Introdução4
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932 alertara para um desafio que se contrapunha ao desenvolvimento de uma educação voltada à formação integral dos estudantes brasileiros: a superação da dualidade estrutural. Denunciara-se a existência de dois modelos de escola, surgidos do divórcio entre projetos de educação formal: um voltado às classes operárias (com foco nos ensinos primário e profissional) e outro voltado aos grupos abastados (com foco nos ensinos secundário e superior): “dois sistemas escolares paralelos, fechados em compartimentos estanques e incomunicáveis, diferentes nos seus objetivos culturais e sociais, e, por isto mesmo, instrumentos de estratificação social” (Azevedo et al., 2006, p. 197).
Essa dualidade se manifestaria pela separação em dois modelos de escola e de currículo, dedicados à produção de grupos ou classes sociais, direcionados ou aos “trabalhos de direção”, ou aos “trabalhos de execução”. De um lado, uma educação baseada em atividades de criação e direção da produção e do aparato jurídico, político e científico, voltada aos grupos dirigentes, e, de outro, atividades destinadas a grupos da classe trabalhadora, que executariam as técnicas, tecnologias e diretrizes produzidas pelos primeiros. Essa dualidade se materializou também por meio de instituições de ensino voltadas à formação de mão-de-obra para o mercado de trabalho: as escolas técnicas e profissionais, separadas (total ou parcialmente) das escolas de reconhecida qualidade que lidaram com o ensino propedêutico, acadêmico e/ou científico.
A partir dos anos 1980, com o processo de redemocratização no Brasil, nas discussões da Constituinte e da produção da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, grupos de educadores, pesquisadores e sociedade civil organizada promoveram debates questionando o modelo tecnicista e dual de educação implementado na ditadura civil-militar. Destaca-se o Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública (FNDEP), reunindo mais de trinta instituições científicas, sindicais e de movimentos sociais empenhadas em superar as reformas do regime ditatorial. (Frigotto, 2016)
O debate sobre dualidade estrutural colocado pelo movimento escolanovista na década de 1930 se pautou em inspirações como o pragmatismo de Dewey e a Sociologia da Educação de Durkheim. Já o debate levantado pelo FNDEP na década de 1980 tendia a uma perspectiva teórico-crítica mais próxima ao materialismo dialético de Marx, em que a dualidade estrutural expressa as relações de classe no modo de produção capitalista. Vislumbrou-se aí a construção de um projeto alternativo de educação e de sociedade com base na ideia marxiana de educação politécnica e no conceito de escola unitária de Gramsci, na expectativa de que a união entre educação científica e profissional formaria um modelo que superaria a dualidade estrutural. As discussões realizadas no período fundamentaram o Projeto de Lei nº 1.258, de 29 de novembro de 1988, que propôs diretrizes e bases para a educação nacional visando uma formação baseada em concepções crítico-dialéticas. (Caires e Oliveira, 2016)
Nos anos 1990, a reforma da educação (da educação profissional, em especial) continua a ser debatida em meio a recorrentes disputas entre grupos de interesse, com demandas advindas dos setores empresariais e das classes trabalhadoras. Tal processo incorreu na aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), que, porém, descaracterizou o projeto de educação originalmente colocado pelo FNDEP, que visava superar a dualidade estrutural. Esta nova LDB permitia ainda regulamentações posteriores à sua homologação, e, no tocante ao ensino profissional, considerável parte das regulamentações foi aprovada em consonância com a agenda neoliberal da gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), por meio de decretos e medidas provisórias com viés conservador e privatista.
Na década de 2000, um novo modelo se apresenta como divisor de águas na história do ensino profissional no Brasil: os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs). Com a Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008, são criados os IFs como parte da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT), integrando na forma de 38 IFs os preexistentes Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs) e Escolas Agrotécnicas Federais (EAFs). Isso decorreu das políticas de reestruturação da educação técnica, profissional e tecnológica adotadas pela gestão de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010), que promoveu o rearranjo das instituições de ensino já gerenciadas pelo governo federal desde 1909.
Em 2016, conforme dados do Ministério da Educação (MEC),5 compunham a RFEPCT 602 campi de IFs, distribuídos por 568 municípios, que somados aos dois CEFETs (MG e RJ) mantidos, a 25 escolas em Universidades, a 14 campi do Colégio Pedro II e à UTFPR, totalizam 644 campi. A expansão desse tipo de escola foi expressiva: de 1909 a 2002, criou-se pouco mais de 140 campi de escolas técnicas ou profissionalizantes, número que chega a 356 em 2010, ao fim dos Governos Lula, e a 644 em 2016, verificando-se a expansão desta política nas gestões de Dilma Rousseff (2011-2016). Instituiu-se aí a política pública de expansão e interiorização da educação profissional com maior alcance na história do país.
A criação dos IFs reacendeu o debate sobre a dualidade estrutural do sistema nacional de ensino, sobretudo pela centralidade do seu Ensino Médio Integrado à educação profissional (EMI). Possibilitado pelo Decreto 5.154, de 23 de julho de 2004, o EMI se tornou uma das bases dos IFs, tendo como público concluintes do Ensino Fundamental e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) (Brasil, 2008). Neste contexto, o EMI surge como possibilidade de rompimento com a reprodução do modelo de escola dual, pois tenderia a reunir elementos que colocariam os estudantes em contato tanto com o mundo do trabalho, quanto com o mundo da produção do conhecimento, em modelo inspirado na escola unitária gramsciana. Contudo, sendo a dualidade estrutural, esta perpassa a própria constituição do EMI nos IFs.
Dito isto, o objetivo deste artigo é dialogar com autores de referência da pesquisa em educação e, principalmente, com os pesquisadores que realizaram estudos sobre o EMI nos IFs, com foco nas manifestações da dualidade estrutural que detectaram. Para tanto, apresenta-se uma revisão sistemática das dissertações e teses defendidas no Brasil entre 2012 e 2017, a partir de pesquisa realizada em 3 de maio de 2018 no catálogo da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), que é vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).6 O critério para a seleção foi a ocorrência concomitante dos termos de pesquisa “Institutos Federais” e “Ensino Médio Integrado” na busca por assunto, detectando-se as 30 produções acadêmicas que compõem o objeto desta revisão.
Os IFs e a proposta oficial de crítica à dualidade na educação técnica e profissional
A proposta oficial dos IFs é centrada na crítica ao projeto de reprodução ampliada da dualidade estrutural na educação técnica e profissional. No art. 2º da Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008, os IFs são definidos como:
[...] instituições de educação superior, básica e profissional, pluricurriculares e multicampi, especializadas na oferta de educação profissional e tecnológica nas diferentes modalidades de ensino, com base na conjugação de conhecimentos técnicos e tecnológicos com as suas práticas pedagógicas. (Brasil, 2008)
Os IFs se estruturaram institucional, curricular e pedagogicamente de modo diferente dos anteriores centros tecnológicos e das escolas técnicas federais, e também das Universidades, abrangendo um grande leque de formações acadêmicas, técnicas e tecnológicas. E sua expansão em território nacional, especialmente onde não se ofertava esse tipo de educação, demonstra a relevância que ganharam os IFs em sua década de existência.
Projeta-se nos IFs uma formação que conjugue academia e educação profissional, bem como ciência e cidadania, buscando superar o modelo de “escola dual”, o que se nota em dois exemplos. O primeiro se refere ao texto da lei de criação dos IFs, a Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008, que, em seu artigo 7º, incisos IV e V, define suas finalidades:
IV - desenvolver atividades de extensão de acordo com os princípios e finalidades da educação profissional e tecnológica, em articulação com o mundo do trabalho e os segmentos sociais, e com ênfase na produção, desenvolvimento e difusão de conhecimentos científicos e tecnológicos;
V - estimular e apoiar processos educativos que levem à geração de trabalho e renda e à emancipação do cidadão na perspectiva do desenvolvimento socioeconômico local e regional. (Brasil, 2008, grifo nosso)
Verifica-se, no texto da lei, a proposta de que os IFs devem articular os processos educativos ao “mundo do trabalho”, visando a “emancipação do cidadão”. Ou seja, visa-se um processo formativo que não se limite ao adestramento para o mercado de trabalho.
O segundo exemplo é a fala de Eliezer Pacheco, Secretário de Educação Tecnológica do Ministério da Educação de 2005 a 2011. Em entrevista concedida a Fornari (2017), Pacheco afirma que os cinco princípios fundamentais dos IFs são: (a) Formação Humana Integral; (b) Cidadania; (c) Trabalho, Ciência, Tecnologia e Cultura; (d) Trabalho como princípio educativo; (e) Educando enquanto produtor de conhecimentos.
O conceito de “escola dual” se refere a projetos ligados à educação profissional pregressos à criação da RFEPCT no Brasil. Na Primeira República (1889-1930), com o Decreto nº 7.566, de 23 de setembro de 1909, a institucionalização das Escolas de Aprendizes e Artífices visou profissionalizar “desafortunados e desvalidos”, tidos como “potencialmente perigosos” à ordem social. O caráter assistencialista se justifica no contexto de desenvolvimento incipiente do mercado de trabalho no país, que, pré-industrial e dependente do agronegócio de exportação, contava com grande exército de reserva, predominando também relações informais de trabalho.
A profissionalização para o mercado como política de Estado é implementada somente a partir dos primeiros Governos Vargas (1930-1945), no início do capitalismo competitivo e do desenvolvimento industrial, urbano e comercial no Brasil. É neste contexto que as Escolas de Aprendizes e Artífices são reformuladas e são criados os Liceus, voltados ao ensino industrial. Embora essa política superasse os propósitos assistencialistas de antes, continuava direcionada à formação de classes operárias - em consonância com as tendências do capitalismo no Brasil, direcionadas pela política varguista de promoção da indústria nacional, apoiada pela burguesia urbana industrial. (Caires e Oliveira, 2016)
Já no regime militar, a partir da reforma educacional com a Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971, institucionaliza-se a profissionalização compulsória por meio da obrigatoriedade da formação técnica e profissional no ensino secundário. No entanto, a aparente integração entre educação e mundo do trabalho manteve sua dualidade e a hierarquia entre grupos sociais, destacando-se ainda a não participação de representantes das classes trabalhadoras na concepção dessa política. Neste contexto, escolas particulares ajustaram os seus currículos a uma educação propedêutica, mantendo o projeto de formação acadêmica e científica voltado às classes dirigentes.
Após a redemocratização, já na década de 1990, reformas neoliberais, conservadoras e privatistas na educação profissional direcionaram esta modalidade para a formação aligeirada de mão-de-obra, sobretudo nos Governos FHC. Cita-se aqui dois exemplos: o Decreto 2.208, de 17 de abril de 1997, que desassociou Ensino Médio e ensino profissional, impossibilitando o Ensino Médio Integrado nas escolas federais; e a Lei 9.649, de 27 de maio de 1998, que impediu a expansão da oferta de educação profissional por iniciativa exclusiva da União. Nota-se o direcionamento neoliberal - em conformidade com os ditames do mercado e das agências econômicas internacionais - e, ao mesmo tempo, conservador desta gestão - evidenciando mais ainda a dualidade do ensino ao institucionalizar duas redes separadas: uma propedêutica e outra profissional.
Entretanto, uma década depois, no texto da Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008, e nas falas do ex-secretário de Educação Tecnológica do MEC, o governo Lula se propõe agir em sentido oposto, e lança os IFs como entidades dedicadas à Formação Humana Integral, à cidadania e ao mundo do trabalho, rompendo com o pragmatismo da formação aligeirada para o mercado de trabalho. Apresentando-se, então, como um projeto de consolidação e de valorização da educação profissional e tecnológica, em superação ao desmantelamento ocorrido nos Governos FHC.
A concepção de ensino médio politécnico amplamente debatida na década de 1980 - e presente na formulação da proposta do EMI dos IFs - coloca o desafio de construir um modelo de educação não-dual, que articule cultura, conhecimento, tecnologia e trabalho como direitos e exercício da cidadania. Isso faz com que o EMI seja considerado um dos modelos de educação politécnica possível, a partir de “uma concepção de educação que busca, a partir do modelo de desenvolvimento do capitalismo e de sua crítica, superar a proposta burguesa de educação que potencialize a transformação estrutural da realidade” (Frigotto et al., 2012, p. 44).
A ênfase no EMI como caminho para superar a escola dual parece comum aos discursos oficiais e dos pesquisadores, no entanto, a investigação das práticas institucionais e pedagógicas nestas escolas pode mostrar se e como a dualidade estrutural continua presente nos IFs. Os resultados de pesquisas acadêmicas cujos objetos de estudo se relacionam ao EMI dos IFs oferecem algumas pistas sobre esse fenômeno, pistas estas sistematizadas na revisão exposta a seguir.
Dualidade estrutural e EMI nos IFs: do que tratam as pesquisas em revisão
A seleção de dissertações e teses para esta revisão se deu com base em busca por assunto na BDTD/IBICT/MCTIC, e o critério foi a ocorrência concomitante dos termos de pesquisa “Institutos Federais” e “Ensino Médio Integrado”, encontrando-se 30 trabalhos. Destes, 14 foram defendidos em programas de pós-graduação em Educação, 2 em Educação em Ciências, 1 em Ensino de Ciências, 1 em Ensino de Ciências e Matemática e 1 em Psicología Educativa y Ciencias de la Educación; mostrando a relevância da temática para as áreas de Educação e Ensino. Localizou-se ainda 1 trabalho em cada uma das 11 seguintes áreas: Administração; Ciência da Informação; Ciências Sociais; Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade; Gestão Pública; Gestão de Políticas Públicas; Letras; Música em Contexto; Planejamento e Análise de Políticas Públicas; Políticas Públicas e Gestão da Educação Profissional; e Psicologia.
Autora/Autor | Ano de Defesa | Tipo de trabalho | Programa de Pós-Graduação em... | Universidade |
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GRILLO, M. S. | 2012 | Mestrado | Educação | PUC-RS |
COIMBRA, F. C. C. L. | 2012 | Mestrado | Educação | UFC |
BATISTA, L.L | 2012 | Mestrado | Educação | Unicamp |
CUNHA, M. L. | 2012 | Mestrado | Educação | Unicamp |
BEZERRA, D. S. | 2012 | Doutorado | Educação | USP |
ZUKOWSKI, N. B. S. | 2013 | Mestrado | Políticas Públicas e Gestão da Educação Profissional | UnB |
SCHNEIDER, M. M. B; | 2013 | Mestrado | Educação em Ciências | UNIJUÍ |
RAYKIL, E. B. | 2014 | Mestrado | Administração | UFBA |
SÁ, N. M. | 2014 | Mestrado | Educação | UNISINOS |
MANKZE, G. R. | 2015 | Mestrado | Ensino de Ciências e Matemática | UFPel |
SILVA JÚNIOR, S. D. V. | 2015 | Mestrado | Letras | UFPel |
SOUZA, F. E. | 2015 | Mestrado | Gestão de Políticas Públicas | UFT |
SILVA, R. L. | 2015 | Mestrado | Educação | UnB |
ÁVILA, L. A. | 2015 | Mestrado | Gestão Pública | UnB |
SILVA, M. P. | 2015 | Mestrado | Música em Contexto | UnB |
SILVA, T. A. | 2015 | Mestrado | Educação | UNIOESTE |
FERNANDES, M. B. | 2015 | Mestrado | Ensino de Ciências | UNIPAMPA |
COSTA, R. M. | 2015 | Doutorado | Educação | UFSC |
PERUCHI, V. | 2015 | Doutorado | Ciência da Informação | UnB |
OLIVEIRA, T. F. | 2016 | Mestrado | Psicologia | UFSC |
OLIVEIRA, A. M. | 2016 | Mestrado | Planejamento e Análise de Políticas Públicas | Unesp |
BOAVENTURA, G. D. R. | 2016 | Doutorado | Educação | PUC-GO |
ALVES, C. G. M. | 2016 | Doutorado | Educação em Ciências | UFRGS |
FLORO, E. F. | 2016 | Doutorado | Educação | Unesp |
CARLUCCI, R. B. | 2016 | Doutorado | Psicología Educativa y Ciencias de la Educación | Universidade de Léon (ULE) |
SOUZA, H. C. O. | 2017 | Mestrado | Ciências Sociais | UEL |
CERQUEIRA, Y. D. F. | 2017 | Mestrado | Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade | UNIFEI |
OLIVEIRA, E. A. | 2017 | Doutorado | Educação | UnB |
REIS JÚNIOR, R. L. | 2017 | Doutorado | Educação | UnB |
BRESCI, M. S. | 2017 | Doutorado | Educação | Uninove |
Fonte: os autores (2018).
Destaca-se a diversidade de abordagens metodológicas e o fato de que a maior parte dos estudos optou por mais de uma, dentre as quais: análises documentais, estudos de caso, análises de redes sociais, observação participante e não-participante, análises de conteúdo. Os estudos foram realizados em diversos campi dos IFs e em todas as regiões brasileiras. A distribuição dos estudos por campus e por região se confere a seguir:
Região do País | Nº de estudos | campus |
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Sudeste | 5 | IFES - campus Vitória |
IFSul de Minas - campus Inconfidentes | ||
IFSul de Minas - campus Passos | ||
IFSul de Minas - campus Machado | ||
IFTM - 6 campi | ||
Norte | 5 | IFPA - campus Rural de Marabá |
IFPA - campus Belém | ||
IFPA - campus Belém | ||
IFTO - campus Paraíso do Tocantins | ||
IFTO - campus Palmas | ||
Centro Oeste | 3 | IFGoiano - campus Ceres e campus Rio Verde |
IFMS - todos os campi | ||
IFs na região RIDE-DF | ||
Sul | 7 | IF Farroupilha - campus Santo Augusto |
IFPR - campus Telêmaco Borba | ||
IFRS - não especifica o campus | ||
IFSC - campi Florianópolis e Florianópolis Continente | ||
IFSC - campus São José | ||
IFSul - campus Charqueadas | ||
IFSul - campus Pelotas | ||
Nordeste | 4 | IFBA - campus Porto Seguro |
IFCE - campi Iguatu, Crato e Fortaleza | ||
IFMA - campus Açailândia | ||
IFPI - campus Teresina Central | ||
Sem região específica | 2 | 58 Planos de cursos de diferentes IFs |
Pesquisa documental | ||
Não tratam do tema | 4 | Desconsiderados da análise |
Fonte: os autores (2018)
Dentre estes trabalhos, não são todos os que versam especificamente sobre a dualidade estrutural no EMI dos IFs, mas, a partir dos dados que levantaram, faz-se possível investigar como a dualidade se redesenha e ressignifica nas políticas educacionais e práticas pedagógicas.
Pode-se distinguir nestes estudos duas tendências de análise quanto às manifestações da dualidade no EMI dos IFs: (1) desintegração e dualidade do currículo; e (2) desintegração com a formação profissional.
A primeira tendência se refere à desintegração e à dualidade do currículo do EMI nos IFs. Nesta, os estudos apontam o divórcio e hierarquização entre teoria e prática, entre educação profissional e educação geral, e entre formação para o mundo do trabalho e formação para o mercado de trabalho. Tal separação é característica da dualidade estrutural, como apontam as críticas da vertente marxista. Vejamos com mais detalhes os trabalhos que seguem essa tendência.
Batista (2012) realizou um estudo com gestores, professores e alunos do campus Vitória do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), cuja finalidade foi investigar as representações que tinham acerca do conhecimento da área de Artes no EMI. A autora argumenta que no EMI há o subjugo do Ensino Médio ao Ensino Técnico, prevalecendo a preparação do indivíduo para o mercado de trabalho. Em suas conclusões, ela afirma que, no contexto de sua pesquisa, o conhecimento de Artes não é reconhecido como importante à formação humana integral. E a autora questiona ainda o fato de as Ciências Humanas se encontrarem inferiorizadas em relação ao ensino de conhecimentos técnicos, o que para ela evidencia o tecnicismo herdado das escolas industriais e técnicas federais. Tal constatação se dá pela análise que a autora realiza dos projetos político-pedagógicos dos cursos do IFES, em que detecta uma menor carga horária dispendida com disciplinas de Ciências Humanas. Essa é uma das evidências da fragilidade na integração curricular, corroborando a ideia de que se mantém currículos e práticas pedagógicas que incorrem em uma formação mais “parcializada” do que “especializada”. Apesar da autora reconhecer os esforços da equipe pedagógica em trabalhar uma perspectiva interdisciplinar e transdisciplinar, afirma que há no EMI a fragmentação do conhecimento e um ranço tecnicista no lidar pedagógico.
A sobreposição dos conhecimentos das áreas técnicas aos conhecimentos das áreas de núcleo comum nos IFs é abordada por Cunha (2012). Segundo ele, disciplinas de núcleo comum e de núcleo profissional são sobrepostas, tendo as primeiras as cargas horárias diminuídas em função das segundas, como no caso da disciplina de Educação Física, tratado na sua dissertação, e no caso da disciplina de Artes, apresentado por Batista (2012). A sobreposição curricular e o conteudismo são mencionados também nos trabalhos de Coimbra (2012), Costa (2015), Manzke (2015), Cerqueira (2017) e Reis Júnior (2017).
Em pesquisa no campus Charqueadas do IFSul, Grillo (2012) procurou apreender a percepção de docentes do curso de Técnico Integrado em Mecatrônica acerca do EMI. Porém, ele afirma não ter encontrado projetos de práticas integradas entre as disciplinas do curso, e sim uma desarticulação entre formação geral e profissional no EMI. O autor reconhece que a criação dos IFs movimentou o debate sobre a dualidade estrutural, questão presente inclusive no Projeto Político Institucional do IFSul. No entanto, alega haver uma incapacidade da compreensão dos preceitos da proposta oficial do EMI por parte dos docentes, não bastando apenas constarem no currículo as disciplinas técnicas e de formação geral.
A falta de formação para os professores lidarem com o EMI é tratada nos trabalhos de Zukowski (2013), Silva (2015), Schneider (2013) e Costa (2015). Zukowski (2013) ressalta o pouco diálogo entre professores ligados às áreas de formação profissional e de formação geral. Silva (2015) discorre sobre a ausência de domínio conceitual dos professores sobre o currículo integrado, o que, segundo ele, demonstra a existência concreta de dois currículos (profissional e propedêutico), mais sobrepostos do que integrados. Schneider (2013) alega que a diversidade da formação acadêmica dos professores do EMI também seria um dos fatores que dificulta o estabelecimento de consenso na integração curricular. Já Costa (2015) localiza a dificuldade de diálogo entre professores de núcleo comum e áreas técnicas, resultando em um planejamento pedagógico particular de cada docente ou de grupos de docentes de áreas específicas, e não de cada unidade de ensino como coletivo integrado.
Como visto, o distanciamento entre formação técnica e geral ainda se apresenta no EMI, especialmente, como manifestação da dualidade estrutural no currículo. A sobreposição de um currículo técnico sobre o currículo de formação geral torna a proposta de integração entre ensino profissional e propedêutico mais formal do que concreta. E isso pode apresentar consequências nos motivos que levam os estudantes a procurarem os IFs, assim como no que poderão realizar em suas vidas após concluírem o EMI. Sobre esse ponto, é notório entre as teses e dissertações o argumento de que, mais do que representar uma possibilidade real de atuação profissional, o ensino técnico tende a ser apenas um plus para os estudantes do EMI nos IFs.
A partir daqui, apresenta-se a discussão quanto à segunda tendência de análises sobre a relação entre dualidade estrutural e EMI: a desintegração entre EMI e formação profissional.
Bezerra (2012) aponta alguns indicadores desse tipo de dualidade no Brasil: o primeiro é a separação da gestão da Educação Profissional (gerenciada pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica) e da Educação Básica (sob a gerência da Secretaria de Educação Básica) - observação também referenciada por Reis Júnior (2017). Essa separação de gestões incorre em distintos direcionamentos nas modalidades de ensino, que a princípio, encontrar-se-iam integradas no EMI dos IFs.
Ao pesquisar projetos pedagógicos de cursos de EMI em vários IFs do Brasil, com o objetivo de analisar a inserção do estudo da Língua Inglesa nos programas curriculares, Bezerra (2012) afirma que o ensino profissional aparece como um plus na formação do estudante, não sendo colocado de forma integrada ao ensino geral. Segundo ela, o que vem sendo considerado como formação integrada é na verdade uma formação “hibridizada”, que atende aos desígnios da divisão social do trabalho no capitalismo, contradizendo a premissa da Formação Humana Integral de que tratam os documentos oficiais e as leis.
Essa discussão apareceu também em Manzke (2015). Ela argumentou que a educação profissional não se apresenta de forma integrada ao Ensino Médio na perspectiva dos alunos e da comunidade, sendo percebida mais como um plus na formação dos estudantes. Grande parte dos estudantes procuram o EMI nos IFs tendo por considerar este como um ensino de qualidade superior e de boa estrutura física e laboratorial, e, principalmente, de alta qualificação docente, em comparação às demais escolas públicas das redes estaduais. Mas, segundo a autora, a busca por uma educação propedêutica de alta qualidade mantém o abismo concreto entre formação profissional e geral, e leva ao que ela chamou de uma “indefinição” dos objetivos do EMI, o que historicamente já acometia as escolas incorporadas à Rede Federal. Se na ditadura civil-militar as Escolas Técnicas Federais eram as instituições que possuíam know-how e condições para a profissionalização compulsória, atualmente, a busca e a valorização de uma qualificação no ensino superior pelos jovens tende a inverter esse pêndulo para a formação propedêutica. Deste modo, os IFs são procurados por proporcionarem uma educação propedêutica de maior qualidade, com vistas à aprovação em vestibulares e no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), revelando a manutenção da dualidade estrutural, tanto no currículo, quanto no destino dos estudantes que procuram os IFs.
Boaventura (2016) chega a conclusão semelhante. Para ela, os egressos com os quais realizou pesquisa no IFBA não apresentaram noções de aplicabilidade no mercado de trabalho ou nas escolhas de curso superior dos conhecimentos técnicos adquiridos. Ela afirma que o EMI é percebido como uma “etapa da formação geral que desperta vocações e que os prepara para o processo seletivo de acesso à etapa seguinte dos estudos” (Boaventura, 2016, p. 88), ou seja, ao ensino superior. Assim, o interesse pela formação técnica não passaria pela profissionalização, uma vez que a formação propedêutica é que os encaminharia à seleção pelas universidades.
Uma das possíveis explicações para a distância entre a profissionalização adquirida no EMI dos IFs e a inserção de fato no mundo do trabalho é apresentada por Raykil (2014). Ela demonstra que não há relações consistentes entre os arranjos produtivos locais e a formação dos profissionais desenvolvida no IFBA do campus Porto Seguro. Não haveria ali relação entre o curso técnico-profissional e o mundo do trabalho nas circunvizinhanças dos estudantes. Para ela, isso se refletiu na ausência de oportunidades de trabalho na região de Porto Seguro para as áreas técnicas contempladas no IFBA local e na impossibilidade de continuidade dos estudos na mesma área de formação profissional, ratificando o argumento de que há uma distância entre os cursos técnicos do EMI e o mundo do trabalho em suas realidades locais e regionais.
Floro (2016) ressalta a expertise histórica das escolas incorporadas à Rede Federal em realizar currículos experimentais. Seriam como laboratórios das reformas da educação voltados ao disciplinamento técnico e ao mercado. Considerando essa trajetória, há o risco de se cair em um pragmatismo na formação do EMI, pois, embora voltado a um modelo de formação humana integral e cidadã, tenderia a atender os desígnios do mercado. Nesse sentido, parece inadequada a apropriação de conceitos de Marx e Gramsci, então, voltados a uma pedagogia socialista, e incompatível com o capitalismo, como nota Bresci (2017).
Moura et al. (2015) também ressaltam esse aspecto, porém, reconhecem - assim como Frigotto et al. (2012) - que é no desenrolar das contradições do próprio capitalismo que se desenvolvem as potências transformadoras para um modelo alternativo. E o EMI pode ser visto dessa forma, como uma potência. Dos trabalhos em revisão, é o de Souza (2017) que assim vislumbra o EMI. Seu estudo foi centrado na pesquisa com egressos de cursos integrados no IFPR, campus Telêmaco Borba. Para ela, por meio do EMI, tornaram-se reais aos estudantes mais possibilidades de escolhas quanto à continuidade de itinerários formativos e de atuação profissional. E foi também Souza (2017) a única que apresentou elementos da discussão quanto à Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, que institui a reforma do Ensino Médio, realizada pelo governo pós-impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Para a autora, ao modelar um tipo de profissionalização aligeirada e atrelada a interesses mercadológicos, tal reforma limita a quantidade e também a qualidade dentre as possibilidades de escolhas dos alunos que ingressarem no Ensino Médio, comprometendo, com isso, também, o próprio EMI.
A criação dos IFs não rompeu significativamente com a realidade social brasileira, que histórica e estruturalmente apartou da educação formal porção significativa de sua população, até porque o EMI dos IFs representou, conforme o Censo Escolar de 2017 (Brasil, 2018), menos de 2,4% das matrículas de nível médio no país.7 Ainda assim, conforme Frigotto (2016), os IFs se constituem em uma oportunidade para milhares de jovens brasileiros terem acesso à educação, pois, “nas diferentes modalidades e níveis de ensino, num país que sempre se negou [...] aos filhos dos trabalhadores o direito à educação básica de nível médio”, isso já “é em si um ganho extraordinário” (Frigotto, 2016, p. 17).
Diante do que foi exposto, considera-se que há questões fundamentais a serem debatidas em relação à integração ou não integração curricular no EMI, e sobre a separação entre mundo do trabalho e formação profissional, características estas da dualidade do ensino no Brasil, mas que não foram mencionadas nos trabalhos revisados, a saber: quem ou quais são os grupos sociais que têm de fato acesso e permanência nos IFs? Estas escolas possibilitam mais “escolhas” de vida aos estudantes? E, sobretudo, quem consegue concluir com êxito o itinerário formativo dos IFs? Estas questões não foram abordadas profundamente nos trabalhos aqui revisados.
Afora o recorte de estudos revisados, Costa (2011) traz contribuições importantes para esse debate. Na maior parte das escolas da RFEPCT, há exames admissionais para seleção de alunos, o que, segundo essa autora, faz com que considerável parcela dos ingressantes nos IFs provenha de classes médias, egressos de um Ensino Fundamental realizado em escolas privadas. Vale ressaltar que, apesar dessa crítica recorrente à desigualdade de acesso aos IFs, a publicação das dissertações e teses em revisão ocorreu após a promulgação da Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, que institui a reserva de vagas nas instituições federais de ensino para negros, indígenas, pessoas com deficiência e estudantes de escolas públicas. E esse já é um dado fundamental, considerando que um percentual de grupos sociais historicamente excluídos tem acesso às vagas nos processos seletivos para o EMI nos IFs, ampliando as possibilidades de escolhas a este público. Ademais, as progressivas interiorização e expansão da Rede Federal para comunidades rurais, indígenas, quilombolas e para pequenas cidades ampliam seu público e democratizam o acesso a essas possibilidades.
A apropriação das vagas do EMI por segmentos mais privilegiados da sociedade em detrimento de grupos desfavorecidos é um objeto de investigação indispensável à compreensão e formulação de políticas para superar a dualidade do ensino, e para que mais possibilidades de escolha quanto às vidas profissional e acadêmica não continue sendo privilégio de segmentos sociais econômica e historicamente favorecidos.
Considerações Finais
Este artigo considerou as contribuições de pesquisas acadêmicas defendidas entre os anos de 2012 e 2017 ao debate sobre as manifestações da dualidade estrutural no Ensino Médio Integrado nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, tendo em vista a proposta oficial destas instituições, que é justamente desconstruir os mecanismos que a reproduzem no sistema de ensino.
Os IFs são instituições de educação complexas, e, embora herdem a história das demais instituições da educação técnica e profissional federal no Brasil, apresentam especificidades que estão ainda sendo avaliadas e pesquisadas, e, com isso, aos poucos desveladas. Pouco mais de 10 anos se passaram desde a articulação do IFs à Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, e, cada vez mais, pesquisadores têm investigado seu papel diante da dualidade estrutural no modo de produção capitalista.
Como se expôs, a maior parte dos trabalhos aponta para a presença de manifestações da dualidade estrutural que poderiam ser compreendidas como passados que continuam presentes na institucionalização da educação profissional federal no Brasil. Por exemplo, tem-se a sobreposição do currículo do ensino profissional ao do ensino de formação geral (ao invés de sua integração), o que pode ser um entrave na produção de conhecimentos e de tecnologias que não estejam somente alinhadas aos ditames do mercado capitalista, pois o pragmatismo do ensino técnico (ainda predominante no currículo do EMI) emperra seu potencial de desenvolver capacidades criativas e emancipatórias nos estudantes.
Todavia, considerando as contradições em desenvolvimento no próprio capitalismo, Moura et al. (2015), Frigotto et al. (2012) e Frigotto (2016) constatam a necessidade de as classes trabalhadoras lutarem por políticas que superem o capitalismo rumo à emancipação humana, sendo os IFs impulsionadores nesse sentido. Tal emancipação, para além do discurso apropriado pelos agentes do capital, é instrumento de luta no bojo das contradições entre capital e trabalho, pois, mesmo com suas limitações, a projeção dos IFs já ampliou as possibilidades reais de escolhas de vida a diversos grupos sociais.
Entre os estudos revisados, alguns apontaram ações dos IFs nesse sentido, tendo sido a análise de Souza (2017) a mais pertinente, ao afirmar que os IFs possibilitaram aos estudantes um leque maior de escolhas do que as proporcionadas por outros modelos de escolas públicas existentes.
A aprovação da Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016 - que congela por dez anos o orçamento de gastos da União (inclusos gastos com educação) -, e a sanção da Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, devem, a curto e médio prazo, limitar a ampliação e até mesmo a própria concretização dos propósitos dos IFs.
Haja vista que as carências educacionais da sociedade brasileira e as ameaças que as conquistas já alcançadas sofrem com políticas que procuram retroceder a paradigmas há muito considerados superados, tornam-se cada vez mais urgentes as ações e estudos de pesquisadores, educadores e movimentos sociais, sobretudo, ligados às camadas populares e minorias políticas.
Considerando a história da educação profissional no Brasil, experiências como a dos IFs precisam ser continuamente pesquisadas e postas à crítica científica, política e pedagógica, mas precisam sobretudo do empenho de forças diversas na luta por sua concretização, ampliação e melhoria, e na resistência frente às tentativas de desmanche por parte das forças conservadoras e de reprodução do capital instaladas no Estado.