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Educação UNISINOS

On-line version ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.23 no.3 São Leopoldo July/Sept 2019  Epub May 04, 2020

https://doi.org/10.4013/edu.2019.233.08 

Artigos

De sonhos e insurreições: fragmentos de um discurso (esperançoso) sobre a ocupação de uma escola pública em Petrópolis/RJ

Of dreams and insurrections: fragments of a (hopeful) discourse about the occupation of a public school in Petrópolis/RJ

Debora Breder1 

Maria Paula Eppinghaus de Figueiredo2 

1 Professora Adjunta, integrante do Programa de Pós Graduação em Educação, da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e pesquisadora do Grupo de Estudos em Educação, Cultura e Contemporaneidade (GRECCA/UCP). deborabreder@hotmail.com

2 Mestre em Educação e pesquisadora do Grupo de Estudos em Educação, Cultura e Contemporaneidade pela Universidade Católica de Petrópolis (GRECCA/UCP). paulaeppinghaus@hotmail.com


Resumo

Este artigo apresenta resultados parciais de pesquisa realizada no decorrer de 2017 em uma escola pública de Petrópolis/RJ, que havia sido ocupada no ano anterior. A partir da observação participante e de entrevistas com estudantes que participaram da ocupação, procuramos compreender os sentidos atribuídos por esses jovens, retrospectivamente, ao movimento. A seguir, partindo do princípio de que todo filme, seja ficção ou documentário, constitui uma mise-en-scène social e simbólica do mundo, fizemos um contraponto entre os relatos que nos foram confiados na escola e os apresentados no documentário Nunca me sonharam (2017), de Cacau Rhoden, feito com jovens do Ensino Médio em várias regiões do Brasil. Nosso objetivo foi analisar, em uma perspectiva comparativa, essa multiplicidade de vozes que compõem, a nosso ver, fragmentos de um discurso esperançoso sobre a escola pública, em suas tensões, limites e utopia.

Palavras-chave: Ocupações; Ensino Médio; Nunca me sonharam

Abstract

This article presents partial results of a research conducted during 2017 in a public school in Petrópolis / RJ, which had been occupied the previous year. From participant observation and interviews with students who participated in the occupation, we sought to understand the meanings attributed by these young people, retrospectively, to the movement. Then, assuming that every film, whether fiction or documentary, constitutes a social and symbolic mise-en-scène of the world, we have made a counterpoint between the reports that were entrusted to us at school and those presented in the documentary Nunca me sonharam (2017), made with high school students in various regions of Brazil. Our objective was to analyze, in a comparative perspective, this multiplicity of voices that compose, in our view, fragments of a hopeful discourse about the public school, its tensions, limits and utopia.

Keywords: Occupations; High School; Nunca me sonharam

Acho que nunca me sonharam sendo um psicólogo, nunca me sonharam sendo um professor, nunca me sonharam sendo um médico. Eles não sonhavam e não me ensinaram a sonhar, então, eu aprendi a sonhar sozinho.

Estudante no filme Nunca me sonharam

Seria necessário descrever a lógica do processo de interiorização ao final do qual as oportunidades objetivas se encontram transformadas em esperanças e desesperanças subjetivas.

Pierre Bourdieu

No final de 2015, inspirados por movimentos anteriores ocorridos na Argentina e no Chile - como a “Revolta dos Pinguins” (Carneiro, 2015) -, estudantes secundaristas das escolas públicas de São Paulo ocuparam vários colégios no estado. A manifestação pegou de surpresa a equipe do governador Geraldo Alckmin, do PSDB, por sua organização e força. Quem poderia imaginar que aqueles garotos e garotas poderiam se articular de forma tão eficaz, insurgindo-se em massa contra uma medida do governo? A resposta foi a truculência.

Os estudantes lutavam contra uma decisão arbitrária da Secretaria de Educação que reestruturava a distribuição de turmas nas escolas públicas. Pela decisão, as escolas passariam a ser segmentadas, exclusivas para cada ciclo - Ensino Fundamental e Ensino Médio. A mudança obrigaria a um imenso remanejamento de alunos para localidades diferentes das que frequentavam anteriormente, afetando seus vínculos sociais e causando transtornos para suas famílias. Apesar da violência de Estado que se abateu sobre os manifestantes, após 60 dias de insurreição estudantil o governo foi obrigado a recuar, transformando a ocupação de escolas públicas em um dos movimentos secundaristas mais bem sucedidos na história do Brasil.

Meses depois, com o lançamento pelo Ministério da Educação do governo Michel Temer de uma Medida Provisória propondo uma nova reforma educacional, a MP 746/20163, e com a tramitação da PEC 2414 que suspende por 20 anos o investimento do governo federal em saúde e educação, o movimento se estendeu por todo o país. Sancionada em 16 de fevereiro de 2017, a lei do Novo Ensino Médio impõe mudanças radicais, com estreitamento do currículo e ênfase em disciplinas avaliadas nos exames internacionais, que passaram a ocupar 60% da grade.

Pode-se dizer que o pano de fundo para a nova insurreição estudantil foi o agravamento do dualismo na educação brasileira, que remonta longe em nossa história: agora, sob a capa de um discurso voltado para a liberdade de escolha de curso, disfarça-se uma política educacional que promove a reprodução das hierarquias sociais, tornando ainda mais desiguais as perspectivas de ingresso no ensino superior e acesso ao mercado de trabalho.

Com efeito, fruto de uma política educacional adotada durante o período de ditadura civil-militar-empresarial, ampliada no contexto das políticas neoliberais dos anos 80 e 90 e expandida no decorrer do processo de globalização, a educação no Brasil foi direcionada para a preparação de recursos humanos para a produção (Libânio, 2012). Uma política educacional que teve como efeito a deterioração da escola pública, a submissão de nossas diretrizes às políticas internacionais e a mercantilização da educação em prol do empresariado do setor. Ou seja, constituída e constituinte de relações sociais desiguais e ligada aos interesses de classe e da divisão do trabalho, a educação, nesse contexto, visa habilitar os trabalhadores técnica, social e ideologicamente para o trabalho (Frigotto, 2010).

Assim como nos Estados Unidos e outros países da América do Sul, no modelo adotado no Brasil são os grupos empresariais - conjugando empresas educacionais, grupos midiáticos, instituições privadas e seus representantes políticos - que vêm ditando as regras nesse campo, arvorando-se como os experts na questão. A influência dessa coalizão entre poder público e iniciativa privada produz a crença de que, se a educação pública não vai bem, o modelo empresarial - baseado na ideia de “gestão” - é o único que poderá trazer resultados positivos. Esta forma tecnicista de encarar a educação é uma das características do pensamento neoliberal, que propõe que questões sociais sejam solucionadas através de propostas de gestão, transformando-as em questões de ordem técnica. Assim, a educação não é vista como um campo de disputas em torno do problema da desigualdade de oportunidades e de recursos simbólicos, ficando reduzida a uma mera questão de eficácia ou ineficácia na sua gestão.

Nesse modelo calcado nas políticas neoliberais, o objetivo básico da educação é a preparação do aluno para o mercado de trabalho e a competitividade dos mercados nacional e internacional. O estreitamento curricular decorrente desse modelo tem como objetivo não apenas a preparação para o mercado, como também a difusão dos valores do credo liberal (Gentili & Silva, 1998). O projeto neoliberal, projeto distópico, cria um espaço social e simbólico no qual se torna inviável pensar a sociedade fora da perspectiva capitalista: noções como justiça social, igualdade e bem comum tendem a ficar em segundo plano, sendo substituídas por noções de produtividade, qualidade e eficiência como condições fundamentais para conseguir-se acesso à modernidade, ao sucesso profissional e, consequentemente, à ascensão social.

Uma das mais graves consequências dessa política neoliberal que alimenta testes, medições e rankings internacionais é esse estreitamento curricular: como a definição do sucesso é medida pelos resultados em exames que avaliam somente conteúdos de linguagem, matemática e ciências, as escolas passam a basear seu ensino nessas matérias. A proposta defendida pelos reformadores empresariais, cuja agenda vem sendo incorporada pelos planos educacionais a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), define um currículo básico como referência para a educação nacional - compreendendo-se por básico o suficiente para a formação de uma massa preparada para o mercado de trabalho. Em suma, como denunciam diversos autores, trata-se inequivocamente da mercantilização da educação visando à transformação de amplos setores da população em mercadoria de baixo valor (Leher, 2010; Cardoso da Motta & Frigotto, 2017).

Não acho que ela [a reforma] atende às expectativas e às reivindicações dos estudantes. Vejo que ela só tem um olhar voltado para o mercado de trabalho e não para uma formação cidadã do estudante”, declararia a estudante Ana Júlia Ribeiro, de 16 anos, em seu discurso na Assembleia Legislativa do Paraná em 31 de outubro de 2016. Viralizado nas redes sociais, esse discurso traduzia o sentimento de indignação - e ao mesmo tempo de esperança - dos estudantes que, após a insurreição em São Paulo, ocuparam escolas em vários estados da Federação. Foram mais de 1.100 instituições de ensino, entre escolas e universidades, ocupadas, e centenas de milhares de estudantes participantes de uma das maiores mobilizações estudantis já vistas no Brasil.

Groppo (2018) identifica dois momentos distintos no decorrer do movimento: um de caráter local, com pautas específicas; e outro de caráter nacional, após o golpe institucional que destituiu Dilma Rousseeff, contra a MP 746 e a PEC 55. O primeiro momento, entre dezembro de 2015 e julho de 2016, teve como principal alvo as políticas educacionais tecnicistas de governos estaduais, como a “reorganização escolar” em São Paulo; a entrega da gestão escolar para Organizações Sociais e a militarização de escolas em Goiás; a ameaça de cortes de verbas e o autoritarismo na gestão de escolas no Rio de Janeiro; projetos de lei para privatizar fundações e instituir o “Escola sem Partido” no Rio Grande do Sul; e demandas por melhorias na infraestrutura das escolas durante a greve dos professores no Ceará, entre outras reivindicações. Já o segundo momento, entre outubro e dezembro de 2016, embora mais curto alcançou projeção nacional, espalhando-se por universidades públicas federais e estaduais, além de institutos técnicos, aglutinando a multiplicidade de pautas manifestada em âmbito estadual na luta contra o retrocesso político, social e cultural representado pela edição da MP 746 e a PEC 55, imediatamente após a ruptura da normalidade democrática. Em comum, ambos foram marcados por formas de organização eminentemente autogestionárias, democráticas e participativas.

Como avalia o autor, o movimento - considerado parte do ciclo de ações coletivas iniciadas com as Jornadas de Junho, em 2013 - demonstrou, em suas vitórias e derrotas, a capacidade dos estudantes de se constituírem como sujeitos de sua própria história, sendo importante, sob esse aspecto, “registrar e revalorizar as memórias de lutas de um movimento que não deveria ser relegado às sombras da história, apenas por aparentemente ter sido derrotado em suas pautas explícitas” (Groppo, Rossato e Costa, 2018, p. 67).

É compartilhando essa perspectiva que apresentamos, a seguir, resultados parciais de uma pesquisa realizada no decorrer de 2017 em uma escola pública de Petrópolis, região serrana do estado do Rio de Janeiro, ocupada em abril de 2016. Nosso objetivo foi compreender os sentidos e significados atribuídos por esses jovens, retrospectivamente, à escola e ao movimento.

Exercendo a escuta ativa em uma escola pública: um percurso teórico-metodológico

“Entramos na escola e pedimos pacificamente que a direção e a administração se retirassem”, diria Gustavo, estudante do D. Pedro II.5

O Colégio Estadual D. Pedro II, em Petrópolis, foi ocupado em 18 de abril de 2016. Nessa manhã de segunda-feira, após uma assembleia, cerca de 100 estudantes ocuparam o colégio. Entre as reivindicações estavam a reformulação do Ensino Médio, a democratização do ensino, melhores condições de infraestrutura, o passe-livre irrestrito, as eleições para a diretoria da escola e o apoio à greve dos professores. “Tudo foi decidido em assembleia. A ocupação busca a melhoria da infraestrutura da escola e da qualidade do ensino, pois queremos uma educação pública de qualidade”, declararia um dos porta-vozes dos estudantes em entrevista ao site Acontece em Petrópolis, em 28 de abril de 2016, salientando o caráter plural do movimento: “Não existe líder, todo mundo pode discutir e fazer proposta. Quem está aqui está cada vez mais unido, um ajudando e apoiando o outro”.

Conhecido também como Cenip, Centro de Ensino Integrado de Petrópolis, atualmente o colégio oferece, além do ensino regular, o Ensino Médio Integrado (EMI) em Produção de Áudio e Vídeo e em Química, com aulas em horário integral. A comunidade escolar tem cerca de 1.800 alunos. Destes, apenas 320 cursam o EMI. Já no curso Regular estão inscritos 850 alunos, sendo 450 no período da manhã e 400 no período da tarde. Há uma grande evasão ao longo do curso: durante a realização das chamadas a informação dos colegas, com frequência, era um simples “ele não vem mais, professora”, como um fato corriqueiro na vida escolar.

Em A miséria do mundo (2012) Bourdieu defende a necessidade de uma escuta ativa e metódica para atenuar os efeitos de distorção intrínsecos à relação de pesquisa - relação esta que é sempre uma relação social (portanto uma relação de poder resultante de uma determinada estrutura social), que produz inevitavelmente efeitos na construção dos dados da pesquisa. Uma escuta ativa e metódica, também, para lograr uma efetiva abertura ao outro; uma abertura que leve o pesquisador a ser capaz de compreender o ponto de vista de seu interlocutor, apreendendo na “singularidade da história de uma vida”, “na sua unicidade e generalidade os dramas de uma existência” (Bourdieu, 2012, p. 693 et seq.). Empreendimento teórico, metodológico e ético que constitui um desafio para o pesquisador:

Postura de aparência contraditória que não é fácil de se colocar em prática. Efetivamente, ela associa a disponibilidade total em relação à pessoa interrogada, a submissão à singularidade de sua história particular, que pode conduzir, por uma espécie de mimetismo mais ou menos controlado, a adotar sua linguagem e a entrar em seus pontos de vistas, em seus sentimentos, em seus pensamentos, com a construção metódica, forte, do conhecimento das condições objetivas, comuns a toda uma categoria (Bourdieu, 2012, p. 695).

De fato, não é uma tarefa fácil conseguir essa espécie de deslocamento de perspectiva que propicie colocar-se no lugar do outro em pensamento, compreendendo que em seu lugar - isto é, na mesma posição em uma mesma estrutura de relações -, provavelmente sentiríamos, pensaríamos e agiríamos de modo bastante semelhante. Compreendendo, ademais, que na singularidade de cada sonho, esperança ou desesperança subjetiva se expressam as estruturas objetivas que os conformam (Bourdieu, 2015).

Assim, durante a pesquisa de campo procuramos, em um primeiro momento, observar as relações sociais entre alunos e professores no espaço/tempo escolar, dentre os que tinham sido a favor e contra as ocupações, buscando compreendê-las em suas tensões e contradições. O exercício do olhar, como nota Oliveira (1996), é uma etapa estratégica na pesquisa etnográfica - etapa na qual o pesquisador, com o olhar teoricamente informado, inicia a sua imersão no campo, observando as práticas sociais que nele se desenrolam. Se o olhar constitui uma primeira e imprescindível etapa nesse processo de imersão no campo, o ouvir constitui a etapa seguinte, indissociável da primeira, permitindo ao pesquisador uma via de acesso ao sentido dessas práticas para quem as realiza e a compreensão de seus significados. A seguir, portanto, procuramos empreender a escuta ativa e metódica de alguns desses jovens que, no decorrer da pesquisa, acabaram se tornando nossos principais interlocutores, tentando compreender os sentidos atribuídos por eles à escola e à sua ocupação. Uma escuta que extrapolou os muros do colégio e se expandiu em longas conversas com alunos e ex-alunos, participantes da ocupação e que vivenciaram com intensidade essa experiência coletiva. No registro de suas falas - tensas, intensas, entusiasmadas -, e também de seus silêncios e esquivas, tentamos analisar em que medida eles mesmos percebiam, ao falarem de suas aspirações e mal-estares subjetivos em relação à escola, a expressão de estruturas objetivas que incidem na constituição de suas próprias trajetórias escolares. Embora não tenhamos realizado uma etnografia no sentido estrito do termo, procuramos - por meio da observação participante nos ritos escolares e de entrevistas abertas e dialógicas - registrar o “fluxo do discurso social” sobre as ocupações, do ponto de vista dos jovens que participaram do movimento, para poder “fixá-lo em formas pesquisáveis” (Geertz, 1989, p, 31).

Do chão da escola ao cinema... Enquanto realizávamos a pesquisa, em 2017, foi lançado o documentário Nunca me sonharam, dirigido por Cacau Rhoden. Filmado em escolas públicas espalhadas pelas mais diversas regiões do Brasil, o filme procura ecoar - em sua multiplicidade de vozes, das periferias urbanas aos sertões - os problemas e anseios dos estudantes do Ensino Médio: as dificuldades econômicas, os desafios enfrentados em suas trajetórias escolares, os sentidos atribuídos à educação, as expectativas em relação ao futuro... Identificamos nesses relatos uma estreita relação com o que estávamos observando em campo e nos confiavam nossos interlocutores.

Assim, partindo do princípio de que todo filme, seja ficção ou documentário, constitui um artefato cultural e, por conseguinte, “vale por aquilo que testemunha, pela abordagem sócio histórica que autoriza” (FERRO, 1976, p. 06), decidimos incorporar o filme à pesquisa, tratando o documentário como uma instância discursiva significativa para a compreensão dos sentidos atribuídos pelos jovens à educação. Nosso objetivo não foi empreender uma análise dos contextos sociais de produção e circulação do filme, nem, tampouco, de enquadrar sua narrativa em termos de linguagem cinematográfica (questões que consideramos importantes, mas que fugiriam ao escopo dessa pesquisa); mas, tão somente, de considerar, em uma perspectiva comparativa, essa multiplicidade de vozes que compõem, a nosso ver, fragmentos de um discurso esperançoso sobre a escola pública, em suas tensões, limites e utopia.

“Ocupa D. Pedro”

“A ocupação foi um ciclo de conquistas, mas não foi, não vai ser, uma conquista assim dada. (...) Eu acho que também agora vem um ciclo de lutas, né? De correr atrás das coisas que a gente conquistou pra serem implementadas”, avaliaria Gustavo, 20 anos, em uma de nossas conversas.

Gustavo, um dos mais ativos ocupantes do colégio, foi um de nossos principais interlocutores durante a pesquisa: eloquente e articulado, acabou tornando-se um dos porta-vozes do movimento. Nosso primeiro contato foi pelas redes sociais e através da APE (Associação Petropolitana dos Estudantes). Sua disposição em conversar sobre essa experiência coletiva foi imediata - sendo este um fato que chamou nossa atenção por sua recorrência: a vontade desses jovens de falarem sobre a ocupação e o orgulho de a terem realizado. Gustavo agora cursa Ciência Política na UFF, em Niterói, e divide um apartamento com outros colegas. No tempo da ocupação cursava o 3º ano e morava com a avó e a tia.

“Uma coisa que a gente aprendeu muito na ocupação foi aprender a ouvir as pessoas, porque o que conta não é só sua opinião, é a opinião do conjunto, porque a gente era uma família, então, pra ter ordem na casa a gente precisava escutar todo mundo. Então foram aprendizagens fantásticas”, explicaria Maria, 18 anos.

Maria foi outra interlocutora privilegiada ao longo da pesquisa, seu nome tendo sido sugerido por mais de um estudante para uma conversa sobre o movimento. Entusiasmada, olhos brilhando e falando de forma quase ininterrupta, Maria demonstrava orgulho pelo feito. Para a jovem, a ocupação foi uma descoberta de si mesma: de sua força, de sua voz, de que podia argumentar e ser ouvida. “Eu era toda, assim, eu falava mas eu era toda acanhada, com medo do que os outros iam achar. Depois que eu saí da ocupação, não tenho medo de falar, não tenho medo de me expressar, não tenho medo de explicar aquilo que eu acho”. Maria agora cursa Direito em uma instituição privada, com bolsa do Prouni, trabalha como recepcionista em um restaurante e participa voluntariamente de um projeto social com jovens de uma comunidade local.

Gustavo e Maria exerceram um papel de destaque durante a ocupação, sendo mencionados por outros estudantes como líderes do movimento. Na perspectiva de Gustavo tratar-se-ia de uma liderança compartilhada: “[a ocupação] teve líderes, porque não foi um só, ela teve pessoas lá, porque a gente dividiu. No caso, teve uma comissão de ocupação que foi votada, os estudantes que seriam, que já estavam mais envolvidos e que estariam na frente. Aí, dentro disso foram divididas as tarefas: comissão de organização, comissão de defesa, que eram os pilares e que estariam delegando as tarefas pro resto da galera de ocupação.” Durante a ocupação, como contaram alunos e ex-alunos, os estudantes se dividiram em comissões, cujos responsáveis respondiam pela atuação do grupo e pela realização das tarefas previamente combinadas. O interessante, nas falas, é perceber que nenhum de nossos interlocutores partícipes do movimento se considerou líder isolado, mas apenas um representante de uma ação coletiva, aberta à multiplicidade de opiniões.

Multiplicidade. Talvez este seja um dos termos mais apropriados para descrever o movimento: multiplicidade de lideranças, de demandas, de estratégias de luta que sugerem novas formas de ação política, permeadas por relações mais horizontais em sua pluralidade, democráticas e participativas. “Os jovens estudantes procuraram criar um espaço de ação política distanciado dos partidos políticos convencionais”, avalia Sallas (2017, p. 471), salientando o fato de que junto às reivindicações por direitos sociais relacionados ao Ensino Médio e ao acesso ao Ensino Superior, somaram-se demandas de cunho identitário, especialmente aquelas vinculadas aos movimentos feministas, negro e LGBTTs. Multiplicidade e conectividade, como também ressalta a autora referindo-se ao uso das redes sociais como parte fundamental do processo de subjetivação política desses jovens, tensionando as “fronteiras entre o público e o privado, entre o subjetivo, o pessoal, as emoções e o cotidiano em sua ação política” (Sallas, 2017, p. 481).

Do local ao global, pode-se dizer que as ocupações estudantis inscrevem-se em uma nova lógica: a dos movimentos sociais transnacionais que vêm ocorrendo no mundo - da chamada “Primavera Árabe” às “Jornadas de Junho”, passando pelo “Occupy Wall Street” e os “Indignados”, entre outros -, que não obstante a diversidade de suas demandas em seus mais variados contextos sociais, culturais e políticos, guardam em comum certos traços inextricavelmente ligados ao processo de mundialização da cultura, globalização da economia e difusão da comunicação em rede. “Movimentos sociais que não se estruturam como movimentos com sede, corpo diretivo, atuando mais virtualmente em uma rede de novas pautas”, como descreve Gohn (2015, p. 501). Não por acaso, nessa nova configuração das ações coletivas os manifestantes não mais se organizam (em associações políticas, sindicais, etc.), eles se localizam em coletivos porque se identificam momentaneamente com as causas em pauta. A adesão frequentemente é online e os protestos planejados através das redes sociais - meios de comunicação por excelência das novas gerações. Movimentos que recusam a centralização do poder, a verticalização das lideranças e a hegemonia ideológica, contestando, em maior ou menor medida, a democracia representativa e a própria concepção de política.

Do global ao local, percebemos esse desinvestimento dos modos tradicionais de ação política na fala de nossos interlocutores: “Ah, tinha bandeira vermelha. Distribuíram panfletos de candidatos... Eu acho que não deveria. Se era uma manifestação de estudantes, pelo colégio, pela educação, eu acho que não tinha nada que ter dessas coisas...”, diria Antônio, inicialmente favorável à ocupação, mas que foi mudando de posicionamento durante o processo: “Atrasou muito pra gente. A gente ficou sem aula, nós ainda estamos dando matérias que tínhamos que ter visto lá atrás. A gente aprende pra fazer o Enem. É assim que é e pronto, não vejo problema nenhum nisso”.

Durante a pesquisa foi possível perceber que o mais contundente em suas falas eram questões ligadas ao dia a dia da escola: o acesso à sala de informática; a reforma da quadra e dos corrimãos; a criação do laboratório de ciências e da sala de convivência; a diferença de status entre os cursos integrados e o de ensino regular; a falta de professores... Não que as questões econômicas e políticas em âmbito nacional não estivessem em pauta - evidentemente estavam -, mas é como se essas questões fossem traduzidas e contestadas em termos de reivindicações locais relativas à infraestrutura e às relações na escola:

A gente queria buscar mais, a gente queria um ambiente melhor pra escola. A gente não foi ocupar pra destruir, ao contrário, a gente foi pra consertar. A gente ariou as panelas, a gente fez uma faxina na cozinha, porque estava bem depredada. E o dia que a gente conseguiu todas as nossas reivindicações, com a diretora e a secretária, que a gente foi entregar pra nossa diretora, ela ainda agradeceu os alunos da ocupação, ela falou que ela nunca tinha pego a escola dela tão bem cuidada [...]. Quando falam ocupação, é uma coisa muito forte, porque eles pensam logo assim: ocupação-desordem, mas a nossa ocupação foi uma ocupação com ordem e a gente tinha um objetivo. A partir do momento que a gente conseguiu nosso objetivo, a gente desocupou, sem nenhum escarcéu, sem nada... (Maria)

Como também observou Leite (2017, p. 33) em seu estudo sobre as ocupações no Rio de Janeiro, as reivindicações relativas à infraestrutura e às relações na escola foram recorrentes na fala dos jovens: “Em todos os encontros com estudantes das ocupações, as demandas por infraestrutura foram destacadas, ainda que enunciadas com diferentes sentidos políticos”. Conforme notou, se em algumas escolas essa era uma reivindicação local - por conta da efetiva deterioração de prédios e equipamentos -, em outras, nas quais essa não era uma questão premente, essa demanda surgia, contudo, como uma forma de manifestar solidariedade aos estudantes de colégios mais precarizados.

Além das questões relacionadas à horizontalidade política e à autogestão foi possível discernir, nesses relatos, inúmeras outras questões, dentre as quais destacamos, a seguir, a crítica ao modelo de escola e de gestão escolar; a relação com os professores; e a atenção conferida às relações de gênero e ao protagonismo feminino no movimento.

Mas quem disse que precisava ser assim?”

Do modelo de escola ao aluno modelo... “Porque eu era um modelo de aluno que obviamente não condiz com o modelo que a sociedade quer, eu acho, mas quem disse que precisava ser assim? Eu acho que foi uma característica de muitos estudantes que ocuparam, um pouco dessa rebeldia, de não concordar com essas coisas”, diria Gustavo ao explicar que para muitos alunos e professores do colégio, os estudantes que participaram da ocupação não eram os “melhores” nem os mais “dedicados”. Como, então, eles estariam interessados em mudanças na escola? Percebemos, nas conversas entreouvidas tanto em sala de aula, entre os alunos do Ensino Integrado, quanto entre os professores, o tom de genuína surpresa ou mesmo descrença em relação à intenção desses alunos que, de seus pontos de vista, não tinham demonstrado, antes, interesse no estudo e na instituição.

O curioso, ao conversarmos com nossos interlocutores a respeito, foi perceber que eles mesmos avaliavam que não correspondiam ao modelo requerido pela escola:

Eu nunca fui aquele aluno de modelo exemplar, que frequenta todas as aulas. Nunca me dei bem com esse modelo de aula que tu tem que ficar sentado ali olhando o professor, não pode sair, tudo levanta a mão, pede... Nunca me senti bem com aquele modelo que te segura ali, te prende ali o dia todo [...]. Mas apesar disso, eu nunca fui mal nas minhas notas, entendeu? Só que eu não era aquele tipo de aluno que frequentava, tanto que já fui até expulso da escola... Mas voltei. (Gustavo).

Conforme nos confiaria, após uma briga ele foi “convidado” pela direção a se retirar da escola: “eu fui induzido a ser convidado a sair, só que eu não sabia que era um convite que eu podia recusar ou não... O diretor deu, né? Aí eu aceitei, achei que era um convite”. Como vemos, nesta frase tudo está dito: a violência simbólica que permeia os discursos e práticas sociais na escola, violência cuja eficácia é tanto mais efetiva quanto mais invisível é o seu exercício:

A violência simbólica não se processa senão através de um ato de conhecimento e de desconhecimento prático, ato este que se efetiva aquém da consciência e da vontade e que confere seu ‘poder hipnótico’ a todas as suas manifestações, injunções, sugestões, seduções, ameaças, censuras, ordens ou chamadas à ordem” (Bourdieu, 2003, p. 54-55).

Violência que se exerce, não apenas, por meio da disciplina e do adestramento dos corpos - “porque só aquela coisa militar, eu digo que é uma educação militar que a gente recebe, sentado pra frente, só o professor falando, é uma coisa que acaba desestimulando muitos alunos e fazendo com que eles até parem de estudar”, como percebe Maria - mas, sobretudo, pela classificação/hierarquização desses corpos segundo seu pertencimento de classe, cor/raça, gênero e outros marcadores sociais da diferença. Classificação/hierarquização que opera através de mecanismos mais ou menos velados, geralmente inconscientes - expressos em práticas pedagógicas, sistemas de avaliação, currículo etc. -, e que vão constituindo possibilidades de trajetórias escolares de maior ou menor sucesso até a exclusão pura e simples do sistema escolar (Carvalho, 2004; Dayrell e Jesus, 2016). Ao exigir implicitamente um capital linguístico e cultural que não fornece explícita e sistematicamente, o sistema de ensino promove um “morticínio escolar”, fazendo com que os próprios alunos atribuam a si, à uma suposta falta de “dom”, a responsabilidade pela exclusão (Bourdieu, 2015).

Mas voltei”, diria Gustavo, continuando seu relato: “depois eu descobri que era um convite que eu podia recusar, aí eu fui na Serrana e tudo mais”. Em sua fala, a reflexão sobre o fato de que grande parte dos jovens que participaram do movimento tampouco condiziam com “aquele modelo de aluno ali que senta e tira dez em tudo” e que já havia sido reprovado por falta de assiduidade às aulas:

Muitos estudantes que estavam lá não eram exemplares, como eu, eram um outro perfil de estudantes, como tinham muitos estudantes também aplicados... Foi uma coisa mista, tinham muitos estudantes de vários tipos. Tanto que a gente conseguiu fazer 3.000 coisas daquela ocupação. Tinha estudante que dava oficina de origami, tinha estudante que dava oficina de grafite, tinha estudante que dava oficina de informática porque entendia de informática, a gente fez muita coisa porque tinha uma pluralidade muito grande de pessoas. Os professores também, que se disponibilizaram a dar aula, aulas pro Enem ali dentro... (Gustavo).

A relação com os professores foi um tema recorrente entre nossos interlocutores.

No início de 2016 os professores das escolas estaduais do estado do Rio de Janeiro entraram em greve. Segundo o Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (Sepe), que representa a categoria, 50% dos profissionais haviam aderido ao movimento em protesto contra os atrasos no pagamento dos salários e benefícios; contra um Projeto de Lei enviado pelo governador Luiz Fernando Pezão à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) com mudanças no regime previdenciários dos servidores; e contra a precarização das unidades de ensino. Foi nesse contexto que ocorreram as ocupações das escolas públicas no estado do Rio de Janeiro; como diria Gustavo “era uma reivindicação geral também”:

Eu acho que foi uma coisa que aconteceu, em todo o estado, porque surgiram muitas escolas ocupadas e aquele momento ali não era um momento só em que havia reivindicação dos professores, da própria escola em si, porque não tinha verba passada [...], era dos alunos, dos professores, dos funcionários da limpeza, dos terceirizados, era uma reivindicação geral também... foi um pouquinho disso (Gustavo)

Uma das razões para a ocupação do colégio, segundo nossos interlocutores, foi o apoio dos estudantes à greve dos professores. Percebemos, nos relatos, uma preocupação com a situação dos professores, desvalorizados profissionalmente e sobrecarregados:

A gente reivindicou algumas coisas pra escola, mas a gente tava reivindicando mais para os professores porque a gente acha injusto eles estarem ali... tem professores que entram na escola 7 horas da manhã e vai sair 10 horas da noite e ele não recebia o seu devido valor, não tinha o respeito... (Maria)

Nas conversas sobressaiu um ponto comum: a relação de afeto com os professores do colégio e o sentimento de serem por eles acolhidos. Durante a ocupação alguns docentes deram aulas, em uma tentativa de manter o cronograma de estudos para o Enem; outros, deram apoio logístico aos ocupantes. “Eu vim aqui sim, achei importante saber o que estava acontecendo, o que eles estavam querendo”, ou “eu trouxe material de limpeza, comida, vinha saber do que eles estavam precisando”, foram alguns dos comentários ouvidos na sala dos professores no intervalo entre as aulas.

É interessante perceber nesses relatos que não obstante as críticas ao modelo de escola - “só o professor falando” (Maria) - que produz aulas monótonas - “essas aulas são chatas demais” (Mônica) -, de acordo com os estudantes ouvidos, mesmo entre aqueles que não participaram da ocupação, os professores do colégio são “legais”, “interessados”, “amigos”:

Os professores, eles cuidam da gente. Eles são muito legais. Às vezes, até quando a gente tá mais pra baixo, eles logo veem e perguntam “o que que está havendo com você?”. E olha que eu vim de uma escola particular... Mas eles se interessam... eles procuram saber mesmo. Tanto é que minha mãe fica sossegada de saber que venho pra cá, porque ela sabe que eu tô cuidada. (Olívia)

Para Gustavo, a experiência compartilhada durante o movimento mudou seu modo de ver a relação professor/aluno: “Foi um aprendizado muito grande, eu consegui ver de forma totalmente diferente. Tanto que me tornei amigo mesmo dos professores. Uma coisa que eu dificilmente tinha dentro da sala de aula, esse vínculo com o professor, né?”. Para Maria, o fato de ter participado de uma reunião com os professores grevistas para compreender os motivos da paralisação também transformou sua perspectiva a respeito: “E aí a gente sentou com um grupo de professores e perguntamos o que eles estavam reivindicando com essa greve. Eles falaram que estavam reivindicando os direitos deles, porque já tinha uns quatro meses que eles não recebiam e o 13º estava atrasado...”.

Evidentemente, houve tensões e conflitos nas relações entre alunos e professores: “Aquele foi um ano conturbado. Ficamos muito sem aula. A gente tava entrando no Médio, achando que ia ser aquilo, doido pra chegar no Médio... E ficamos sem aula. Foi muito complicado”, lembraria Olívia. No entanto, o que se depreende desses relatos é a percepção desses jovens de que a experiência alterou sensivelmente as relações na escola, ampliando as interações entre diferentes grupos e os espaços para o debate.

Logo após a ocupação, por exemplo, alguns temas relativos ao movimento foram discutidos em sala de aula: a PEC 55, o Novo Ensino Médio, notícias de jornal. Também houve a tentativa de repensar as práticas pedagógicas:

Até a forma dos professores ensinar mudou. Os professores começaram a fazer rodas, vamos sentar em roda, conversar, fazer algumas dinâmicas diferentes... Me lembro muito bem duma dinâmica que a professora de português fez conosco, que era uma dinâmica com as bolas... se você deixasse sua bola cair era seu sonho que caía. E aí, no final, ela foi diminuindo as pessoas e você tinha que controlar o sonho de todo mundo. E aí ela contava como era frustrante você ter que escolher entre o seu sonho e o do seu amigo... mas você pode conquistar o seu sonho e também ajudar o seu amigo a conquistar... então, foi umas coisas que parou pra fazer a gente pensar um pouco o que a gente queria pra nossa vida, e também uma forma diferente de ensinar, né? Não é só aquela coisa “vamos sentar e eu vou escrever e vocês aprendem (Maria)

Ao considerarmos a participação de Maria na ocupação, assim como a de Ana Júlia, no Paraná, e de tantas outras jovens Brasil afora, chama atenção o protagonismo feminino no movimento: “As que tavam na frente mesmo eram mulheres”, afirmaria com orgulho Maria.

De fato, as ocupações em todo o país foram marcadas pela forte presença das mulheres - organizadas ou não em coletivos feministas - e a proeminência das discussões sobre relações de gênero. Como observou Leite (2017 p. 44), a radicalidade da horizontalidade política do movimento fez com que a hierarquia nas relações de gênero fosse discutida como uma questão que dizia respeito não somente às mulheres, mas a todos os envolvidos na ação coletiva: “As narrativas das ativistas eram respeitosamente apoiadas pelos que se identificavam com o gênero masculino, mesmo quando se expunha o sexismo presente também naquele contexto: parecia que o compromisso com a igualdade era estendido até abrigar e honrar a diferença”. Compromisso este materializado em um ativismo feminista vivenciado como parte constitutiva da ação política para enfrentar a subalternização feminina e demais desigualdades em pauta (Leite, 2017, p. 44).

Assim, se nacionalmente uma das vozes mais emblemáticas do movimento foi a de Ana Júlia, que discursou na Assembleia Legislativa do Paraná, localmente a presença feminina entre as lideranças também foi marcante: “Até de muitas professoras mulheres, que chegavam junto com a gente ali, não desmerecendo os professores homens, que também teve. Mas teve uma grande participação feminina sim”, explicaria Maria ao falar sobre o processo de eleição de uma nova chapa do grêmio estudantil do colégio, composta majoritariamente por mulheres.

Em outro estudo realizado em escolas do estado do Rio de Janeiro, Bastos e Marinho (2017, p. 10) também notaram essa participação expressiva de mulheres nas ocupações, assim como a importância e a força de seu papel de liderança no movimento, tensionando as relações de gênero na escola: “As jovens lideranças apresentavam uma habilidade e dedicação intensa com as tarefas da militância nas escolas. Era recorrente que a delegação de tarefas por elas fosse acompanhada da necessidade de se pensar as relações de gênero no espaço”. Durante a ocupação no colégio D. Pedro II, os manifestantes efetivamente dividiram as tarefas de modo igualitário:

Homens limpavam banheiros, faziam faxina igual a gente, homens na cozinha, tudo misturado, não teve aquela coisa “não, os homens vão fazer o trabalho bruto e as mulheres vão pra cozinha”. Não. Foi aquela coisa, teve mais homem na cozinha do que mulher, pra falar a verdade. Teve acho que 4 meninos e 3 meninas. Então, assim, teve uma divisão legal. Eles votavam “ah, eu quero ir pra isso”, “eu quero ir pra isso”, e eles mesmo se disponibilizaram a ter essa mistura (Maria).

O curioso, contudo, é que se na divisão das tarefas as relações de gênero foram problematizadas, não havendo, por assim dizer, uma divisão sexual do trabalho, o mesmo não pode ser dito em relação à divisão do espaço: de acordo com os relatos, os dormitórios foram divididos segundo o gênero e, a pedido de meninos e meninas homossexuais, subdivididos segundo a orientação sexual: “Tinha os separados, os lugares de menina e os lugares de menino, aí os meninos homossexuais e as meninas homossexuais pediram que fizessem quartos separados para eles também”, contaria Maria, tentando explicar essa divisão: “Não sei o porquê, assim, mas eles pediram, acho que até pra eles se sentirem mais à vontade, não se sentirem um pouco coagidos, né? Mas, assim...”.

“Mas assim...”. Como vemos, as reticências e os silêncios são eloquentes - e falam, ainda que por preterição. Falam sobre o que é difícil dizer: a “coação” que a população LGBT vivencia nas escolas, das agressões físicas à violência simbólica. Falam, também, sobre o que é difícil até mesmo de perceber: a naturalização da divisão sexual do espaço no instante mesmo em que se problematiza a divisão sexual das tarefas. Mas o relato prossegue, em um exercício de auto reflexividade:

Uma coisa me abriu muito a mente na ocupação foi essa parte também da homossexualidade, assim, me abriu muito a mente dessa coisa de “ah, pode ser, mas longe de mim”, não, pode ser perto de mim também, pode ser sendo meu amigo ou minha amiga, então, assim, o respeito é uma das principais coisas que a gente aprendeu, foi o respeito (Maria).

As conquistas realizadas durante a ocupação e, principalmente, a descoberta do poder falar e argumentar, poder reivindicar e poder se colocar, são questões que surgiram de forma muito expressiva nesses relatos. Notadamente nessa conversa com Maria, que explicaria que em casa enfrentava problemas com o pai “machista”:

Meu pai era um pai turbulento também, um pai que dizia que a gente [refere-se à mãe] nunca iria ser nada, que se ele fosse embora a gente iria passar fome. Um pai que já me agrediu, com palavras, então, acaba também sendo física a agressão com palavras (...). Até entra um pouco o lado machista do homem. Mostramos pra ele que a gente não dependia. Eu vejo esse amadurecimento que eu tive nos meus 16 anos, a partir dessa ocupação, entendeu? A saber me impor, a saber falar assim “não, eu não vou precisar de você, eu vou ser alguém por conta própria, eu tenho personalidade, eu tenho isso pra passar pras pessoas, eu não preciso que você faça por mim”. Então, é uma coisa que também a ocupação te trouxe (Maria).

Ao considerarmos o relato de Maria - que se sente “orgulhosa” por sua transformação - é inevitável pensar que se “a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação”, como diria Bourdieu (2003, p.18 et seq.) referindo-se aos mecanismos simbólicos da dominação, a luta cognitiva em torno do sentido do mundo e das relações que o constituem é luta contínua, sendo travada nos mais diversos campos e espaços sociais. A escola constitui um desses espaços: ao mesmo tempo em que opera como uma instância de reprodução das desigualdades, propicia, em suas brechas, possibilidades infindas de desconstrução. As ocupações expuseram essas brechas e abriram inúmeras outras, demonstrando o quanto a escola, quando investida, pode se transformar em um espaço para a problematização das desigualdades de toda ordem, entre as quais as hierarquias de gênero. E o protagonismo feminino nas ocupações indica que esse espaço vem sendo reivindicado por elas.

Nunca me sonharam: do chão da escola ao cinema

Tela escura. Escutamos o som ambiente de uma escola.

Na tela, o Artigo 205 da Constituição Federal de 1988.

Orla do Rio, mar, trem, subúrbio, cidade, campinho de futebol, campo, porto... As primeiras imagens de Nunca me sonharam apresentam, em ritmo acelerado, instantâneos do Brasil. Nelas vemos jovens - os protagonistas do filme. Realidades distintas e diferentes cenários que acabam por se encontrar, sutilmente, nas piruetas em câmera lenta dos jovens que dançam no parque, nos malabares do artista de rua, nos passos de balé de uma menina.

Sete blocos narrativos estruturam o filme e nos guiam no emaranhado de depoimentos que delineiam um retrato complexo das juventudes e da educação pública no Brasil. Gravados geralmente em plano próximo, neles os jovens expressam suas perplexidades e angústias: “Com 15 anos você quer ser advogada, com 16 você quer viajar o mundo, tu muda de pensamento muito rápido, tu muda de gosto muito rápido”. No desenrolar das cenas, identifica-se não uma juventude, mas juventudes. Em off, escutamos a voz de uma menina: “Eu sou um defeito de fábrica, eu acho que sou assim. Eu sou diferente de todo mundo”... Fala que nos remete às indagações de Gustavo, do colégio Pedro II: “eu era um modelo de aluno que obviamente não condiz com o modelo que a sociedade quer”. Angústias que borbulham nas escolas e eclodem de diferentes formas: “O pessoal tem muita revolta, o pessoal tem muita angústia, tá ligado? É muita coisa que queremos dizer, mas não podemos, Então, chega uma hora que explode, véio”, explica um jovem de São Paulo.

Explode como nas ocupações.

Sequência após sequência, o documentário vai desfiando a precariedade das escolas públicas no Brasil: prédios precisando de manutenção, salas mal equipadas, equipes sobrecarregadas com o acúmulo de funções, a necessidade de lidar com os problemas sociais que inevitavelmente se manifestam no cotidiano escolar. Segundo dados do Pnad - IBGE de 2016, 96,9% dos alunos do Ensino Médio são atendidos pela escola pública.

“Eu vivo praticamente sem ter certeza do que vai acontecer amanhã. Então, eu não espero muito, eu tento planejar alguma coisa que vai acontecer na minha vida, mas eu não espero muito, sabe....”, explica Felipe, de Nova Olinda, CE. A necessidade de trabalhar antes do término ou logo ao final do Ensino Médio é uma realidade que acompanha parte dos alunos da escola pública e um dos motivos da exclusão:

É meio difícil, né? Dezoito anos, segundo ano, tentando terminar. Correndo atrás de emprego e sendo que eles pedem currículo adoidado, assim, e a gente não sabe o que oferecer. E aí a gente tem que correr atrás de cursinho e dinheiro que falta. (Alison Ribeiro, Santarém - PA)

A gente tá vendo que a gente só com o Ensino Médio concluído tá difícil de arrumar um emprego, tá difícil de ser alguém, imagina se você não tiver uma faculdade, imagina se você não tiver noção dos valores, tanto valores humanos quanto do seu próprio dinheiro. Então, é difícil... o mundo tá difícil! (Maria, colégio D. Pedro II, Petrópolis - RJ).

Qual jovem pode sonhar?”, pergunta um professor no filme. Para amplas camadas da população a infância e a juventude se encurtam, assim como seus sonhos: “A partir do momento que o sonho foi tirado de mim, daí eu desisti dele também”, escutamos em off. Como demonstrou Bourdieu (2015), as esperanças subjetivas estão intrinsecamente relacionadas às condições objetivas de existência. As famílias, geralmente, têm aspirações limitadas às possibilidades objetivas conferidas por sua condição de classe; pensam e planejam o que é possível de acordo com a incorporação de seu “destino objetivamente determinado” - ou seja, de acordo com seu habitus de classe. “Se os membros das classes populares e médias tomam a realidade por seus desejos, é que, nesse terreno como em outros, as aspirações e as exigências são definidas, em sua forma e conteúdo, pelas condições objetivas, que excluem a possibilidade de desejar o impossível” (Bourdieu, 2015, p. 52). O “destino” de seus membros é considerado como mais ou menos factível, ou mais ou menos improvável, de acordo com as experiências vividas de êxitos e fracassos - um cálculo inconsciente baseado no senso prático. Para os pais de Felipe, lavradores com pouca escolaridade, que não investiram na educação formal por não vislumbrem chances de ascensão social por meio do êxito escolar, ter um filho médico, professor ou psicólogo não estava, por assim dizer, no horizonte dos possíveis:

Como meus pais não foram bem sucedidos na vida, eles também não me influenciavam, não me davam força para estudar, achavam que quem entrava na universidade era filho de rico. Eu acho que eles não acreditavam que o pobre também pudesse ter conhecimento, que pudesse ser inteligente, sabe? Pra eles, o máximo era terminar o Ensino Médio e arrumar um emprego, trabalhar na roça, de vendedor, alguma coisa do tipo. Acho que nunca me sonharam sendo um psicólogo, nunca me sonharam sendo um professor, nunca me sonharam sendo um médico (Felipe Lima, Nova Olinda - CE)

Enquanto ouvimos seu depoimento, as imagens o mostram saindo de uma casa simples, na zona rural, pegando sua bicicleta e pedalando na estrada de terra. O caminho é árido. Quando desce da bicicleta, ainda está longe da escola. Sobe, então, na traseira de uma pick up, onde estão outros jovens uniformizados: seu transporte escolar. “Eles não sonhavam e não me ensinaram a sonhar, então, eu aprendi a sonhar sozinho. Tô aprendendo a viver também praticamente só”.

E como sonhar em meio às grades? Uma cena mostra um passarinho voando por entre as grades que cercam os corredores de uma escola; em outra, vemos uma professora destrancando cadeados e grades...

É um lugar aonde você vai, fica praticamente trancado numa sala. Muitas vezes você não sabe o que aquela pessoa tá explicando, você não faz a menor ideia do assunto, você fica na sua cadeira decidindo se você vai prestar atenção ou não. (Vitória Santos Lima, Juazeiro do Norte - CE)

É a “educação militar”, tão criticada por Maria: “sentado pra frente, só o professor falando”; “aquele modelo” tão criticado por Gustavo também: “que tu tem que ficar sentado ali, olhando o professor, que te segura ali, te prende ali o dia todo”. Sabemos, desde Foucault, que não é à toa que as escolas se pareçam tanto com os quartéis e as prisões e que, da arquitetura à ordenação por fileiras, passando pelos horários, séries e exames, trata-se da produção de corpos dóceis politicamente e produtivos economicamente:

Eu acho que a escola, ela tá aí querendo formar “cidadãos” alienados, que não questionam o que a gente tá vivendo. Você devia aprender a questionar tudo. (Milena Araújo, Serra - ES)

Focam em educação pra prova, pra passar na prova, no vestibular. E esquece o lado humano. Aquela coisa que você vai ter que aprender a socializar, aprender o natural. (Siosnei Paz Vieira, Nova Olinda - PE)

Mas quem disse que precisava ser assim?”, indagaria Gustavo em uma de nossas conversas, refletindo sobre sua trajetória escolar e o que o havia levado a participar da ocupação do D. Pedro II. Das grades de ferro às grades curriculares, os jovens colocam em questão, em suas falas, um sistema de ensino “tedioso” baseado ainda em aulas expositivas e pouco dialógicas; um sistema de ensino que faz com que a escola não seja investida como um espaço que lhes pertença e no qual possam realmente se expressar:

Certas vezes se torna uma coisa tediosa. Você vê sempre quatro paredes, sempre as mesmas quatro paredes. Aí, tipo, se um gênio chegasse e você dissesse “ah, eu quero quatro paredes, mas que todo dia mudasse de paisagem”. Isso ia ser demais! O professor vai falar sobre órgãos, aí aparece lá a parede dentro do corpo humano; sobre a caatinga, aí a paisagem aparecesse tudo sobre a caatinga. Porque você não ia só escutar o professor falando, você ia ver. (Vitória Santos Lima, Juazeiro do Norte - CE)

Muita gente diz que a escola é dos alunos, mas não é dos alunos não; a escola é do governo, da pessoa que tá lá agora governando por esse tempo. Se você não pode tomar nenhuma decisão na escola, então, ela não é sua; se você não pode fazer o que quer, então, não é sua, você está apenas participando daquilo ali, mas não é seu. (Gabriel Leal, Juazeiro do Norte - CE)

O mesmo descontentamento com esse modelo de escola foi percebido em outras pesquisas sobre as ocupações, como a realizada por Coti, Corrochano e Alves (2018, p. 131), em São Paulo, nas quais as atividades escolares eram descritas pelos estudantes como sendo “chatas”, “repetitivas” e destituídas de sentido: “Em outras palavras, se evidencia que a escola não tem despertado neles o prazer de estudar. Sendo que as práticas em sala de aula aparecem como importante obstáculo para o aprendizado”. As ocupações constituíram uma ruptura nesse continuum, com aulas expositivas sendo substituídas por “aulões” ao ar livre, oficinas e atividades culturais que propiciaram um reinvestimento do espaço escolar. Se para Gabriel a escola é sentida como sendo “do governo”, já que os alunos não possuem autonomia - “não pode tomar nenhuma decisão” -, o movimento, como também observou Groppo (2018, p. 103), alterou sensivelmente a percepção dos estudantes a respeito: “A ocupação levou a uma apropriação da escola como espaço público, não como algo ‘do governo’, o que se constatou no cuidado com sua limpeza e manutenção, o questionamento da falta de transparência da gestão da escola (...)”, entre inúmeras outras demandas que surgiram ao longo do processo.

É significativo, contudo, que apesar dessas críticas ao modelo tradicional de escola a figura do professor seja evocada de forma positiva pelos estudantes. Assim como nos relatos que ouvimos em nossa pesquisa, em Nunca me sonharam essa relação também é reivindicada como fundamental:

A maioria dos professores que eu tive aqui no Liceu, eles conseguiam nos envolver com a matéria, com a própria experiência de vida deles, e esse envolvimento faz com que a matéria venha, fique em mim e não saia nunca mais (...) É daquela matéria que, se você me perguntar daqui a 10 anos, eu vou dizer, ‘poxa, eu tive uma professora que me ensinou assim, assim, assim’. E essas são as coisas que marcam. Primeiramente, é o professor que te marca, não é a matéria. (Gabriel Ferreira, Goiânia - GO)

Os mantenedores dos sonhos, figuras de afeto e suporte, apesar de também encerrados, com seus alunos, em “quatro paredes, sempre as mesmas quatro paredes”.

Quando surgem os créditos finais, a pergunta de Gustavo continua ecoando nas vozes que ouvimos ao longo do filme: “Mas quem disse que precisava ser assim?”.

Considerações finais

A ocupação do colégio D. Pedro II não foi longa, mas seus efeitos foram potentes. Talvez o mais importante tenha sido a dimensão educativa dessa experiência, propiciada pela autogestão e a convivência com a pluralidade de ideias e de posições divergentes. A decisão de ocupar foi tomada em assembleia. A decisão de desocupar, duas semanas depois, também. Discutidas e aprovadas, diferentes opiniões foram defendidas e aceitas, num exercício de democracia direta que, por mais árduo e exaustivo que fosse, constituiu a tônica do movimento. Junto às conquistas realizadas, a experiência da democracia como um processo que implica necessariamente diálogo e dissenso.

Para Gohn (2011, p. 333), os movimentos sociais configuram espaços de aprendizagem, de experimentação social e inovações culturais: “Uma das premissas básicas a respeito dos movimentos sociais é: são fontes de inovação e matrizes geradoras de saberes. Entretanto, não se trata de um processo isolado, mas de caráter político-social”. Tendo como protagonistas secundaristas e universitários, pode-se dizer que as ocupações estudantis que surpreenderam o país entre outubro de 2015 e dezembro de 2016 constituíram, efetivamente, um processo de aprendizagem coletiva. Da autogestão do espaço escolar - com a organização de comissões e distribuição de tarefas -, aos debates nas assembleias; passando pelo esforço em criar uma narrativa outra que a veiculada pelo governo e pela grande imprensa - através do uso criativo das redes sociais -; evidenciou-se um processo gerador de saberes que propiciou a formação política de jovens não engajados em partidos políticos ou associações estudantis.

“Eu não sabia o que era política, eu fui me interessar em política depois da ocupação”, nos confiaria Maria, avaliando retrospectivamente sua participação no movimento.

Diversos autores ressaltam essa dimensão educativa das ocupações - que, como tão bem sintetizou Maria, não se esgota no evento em si -, salientando o fato de que a formação política dos estudantes, organizados ou não em coletivos e/ou associações, foi sendo construída na prática por meio da ação coletiva. Analisando as ocupações no Paraná, Flach e Schlesener (2017, p. 183-184) avaliam que o movimento proporcionou a formação de uma perspectiva crítica, do ponto de vista social e político, através de um processo de transformação individual e coletivo que levou os estudantes a se perceberem não em termos individuais, mas como parte ativa de uma coletividade. Como defendem, os estudantes “exerceram atividade reivindicatória e educativa, pois vivenciaram uma luta por democracia de alta intensidade, não possível em discussões livrescas e fechadas em espaços opressores” (Flach e Schlesener, 2017, p. 177). Groppo, Rossato e Costa (2019) também enfatizam a dimensão educativa desse processo, considerando que os jovens lograram colocar em prática uma política caracterizada pela participação direta e horizontal, na qual a transformação social foi experimentada, também, como transformação de si. Para os autores, essa experiência coletiva - que congregou alunos e professores, filhos e pais, promovendo também um frutífero diálogo intergeracional - constituiu uma poderosa ferramenta de subjetivação política na qual os estudantes se descobriram como sujeitos de sua própria história.

Com efeito, percebemos na fala de nossos interlocutores o quanto o movimento contribuiu para o processo de formação política: “[a ocupação] fez todo mundo pensar, porque depois teve debates, o pessoal quis saber o que estava acontecendo mais no nosso país. Eu digo que foi uma filosofia, a ocupação foi uma filosofia, ela moveu algumas coisas” (Maria).

O que não é pouca coisa. Percebemos nesses relatos que nos foram confiados uma grande vontade de participação cidadã, de “fazer a diferença”, como disseram. Defrontamo-nos com jovens ativos, com disposição para contestar um sistema de ensino em descompasso com o mundo contemporâneo, para reivindicar uma educação que atenda às suas necessidades e anseios. Jovens que não desinvestiram a escola - “Então, a gente tratou a escola com carinho, a ocupação foi tratada com carinho, foi uma ocupação totalmente carinhosa, totalmente solidária, totalmente pra benefício da escola” (Maria) -; ao contrário, que a tomaram para si, cuidando seus espaços - “A gente botou chuveiro, coisa que não tinha nos vestiários da quadra, a gente limpou caixa d’água, inclusive mostramos as fotos” (Gustavo) - e propondo a discussão de temas que realmente os interessavam em “aulões” - “A gente tinha aulões no pátio, oficinas de pintura, artesanato, movimento negro. Toda essa cultura, essa mesticidade. Sábado era nosso dia da leitura, então a gente fazia aulão de leitura. Cada um levava uma poesia que gostava e recitava” (Maria). E ainda que não se sintam representados politicamente, não se pode dizer, tampouco, que desinvestiram a política: “Eu ainda participo, continuo me instruindo sobre as coisas, continuo procurando participar de fato da política, porque é onde, na minha concepção, eu acho que muda de fato” (Gustavo).

Nesse artigo procuramos compreender os sentidos atribuídos ao movimento por esses jovens que ocuparam resolutamente suas escolas, reivindicando-as como suas, cuidando-as e tecendo, na ação coletiva, laços de afeto em um contexto de avanço das políticas educacionais de caráter gerencialista e tecnicista, calcadas no modelo neoliberal. Esses jovens se insurgiram contra os efeitos nefastos desse modelo, vivenciado, no cotidiano escolar, como a precarização não apenas de suas escolas, como também a precarização do próprio direito de sonhar.

Em A miséria do mundo, analisando o sofrimento social causado pelas políticas neoliberais - sofrimento expresso por um mal-estar difuso, sobretudo, no mercado de trabalho e no sistema escolar -, Bourdieu (2012) nos adverte que compreender os mecanismos econômicos e sociais que tornam a vida dolorosa, se não intolerável, não significa neutralizar esses mecanismos, assim como explicar as contradições não significa, bem entendido, resolvê-las. No entanto, a possibilidade de compreender a “origem social, coletivamente oculta, da infelicidade sob todas as suas formas, inclusive as mais íntimas e as mais secretas”, pode ter um efeito liberador, passível de ser traduzido em ação política contra a dominação (Bourdieu, 2012, p. 735). Como defende, a luta cognitiva a respeito do sentido do mundo é luta contínua, sendo travada nos mais diversos espaços sociais.

A escola constitui um desses espaços: ao mesmo tempo em que opera como uma instância de reprodução das desigualdades, propicia, em suas brechas, possibilidades infindas de desconstrução. Em Nunca me sonharam, uma jovem de Teresina explica justamente essa sensação de descoberta do mundo que a escola pode proporcionar:

E quando você chega num lugar onde você pode ter essa chave para abrir as portas é algo assustador, porque é um poder que você tem. Você percebe quando uma pessoa sobe num palanque e tá mentindo pra você, você percebe quando você abre um canal de televisão e você vê todas aquelas coisas que tá debaixo do pano. Tipo, nossa, esconderam isso de mim a vida toda? (Ana Karoline de Melo, Teresina - PI).

As ocupações estudantis ampliaram essas brechas e abriram inúmeras outras, de forma corajosa e criativa, demonstrando o quanto a escola, quando investida, pode se transformar em um espaço de problematização da ordem simbólica, com seus sentidos únicos e desigualdades de toda ordem. Uma outra forma de nos lembrar, frente à onda neoliberal e conservadora que vêm exterminando tantos sonhos em nosso país, que “o que o mundo social fez, o mundo social pode desfazer”, como concluiria Bourdieu em A miséria do mundo.

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3 Sancionada em Lei nº 13.415, de 16/02/2017.

4 A PEC 241 em sua tramitação na Câmara dos Deputados se transformou em PEC 55, no Senado, e foi promulgada como Emenda Constitucional 95 em 15/12/16.

5 Os nomes de nossos interlocutores foram todos alterados para garantir o sigilo ético necessário à pesquisa.

Recebido: 24 de Abril de 2019; Aceito: 06 de Agosto de 2019

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