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Educação UNISINOS

versão On-line ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.23 no.3 São Leopoldo jul./set 2019  Epub 04-Maio-2020

https://doi.org/10.4013/edu.2019.233.12 

Artigos

Professoras em Greve: Memórias de lutas em defesa do Magistério (1979-1987 - Porto Alegre/RS)

Teachers on Strike: Memories of fights in defense of Teaching (1979-1987 - Porto Alegre/RS)

Maria Beatriz Vieira Branco Ozorio1 

Dóris Bittencourt Almeida2 

1 Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). betiozorio@gmail.com

2 Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). almeida.doris@gmail.com


Resumo

Este artigo tematiza greves do magistério público do Rio Grande do Sul, entre 1979 e 1987. Por meio da metodologia da História Oral, buscaram-se conhecer impressões de um grupo de professoras acerca de suas experiências como grevistas, discutir seus entendimentos, por meio da composição de lembranças e de esquecimentos, narrados em entrevistas. A análise da documentação permite inferir que essas mulheres foram afetadas pelos discursos vigentes e, assim, conseguiram construir mobilizações em defesa da escola pública. Este não foi um movimento homogêneo, se por um lado, nenhuma esteve indiferente às causas que se colocavam no momento, cada uma reconstruiu suas memórias daquelas experiências, considerando os lugares de sujeito que ocupava no passado e que ocupa no presente. Percebe-se que aquele foi um tempo de fortalecimento das professoras que, de certo modo, deixavam o passado feminilizado da docência e assumiam outra condição no estatuto de sua profissão.

Palavras-chave: Memórias docentes; Greves de Professoras; História da Educação

Abstract

This paper approaches strikes of teachers from public schools in Rio Grande do Sul, between 1979 and 1987. By means of Oral History methodology, the objective was to observe impressions of a group of teachers concerning their experiences as strikers; as well as to discuss their understandings, through the analysis of memories and lapses emerging from the interviews conducted with them. The documentation analysis enabled to infer that these women were affected by discourses which prevailed at the time, and, as a result, they could construct mobilizations in defense of public schools. It was not a homogeneous movement; while, on the one hand, none of them was indifferent to the strike-related causes of that period, each one of them reconstructed their own memories of those experiences, considering their roles of individuals that occupied places in the past and occupy other ones in the present. It is possible to observe that the respective historical period strenghthened these teachers who, in a certain way, left the overfeminization of teaching practices and assumed another condition concerning the status of their profession.

Keywords: Teaching Memories; Teachers' strikes; Oral History; History of Education

O contexto da pesquisa, as narradoras e o evento das entrevistas

Este é um estudo sobre memórias de professoras, acerca de suas experiências em movimentos grevistas. À investigação interessam os significados atribuídos pelas narradoras às suas diferentes vivências nas greves do magistério, nos modos como compuseram suas reminiscências, quando provocadas a falar.

A temporalidade da pesquisa se inscreve entre 1979, ano da primeira greve do magistério público no Rio Grande do Sul e 1987, considerada, talvez, a greve mais emblemática, quando as professoras construíram um acampamento na Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, sede do Governo Estadual.

Voltando um pouco no tempo, importa lembrar que, sobretudo para as classes médias, a profissão de professora legitimou-se a partir das primeiras décadas do século XX, diante do processo de feminização e consequente feminilização da docência, promovido, em parte, pelo desenvolvimento da urbanização e industrialização (Louro, 2004). A partir da década de 1960, multiplicaram-se oportunidades de trabalho para as mulheres, fenômeno atrelado à expansão dos ensinos secundário e universitário para ambos os sexos. As mudanças no comportamento são uma marca daqueles anos 1960. Autonomia financeira e realização profissional começavam, aos poucos, a se colocar como horizontes para as mulheres.

Naquele contexto, em 1963, ocorreu a primeira tentativa de greve de professoras contratadas do Estado do Rio Grande de Sul que lutavam por uma paridade em relação às concursadas. Diante da atitude do Governador Ildo Meneguetti de penalizá-las, a Secretária de Educação Zilá Totta pediu sua demissão do cargo (Fischer, 2005). Depois dessa primeira experiência, passaram-se dezesseis anos e, a partir de 1979, o magistério enfrentou os desafios de buscar seus direitos, por meio de greves, que se sucederam nas décadas seguintes.

E é justamente no fim dos anos 1970 que se inicia um processo de mudança de paradigmas que, até então, definiam um determinado conceito da profissão docente. A partir da retomada da democracia, constituía-se uma nova professora, sindicalizada, “trabalhadora da educação, representada pela mulher militante, disposta a ir às ruas lutar por melhores salários e melhores condições de trabalho” (Louro, 2004, p.474).

Em meio à crise econômica e o avanço dos arrochos salariais, sucederam-se manifestações grevistas em diferentes pontos do país. E foi naquele ambiente de transições que as professoras rio-grandenses fizeram, em 1979, a primeira greve deflagrada no período inicial da abertura política. Portanto, as ações do magistério soavam como um eco das relações políticas vividas na escola pública, as quais envolviam professoras e os vários governos que se sucediam. Aquele não foi um movimento isolado da sociedade, mas que se insere como parte da busca pela reconstrução nacional, considerando o declínio dos governos militares no país.

A pesquisa em questão toma a narrativa como documento e a História Oral como metodologia. A partir da evocação de memórias de um grupo de professoras que participou das greves do magistério, buscam-se reminiscências de cada uma delas acerca daquele momento que se inscreve na História da Educação do Rio Grande do Sul. A escolha das entrevistadas obedeceu ao critério de ter trabalhado no Instituto de Educação Flores da Cunha3, referência na formação de professoras em Porto Alegre, no período do recorte temporal escolhido. Assim, ao escutar os relatos dessas docentes, emergiram as questões: Por que aderiram a esses movimentos? Seriam todas professoras vanguardistas que romperam com os estereótipos acerca da profissão? É no rastro desses temas que a investigação percorreu seus caminhos.

Desenvolveram sete entrevistas com professoras. Destaca-se a legitimidade de conhecer versões do passado pela oralidade. Como diz Portelli (2016, p.10), “fontes orais são geradas em uma troca dialógica, a entrevista: literalmente uma troca de olhares”. É dessa forma que o autor define a História Oral como “arte da escuta”, na qual estão implicadas complexas relações entre entrevistador e entrevistado. Pela análise de documentos orais, entrelaçam-se questões ligadas à memória, narrativa, passado/presente, subjetividades, em meio a trocas dialógicas.

A pesquisa em História Oral constitui-se em um espaço de subjetividades que possibilita a construção de diferentes versões de uma história (Neves, 2000). Memória e História Oral podem se confundir (Errante, 2000), existe uma dependência da história em relação à memória. Segundo Errante, essa metodologia acrescenta uma dimensão inestimável, uma vez que se distancia da história de caráter oficial. A contrastação das memórias individuais, produzidas em entrevistas, demonstra o quanto a experiência pessoal se mistura ao coletivo. Vale reforçar que a memória é uma construção do passado, à luz da experiência subsequente e das necessidades do presente (Ferreira, 2002). Ao entrevistar professoras que vivenciaram greves do magistério no RS, encontram-se marcas da dinâmica da vida pessoal atravessadas pela memória coletiva. De acordo com Halbwachs, “nossas lembranças permanecem coletivas, elas nos são lembranças pelos outros” (2004, p.39).

E quem são as narradoras? Para melhor conhecê-las, avaliamos a importância de trazer essas informações que dizem respeito às origens familiares, à formação, ao tempo de atuação no Instituto de Educação, passando pela constituição familiar e a situação profissional atual.

Professora Ocupação dos Pais Formação Área de atuação no IE Tempo no IE em anos Carga horária Estado civil Filhos Ocupação Atual da Professora
Flora4 Pai: Juiz de Direito
Mãe: Dona de casa
Curso Normal
Licenciatura
em História
E. Básico 20 40 h Solteira Aposentada
Camélia Pai: Militar
Mãe: Dona de casa
Curso Clássico
Licenciatura
em História
E. Básico 25 20 h Casada
4 Filhos
Aposentada
Jasmim Pai: Funcionário da
Petrobrás
Mãe: Dona de casa
Curso Clássico
Licenciatura
em História
E. Básico 04 40 h Solteira
1 filho
Aposentada
Margarida Pai: Servidor público
Mãe: Dona de casa
Curso Normal
Licenciatura em
História
E. Básico 15 30 h Casada
2 filhos
Aposentada
Dália Pai: Alfaiate/
Ramo da Hotelaria
Mãe: Dona de casa
Curso Normal
Licenciatura em
História
E. Básico e
Curso Normal
24 20 h Casada
2 filhos
Aposentada
Hortência Pai: Comerciante
Mãe: Dona de casa
Curso Normal
Licenciatura em
Artes
E. Básico e
Curso Normal
10 40 h Solteira
Sem
filhos
Aposentada
Violeta Pai: Industrial/
Comerciante
Mãe: Dona de casa
Curso Normal
Licenciatura em
Pedagogia
Dra. em Educação
Curso Normal/
Coordenação
Pedagógica
03 20 h Divorciada
2 filhos
Professora
Universitária

Todas as professoras, à época das entrevistas, contavam com mais de sessenta anos. Em sua maioria, trabalharam exclusivamente naquela escola. Grande parte se aposentou e não exerce mais atividade profissional, uma segue lecionando em escola particular, outra permanece como docente no ensino superior. A título de exceção, uma das narradoras deixou a docência, ainda na década de 1990, esteve ligada politicamente à educação, ocupando cargos na gestão pública.

Vê-se que as entrevistadas identificam-se a uma determinada classe média. São filhas de militares, de funcionários públicos de carreira, de pequenos comerciantes e/ou empresários. Três são casadas, três são solteiras e uma divorciada. Das sete mulheres, duas não têm filhos.

Por meio das entrevistas, foi possível perceber que sentem certa distinção por terem pertencido ao quadro de professores de uma escola de tradição dentro do Rio Grande do Sul, a primeira escola de formação de professoras, fundada ainda no século XIX neste Estado5. Entre as sete, quatro fizeram a Escola Normal no IE, e três buscaram outras instituições como alunas do Curso Clássico6, retornando à escola como docentes após concluírem a formação superior. Em relação à carga horária de trabalho, quatro professoras possuíam carga horária reduzida, ou seja, trabalhavam no regime de 20 horas ou, no máximo, 30 horas, não sendo, portanto, diretamente responsáveis como provedoras da família.

Considerando esses dados, reforça-se a questão da pesquisa que busca compreender em que medida essas mulheres romperam com a representação da professorinha7 por participarem diretamente das greves do magistério, a partir de 1979. Instiga a pensar como, embora cada uma delas tenha seus itinerários próprios, de um modo ou de outro, acabaram sendo afetadas por discursos, muitos deles distintos daqueles de sua formação, e estiveram entusiasmadas pelas lutas em defesa da escola pública, em defesa da valorização da profissão de professora.

De maneira geral, lembraram episódios coletivos, como as mobilizações para reivindicar verbas para as escolas, o não cumprimento das promessas dos governos eleitos, a confecção dos materiais para levar nas passeatas e assembleias, o reconhecimento da comunidade escolar ao movimento grevista. Entretanto, nem todas as entrevistas foram assim. Notadamente, Jasmim valorizou sua própria trajetória, em detrimento das vivências no coletivo. No período das greves, constituiu-se em uma liderança, aproximando-se dos meandros da política sindical. Paralelamente, realizou concurso para funcionária federal, em Brasília, o que a distanciou da escola e da sala de aula.

Nossas memórias não são espontâneas, precisam ser estimuladas para tentar transformar aquilo que estava no esquecimento em possível lembrança. Portanto, escolhemos iniciar as entrevistas, apresentando às narradoras essas fotos que foram utilizadas como evocadores de memórias:

Fonte: http://www.3c.arq.br/3C Arquitetura e Urbanismo - IE 1937

Foto n.1 

Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/fotos/greve-chega-ao-dia-500-15487.html

Crédito: Reprodução - Greve de 1979

Foto n.2 

Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/fotos/greve-chega-ao-dia-500-154

Crédito: Damião Ribas - Greve de 1982. ZH

Foto n.3 

A primeira foto apresenta o Instituto de Educação, afinal é lá que trabalhavam as entrevistadas. A imagem representa a monumentalidade da Escola Normal do Rio Grande do Sul, que, em 1937, transferiu-se para aquele prédio grandioso, concedido pelo Estado. Chama a atenção o estilo de arquitetura da edificação e as estudantes com seu clássico uniforme de normalistas da década de 1950.

A imagem seguinte foi publicada no jornal Zero Hora, no momento da decretação da primeira greve de professores em 1979. Foi apresentada por simbolizar um movimento que questionava as imagens da professora missionária, indicando a construção de outra identidade docente, atenta para seus direitos como trabalhadora.

Outro importante estímulo à memória é a foto que retrata o ambiente dentro do Gigantinho, ginásio em que muitas vezes ocorreram as assembleias do magistério. Habitualmente, ao fim desses encontros, as grevistas saiam em passeata até o Palácio Piratini, sede do Governo do Estado, entoando cânticos e palavras de ordem e acompanhadas por carro de som. No desenrolar das entrevistas, observamos que essas imagens provocaram, entre as narradoras, manifestações de curiosidade e saudosismo e foram acompanhadas das falas “Ah! Que lindo!” ou “Sim, lembro desta greve!”

As entrevistas constituíram-se em momentos que produziram riquezas de reminiscências, pelos detalhes apresentados de suas vivências naqueles eventos. Segundo algumas narradoras, a jornada de trabalho naqueles tempos era cansativa, pois se desdobravam em múltiplas atividades, como confecções de materiais, participação em reuniões, assembleias e passeatas e, naquele ambiente, havia muita insegurança, pois não se sabia o que iria acontecer no dia seguinte, havia o temor das punições.

O desafio que se colocou foi produzir unidades de sentido para melhor compreender o que disseram. Construíram-se categorias de análise, apresentadas a seguir, tendo como referência enunciados das próprias docentes. Sabemos que há múltiplas possibilidades de estabelecer “teias de conexões” ao olharmos para essas memórias. Elas carregam “camadas de significado, caminhos de interpretação” para além de tentativas de analisá-las de modo linear (Portelli, 2016, p. 21).

Tempos de parar: “Esse foi o maior ganho, a vivência democrática”8

As professoras insistem na ideia “que não sabiam fazer greve”. Expressaram sentimentos de insegurança quanto à decretação do movimento em 1979. Ao lembrar aquele ano, Flora (2015) relata que “o Instituto carregava uma história de tradições, mas esta primeira greve nos pegou de surpresa, a gente ficou em choque!”. Margarida (2015) reforça essa sensação diante de algo muito diferente, em tempos de fim de ditadura civil militar no país, “a gente tinha muito medo, falávamos em garantia de assinar o ponto. Estava quente naquele dia, as aulas foram suspensas para podermos ir à assembleia. [...] Nunca havia participado de algo assim! Era tudo novo!” (2015). Dália (2015), nostalgicamente, considera a primeira greve como “a mais autêntica”, afirma que a causa ia muito além da pauta salarial. Também enfatiza as ações de união em que “passavam o chapéu” (2015) para fazerem fundos. Deixa transparecer entusiasmo e responsabilidade em suas memórias.

Procurando avaliar a turbulência de sentimentos que afloraram nessas mulheres, observa-se que não imaginavam a deflagração daquela primeira paralisação. Por um lado, demonstraram conhecer a difícil situação do magistério, por outro, cruzar os braços e não trabalhar parecia algo da ordem do imponderável. Nesse sentido, as palavras de Dália justificam a surpresa: “depois que votamos [...], eu estava tão estarrecida que olhei para minha colega e perguntei: o que a gente ia fazer?” (2015). A concretude da situação parecia totalmente inusitada em uma sociedade que engatinhava democraticamente.

Entretanto, importa lembrar que já havia um clima de emergência de manifestações grevistas pelo país. Na esteira das questões que o estudo persegue, indaga-se esse sentimento de surpresa diante dos encaminhamentos e decisões do Centro de Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS), entidade que representava as professoras Por que teriam ficado estupefatas diante da decisão que, bem provavelmente, já estava sendo veiculada pelo Centro de Professores e que representava a própria realidade de arrocho salarial? Ou será que boa parte delas não sentia este arrocho por ter uma situação financeira familiar confortável?

Naquele ambiente agitado, entende-se que deve ter sido difícil para muitas o retorno à escola na condição de grevistas. Dália (2015) relembra a conversa que teve com uma colega imediatamente após o início da greve de 1979, “como voltar para o Instituto? [...] Perguntei a ela: o que vamos fazer? Ela respondeu: vamos tocar para a frente e ver o que acontece. A sensação era de que tinham me mandado atirar de um edifício de cabeça para baixo”. Flora (2015) expôs sua preocupação diante de uma possível rejeição da comunidade escolar. Lembra que a volta para a escola implicava em convencer as outras colegas da legitimidade do movimento. Entretanto, várias fizeram questão de dizer que houve apoio de pais e de alunos. Como diz Margarida (2015), referindo à presença da comunidade em reuniões para debate das greves, “o pavilhão lotava! Totalmente a favor!” É provável que essas reuniões contassem com a presença daqueles que concordavam com o movimento docente e os que não aceitavam, não compareciam. Seria, para muitas entrevistadas, um pavilhão cheio de pais uma maneira de sentirem-se amparadas quanto à decisão de paralisar? Ao que tudo indica, a resposta da sociedade favorável às greves seria um conforto às professoras naqueles momentos de incerteza.

Procurando entender o significado de participar daquelas ações, questionamos: foram elas professoras afinadas às referências de seu tempo? Entende-se que sim. Embora vivendo em um momento de transição, mas ainda conservador, elas integraram as greves, como coadjuvantes ou lideranças. Mas, provavelmente, não foram decisões fáceis. De acordo com alguns relatos, apesar de acordarem que a escola aderia maciçamente às paralisações, isso não quer dizer que não houvesse disputas, divergências de opinião, discussões entre quem aderia e quem não aderia. Um exemplo é o fato de muitas terem seus filhos como alunos do Instituto de Educação. Colocava-se uma questão delicada em que estavam implicados dois lugares de sujeito, professora grevista e mãe de aluno. Quem ficaria com as crianças? Além disso, Dália traz mais dois elementos para a análise: a grande maioria de docentes em greve participava efetivamente do movimento, entretanto havia, segundo ela, uma minoria que se dizia grevista, mas pouco se envolvia com essa questão. Todavia, o exame das narrativas faz pensar que, efetivamente, a marca mais importante para todas as entrevistadas é que o IE fazia greve e comprometia-se nela. E, apesar de manifestarem que havia grupos distintos dentro da instituição, em suas memórias, a escola, como um todo, parava.

Uma questão que emergiu refere-se às diferentes posições sociais das professoras grevistas. Neste sentido, Flora fala de um sentimento solidário em relação a uma colega que lhe servia de exemplo, “era separada, sustentava dois filhos e trabalhava em duas escolas [...] Muitas vezes, eu ligava para ela à meia noite e ela estava no tanque lavando roupa. Então eu brigava muito mais por ela do que por mim, afinal eu me sentia privilegiada” (2015). A partir deste relato, é possível perceber nas duas professoras, o momento da transição, entre a situação econômica satisfatória de uma e a condição de trabalhadora em educação de outra. Duas mulheres que dividiam o mesmo espaço de trabalho, possivelmente as mesmas convicções em relação à profissão docente, mas viviam realidades diferentes. Para uma, o salário era pouco, mas não representava a sobrevivência. Para a outra, o ganho salarial era fundamental e garantia a sustentação da família. Esta trabalhadora representa o novo perfil docente que se constituiu naquela temporalidade.

Muitas aprendizagens estavam em andamento, a década de 1980 traria uma sucessão de greves, momentos importantes para o magistério do RS, manifestados por certo destemor diante de sucessivas paralisações, considerando as poucas conquistas advindas pelo movimento docente. Assim, na continuidade das greves, vê-se que algumas foram longas, notadamente as de 1985, em que o magistério paralisou suas atividades por 60 dias, e 1987, com 969 dias sem aulas no RS.

Do mesmo modo como em 1979, as experiências vividas em 1985 e 1987 estão presentes nas memórias dessas professoras. Hortência (2015) define a greve de 1987 como aquela que “mexeu com a cabeça dos porto-alegrenses” e, desde o início da entrevista, demonstrou entusiasmo por esta paralisação em especial. Fez questão de contar que participou do episódio e das pichações nos muros da Secretaria de Educação (SEC), por ocasião da invasão à mesma. Explicou que, momentos antes dessa “invasão”, diante da decisão de muitas colegas deixarem a greve, precisou ajudar, no sentido de persuadi-las a permanecerem paralisadas. Em suas palavras:

Chegamos lá e as professoras choravam. Uma excelente alfabetizadora [...] chorava copiosamente! Que as crianças estavam longe do carinho dela, que iam sentir saudades dela! Nenhuma falava em educação, que era o projeto de educação que ia ser interrompido, mas eram mães falando de seus filhinhos... Acho que ficamos duas horas conversando e convencendo as professoras. Elas, uma hora se convenciam de ficar e outras diziam que iam voltar ao trabalho e eu enlouquecida, cada vez mais nervosa porque queria estar na SEC, mas não podia [...] (Hortência, 2015).

O que pensar sobre a fala de Hortência que se refere às colegas que queriam deixar o movimento e se colocavam no lugar de “mães falando de seus filhinhos”? Isso, mais uma vez, demonstra a transição, no final dos anos 1980, entre a concepção da professorinha que, aos poucos, assumia uma nova identidade da trabalhadora em educação. Podemos considerar que o fato de terem sido convencidas a permanecer no movimento evidencia que a mudança estava em curso e preponderava na tomada de decisão.

Tanto Hortência quanto Flora tiveram participação ativa nos comandos da greve. E compartilharam a experiência do acampamento na Praça da Matriz, em 1987. Explicaram que as barracas seriam montadas em frente ao Palácio do Governo, segundo Hortência “essa combinação havia sido passada pelo comando geral do CPERS, apenas para poucas pessoas, em geral para aqueles mais próximos às lideranças das escolas”. Seguindo a narrativa da invasão à SEC, Hortência (2015) diz que:

Um grupo de pessoas se organizou e ia invadir o prédio da Secretaria de Educação, chamando as pessoas que trabalhavam lá a aderir à greve. Eu queria muito participar deste ato de vanguarda [...] Fui atrás de uma colega que sabia trabalhava lá e que havia dito que não entraria em greve, e realmente ela chorava muito, tremia e fiquei conversando com ela. Ela dizia que tinha medo de perder o emprego, então disse que ela não era obrigada a entrar em greve, mas que eu esperava que ela não boicotasse as demais colegas. Ela disse que não faria isso. Quando saí, tinha um verdadeiro corredor polonês e me confundiram [...] e fui sendo bombardeada, quase apanhei, até que alguém me reconheceu e disse que era do comando de greve, e todo mundo com a Sineta! A marca daquela greve.

Este relato evidencia grande comoção pelas atividades militantes que desempenhou naquele momento. Contou que todas aquelas ações fizeram diferença e tiveram significados para si própria e para a sociedade da época. Sobre o acampamento da Praça, rememora o frio que sentiam nas noites de inverno, os jantares que alimentavam a todos, “era uma festa em cada noite! Havia em torno de 60 barracas [...] Havia alegria, muita esperança naquele acampamento! Isso nos renovava! Mas também havia noites que não dormíamos tirando água das barracas! Era muito cansaço [...]” (2015).

Mas as memórias de 1987 não são apenas de Hortência, todas têm algo a contar. Afinal, aquela foi a greve do acampamento na praça, situação carregada de simbolismos, um deles por estar em frente ao Palácio Piratini. Sobre este episódio, nota-se que foi um desafio para elas terem participado, para algumas, parece ter sido uma boa estratégia de luta. Mostram suas diferentes percepções ao narrarem como se sentiam, mas rememoram esse episódio como um passado que não tem muito lugar para a tristeza. Seria esse mais um trabalho da memória? A greve do “acampamento da Praça da Matriz” parece inesquecível para muitas. Fica claro, em suas narrativas, que foram momentos difíceis de esquecer por muitas razões, boas e ruins. Afinal, algumas foram praticamente “morar na Praça”, numa atitude ousada que, segundo elas, contou com o apoio de parte da população. Era um ato de resistência. Nas palavras de Violeta (2015),

Havia colegas que não faziam greve, que se justificavam, eu nunca condenei. Pessoas cujos maridos tinham cargos que não podiam perder, ou talvez comprometer. Como esposas de oficiais da Brigada. Porque a gente estava iniciando um movimento e não sabia o que podia acontecer... outras não apareciam e não estavam nem aí...sabiam que alguém estava lutando por elas. Eu acho que esta atitude não comprometia o movimento.

Observa-se que, a partir de 1979 até 1987, houve um incremento nas mobilizações do magistério, tendo como grande pauta a defesa da escola pública no Estado. São mulheres que tomaram à frente do engajamento nessas lutas e produziram uma “revisão da imagem social da feminilidade” (Giulani, 2004, p. 649). Neste sentido, Louro (2004) complementa, explicando que aquele foi um tempo de afirmação de mulheres militantes, “dispostas a ir às ruas lutar por melhores salários e melhores condições de trabalho” (p. 474). Evidentemente, esse não foi um movimento homogêneo, tais discursos interpelavam as mulheres de modos distintos, assim como interpelaram as sete narradoras deste estudo. Se por um lado, nenhuma esteve indiferente às causas que se colocavam, cada uma, reconstroi suas memórias daquela experiência, considerando os lugares de sujeito que ocupava no passado e que ocupa no tempo presente.

Avaliando o tempo que passou: “Acho que muita coisa valeu à pena, mas outras, não sei se valeram”10

A partir de 1979, as greves do magistério tornaram-se uma recorrência no Rio Grande do Sul. Até 1997, foram 10 paralisações, quase uma a cada dois anos, algumas mais curtas, outras emblemáticas. Neste momento, analisam-se os documentos orais, no sentido de buscar compreender como os sujeitos da pesquisa avaliam aquele tempo, em relação aos possíveis ganhos e perdas por enfrentarem o governo e a sociedade, colocando-se no lugar de trabalhadoras da educação em greve. Cumpre dizer que essa é uma tarefa árdua, pois as dualidades entre conquistas e derrotas se misturam e se confundem nas palavras dessas mulheres, marcadas, muitas vezes, por contradições em relação à essa avaliação.

Neste sentido, sentimentos díspares foram trazidos por Flora (2015) ao considerar o passado. Inicia dizendo que estar em greve era como “quem vai para guerra salvar o mundo, acreditando, idealizando”. Entretanto, em seguida, muda de opinião, afirmando que “a gente não pode ser idealista e isso dá um gosto meio amargo”. Difícil entender tamanha contradição entre o significado de lutar por um ideal e, no presente, pensar de modo diferente. Teria tudo valido à pena? Flora busca em suas memórias o passado com os olhos do presente, um presente difícil para as professoras, especialmente aquelas aposentadas. E complementa, “eu não ponho as greves como a melhor coisa que fiz, não ponho porque questiono se a gente não contribuiu para enterrar mais a escola pública” (2015). Isso faz pensar no que aconteceu com a educação pública estadual. Desvalorização da profissão docente, precariedade dos prédios escolares, salários muito baixos, pouca procura pelos cursos de licenciatura, carga horária excessiva de trabalho, deficiência do Instituto de Previdência do Estado (IPERGS). Também importa reconhecer a partidarização do CPERS, na década de 1990, que culminou com a desfiliação de lideranças importantes, seguido de certa desilusão por parte das professoras, muitas delas, especialmente as mais velhas, que viveram as greves do passado, também acabaram se desvinculando da entidade. Pode-se dizer que esses fatos comparecem e se articulam na fala de Flora que representa o pensamento de muitas professoras.

Ao avaliarem as perdas, foi possível observar expressões que trazem memórias carregadas de ressentimentos. Camélia (2015) diz que “havia nas primeiras greves uma razão”, ressente-se das lideranças do CPERS, que, no seu entendimento, abandonaram a categoria docente. É possível que esta decepção trazida por Camélia esteja ligada ao fato de alguns representantes do CPERS terem concorrido a cargos políticos, distanciando-se, na sua visão, do magistério, mas chegando à carreira pública muito por conta dos votos da categoria que defendia. Ela também se decepcionou, nos parece, com as greves que, segundo sua avaliação, se tornaram repetitivas e sempre em tentativas de não perder, ao invés de obter novas conquistas. Talvez por essa razão ela fale em “ideais perdidos”. De modo geral, elas se questionam sobre o sentido das greves, qual teria sido sua validade? Indagam se o movimento teria se transformado em uma espécie de jogo político partidário que mais teria prejudicado do que contribuído para o futuro da escola pública.

E quais sentimentos permaneciam após o termino de cada paralisação? Flora e Hortência lembram o cansaço, por integrarem os comandos de greve. Relatam o quanto era fatigante ir ao CPERS diariamente, principalmente quando as paralisações se estendiam, isso provocava um desgaste pela quantidade de dias letivos a serem recuperados. Flora representa o sentimento de muitas que manifestaram uma decepção com o movimento. Dália (2015) afirma “não levou a nada” e prossegue “desmoronou tudo”. Por outro lado, Hortência (2015), diferente da maioria, entende que “houve um ganho democrático”. Nesse ponto, ela se coloca como voz dissonante. Além de ser a única ainda associada ao Centro de Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS), permanece em atividade no Sindicato, como representante das aposentadas. Diante dessas narrativas, constata-se que as greves, por mais que tenham sido importantes, podem ter sido apenas o início de tantas outras lutas necessárias em torno de direitos dessa categoria. Não se pode esquecer que a fadiga, a repetição das pautas, os desafios da docência no cotidiano são questões que abalam a força do movimento.

Ao serem questionadas acerca de possíveis punições por assumirem suas posições, também se percebem divergências. Dália (2015) argumenta que “nunca se sentiu penalizada, pois era funcionária pública e tinha que cumprir seu dever.” Entretanto, Hortência e Margarida não tiveram a mesma reação da colega, falaram sobre o quanto se sentiram punidas, por exemplo, pelo prejuízo das férias ocupadas com recuperações. Importa dizer que Flora e Dália valorizaram a qualidade da recuperação das aulas no IE. Pode-se pensar que para elas seja importante hoje deixar como registro a seriedade docente na reposição das aulas. Nesse sentido, Flora (2015) continua:

Mas uma coisa que me lembro é de nunca ter sido cobrada por aluno por estar fazendo greve, tipo um ressentimento. Mas a gente se desculpava depois, uma coisa que ajudava muito é que, ao menos no Instituto, talvez pelas pessoas que coordenavam a gente, sempre se levou muito a serio a recuperação, e talvez por isso a comunidade se sentisse menos atingida, pois tinham mais ou menos a certeza da recuperação.

De outro modo, Hortência (2015) diz, “eu me sentia muito incomodada com as recuperações. Qual categoria é obrigada a recuperar? A perder suas férias? Trabalhar nos sábados? Isso sim era uma punição!” Assim, também acredita que o QPE11 de 1988 foi uma medida retaliativa contra as professoras e o CPERS foi desmobilizado, ela afirma, “o CPERS cresceu muito, por isso veio o QPE para desmontar a resistência! Mas acredito que os professores cresceram em maturidade nesse período” (2015).

Na esteira das punições, insegurança foi outro tema que ecoou nas narrativas. Margarida reflete sobre essa questão, afirmando que os temores iniciais se transformaram em aprendizados construídos no decorrer dos anos. Em suas palavras, “quais os riscos de fazer greve? Vou ser punida? Então a gente assinava o ponto em listas paralelas como se aquilo valesse alguma coisa! Mas a gente precisava assinar alguma coisa para dizer que estava presente... Era uma forma de se proteger” (2015).

Portanto, vê-se que as penalidades sofridas tiveram diferentes matizes para cada uma delas. Não há um discurso comum, mas sim dissonâncias. Embora o tema das sanções seja bem presente no contexto da greve, percebemos que nem todas se sentiram atingidas da mesma forma e reagiram de maneiras diferentes. Para aquelas professoras, algumas inseguras em 1979, a continuidade do movimento foi trazendo alguma familiaridade. As paralisações sistemáticas foram situações que passaram a se repetir quase que ano a ano, adquirindo certa normalidade diante do quase permanente estado de greve. A democracia estava sendo reconstruída em todo Brasil, era o período de final da ditadura, aprendia-se a fazer a democracia, os movimentos sociais voltavam para as ruas. Para Violeta, há um grande ganho dentro daquelas longas greves. Ela se refere aos intensos debates que se constituíram de um caráter de discussão pedagógica.

Hortência (2015), em seu depoimento, acredita que cresceu com as greves, tanto do ponto de vista pessoal, como profissional. Entende que condições dignas de trabalho são importantes reivindicações e afirma que poucos aderem à greve hoje e que é preciso repensar essa falta de politização entre as professoras. O acampamento na Praça, segundo ela, é avaliado como outra conquista para a categoria do magistério. Sempre se demonstrou uma entusiasta das estratégias usadas em 1987:

Tinham professores que nunca tinham acampado, outros nunca tinham transado, então transavam lá... Nunca tinham tido outra vida se não a de trabalhar, trabalhar... Então, aquele acampamento mudou muito a cabeça das pessoas. Tanto é que depois daquele momento muita gente saiu do magistério, se descobriu, foi fazer outra coisa. Aquele frio de noite, chuva, se caminhava, conversava sobre muitas coisas naquelas noites insones [...] (Hortência, 2015).

Pelo depoimento, percebe-se que a história das professoras em greve está atrelada ao terreno das relações de gênero. Louro (2004) explica que as representações do masculino e do feminino são integrantes do processo histórico, portanto, as relações de gênero, como construções sociais de um tempo indicam os lugares de sujeito que mulheres professoras ocuparam/ocupam em décadas pretéritas e no tempo presente.

O processo de guinada dessas mulheres, em curso nos anos 1980 e 1990, provocou transformações nos seus processos identitários, que em quase nada lembravam o passado da profissão, sacralizado em torno de um ideal de magistério quase messiânico. Evidentemente, a narrativa anterior indica uma mudança que atingiu uma parte das docentes, sinaliza outra construção discursiva nas representações da docência. Aquelas foram décadas de transições políticas e sociais que, entre outros fatores, promoveram a constituição de uma nova professora, atenta a seu tempo, trabalhadora, muitas vezes provedora da família, militante, que luta por seus direitos, enfrenta redes de poder, enfim, mulheres “capazes de engendrar discursos discordantes, construir resistências, subverter comportamentos” (Louro, 2004, p.479).

Neste sentido, cabe dizer que aquela experiência do acampamento na Praça foi impactante também para Hortência, além de constantemente querer mencionar novas lembranças sobre o acampamento, preocupou-se em destacar a convivência entre as pessoas que compartilharam aqueles momentos com ela. Pessoas que não conhecia, mas que passaram a fazer parte de sua vida, das conversas noturnas, dos relatos em noites frias e de chuva. Assim, Violeta (2015) também avalia a importância da construção da camaradagem com as colegas, afirmando que “tinha efeitos como conhecer mais as pessoas, do jeito que elas são, quem é mais solidário, quem pensa no colégio, o que depende de nós”.

Outro aspecto que emergiu nas memórias, como uma perda, foi o afastamento da classe média da rede pública estadual. Flora (2015) reflete sobre esse afastamento:

Acho que o que afastou a classe média da escola pública foram as greves. A classe média tem essa visão de que o estudo vai preparar o filho para uma vida melhor e ela exige um nível melhor de trabalho. Se o professor não faz um bom trabalho, ela cobra. Descontentes com as greves, os pais que trabalhavam e os filhos sem aulas até dois meses e eles sem saber o que fazer, começaram a tirar os filhos da escola por uma educação melhor... Eu não sei se a gente sem querer não ajudou a destruir mais, porque a gente tirou alguém que poderia ajudar, essa classe média se afastou da escola.

A questão salarial também foi enfocada quando as professoras apreciaram o sentido das greves. Flora argumentou a importância da dignidade salarial. A perda dessa dignidade, acrescida da partidarização do CPERS, fez com que se afastasse. Entretanto, reconhece que “não tem outra maneira, outra forma de lutar” (2015).

A democracia é uma palavra recorrente nos discursos das professoras. De maneira geral, trazem à memória aquele momento de conquistas democráticas. Tanto Olga, quanto Violeta, Flora, Dália e Jasmim enfatizam, em suas falas, o significado do período político em que viviam, assim como o idealismo.

Ao concluir essas análises, ficam as muitas reminiscências daquele tempo das greves, trazidas pelas professoras que experimentaram situações tornadas vivas pelo trabalho da memória, a maioria delas, relatadas de maneira entusiasmada, repletas de afetos. A cada fala, um refazer da memória, a partir do presente e pleno das experiências atuais. Lembranças chamam lembranças que são permanentemente reconstruídas a cada evocador: sons, cheiros, sabores, músicas, a sineta que toca, a Praça que ainda está lá. São estas algumas memórias individuais e coletivas, parte da vida de sete professoras representativas de uma escola em tempos de greve.

Ainda, considerações

As narrativas das professoras, documentos dessa pesquisa, se constituíram em relatos singulares, relatos de mulheres que deixaram as salas de aula e aderiram às paralisações do magistério público do RS, a partir de 1979. Engajaram-se como categoria profissional, respondendo ao chamado do Centro de Professores, entendendo que aquele era um momento relevante para a educação. Ao ouvir suas experiências, pudemos conhecer suas impressões acerca do movimento grevista, seu entendimento de perdas e ganhos, para além das manchetes dos jornais, das estatísticas econômicas, das avaliações sindicais.

Evocar memórias dessas professoras é ouvir esses agentes da transformação social e política de seu tempo. Elas não estavam sozinhas, havia um contexto nacional que permitia aos brasileiros lutarem por melhores condições no mundo do trabalho. Também as greves dos metalúrgicos paulistas, dos professores universitários, de escolas particulares, dos bancários e outras categorias, que percebiam a importância da sindicalização, talvez como única maneira de obter salários dignos e reconhecimento profissional. Lembranças e esquecimentos compuseram suas reminiscências e foram narrados por meio de entrevistas.

Ao findar este estudo, chega-se à conclusão que aquele foi um momento de fortalecimento de uma categoria que, de certo modo, deixava o passado feminilizado da docência e assumia outra condição no estatuto da profissão de professora. A insegurança em relação aos depoimentos sobre a primeira greve de 1979 cedeu espaço a ações inusitadas de muitas professoras rio-grandenses, representadas nas narrativas dessas mulheres, aqui examinadas. Portanto, podemos inferir que a greve de 1987 representou uma espécie de culminância do aprendizado de fazer greve, uma expressão de resistência ao governo que durou 96 dias. Seria esta a nova professora um ganho da daquela década de greves? A vivência democrática teria sido o resultado da luta por seus direitos e pela educação pública de qualidade?

Para além dos ganhos, os sentimentos de perdas. Tristes relatos das punições, que resultaram, para algumas, no desmonte da escola pública e o consequente abandono de uma parte da classe média, que, se pode, coloca seus filhos no ensino privado. As professoras chegaram a se questionar em que medida o movimento grevista não teria contribuído para isso. Tantas perguntas que são feitas a partir dos olhos do presente. Isto repercute na própria questão sindical, muitas professoras, atualmente, não são mais filiadas ao sindicato e afirmam que o atual CPERS não as representa mais.

Este trabalho teve por objetivo contribuir para trazer à tona estes personagens invisíveis, que, como afirma Foucault (2003), são anônimos e tendem a passar sem deixar rastros. É um tema que pesquisado através das narrativas de memórias das professoras que participaram daquele tempo de greves. A pesquisa indica a força da História Oral que tem na memória uma fonte privilegiada.

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3 A história da educação no Rio Grande do Sul e de Porto Alegre se confunde com a história do Instituto de Educação Flores da Cunha, fundado com o nome de Escola Normal, ainda no período imperial, diante do interesse pelo fomento à instrução pública. Era antiga a aspiração dos habitantes da Província de São Pedro do Rio Grande por uma Escola Normal, pois a situação da educação nesta província estava aquém do resto do Brasil. Ao longo de sua existência, a escola foi adquirindo importância significativa nos projetos relacionados à formação docente por parte dos governos estaduais, representando um sinal de modernidade no Estado. Considerando isso, é construído o prédio monumental que abriga o Instituto de Educação desde 1937, quando passou a ter o nome de Instituto de Educação General Flores da Cunha (SCHNEIDER, 1993)

4 Conforme o Termo de Consentimento informado, as narradoras optaram por manter o sigilo de suas identidades. Portanto, escolheram-se codinomes para nomeá-las.

5 Foi na segunda metade do século XIX que, segundo Villela (2005), “algumas províncias brasileiras atravessaram um processo de substituição do modelo artesanal de formação de seus professores primários, baseado na cultura pragmática, pelo modelo profissional”, contemplando ampliação acadêmica, metodologias específicas com vistas a constituir um “ethos profissional” (p.104). Assim, a primeira Escola Normal foi instituída em Niterói, capital da província do Rio de Janeiro, em fins dos anos 1860 e meados dos anos 1870, em um formato que, em certa medida, importava modelos de formação européia, mas com apropriações em um país ainda imperial, marcadamente rural e escravocrata.

6 A Lei 4024/61 institui os graus de ensino do seguinte modo: o primeiro grau, constituído por escolas maternais, jardins de infância e ensino primário de quatro anos; grau médio, compreendendo dois ciclos, o ginasial, de quatro anos, que abrangia o secundário e os cursos técnico-industrial, agrícola e comercial, vindo depois o ciclo colegial de três anos, com as modalidades de clássico e científico que complementavam o secundário, bem como as formações que finalizavam o primeiro ciclo de natureza técnica, além do curso normal voltado para a formação de professores; e grau superior, compreendendo os cursos de graduação, pós-graduação e especialização (Romanelli, 1998).

7 A palavra representa a adesão ao discurso de construção da identidade da professora a partir dos anos 1940. Bastos (1994) identifica a importância da Revista do Ensino no RS, periódico produzido pelo Estado, que fomentou a expressão “professorinhas da nacionalização”, identificando na atividade docente os princípios de moralização, sacerdócio, por meio do exercício da profissão. Essa expressão constituiu-se em uma representação da professora, definindo parâmetros identitários desta profissão para as mulheres.

8 Narrativa da entrevistada Hortência (2015)

9 Informações retiradas do livro CPERS - Sindicato 50 anos compromisso com a cidadania 1945/1995; Quadro das greves site CPERS.http://cpers.com.br

10 Expressão usada pela narradora Flora.

11 Quadro de Pessoal por Escola antiga reivindicação do magistério, mas implantado em 1987 arbitrariamente pelo governo sem a participação dos professores e do CPERS.

Recebido: 15 de Junho de 2018; Aceito: 23 de Novembro de 2018

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