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Educação UNISINOS

On-line version ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.23 no.3 São Leopoldo July/Sept 2019  Epub May 04, 2020

https://doi.org/10.4013/edu.2019.233.05 

Artigos

A extensão da unidocência no ensino primário em Angola: implicações para a qualidade de ensino

The extension of unidentified primary education in Angola: implications for the quality of teaching

António Luís Julião1 

1 Especialização em Desenvolvimento Curricular e Inovação Educativa pela Universidade Katyavala Bwila (UKB), Angola-Benguela. juliaoantonioluis23@gmail.com


Resumo

Este texto, que apresenta uma discussão crítica e teórica, é um recorte de uma pesquisa desenvolvida no âmbito do mestrado em Educação, com foco no impacto da unidocência na qualidade de ensino em Angola, procurando gerar novas lentes de compreensão sobre esse fenómeno educativo controverso. O estudo é de natureza qualitativa e os dados foram obtidos mediante leitura heurística da documentação relacionada ao tema e analisados na base dos pressupostos fundados na teoria de Bardin (2006), dialogando com as contribuições teóricas de Isaías (2013), Samuels (2011), Leite (2000), e Teodoro (1994). Os resultados indicam que a ausência de diálogo entre a administração central e os executores das políticas educativas condiciona a concretização dos objectivos traçados, alimentando comportamentos que fazem um viés à qualidade de ensino. Além disso, identificou-se a necessidade de um alinhamento das políticas de formação inicial dos professores às reais necessidades educativas do país.

Palavras-chave: Política educativa; Unidocência; Professores; Qualidade de ensino

Abstract

This text, which presents a critical and theoretical discussion, is a cut of a research developed within the scope of the masters in education, focusing on the impact of unidetifying quality teaching in Angola, seeking to generate new lenses of understanding about this controversial educational phenomenon. The study is qualitative in nature and the data were obtained through heuristic reading of the documentation related to the subject and analyzed considering the assumptions of Bardin´s theory (2006), dialoguing with the theoretical contributions of Isaiah (2013), Samuels (2011), Leite (2000), and Teodoro (1994). The results indicate that the absence of dialogue between the central administration and the executors of educational policies conditions the achievement of the objectives set, feeding behaviors that bias the teaching quality. In addition, the need was identified for aligning initial teacher training policies with the actual educational needs of the country.

Keywords: Educational policy; Unity; Teachers; Quality of teaching

Introdução

A República de Angola é um País da costa ocidental da África austral, cujas fronteiras foram definidas no fim do século XIX. É o terceiro maior país da África Austral, com uma superfície territorial de 1.246.700 km quadrados, incluindo o enclave costeiro de Cabinda, que se encontra separado do resto do país por uma faixa de território de cerca de cinquenta quilómetros, segundo o Instituto Nacional de investigação e desenvolvimento da educação (INIDE, 2003). É um país que apesar de ser um espaço multicultural, a recente Constituição da República (Angola, 2010) reconhece apenas o português como a língua oficial, língua de prestígio, da burocracia, do ensino e da unidade social.

Um país como Angola que saiu de um conflito armado que durou mais de 20 anos, que destruiu o tecido social e económico, precisa promover o crescimento económico, modernizar o sistema social e político e fazer dos seus cidadãos membros participativos, críticos e responsáveis da sociedade. Daí a evocação da Educação como elemento-chave para sustentar as medidas a tomar.

Nessa ordem de ideias, o Sistema Educativo em Angola já soma sete reformas educativas: a de 1845 (oficialização do ensino em Angola); 1906 (após a conferência de Berlim); a de 1927 (fim da primeira República portuguesa e o surgimento do Estado Novo); a de 1933 (na sequência da nova constituição da República Portuguesa); a de 1967 (decreto-Lei de 9 de Julho de 1964, em que o ensino primário passou a abranger o ciclo elementar, de 1ª à 4ª classe e o ciclo complementar, envolvendo a 5ª e 6ªclasse); a de 1978 (a primeira do pós-independência, decorrente da 3ª revisão constitucional); e a de 2001 (após a promulgação da Lei de Bases do Sistema de Educação) (Zau, 2012, p. 143 apud Michigi, 2013). Esta última, pela sua actualidade e impacto no sistema educativo angolano e nas formas de trabalhar no ensino primário, constitui o foco da nossa discussão.

No actual sistema educativo angolano, o ensino primário é assegurado por um único professor em todas as disciplinas e classes, começando a leccionar para os alunos na 1ª classe seguindo até a 6ª classe. Logo, a relação entre professor e aluno estabelece-se na familiarização mútua, no ensino de valores, na troca de experiências, no conhecer das suas debilidades e potencialidades durante o processo de aprendizagem.

Em 1967 (decreto-Lei de 9 de Julho de 1964), em que o ensino primário passou a abranger o ciclo elementar, de 1ª a 4ª classe, os professores leccionavam apenas cinco disciplinas. A partir de 2001, data de aprovação do decreto-lei nº13/01 e o decreto-lei 17/16 de 7 de Outubro, que revoga o primeiro, e legitima o actual quadro educativo, a unidocência ficou estendida até a 6ª classe, passando um único professor a leccionar nove disciplinas com diferentes graus de complexidade. Será que a formação inicial dos professores forneceu/fornece competências necessárias para o alcance dos objectivos do ensino primário com duração de seis e com nove disciplinas? O que dizer da qualidade de outros subsistemas de ensino tendo como base o actual quadro do ensino primário? Não estará a pouca qualificação dos professores em leccionar as disciplinas de Língua Portuguesa, Educação Laboral, Educação Visual e Plástica, Educação Física, Educação Moral e Cívica e Educação Musical a condicionar a própria qualidade de ensino nos níveis subsequentes? É possível ser formado monoliticamente por especialidade, mas depois ser “obrigado” a leccionar nove disciplinas quase desconhecidas? Qual é o impacto da extensão da monodocência na qualidade de ensino e aprendizagem em Angola com esses condicionalismos?

O regime de extensão da unidocência tem vindo a registar várias dificuldades, que têm posto em causa o êxito e a qualidade do ensino no país. A falta de preparação adequada dos principais agentes curriculares aliada ao desalinhamento entre o design de formação docente e o figurino do ensino primário, o pouco domínio dos conteúdos e das metodologias de ensino, a questão da transição automática, a falta de condições de trabalho, a superlotação das turmas, que impede a atenção especial às particularidades individuais e a ausência dos pais no acompanhamento da aprendizagem dos filhos constituem principais pontos estranguladores do processo de ensino e aprendizagem na unidocência.

A promoção de um ensino de qualidade requer uma gestão optimizada e sérios investimentos no sector. Esses investimentos estão relacionados com a preparação séria e coerente de um corpo docente, condições salariais adequadas, estruturas escolares de qualidade, bibliotecas equipadas e laboratórios apetrechados. A qualidade do ensino tem uma estreita relação com essas variáveis, sendo que quando não as acautelamos o êxito do processo pode revelar-se condicionado.

A presente abordagem é uma hermenêutica ancorada nas racionalidades que estiveram subjacentes na concepção e implementação da actual Reforma Educativa, mormente no contexto da extensão do regime da unidocência até a 6ª classe. Esta mudança no sistema nacional, entronizada unilateralmente pelo poder central, visa na perspectiva desse, melhorar a qualidade de ensino, com vista à construção de um homem novo e um professorado preocupado com o ensino e aprendizagem, dando lugar ao aluno como o principal centro das atenções de todas as políticas e estratégias de ensino. Será que tem conseguido alcançar tais resultados? Que contributos a unidocência tem, de facto, oferecido à qualidade de ensino?

Assim, o desenvolvimento do artigo, tributa de um marco teórico, que parte da revisão da literatura sobre a unidocência, formação de professores e qualidade de ensino. Este texto, que apresenta uma discussão crítica e teórica, é um recorte de uma pesquisa desenvolvida no âmbito do mestrado em Educação, com foco no impacto da unidocência na qualidade de ensino em Angola, procurando gerar novas lentes de compreensão sobre esse fenómeno educativo controverso. O estudo é de natureza qualitativa e os dados foram obtidos mediante leitura heurística da documentação relacionada ao tema e analisados considerando os pressupostos da teoria fundamentada de Bardin (2006), dialogando com as contribuições teóricas de Isaías (2013), Leite (2000), Samuels (2011) e Teodoro (1994) e Michingi (2013).

O artigo está organizado em quatro sessões: inicialmente apresentamos um olhar panorâmico sobre o sistema educativo em Angola, em segundo abordamos de forma geral o regime da unidocência no ensino primário, fazendo uma breve comparação com o anterior regime, em que os professores eram bem preparados e valorizados para fazer frente ao sistema. No terceiro momento, retratamos a profissionalização docente em tempos de mudanças de política educativa, cuja tónica recai na necessidade de valorizar e repensar as politicas de formação dos professores tendo em conta o seu contexto real de trabalho. Finalmente, registarmos nossas reflexões sobre as relações entre a unidocência e a qualidade de ensino, realimentando a lógica do imperativo de uma sólida formação dos professores para tornar o regime e o sistema em geral mais produtivo e equanime ao nível de evolução que se reclama.

Breve olhar sobre o Sistema educativo angolano

Como já ficou delineado, a República de Angola é um País da costa ocidental de África, cujas fronteiras foram definidas no fim do século XIX. É o terceiro maior país da África Austral, com uma superfície territorial de 1.246.700 km quadrados, incluindo o enclave costeiro de Cabinda, que se encontra separado do resto do país por uma faixa de território de cerca de cinquenta quilómetros, segundo o Instituto Nacional de investigação e desenvolvimento da educação (INIDE, 2003). Angola foi durante cerca de cinco séculos uma colónia portuguesa e conquistou a sua independência a 11 de Novembro de 1975. A lei constitucional angolana consagra a educação como um direito para todos os cidadãos, independentemente do sexo, raça, etnia e crença religiosa.

O Sistema educativo angolano teve como ponto de partida o sistema educativo do tempo colonial. Este teve que ser adoptado pelo menos no primeiro ano lectivo da nova era. Como o país adoptou logo nos primeiros anos da sua independência uma ideologia político-económica diferente da anterior, viu-se na necessidade de igualmente mudar o seu sistema de educação. E fê-lo através de reformas educativas (Mineiro, 2007).

A primeira reforma esteve presente no período de 1978 a 2000. Tomaram-se várias medidas tendentes ao rompimento com a cultura educacional do tempo colonial, numa ideia de se desenvolver um sistema educacional voltado para a valorização da cultura nacional. Após a independência, Angola defrontou-se com a existência de um sistema educativo totalmente decalcado do modelo português com infra-estruturas escolares genericamente localizadas nos centros urbanos, com fraca acessibilidade e equidade relativamente às populações autóctones, de que resultavam em taxas de escolarização muito reduzidas e um elevado índice de analfabetismo que rondava os 85% da população2. Em 1977, dois anos depois da independência, Angola adoptou o seu sistema de educação, implementado em 1978, caracterizado essencialmente por uma maior oportunidade de acesso a educação e a continuação dos estudos, do alargamento da gratuitidade e o aperfeiçoamento permanente do pessoal docente.

A situação político-militar da época não favoreceu um percurso salutar no domínio da educação e indicadores de como existiam muitas anomalias referentes ao fraco aproveitamento escolar dos alunos, não se fizeram tardar. Do diagnóstico do sector realizado em 1986, “constatou-se que não existia uma determinação precisa sobre o perfil de saída do Ensino de Base (hoje ensino primário), a precária infra-estrutura escolar, o elevado nível de reprovação, a falta um sistema eficaz e dinâmico de actualização dos professores e “entre 1981 e 1984, mais de 10 mil professores nacionais abandonaram o Ministério de Educação, tendo como causa a situação político-militar, a baixa remuneração salarial e as precárias condições sociais.

Depois de uma larga recolha de opiniões, e um vasto trabalho do Ministério, as recomendações do diagnóstico influenciaram a elaboração da Lei n.º 13/01 de 31 de Dezembro de 2001, cujos objectivos assentam, na “expansão da rede escolar, na melhoria da qualidade de ensino, no reforço da eficácia do sistema de educação e na equidade do sistema de educação” (INIDE, 2009), que lança a base da segunda reforma de educação da Angola independente, que teve o seu início no ano lectivo de 2004 e cuja implementação experimental se estenderia até 2015.

Segundo o Ministério da Educação (2004), o plano de implementação progressiva da Reforma Educativa foi cronometrada em cinco fases, conforme o decreto de nº 2/05 de 14 de Janeiro. O artigo 2º, apresenta as fases da implementação progressiva do novo sistema de educação, a saber: 1. Preparação (Elaboração de novos planos e programas curriculares; Formação do pessoal docente e gestores escolares; Construção e reabilitação de estabelecimentos de ensino); 2. Experimentação (aplicar experimentalmente os novos planos e programas curriculares e os materiais pedagógicos em escolas seleccionadas); 3. Avaliação e Correcção (identificar insuficiências e a adequação dos currículos), 4. Generalização (aplicação dos novos currículos em todos os estabelecimentos de ensino não superior do País e 5. Avaliação Global (avaliação de todo o sistema de ensino, incluindo currículos, processo de ensino e aprendizagem, formação de professores, administração e gestão escolar e recursos materiais).

Importa relevar que a Reforma Educativa, mormente o regime de extensão da unidocência é bem-vindo, se tivermos em linha de conta que, perante os desafios da sociedade hodierna, é imperativo conceber uma educação interdisciplinar, qualitativa e diferenciada. Todavia, em nosso entender, tanto na primeira, quanto na segunda reforma, a foco da administração Central, pecando no elemento gestão, recaiu directamente sobre o produto e não sobre o capital humano para trabalhar no/com o sistema. O determinismo da administração central entendeu fazer um viés ao principio segundo o qual as mudanças são todas salutares, desde que acompanhadas de boas práticas de gestão. Por que razão importamos só os documentos e nos esquecemos das condições efectivas para a sua implementação realística em nosso contexto? Será este o modelo de reforma que precisamos para atingirmos a qualidade e a eficácia educativa? Será que o ensino primário, no actual modelo e contexto, garante a qualidade e eficácia dos subsistemas posteriores?

No meio de tudo isso, o que transparece é uma imagem de uma entidade cultural e política, fundada em seu próprio interesse e em pressupostos inventados e desenvolvidos para a sua adaptação, no sentido de instituir um clima organizacional controlado e elevar a sua hegemonia. Isso tudo tem a ver com o método dirigista de lógica directiva, porque se fosse construtivista, de lógica interactiva, ter-se-ia cuidado com os pressupostos básicos da gestão e criar-se-ia desde a concepção até à avaliação, uma dinâmica de integração relacional e responsabilidades partilhadas, evitando desfasamentos do projecto com o contexto de sua realização.

Como podemos notar acima, as entidades governativas, clamam pela qualidade de ensino e eficácia educativa (decreto-Lei 17/16 de 7 de Outubro), contudo, por erros de gestão, incoerência de precisão dos instrumentos de politicas de reformulação da educação, e segundo Relatório de Avaliação da Reforma Educativa do (MED, 2011), legitimaram e legitimam uma “inadequação” entre o nível de investimentos feitos no sector e as necessidades reais do sistema criado por si, consubstanciados pela falta de infra-estruturas escolares; a falta de um debate público sobre esse sistema; a formação competente e condições sociais dos professores; a falta de materiais didácticos, não permitindo a realização efectiva daquele intento. Entretanto, reformular o sistema de ensino, nem sempre é sinónimo de melhoria da educação, porém é resultado de convicções políticas. A análise da política educativa exige um grande sentido de equilíbrio que permita distinguir o ilusório e o possível na concretização das políticas enunciadas (Teodoro, 1994). Dito de outro modo, para a implementação de qualquer mudança educativa é preciso inventariar as reais possibilidades e impossibilidades humanas, materiais e contextuais, caso que em nosso entender, enviesado pelo seu método verticalista e inspirado na lógica da regulação transnacional3, a Administração Central, optou por um viés.

Inspirando-nos na compreensão sociológica da Escola de Pierre Bordieu, é evidente que a classe dominante não tem interesse na transformação histórica da escola (ela está empenhada na preservação de seu domínio, portanto apenas accionará mecanismos de adaptação que evitem a transformação). No entanto, o caminho é repleto de armadilhas, já que os mecanismos de adaptação accionados periodicamente a partir dos interesses dominantes podem ser confundidos com os anseios da classe dominada. Segundo a nova Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino (LBSE 17/16, de 7 de Outubro)4, a educação realiza-se através de um sistema estrutural e unificado, constituído pelos seguintes subsistemas: (i) Subsistema de educação pré-escolar; (ii) Subsistema de educação de ensino geral; (iii) Subsistema de ensino técnico-profissional; (iv) Subsistema de formação de professores; (v) Subsistema de educação de adultos; (vi) Subsistema de ensino superior. Assim, de um modo geral, com a LBSE 17/16 de 7 de Outubro consigna-se à educação um papel social e cultural de grande valor, esperando que os diferentes sistemas, actuando em rede, promovam o desenvolvimento harmonioso das capacidades físicas, intelectuais, morais, cívicas, estéticas e laborais da jovem geração, de modo contínuo e sistemático, elevando o seu nível científico, técnico e tecnológico, a fim de que os mesmos possam contribuir significativamente para o desenvolvimento socioeconómico, o bem-estar das populações e o progresso do País. Espera-se, ainda, à luz dessa lei, que a Educação contribua para a formação de indivíduos capazes de compreenderem os problemas nacionais, regionais e internacionais, de os abordarem de forma crítica e construtiva e que promova a sua participação activa na vida social, em sintonia com os demais elementos e princípios democráticos.

O Ensino Primário em Angola

Este nível de ensino, bastante diferente do da reforma anterior, que ia da 1.ª à 4:ª classe, comporta no actual sistema seis anos de estudos, isto é, da primeira à sexta classe, e já não é o único nível obrigatório de acordo com o artigo 12.º da LBSE (2016), pois a obrigatoriedade é extensiva também ao 1º ciclo. Tanto o ensino primário, quanto o 1º ciclo são gratuitos, segundo o artigo 11.º da mesma LBSE. A gratuitidade consiste na “isenção de qualquer pagamento pela inscrição, assistência às aulas e material escolar”, e isto é válido tanto para o ensino geral como para o subsistema de educação de adultos”. Embora, na prática assistamos situações e processos, que confundem o vigor desse normativo.

De acordo com o artigo 29.º da LBSE (2016), o ensino primário apresenta os seguintes objectivos:

  • a) Desenvolver a capacidade de aprendizagem, tendo em como meios básicos e domínio da leitura, da escrita e do cálculo;

  • b) Desenvolver e aperfeiçoar o domínio da comunicação e da expressão oral e escrita;

  • c) Aperfeiçoar hábitos, habilidades, capacidades e atitudes tendentes à socialização;

  • d) Proporcionar conhecimentos e capacidades de desenvolvimento das faculdades mentais;

  • e) Estimular o desenvolvimento de capacidades, habilidades e valores patrióticos, laborais, artísticos, cívicos, culturais, morais, éticos, estéticos e físicos;

  • f) Garantir a prática sistemática de expressão motora e de actividades desportivas para o aperfeiçoamento das habilidades motoras.

No sistema educativo anterior, o ensino primário ia até à 4.ª classe, o dito Primeiro nível daquele Sistema. A LBSE de 31 de Dezembro de 2001 e a LBSE 17/16 de 7 de Outubro de 2016, que revoga a primeira, estende o ensino primário até a 6.ª classe e sob o regime da unidocência. Porém é de sublinhar que as 5.ª e 6.ª classes têm nove disciplinas cada, que são: Língua Portuguesa, Matemática, Ciências da Natureza, História, Geografia, Educação Musical, Educação Física, Educação Moral e Cívica e Educação Manual Plástica.

Como a educação da população contribui decisiva e grandiosa para o futuro de um país, é aqui que se levanta a questão, se um mesmo professor faz face a nove disciplinas, fá-lo-á com o devido rigor e profissionalismo, que se reclamam? Se o legislador ordinário, numa atitude verticalista e anti-dialógica, assim o quis, o executor terá a mesma capacidade de resposta? Como é que um professor formando monoliticamente por especialidade poderá concretizar os objectivos do ensino primário com nove disciplinas e seis classes?

A Unidocência do Ensino primário em Angola

Para o Ministério da Educação (2001), a unidocência é um modelo de docência característico da organização pedagógica do ensino primário em que um só professor lecciona todas as áreas ou disciplinas curriculares. Segundo Isaías (2013), a unidocência é um regime educativo em que um mesmo educador, monitor, professor ou mestre, se ocupa de um certo grupo de educandos, alunos, estudantes, dando-lhes todas as disciplinas necessárias para a sua formação. Em outros termos, na unidocência existe apenas um único professor que lecciona todas as disciplinas e acompanha permanente em suas inúmeras actividades.

A monodocência em Angola, a nível do Ensino Primário, não é de facto uma inovação, sempre se praticou, ao longo das sete reformas educacionais observadas, desde a oficialização da educação em Angola, ocorrida em 1845, por Joaquim José Falcão, no tempo da rainha D. Maria II na Metrópole, e com Sá da Bandeira nas pastas da Marinha e Ultramar (Samuels, 2011). Em todas as reformas, exceptuando a sétima, no regime da unidocência os alunos da classe não eram tão numerosos e os professores eram especialmente preparados, com habilitações literárias elevadas e com remunerações salariais altamente dignas.

A sétima reforma, a de 2001 e segunda de Angola independente, ocorrida na sequência da promulgação da Lei de Bases do Sistema Educativo de 13/01, de 31 de Dezembro, impõe uma 5.ª e 6.ª classe obrigatórias, isto é, uma extensão sumária do ensino primário, por mais dois anos, e com ela a prática da unidocência. Como vimos acima, o determinismo do sistema político, numa lógica directiva, e com vista a melhorar da qualidade de ensino, na óptica da sua perpetuação no poder, ignorou elementos basilares de gestão na implementação da reforma educativa, mormente do regime da unidocência, descuidando-se da preparação especial dos professores destas últimas classes do ensino primário, bem como a questão remuneratória, tendo em vista o aumento de trabalho e de responsabilidade causados pelo incremento de novas disciplinas curriculares, das quais figuram a Educação Física, a Educação Manual Plástica e a Educação Musical. Tal evidência faz-nos acreditar que, a melhoria da qualidade de ensino que a reforma visa torna-se tendencialmente utópica, pois implementar novos processos, implica sempre acautelar-se nas questões de gestão, tanto do capital humano, quanto dos recursos materiais e infra-estruturais. Nesse particular, e se a nova Lei de Base do Sistema de Educativo nº 17/16 de 7 de Outubro de 2016, também aspira a melhoria da qualidade de ensino, será que já se pensou em reformar a actual reforma? O que se perderia em recuar para o regime da polidocência para as 5ª e 6ª Classes? Não estaríamos a repor a verdade educativa? Se não, por que razão não podemos reequacionar as linhas de formação dos professores para atender as reais necessidades do actual regime?

Segundo Isaías (2013, p. 47) a melhoria de qualidade e eficácia de ensino tem como variável independente a “valorização do professor”. E para que o professor seja valorizado dentro do contexto da unidocência do ensino primário, a sua formação deve lhe proporcionar uma sólida base para trabalhar nesta modalidade de ensino. Nessa perspectiva de ensino, o professor tem grandes responsabilidades pelos aspectos de desenvolvimento global da criança, não só a nível afectivo, mas também ao nível emocional, social e moral sendo o desenvolvimento intelectual o centro das suas atenções. Por seu turno, o ex-ministro da Educação e precursor da actual reforma educativa, Mpinda Simão (2004), afirma que os alunos do ensino primário não precisam de um professor especialista em áreas disciplinares. Eles precisam de um professor especialista no ensino dos fundamentos básicos de cada uma dessas disciplinas, das respectivas relações conceptuais e sua aplicação. Cumpre-nos dizer que nos marcos estritamente do poder político, a posição de Mpinda Simão é aceitável, contudo enviesada e incongruente, na medida em que, por um lado, a preponderância burocrática, por via de incremento regulatório, cria escolas monoliticamente em especialidades e agora, mimeticamente, exige que o professor seja cosmopolita e versátil. Como atingir os grandes objectivos do ensino primário com professores “curiosos”, despreparados, inocentes? Será que pensamos em improvisar a base de todos os subsistemas de ensino, colocando qualquer professor à frente dos alunos?

Como já era previsto, no Relatório de Balanço da Reforma Educativa (2011), afirma-se que a unidocência está a funcionar com problemas e lacunas dentro das limitações previstas nos documentos legislativos. As lacunas referem-se a debilidade na formação dos professores para esta modalidade de ensino; Escassez de estratégias diversificadas de ensino por parte dos professores; A inexistência de um sistema eficaz e dinâmico de superação dos docentes; Falta de incentivos e acções de valorização dos docentes entre outras condições. Se a promoção de um ensino de qualidade requer sérios investimentos, e esses investimentos continuam a ser adiados pela Administração Central, que acumulou para si essa tarefa (Artigo 21º, Constituição da República de Angola), será que a extensão da unidocência estará a contribuir para almejada melhoria da qualidade de ensino em Angola? Ou melhor, o que estará a condicionar o novo sistema da extensão da unidocência em oferecer estratégias de resolução dos problemas educacionais que o país vem vivendo, desde a independência nacional? Os professores encaram mal a unidocência, os encarregados de educação também têm suas reticências, por que razão o Ministério da Educação insiste com esse regime?

Destarte, e como estamos a sublinhar amiudemente, no âmbito da racionalidade burocrática “omnipresente”, na comunidade educativa de Angola, quem manda é o Ministério da Educação. Logo, tendencialmente somos peremptórios em concluir que em Angola a unidocência a nível do ensino primário existe como programa concebido, ditado e imposto pelo regime. Os professores, concordando ou não, apenas têm que cumprir e a qualidade, boa ou má, simplesmente deve aguardar, anulando os objectivos supra aludidos.

A Profissionalização docente e a unidocência

As raízes do exercício docente em unidocência remontam ao nascimento da escola pública em que existia a construção de um modo de organização pedagógica onde um determinado professor ensinava ao mesmo tempo um conjunto de alunos (Leite, 2000). No entanto, a passagem de uma pedagogia no singular para uma pedagogia no plural só foi possível com a invenção das classes, em que os alunos passam a ser agrupados por idades e por níveis de conhecimentos (idem, 2000).

No início do século XIX, despoletou-se a discussão sobre se os professores eram distribuídos pelas matérias que constituíam os planos dos cursos ou por classes, isto é, se os professores deviam acompanhar os alunos ou especializar-se. Dois argumentos foram construídos: um em torno da especialização, em que o professor foi comparado com um operário, que só tem conhecimento fragmentado e parcelar; e outro, em torno do acompanhamento que permitiria assegurar uma melhor formação moral porque conseguia acompanhar os interesses e evolução dos alunos (Leite, 2000).

Segundo Perrenoud (1999, p. 11) “as reformas de estrutura e de programas são legítimas, no entanto, só dão frutos se acompanhadas de boas práticas”. O autor menciona também que a mudança é quase sempre pensada para um corpo de professores que ainda não existe. Deste modo, afirma o autor, os professores de hoje, na sua grande maioria, não estão dispostos, nem preparados para praticar uma pedagogia activa e diferenciada. Por isso, é importante repensar a natureza das formações iniciais para tornar o processo de reforma possível e ambicioso; fazendo da formação continuada um vector de profissionalização docente.

A formação é a fonte de mudança para cada um dos actores, isto é, o formador e o formando. Ela deve ser considerada como um instrumento central, como uma ferramenta estratégica para acompanhar as mudanças e inovações dentro do nosso sistema de educação.

Deduzimos que a reforma implementada recentemente pelo determinismo do sistema burocrático, que tenta a todo custo garantir a homogeneidade, por via do seu verticalismo, incorporado na Lei n.º 13/01, de 31 de Dezembro5, não observa os parâmetros propostos por Perrenoud na medida em que os professores muitas vezes são contratados sem ter a formação inicial exigível no exercício das respectivas funções por um lado, e, por outro, a questão da profissionalização do professor, parece-nos ser mais um projecto individual, do que um projecto de reforma traçado e implementado pela Administração Central. Para abonar essa apreciação, os teóricos Baxe, Fernando e Paxe (2016), continuam dizendo que, os professores que sentem dificuldades em aplicar a unidocência apresentam como causas fundamentais a falta de uma preparação específica para leccionar todas as disciplinas do currículo, uma vez que no Ensino Médio foram preparados para determinadas áreas de conhecimento. Do levantamento efectuado, 80% dos professores afirma que a unidocência tem trazido dificuldades por várias razões, de entre as quais, a falta de preparação adequada, tanto no domínio dos conteúdos quanto das metodologias de ensino, dificultando a aplicação desse regime.

Deste modo, como o determinismo governativo procurou através do incremento regulatório implementar monoliticamente a unidocência, o professor como não participou da concepção e construção desse projecto, poderá adoptar aquilo a que Lima (apud Gomes, 1993, p. 136) cunhou de infidelidade normativa, curto-circuito horizontal ou infidelidade pedagógica, podendo colocar em causa um dos macro objectivo do Sistema de Educação e Ensino, que é “assegurar o aumento dos níveis de qualidade de ensino”, definido no preâmbulo da Lei 17/16 de 7 de Outubro (LBSE, 2016).

Segundo Teodoro (1994), a educação constitui uma categoria e fenómeno social. O discurso público e político sobre a educação é considerado o aperfeiçoamento da sociedade. O autor menciona que a política educativa “é um espaço de conflitos e de contradições sociais” (p.69). Neste sentido, o Estado organiza e promove discussões e debates na esfera pública acerca da política educativa, em obediência ao princípio da democraticidade do ensino plasmado nos termos do artigo 10º, do decreto-lei nº 17/16 de 7 de Outubro de 2016. No mesmo diapasão, afirmam Sebastião e Correia (2007) que investir na educação, significa, “promover a colaboração em rede dos diversos agentes educativos e institucionais presentes na comunidade, de forma a promover o seu desenvolvimento” (Sebastião & Correia, 2007, p. 131).

Contrariamente ao acima arrolado, e em função da realidade prática, depreendemos que o debate e a organização acerca da política educativa em Angola não decorrem de forma plural e alargada, ficando restringidos ao próprio Estado, que concebe, executa, dirige, controla e avalia o Sistema de Educação e Ensino (artigo 102º, decreto-Lei nº 17/16 de 7 de Outubro). Como afirmam Ngaba (2012 apudMichingi, 2013) e Julião (2019), Angola preserva um modelo de ensino de tradição centralista e elitista, modelo típico do ensino herdado da educação socialista e não permite flexibilidade na sua matriz. Isto é, o poder central, procura através do incremento regulatório, mostrar mimeticamente ao mundo uma reforma educativa, em que ele mesmo pensa, implementa, organiza e avalia, marginalizando a esfera pública e concomitantemente protelando a qualidade de ensino. Ao nos referirmos sobre a marginalização da esfera pública, queremos tonalizar que não existe um diálogo aberto entre o Estado e os principais agentes curriculares em Angola sobre as grandes questões de interesse educativo nacional. Daí, a inexistência de resultados concretos, que o regime nos fez crer, que almeja alcançá-los.

Ensino de qualidade e unidocência: que relações?

O vocábulo qualidade pode ser entendido como um conjunto de características que decorrem das metamorfoses para atender aos anseios ou interesses dos que usam. Logo, a qualidade pode estar condicionada a diversos factores, que variam em função da área e do conhecimento. Segundo Pires (2004, p.33), “a qualidade é vista como um processo perspectivado como um todo e a ênfase é posta na satisfação”. Deste modo, a qualidade para este autor é compreendida como um conjunto de atributos que caracterizam algo como sendo bom, que leva a satisfação.

Díaz (2002), alude que a educação de qualidade é quando os alunos conseguem aprender o que devem aprender no fim de um determinado nível (de estudos), isto é, superam com êxito o que está estabelecido nos planos e programas curriculares. Esta perspectiva de análise, coloca em ênfase a questão da aprendizagem efectivamente alcançada nos processos educativos. Assim sendo, a educação de qualidade deve proporcionar, a toda uma participação activa e criativa na sociedade e a serem cidadãos do mundo, pensando global e agindo local.

Para Isaias (2013, p, 47) a melhoria de qualidade e eficácia de ensino tem como variável independente a “valorização do professor”. E para que o professor seja valorizado dentro do contexto da unidocência do ensino primário, a sua formação deve lhe proporcionar uma sólida base para trabalhar competente e exitosamente com esta modalidade do ensino. Nessa modalidade de ensino, o professor tem grandes responsabilidades pelos aspectos de desenvolvimento global da criança, não só a nível afectivo, mas também ao nível emocional, social e moral sendo o desenvolvimento intelectual o centro das suas atenções. Segundo o mesmo autor, os resultados tirados da fase de experimentação indicam ter havido dificuldades da parte de alguns professores. Estas são, geralmente, de natureza técnico-pedagógica, causada pela carga horária e pelo montante das disciplinas curriculares, e são vividas pela maioria de professores formados nas Escolas nacionais de formação de professores.

Os responsáveis máximos do Sistema Educativo não deviam ignorar na totalidade o impacto causado por esta medida, uma vez que sabem perfeitamente que nas escolas nacionais de formação de professores, estes são especializados em duas disciplinas apenas. Em muitos casos são apenas formados monoliticamente e encontram obstáculos para cumprir com os objectivos de melhorar o sistema educativo e aumentar a sua eficácia, quando o assunto for leccionar disciplinas que não foram objectos de sua formação.

Compreendemos que a educação para todos deve ser de qualidade, lê-se no preâmbulo da Lei 17/16 de 7 de Outubro (LBSE, 2016) “assegurar o aumento dos níveis de qualidade de ensino”, onde todos devem participar activamente na sociedade. Para atingir a qualidade que se pretende, é necessário ter um conjunto de técnicas, que usadas poderão adequar ou não, ao sucesso da instituição ou organização. Perspectiva-se que a extensão da unidocência tenha sido uma mais valia para a educação em Angola e veio contemplar mudanças para o professor e mais qualidade para o aluno. Todavia, todo o processo decorrente da extensão da unidocência precisa de ajustes, isto é, enquadrar essa política educativa à nossa realidade, condições e vivências reais e não imaginárias.

Destarte, com a extensão da unidocência, muitas pessoas interrogaram-se sobre a pertinência de se confiar a um professor a responsabilidade do ensino de todas as matérias nos (6) seis anos terminais do Ensino Básico. Na verdade, todas as questões pertinentes a unidocência, são orientadas pelo processo de desenvolvimento curricular, que deve passar pela reorganização das disciplinas, das metodologias e dos conteúdos que deverão ser administrados, porém antes ensinados aos professores no âmbito do quadro de sua preparação para o exercício da profissão.

Daí que, do ponto de vista geral, a reforma hoje, em vias de generalização em Angola, tem sido orientada pelos programas de ensino, manuais escolares extremamente centralizados (artigo 105º, decreto-Lei nº 17/16 de 7 de Outubro) e, sobretudo pela formação residual, desalinhada e tímida dos professores. O que se pretende actualmente, é melhorar a qualidade do ensino administrado nas escolas do país, tendo em conta o regime da extensão da monodocência até a 6ª classe. Precisa-se que a integração de professores para este processo passe por uma formação à dimensão dos desafios que o processo encerra. Precisa-se que as politicas educativas e curriculares e as escolas de formação de professores sejam repensadas e contextualizadas, se quisermos pensar na qualidade e no reforço da eficácia no actual regime.

Para isso, é imperativo termos em atenção que a educação funciona como um sistema horizontal e a fraca qualidade da base pode condicionar negativamente as estruturas subsequentes, colocando em causa todo sistema e o próprio desenvolvimento do país, que da Educação muito depende. Assim, a colaboração e o diálogo permanente (Sebastião e Correia, 2007) e frondoso entre a Administração Central e o contexto de realização do currículo, a sólida preparação do professor, enquanto principal referência pedagógica e a valorização do seu magistério, poderá estimular a qualidade, tanto do ensino primário, quanto dos demais subsistemas educativos. Assim, essa família educativa deverá constantemente aperfeiçoar o diálogo, fazendo diariamente opções pelo melhor, não de forma ingénua, mas de forma crítica com a certeza de que se os desafios da educação são íngremes as mudanças para educação devem ter a mesma intensidade, latitude e amplitude (Julião, 2019).

Considerações Finais

Em síntese, a educação em Angola enfrenta sérios desafios e neste artigo buscamos gerar uma nova compreensão sobre os aspectos guindados à actual reforma, a partir da ampliação da unidocência para seis classes. A reforma educativa de 2001 apesar de ter vindo a incutir novas formas de ensinar ao professorado, observam-se algumas dificuldades por parte dos principais agentes curriculares em detrimento da adaptação e domínio nas diferentes áreas curriculares e no próprio ambiente escolar. Apesar de Angola tentar modernizar o sistema educativo, fruto de influências internacionais, ainda se debate com muitos problemas. Como indica Ngaba (2012, p. 255 apudMichingi, 2013, p. 43) no seu estudo, a falta de comunicação entre “as escolas e os níveis superiores; a elaboração arbitrária de directrizes que visam a organização do sistema educativo; a carência de quadros; a falta de infra-estruturas que constituam uma rede escolar credível; baixos orçamentos destinados à educação e as condições sociais dos alunos” são factores atentatórios à qualidade de ensino que se reclama em Angola.

Relativamente à contribuição da unidocência na qualidade de ensino, este estudo concluiu que uma das principais adversidades diz respeito ao perfil do quadro docente. Ou seja, não há articulação entre o design esquelético da unidocência de seis classes e o plano de formação que qualifique e capacite o corpo docente para leccionar a 5ª e a 6ª classes. Para um ensino que se pretende de qualidade é necessário que haja capital humano adequado aos desafios propostos num dado momento e contexto.

No geral, a reforma foi uma inovação na lógica top-down que provocou mudanças, suscitou incómodos para alguns e exigências para outros. Assim, já se passaram mais de dez anos desde a sua implementação e feita a sua avaliação, observamos problemas de gestão, abrangendo o desalinhamento da formação com o contexto de trabalho, a má preparação de quadros e infra-estruturas, entre outros factores que concorrem para o mau andamento da unidocência no país, tornando o professor “incompetente” para levar a cabo os desígnios desse regime. A ausência de diálogo entre a administração central e os executores das políticas educativas e curriculares na sala de aula condiciona a concretização dos objectivos traçados, alimentando comportamentos que fazem um viés à qualidade de ensino, clamada pelo governo.

O estudo põe em evidência o descompasso entre as exigências postas pela unidocência e as condições reais para a sua implementação. Os problemas da qualidade ténue do actual sistema educacional, sobretudo, no ensino primário, não estão relacionados directamente com a unidocência em si. Como temos vindo a teclar, a racionalidade político-administrativa excessivamente centralizada e fechada em si mesma, tem contribuído muito para essa pouca qualidade do nosso sistema e dos vários subsistemas de ensino.

Sendo a educação de qualidade um dos aspectos importantes para alcançar um desenvolvimento sustentável, acreditamos que o ensino em Angola só será possível quando o governo, por via de uma gestão optimizada, participativa e inclusiva, valorizar a opinião dos principais agentes curriculares, antes, durante e após os processos que deseja implementar. Assim, o Sistema Educativo Angolano precisa ser reanimado, e nele devem ser introduzidas inovações nos currículos, programas escolares e fundamentalmente realinhamento dos planos de formação dos professores coerente aos diversos contextos de realização e operacionalização do currículo.

Destarte, a intenção não foi acabar a discussão acerca da abordagem proposta, todavia, atiçar a reflexão crítica sobre os vários desafios do modelo unidocente nas seis classes iniciais, no sentido de, por um lado alargar o debate sobre essas questões, por outro, instigar reflexões e estudos empíricos de maior montra, para identificar/verificar verdadeiramente os subsídios do regime de extensão da unidocência para os subsistemas posteriores e cumulativamente para a melhoria dos processos de ensino e aprendizagem do país.

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2 Relatório de Balanço da implementação da 2ª Reforma Educativa em Angola - trabalho realizado pelo grupo de Diagnóstico do Ministério da Educação, em Julho de 2011, pág. 3 e 4.

3 Conjunto de normas, discursos e instrumentos que são produzidos e circulam nos fóruns de decisão e consulta internacionais, no domínio da educação, e que são tomados, pelos políticos, funcionários ou especialistas nacionais, como «obrigação» ou legitimação para adoptarem ou proporem decisões ao nível do funcionamento do sistema educativo (Barroso, 2006).

4 Decreto-lei n.º 17/16 de 7 de Outubro: Aprova a Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino, que estabelece os princípios e as bases gerais do Sistema de Educação e Ensino.

5 Revogada pelo Decreto-lei n.º 17/16 de 7 de Outubro: Aprova a Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino, que estabelece os princípios e as bases gerais do Sistema de Educação e Ensino.

Recebido: 03 de Maio de 2019; Aceito: 13 de Julho de 2019

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