosso entorno, produzido pela indiferença, não se pode ter a própria felicidade” (Gruschka, 2014, p.103). Os professores, educadores, equipe diretiva e os cidadãos, são vítimas e carrascos da frieza, da indiferença e da exclusão. Há tempos a educação abandonou a ideia comeniana segundo a qual “quem frequenta as escolas, que nelas permaneça até se tornar um homem instruído” (1966, p.225) e que “nenhum dos alunos seja esquecido e todos sejam instruídos” (1966, p.287).

Os professores estão cada vez mais abarrotados de coisas para “fazer”: preencher cadernos, enviar relatórios, corrigir exercícios e avaliações, planejar aulas. Além das injunções dos exames externos e do considerável número de alunos em sala de aula. Dado diagnóstico de que um aluno não aprendeu, o que costuma acontecer? Tendencialmente nada, o conteúdo segue. A consequência previsível é a reprovação. Os exames, as reprovações e o fracasso escolar constituem uma linguagem escolar típica de uma sociedade excludente, desigual, regida pelo princípio da competição, da hipótese do egoísmo racional e, portanto, da frieza. Assim, qual o sentido da educação frente ao avanço neoliberal? Orientado por essa questão e com base no princípio do “comum” passamos, na sequência, a apresentar um conjunto de proposições de cunho pedagógico-educacional.

Proposição 1: o “comum” é instituído pela “ação”. A ação pedagógica pode restituir o comum ao “livre uso”. Se a tarefa da educação, segundo Hannah Arendt, é introduzir as novas gerações no mundo, como se realiza essa introdução? “Com a palavra e o ato nos inserimos no mundo humano” (Arendt, 2005, p.206). E o que “pomos em comum” são as palavras e os atos. Assim, cabe à escola introduzir os estudantes no mundo por meio da palavra e da ação e isso significa que aos alunos o mundo é apresentado no modo de “conteúdos” (re)significados quando se atua com e sobre eles. Para Masschelein e Simons (2013, p.40, grifos dos autores), “o importante aqui é que são precisamente essas coisas públicas [...] que proporcionam à geração mais jovem a oportunidade de experimentar a si mesma como nova geração”. Por isso, conforme os autores, a escola “profana”, ou seja, desprivatiza, dessacraliza o que era acesso de poucos e os torna públicos, comuns, na educação. Deste modo, a “ação pedagógica” institui “comuns” ou ainda, restitui o apropriado ao “livre uso”.

É o “comum” que se interpõe entre, isto é, entre os alunos e os professores. Na escola, o “comum” instituído reafirma a certeza de que não há conhecimento apropriável, na medida em que os saberes, as práticas e os modos de fazer são uma herança constituída na relação, na “força coletiva”, para usar a apropriação que Dardot e Laval (2017) fazem de Proudhon. A propriedade e, em especial, a propriedade intelectual, “é o instrumento jurídico da apropriação privada dos frutos do trabalho em comum” (Dardot e Laval, 2017, p.219). Nesse sentido, a desprivatização realizada na escola significa que o conteúdo privatizado na sociedade se converte em “matéria” na qual os alunos se relacionarão e ressignificarão, darão novas formas e usos e experimentarão a si mesmos como novidade. “A comunidade dos alunos é uma comunidade única; é uma comunidade de pessoas que não têm nada (ainda) em comum, mas, por confrontarem o que é fornecido, os seus membros podem experimentar o que significa compartilhar alguma coisa” (Masschelein e Simons, 2013, p.85). Daí, também, podem ser criado outros “comuns”.

Proposição 2: o “comum” não pode ser pensado na lógica da apropriação. O mundo comum não é apropriável. A alternativa ao neoliberalismo é a defesa do “comum” como inapropriável. O “comum” é uma construção e uma instituição dos homens. Portanto, não diz respeito a nenhum indivíduo particular com qualquer direito privado sobre o instituído em comum. As palavras, os atos, as ideias, os conhecimentos, os pensamentos, as práticas e os fazeres não são atrelados logicamente ao conceito de propriedade. A prática do “comum” não é apenas política ou econômica. Para Dardot e Laval, “diz respeito a todas as esferas sociais, e não só às atividades políticas, no sentido parlamentar e partidário do termo, nem às atividades econômicas apenas” (2017, p.486). A “política comum” acontece por todas as partes, em todos os “domínios”. Portanto, por que seria diferente na educação? Se a educação “é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele” e, ao mesmo tempo, “é onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo” (Arendt, 2007, p.247), “amar ao mundo” (amor mundi) não é desejar reapropriar-se dele. Amar o mundo e as crianças implica preservar, conservar, cuidar e realizar a introdução no mundo, dizendo e ensinado à criança: “isso é o nosso mundo” (Arendt, 2007, p.239). O fato de esse ser o nosso mundo não quer dizer que se trata de uma propriedade, justificando a interferência e apropriação do Estado. É nosso porque nos foi legado pelas gerações de outrora e foi construído e constituído pressupondo o comum.

Proposição 3: o “comum” não é um “bem”. A prática pedagógica não é reapropriação, mas criação, “pôr em comum”. Quando nos referimos a “bem público”, “bem comum”, estamos pressupondo a ideia de propriedade. O “bem” deriva de uma ontologia, da hipótese de que existem coisas que por sua natureza são “bens” comuns ou públicos - só por meio de uma ontologia (ou metafísica) seria possível preservar os comuns da apropriação. Se há um “bem comum”, ou sua efetividade demanda uma “declaração” ou uma atividade legislativa, mas não a ação. A ideia de “bem” limita a priori a ação pedagógica, pois a ação se refere a iniciar, começar, introduzir o novo e o inédito. Na lógica do “individualismo proprietário” há a retração do comum, pois está relacionada à “bipolarização da doutrina jurídica e do pensamento político acerca do ‘público’ e do ‘privado’” (Dardot e Laval, 2017, p.272). A ação pedagógica rompe com a bipolaridade na medida em que a ação é pôr em comum palavras, ações e pensamentos. É do pressuposto de que alunos e professores possam agir (e não apenas se comportar ou “sorver”, “absorver”, contemplar) que a educação pode introduzir as “novas gerações” no “mundo comum”, seja restituindo o “uso livre”, seja criando, instituindo “comuns pedagógicos”. A ideia de “bem comum” depende da definição de sábios, de especialistas, de sacerdotes sobre quais coisas são “comuns” ou, educacionalmente falando, quais “conteúdos” podem ser estudados na escola. Mas, lembra Arendt, a educação não é um assunto exclusivo de especialistas (2007, p.222) e, também, pressupor a priori “coisas” ou “bens” comuns, exclusivamente, pode ser a tentativa de arrancar das novas gerações a oportunidade face ao novo (Arendt, 2007, p.226) e a instituição do comum.

Proposição 4: o comum como princípio pedagógico elimina a centralidade do Estado como definidor dos conteúdos. O “mínimo” de uma base curricular deve ser instituído pela “ação comum”, num debate entre os cidadãos, pois a educação, como argumentei acima, não é uma questão apenas de especialistas. Diz respeito à introdução das “novas gerações” no mundo, cuja responsabilidade é dos adultos. O fundamento da autoridade dos adultos em geral e dos professores em particular é, em primeiro lugar, o maior conhecimento, ou seja, aquele que sabe mais e por isso pode ensinar (Arendt, 2007, p.231). Em segundo lugar, a autoridade deriva da dupla responsabilidade, “pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo” (Arendt, 2007, p.235). Abandonar as crianças à própria sorte ou deixar tudo nas mãos de especialistas ou do Estado é não assumir a responsabilidade de cada adulto pelas novas gerações e pela continuidade do mundo. Por isso, a educação exige um esforço coletivo. Ao Estado cabe garantir a instituição do comum, gerir ou administrar, mas não instituir.

Para Dardot e Laval, “é sumamente decisivo que o uso comum seja vinculado à codecisão relativa às regras e à coobrigação resultante dela” (2017, p.504). Para ser “comum” os interessados devem participar de sua instituição e, no caso do Direito, da sua elaboração e só por isso o Direito é capaz de obrigar, porque se coobriga, ou seja, se obriga com. Educacionalmente, os debates surgem de experiências comuns. No Brasil, a experiência do Orçamento Participativo na Prefeitura de Porto Alegre nos anos 1990 ou, recentemente, dos conselhos locais de discussão sobre as metas e os conteúdos da educação básica é um exemplo interessante de atividade política não estatal que obriga os cidadãos mutuamente e, também, ao Estado como administrador. É na “práxis instituinte”, e não na crença das eleições como último recurso cidadão, que podemos fazer frente aos avanços empresariais e privados na educação. “As pessoas produzem regras de direito por meio de sua prática coletiva, não só independente das leis existentes, mas, se for o caso, contra elas”, argumentam Dardot e Laval (2017, p.430). Em determinados casos de exceção, como o estado atual no Brasil, a “ação comum” na educação é uma desobediência civil.

Proposição 5: o “comum” como princípio pedagógico se fundamenta na “pluralidade humana”, na condição, e não na hipótese de um “homem racional egoísta” ou “homem econômico”. Já foi tratado da hipótese do homem como um ser racional egoísta que justificaria a ampliação do Mercado, do léxico gerencial, em detrimento das políticas públicas e da atuação do Estado assistencial. O “homem econômico”, segundo Dardot e Laval (2017, p.154), “é estimulado a se comportar de forma egoísta para maximizar seu ganho, sem se preocupar com o preço que será pago coletivamente em consequência de seu comportamento”. É sob essa ideia que se estrutura a sociedade burguesa, dos indivíduos que atuam considerando apenas seus interesses almejando maximizar os lucros. É uma postura que despreza o ser humano, destrói a solidariedade, degrada as habilidades, instaura o princípio da concorrência que desestimula a compaixão e causa danos irreversíveis ao meio ambiente (Gruschka, 2014, p.37).

Para lidar diante das injustiças, da qual o homem é culpado, a sociedade burguesa produz uma normatividade calcada no comportamento frio que, em vários casos, se auto-justifica. Por exemplo, a “frieza remete à necessidade de acreditar no progresso para que o valor que os homens devem pagar pelo seu progresso não penetre em sua consciência” (Gruschka, 2014, p.49). É a contradição inerente à sociedade burguesa, que prometeu a igualdade, a liberdade e a fraternidade, mas que, sob a atuação do “individualismo possessivo”, valora o progresso, a liberdade individual, a igualdade jurídica competitiva dos atores no contexto de mercado e se esquece da fraternidade. E se o “homem econômico” necessita de um ambiente competitivo para se desenvolver e a sociedade para progredir, “onde a princípio tudo concorre entre si, tudo está disponível para ser adquirido e trocado, o valor intrínseco das coisas e do trabalho se desfaz” (Gruschka, 2014, p.75).

Consequentemente, a educação se converte numa mercadoria, ou seja, é útil e passível de ser trocada (por dinheiro). Os alunos e pais são os consumidores e a escola se torna uma empresa e os professores, funcionários. Esse modelo educativo, que ganha adeptos importantes nos organismos internacionais (Unesco, Banco Mundial, FMI, por exemplo) repercute quando a educação é individualizada. É a “sociedade aprendente”, na qual “ensinar foi redefinido como apoiar ou facilitar a aprendizagem, assim como a educação é agora frequentemente descrita como propiciadora de oportunidades ou experiências de aprendizagem” (Biesta, 2013, p.32). Nessa lógica, os indivíduos são paulatinamente responsabilizados por sua “educação”, já que a aprendizagem é para toda a vida. Não tem mais sentido a escola se pautar na ideia comeniana, citada acima, de que nenhum aluno sairá da escola sem aprender. Agora, ele deve sair sabendo “aprender a aprender”, mesmo que não tenha aprendido nada além disso.

Porém, o “homem econômico” não é mais um dado natural, oriundo de uma metafísica, do mesmo modo que o direito à propriedade não se fundamenta mais num direito natural. Por isso, o neoliberalismo precisa, mais do que nunca, de uma agenda política visando seu estabelecimento e permanência (Darodt e Laval, 2016, p.82). Ademais, “a adaptação exige novos homens, dotados de qualidades não apenas diferentes, mas também superiores das que dispunham os antigos homens” (Dardot e Laval, 2016, p.91). Em suma, “a política neoliberal deve mudar o próprio homem” (Dardot e Laval, 2016, p.91), para tanto, a educação é fundamental.

O “comum” como princípio pedagógico possibilita pensar numa outra educação, fundada na pluralidade humana, no “fato de que os homens, não o Homem, vivam na Terra e habitem o mundo” (Arendt, 2005, p.35). “Comum”, nesse sentido não se refere a reduzir a pluralidade, as individualidades e os pontos de vista a um “denominador comum”, no sentido de geral que exclui o “acidental” e as “particularidades”. Pelo contrário, se o “comum” é instituído e constituído pela ação, esta só acontece “entre” os homens, na condição da pluralidade. Pedagogicamente, se trata de introduzir os estudantes no mundo e pela palavra e ação indagar e buscar os sentidos possíveis do mundo, instituindo o “nosso mundo”. É o aprendizado do “pôr em comum”. Para Almeida (2011, p.192), “a dignidade humana não depende de nossa competência de executar qualquer coisa, mas de nascermos como seres singulares, capazes de iniciar algo novo, da possibilidade de agir e nos revelarmos”.

A ideologia do “homem econômico” é anti-mundo e anti-educacional. Primeiro, porque não há O Homem, mas os homens. Em segundo lugar, a existência dos homens não se reduz à “vida” e o sentido da educação deriva do “mundo”. “Vida”, para Arendt, concerne à condição relacionada ao labor, atividade pela qual o homem sobrevive e busca a manutenção da espécie num metabolismo constante com a natureza. O “homem econômico” quer sobreviver, inclusive no sentido darwinista da “luta pela sobrevivência”. E, quando labora, o homem não é singular, mas exemplar de uma espécie. Laborando, ele não preserva o mundo e a educação laboral não introduz os homens no mundo, cuja condição é a “natalidade”, mas na “vida”. Não há ação, mas comportamentos, savoir-faire. Nesse contexto, o único necessário é trabalhar, visando a sobrevivência e o aumento do capital (ilimitado).

Considerações finais

Almejando extrair consequências pedagógico-educacionais dos estudos de Pierre Dardot e Christian Laval acerca do “comum” como princípio de ação, elaboramos o presente artigo não simplesmente reconstruindo os argumentos dos autores, mas, principalmente, buscando um potencial reflexivo para investigar acerca do sentido da educação diante dos avanços da “racionalidade neoliberal”. Nesse sentido, também estabelecemos um confronto crítico entre Dardot e Laval e Hannah Arendt, visto que há interpretações dos pensadores franceses que não são, segundo a argumentação que construímos, coerentes com nossa interpretação da filósofa. O mesmo ocorre com a relevância da propriedade e da esfera privada, elementos importantes para a existência do comum e, principalmente, para o desenvolvimento e introdução das crianças no mundo.

O primeiro contraponto entre Dardot e Laval e Arendt se refere ao argumento de que a autora não concebeu o Direito como realização, criação ou produção de uma atividade comum (ou, especificamente, da ação), mas oriundo de uma atividade do homo faber, não política. Ou seja, o legislador e o político são dois personagens distintos. O primeiro cria as condições para a política acontecer. O segundo atua sob o “edifício erigido”. Argumentamos que essa interpretação é limitada, tendo em vista que depois da publicação de A Condição Humana, Arendt retomará a questão do Direito (e da Lei), especialmente em Sobre a Revolução e num artigo acerca da desobediência civil (publicado em Crises da República). Vimos que a mudança é sempre resultado de uma ação extra-legal e, portanto, a ação pode “provocar” alterações no Direito e que esse se fundamenta também na capacidade humana de fazer promessas. Disso deriva que a fonte do Direito e do Poder não é a mesma, aspecto que distancia Arendt de Dardot e Laval. Para a autora, a ação gera poder e funda corpos políticos. Mas, o poder não institui o Direito, embora a ação possa mobilizar a criação dele (visto que agir é diferente de fazer ou fabricar). O fundamento do Direito não pode ser a ação, porque o espaço político necessita da estabilidade para que a ação tenha um espaço e tempos seguros em que possa acontecer. A estabilidade, a segurança e a durabilidade são possíveis na medida em que a fonte do Direito é a autoridade e é por isso que se pode acreditar na possibilidade da constituição do comum sem a exigência do “começar sempre outra vez”. A terceira dissonância entre os autores franceses e Arendt refere-se à distinção entre “público” e “comum”, por vezes tratados como sinônimos para a segunda, é distinto para Dardot e Laval. Para esses, o comum é mais abrangente e não se limita ao Estado e a sua administração. O público é o apropriado pelo Estado, daí o problema. A questão central é superar o modo de pensar, no direito (e na educação!), que centraliza (ou absolutiza) o direito de propriedade como direito mais fundamental. É tentando ir além da dicotomia público e privado, do Direito Romano, que Dardot e Laval pensam a emergência do “comum”. Público, em Arendt, não é a propriedade. Falar de uma “propriedade pública” seria uma contradição. A propriedade sempre é privada. É o espaço que os homens possuem separadamente, exclusivamente, em relação ao mundo comum. Como argumentamos no início dessas considerações, Arendt não entende o “privado” e a “propriedade” somente pelo viés negativo. E como Dardot e Laval não atentam para a relevância da vida privada e da propriedade privada, extrair consequências lógicas para a educação não seria sem problemas, por isso a relevância do presente estudo.

Por fim, apresentamos cinco proposições pedagógico-educacionais relacionadas ao “comum” como princípio de ação. A “ação pedagógica” pode restituir ou instituir o comum ao “livre uso”, “profanando” o “sagrado”, desprivatizando o que fora apropriado. Isso é importante, pois a educação se refere à introdução dos “novos” no mundo e essa acontece pela ação e pelo discurso. Agir em relação ao mundo, apresentado como “conteúdos”, implica experimentar a si mesmo e ao mundo como novidade. Assim, a escola é o espaço e o tempo (skholé) privilegiado para o “comum” e sua instituição. Dado que a escola realiza a “desprivatização” e reestabelece ou estabelece o “comum”, a “propriedade intelectual”, na forma de “patentes” é um absurdo. Não há conhecimento, pensamento, obra, arte ou produção que não pressuponha outros seres humanos e, por conseguinte, a pluralidade. Disso resulta nossa crítica, e a de Dardot e Laval, à hipótese neoliberal do “homem racional egoísta” que justifica a retração do Estado no que diz respeito aos Direitos Sociais (a educação, principalmente) e a apropriação do “comum” pelo mercado e seus agentes. Portanto, a prática pedagógica não é a realização da reapropriação do mundo, mas a criação e a instituição do comum no momento em que se “põe em comum” e se atua com palavras e atos; e, ademais, só agimos em comum e em relação ao mundo comum.

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3 A tipologia dos discursos que legitimam o novo “espírito do capitalismo” se baseia na “cidade por projetos” (cité par projet), na perspectiva de Luc Boltanski e Ève Chiapello (2009). Tais discursos apresentam como o “estado de grande” o indivíduo conexionista, flexível, maleável, ativo, engajável e sempre disposto a se inserir em novos projetos. Ademais, “ele é sempre capaz de otimizar o uso que faz de seu recurso mais raro, o tempo, escolhendo com discernimento as relações e, principalmente, evitando conectar-se a pessoas que, ocupando posições próximas, podem apenas passar-lhe informações e elos redundantes” (Boltanski e Chiapello, 2009, p.145). Trata-se de reformar o código do trabalho para garantir o desmantelamento das representações coletivas e ultra-responsabilizar os indivíduos por sua própria sorte, já que numa situação de fracasso a análise deve recair somente no que “eu fiz de errado” e não nas condições sociais ou políticas que podem ser (ou são) injustas.

4Além das reformas apresentadas pelo governo neoliberal atualmente em posse do poder no Brasil, ocorrem as privatizações de portos e aeroportos, a concessão dos transportes públicos à iniciativa privada, a destruição das empresas estatais (para justificar a necessidade de vendê-las), a privatização da água, do petróleo, da assistência social, da educação e a introdução de mecanismos de concorrência e critérios de rentabilidade nos serviços públicos. E contra aos crédulos que opõe Mercado e Estado, as “reformas” são uma onda de apropriação das riquezas obradas pelo poder público em conjunto com as forças privadas (Dardot e Laval, 2017, p.105).

5 O postulado da “soberania” é o pressuposto de quem estipulará o que é da “posse comum” ou “bem comum”. O “bem comum” pode ser a finalidade do governo (representante da soberania ou o próprio soberano que interpreta a “vontade geral”). Não há nessa ideia nenhum pressuposto democrático ou que exija, para se efetivar, a participação, a ação comum. A “vontade geral”, como argumenta Arendt, elimina a pluralidade humana, condição da política, assim como o consentimento pela ideia de uma vontade una. E a vontade una e a soberania significou a perdição na Revolução Francesa (Arendt, 2014, p.133); em contrapartida, “a grande inovação política americana [...] foi a consequente abolição da soberania dentro do corpo político da república” (Arendt, 2014, p.248).

6 Todas as traduções são de nossa autoria.

7 A interpretação dos autores franceses só tem sentido se não se considerar os livros Crises da República e Sobre a Revolução, nos quais Arendt amplia sua compreensão acerca do Direito (ou das leis), articulando-o à capacidade de fazer promessas (Arendt, 2013) e à possibilidade de dissentir na ação em comum. Isso mereceria um capítulo a parte em nosso artigo, mas dado o espaço não é possível. Assim, apenas queremos indicar que nossa interpretação acerca desse aspecto, em Arendt, difere de Dardot e Laval - embora isso não altere em nada a teoria do Comum, dado que os autores supracitados poderiam estar fazendo uma apropriação ativa para clarificar seus argumentos.

8 Piotr Pietróvitch Lújin, personagem dostoievskiano de Crime e castigo. Nesse romance, Lújin representa o típico burguês, homem de negócios, de ação e ocupado (2006, p.50), cuja antítese é Rodion Raskólnikov, o protagonista. Numa discussão sobre as ideias progressistas na Rússia, Lújin, baseado numa “verdade econômica”, comenta: “a ciência diz: ‛ama acima de tudo a ti mesmo, porque tudo no mundo está fundado no interesse pessoal’. Se amas apenas a ti mesmo, realizas os teus negócios da forma adequada e ficas com o cafetã inteiro” (Dostoiévski, 2006, p.162). Na sequência da discussão, os debatedores extraem consequências dessa ideologia, em especial, a justificação do crime.

Recebido: 13 de Agosto de 2018; Aceito: 03 de Janeiro de 2019

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