SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número4Culturas Juvenis e a Etnocenologia Virtual da Aprendizagem em Ambiências Híbridas e Multimodais de InteraçãoConfiguração do espaço híbrido e multimodal: Literaturalização das Ciências na Educação Superior índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação UNISINOS

versão On-line ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.23 no.4 São Leopoldo out./dez 2019  Epub 06-Jul-2020

https://doi.org/10.4013/edu.2019.234.02 

Dossiê: Educação em Contextos Híbridos e Multimodais

Intercultura e linguagem: perspectivas híbridas-digitais para o ensino das línguas

Language and interculture: digital-hybrid perspectives for languages teaching

Gaia Moretti1 

1Libera Università Maria Ss. Assunta (LUMSA) moretti.gaia@gmail.com


Resumo

A cultura híbrida-digital é uma realidade, contexto no qual a geração Y está crescendo, e pelo qual os assim ditos Millenials, estão saindo, para chegar a vivenciar uma cultura completamente digital. O que é realidade, ao mesmo tempo, é uma multiculturalidade difusa, um relacionamento com outras culturas que começa desde os primeiros anos da escola, e paralelamente, um pedido de conhecimento de diferentes línguas para se comunicar, viver, trabalhar, vivenciar lugares diferentes, sem mais a certeza de ter um lugar de vida e trabalho fixo e sem mudança. Por um lado, tudo isso é a evolução natural do sistema socio-economico mundial, por outro, representa uma necessidade de um lugar de vida globalizado e complexo. De qualquer forma, precisamos tecnologias integradas e híbridas, de acordo com a natureza da evolução do cenário socio-economico, para que as diferentes gerações possam ser acompanhadas no âmbito da aprendizagem continuada, especialmente no que se refere à aprendizagem das línguas. Ambientes e processos híbridos-digitais podem não apenas ajudar no desenvolvimento das competências linguisticas, mas possibilitar diferentes caminhos de aprendizagem e ensino das línguas em vários níveis. Neste artigo evidenciamos alguns exemplos de processos de educação, ensino e aprendizagem das línguas, por meio de tecnologias híbridas e digitais.

Palavras-chave: intercultura híbrido; digital; competência linguistica; gerações

Abstract

Hybrid-digital culture is a reality, it is the place where generation Y is growing up and from where “millenials” are going out. At the same time, multiculturalism is now a reality in the contemporaneous age, as a relation with other cultures that starts from the first years in school, joint with a request of even more languages to be spoken and used in day by day life; new generations think and know they will not have a fixed work, or place to live in the world, they are comfortable with ethnic mixture and with an extreme flexibility of their life. On one side, this is the normal evolution of society; on the other side, it represents a strong need for generations: a complex and global place where to live. We need integrated and hybrid tools and processes to deal with this system, and different generations have to be supported in their continuous learning, especially about the languages learning. Hybrid - digital processes and environments can help in developing language competences, more than that, they can make possible different educational paths also for languages. In this brief work, we are going to explore some possible processes of language education and learning, using hybrid-digital tools.

Keywords: digital-hybrid interculture; language skills; generations

Cultura híbrida e intercultura

A cultura contemporânea é uma cultura híbrida, quase - digital (Moretti, 2013), onde elementos que pertencem às diferentes gerações encontram-se misturados para criar um sistema de referência muito complexo. As diferentes gerações lidam de várias formas com este processo, mas todas estão envolvidas naquela que podemos chamar de “mudança cultural”.

A literatura tem vários exemplos de estudos sobre as gerações, cujo objetivo è geralmente estabelecer diferenciações entre os sujeitos que nasceram num mundo digital, em relação aos nascidos num mundo pré-digital. Tapscott (1999), Howe & Strauss (2000), Prensky (2001), Oblinger (2003), Veen e Vrakking (2009) e outros, têm utilizado diferentes denominações como “nativos digitais”, “millenials”, ou simplesmente novas gerações. Porém, a questão das diferenças em relação à tecnologia, não é apenas geracional, mas sim cultural, e se refere também à relação que as diferentes gerações vivenciam com a assim chamada mistura cultural, com o multiculturalismo, com a intercultura.

Se, por um lado, é fácil observar que as crianças e jovens apresentam novas linguagens e comportamentos diferentes das outras gerações, por outro, precisamos entender que elas desenvolveram uma forma de pensar e organizar o pensamento a partir de meios não só analógicos, mas também digitais, e desses combinados (construídos nessa coexistência), tudo isto em uma perspectiva intercultural. Isto possibilita um nível de ação e interação muitas vezes extremamente dinâmico e instantâneo, cujo retorno acontece da mesma forma. Esta forma de organização do pensamento, da intuição e da ação, não está relacionado somente com a tecnologia, mas também com a globalização e com uma mudança cultural bem mais geral, que tem na intercultura o ponto mais alto.

Em particular, vamos observar algumas caraterísticas que distinguem as gerações quanto à sua relação com a tecnologia, mas também quanto à aprendizagem das línguas. As denominações das diferentes gerações são aquelas normalmente aceitas pela literatura de referência.

Gerações e tecnologia  

Builders Nasceram entre 1929 e 1949.
Cresceram em período de guerra.
Disciplinados, respeitadores das regras e das leis.
Gostam de estabilidade e coerência.
Valorizam componentes históricos.
Preferem a comunicação face a face, apresentam dificuldade em aprender tecnologias distintas das que costumavam utilizar “na sua época”.
A escola foi um lugar privilegiado para poucos: geralmente, eles conhecem a língua histórica do País e o dialeto da família.
Baby boomers Nasceram entre 1950 e 1964.
Representem a maior fatia de população.
Open Minded.
Rebeldes na sua juventude.
Conservadores nos seus 30 - 40 anos.
Otimistas, ambiciosos, leais, com emprego garantido
O estatuto é importante.
Focam no trabalho, na carreira, e no curto/médio prazo.
Aprenderam uma tecnologia analógica e continuam aprofundando-a; assistiram ao nascimento do PC, agora tentam lidar com as mídias sociais e todas as tecnologias online presentes.
Muitos deles emigraram em outros Países, ou trabalharam fora de casa por muito tempo, aprendendo uma ou duas línguas apenas com a pratica.
Generation X Nasceram entre 1965 - 1979.
Cresceram com ambos os pais a trabalhar (latchkey kids).
Mais individualistas, auto confiantes e irreverentes.
Focam no trabalho, nas relações, nos seus direitos e competências.
Não estão focados em carreiras de longo prazo, lealdade corporativa e status.
Facilmente recrutáveis, difíceis de reter numa organização.
Percebem o inglês como língua universal, estão focalizados em aprender outras línguas (necessidade).
Generation Y/X-ennials Nasceram entre 1980 e 1994.
Valores semelhantes aos Builders - optimistas, confiantes, sociáveis, valores e princípios fortes.
Confortáveis com mistura étnica.
Homens e mulheres esperam maior flexibilidade no trabalho.
Valorizam a comunicação informal e são Multitaskers.
Vivem uma forte saudade da época dos Baby Boomers, falam mais de uma língua, frequentemente aprendida de modo informal.
“Nativos Digitais” Ainda não percebemos se existem realmente ou não.
A forma como abordam a pesquisa e a aprendizagem é totalmente moldada pelo seu novo “Techno - World”.
Não precisam aprender línguas nem tecnologias de modo formal: nascem já imersos nas tecnologias, muitos deles tem pais de nacionalidades distintas e falam mais de uma língua.

Fonte: Elaboração da Autora, a partir de Magic Generation Strategy, 2015, Howe and Strauss, 2012

Uma pesquisa de 2015 conduzida pela Magic Generations, evidencia que esta “nova geração” pode ser definida como Plural generation:

Plurals, on the other hand, knowingly exist in diversity on a micro level. A typical Plurals’ social circle is more diverse than the social circle of a member of an older generation. Plurals are more likely than Baby Boomers, Gen Xers and Adult Millennials to have friends and acquaintances who are African-American, Hispanic, Asian, mixed race, Muslim, Evangelical Christian and very wealthy. Furthermore, more than half of Plurals agree that they would like their social circle to become even more diverse. The four-decade decline of traditional two-parent households in America adds to the diverse environment Plurals are growing up in. The family unit, the most micro social circle for anyone, is experiencing its own metamorphosis. On average, about two in three Plurals live in a two-parent household, a decline from what Millennials (three in four) and Generation X (four in five) experienced at a similar age. Same-sex marriage will also change the definition of family for Plurals. Currently seven states have legalized same-sex marriage. Two more have passed legislation to allow it (the laws haven’t taken effect yet) and California’s ban on same-sex marriage has been struck down by a federal appeals court. An increase in adoption by same-sex couples is also notable. It’s estimated that more than 250,000 children are being raised by same-sex parents.2

A pesquisa foi realizada nos EUA, entre 2012 e 2014, entretanto, é interessante observar como essa definição se apresenta de forma intercultural; a questão da geração plural vem se apresentando como algo necessario e inevitável, devido à mudança cultural que está ainda acontecendo, que possibilita a geração vivenciar um sistema cultural novo e cada vez mais híbrido.

Este “novo” sistema não é ainda completamente digital, com toda probabilidade não poder ser, mas é, profundamente, diferente dos sistemas precedentes, devido ao nível tecnológico da sociedade contemporânea e à copresença das diferentes gerações acima referidas nos mesmos espaço sociais. Elas estão acostumadas tanto a utilizar e vivenciar diferentes meios digitais, quanto a reconhecer e também falar diferentes línguas, muitas vezes aprendendo e praticando de modo informal e híbrido.

Um dos elementos que mais caracterizam esta cultura híbrida é o uso das tecnologias digitais virtuais, em vários níveis de competência e desenvolvimento. As tecnologias digitais - TDs vem sendo utilizadas para criar ambientes de aprendizagem, de jogo, ou simplesmente ambientes sociais, onde pessoas de diferentes gerações se encontram com diferentes objetivos. Segundo Schlemmer & Lopes (2012), as TDs permitem aos sujeitos imergir, agir, interagir, construir, comunicar, socializar dentro de um ambiente digital virtual, de forma que a noção de pertencimento tem se transformado. Não se trata mais de espaços contínuos e contíguos, e nem de territórios geográficos, mas sim de nomadismo e transnacionalidades, transculturalidade, de apagamento das bordas, de permeabilidade, cujas relações dos que habitam esses espaços de natureza digital virtual constituem-se a partir de um hibridismo de pensamentos, de ideias, de idiomas, de saberes, de práticas, de culturas. De acordo com Moretti (2012, 2013) e Veraldi & Moretti (2014), o que hoje realiza-se na sala de aula bem como cotidianamente no lares e nos escritórios é o afirmar-se de uma cultura, não ainda digital, mas híbrida e quase-digital. Os usuários das TDs podem agir e interagir com diferentes tecnologias digitais desde muito cedo, pensam também com e a partir do digital, o que contribui para que atribuam significados ao mundo analógico, a partir de suas ações e interações com e no mundo digital. Essas ações e interações se constituem em vivências e experiências que se transformam em hipóteses que, por sua vez, são então utilizadas para compreender o mundo analógico em que vivem. Novas formas de pensar e de se expressar revelam novos significados e diversificadas formas de perceber e sentir o mundo ao qual pertencem. Estamos falando de um mundo constituído pelo hibridismo e pela multimodalidade, onde espaços digitais coexistem com espaços analógicos, integrando o viver e o conviver entre diferentes culturas.

Novas gerações, intercultura, línguas

As assim chamadas novas gerações vivem imersas em um mundo que não tem outra opção: é multicultural, porém não sempre intercultural:

[…]o multiculturalismo reconhece que cada povo e cada grupo social desenvolve historicamente uma identidade e uma cultura próprias. Considera que cada cultura é válida em si mesma, na medida em que corresponde às necessidades e às opções de uma coletividade. Ao enfatizar a historicidade e o relativismo inerentes à construção das identidades culturais, o multiculturalismo permite pensar alternativas para as minorias. Mas também pode justificar a fragmentação ou a criação de guetos culturais, que reproduzem desigualdades e discriminações sociais.

Para além da oposição reducionista entre o monoculturalismo e o multiculturalismo surge a perspectiva intercultural. Esta emerge no contexto das lutas contra os processos crescentes de exclusão social. Reconhece-se o sentido e a identidade cultural de cada grupo social. Mas, ao mesmo tempo, valoriza-se o potencial educativo dos conflitos. E busca-se desenvolver a interação e a reciprocidade entre grupos diferentes, como fator de crescimento cultural e de enriquecimento mútuo. Assim, nas práticas educacionais, a perspectiva intercultural propõe novas estratégias de relação entre sujeitos e entre grupos diferentes. Busca promover a construção de identidades particulares e o reconhecimento das diferenças culturais. Mas, ao mesmo tempo, procura sustentar a relação crítica e solidária entre elas. (Marinho De Lira, 2007, p. 4)

Interculturalismo e intercultura representam dois termos de uso e compreensão comum entre os X-ennials, porém, a definição de interculturalismo é bem mais antiga (Rey, 1986, em Marinho de Lira, 2007, p. 31):

O prefixo inter indica uma relação entre vários elementos diferentes: marca uma reciprocidade (interação, intercâmbio, ruptura do isolamento) e, ao mesmo tempo, uma separação ou disjuntiva (interdição, interposição, diferença). Este prefixo não corresponde a um ‘mero indicador retórico, mas se refere a um processo dinâmico marcado pela reciprocidade de perspectivas’. Estas perspectivas são representações sociais construídas em interação.

Os X-ennials e os nativos digitais vivenciam de forma mais imersiva o processo de interação cultural; por um lado, eles estão acostumados com a interação cultural diária pelo viver junto com pessoas que pertencem à culturas diferentes, por outro, eles vivenciam também uma mistura de níveis de aproximação digital com as outras gerações. Eles reconhecem e muitas vezes falam línguas diferentes, tem experiência do mundo como um lugar analógico e também digital, onde é comum ter relações em diferentes línguas e aprender mais de uma língua ao longo do tempo. Aprender as línguas não é mais um “fato de escola”: é algo que acontece todos os dias em diferentes interações, e por isto, pode ser potencialiado em formas e com tecnologias diferentes, e também com novos processos de integração de tecnologias “clássicas”.

Aprender as línguas com meios digitais

As tecnologias digitais são utilizadas desde muito tempo para ensino e aprendizagem, mas quanto às línguas, a questão interessante é observar algumas caraterísticas que podem potencializar a aprendizagem especialmente nas “novas gerações”.

Iremos primeiro considerar uma pesquisa da Universidade Cearense, realizada junto a alunos de nível avançado da disciplina de leitura e produção escrita em língua inglesa em um curso de línguas da cidade de Fortaleza. A pesquisadora desenvolveu um website para ser usado como suporte e complemento ao ensino presencial, onde os alunos tinham a chance de publicar suas produções textuais na Internet e de receber comentários de outras pessoas que acessassem o site sobre seus textos, e também poder ler e escrever comentários sobre os textos de outros alunos (Martins, 2012, p. 7):

Para realizar a mencionada investigação, foram disponibilizadas no referido site: a) todas as produções escritas pelos alunos ao longo dessa disciplina; b) espaço para as pessoas que lessem cada produção pudessem escrever comentários; c) links para dicionários on-line, sites de leitura (livros, periódicos, revistas, etc.) e sites com explicações gramaticais, entre outros. Também foram disponibilizadas no site explicações relativas à matéria estudada no livro didático adotado nessa disciplina. Assim, o aluno que faltasse a aula ou não tivesse entendido muito bem os tópicos vistos em sala de aula, poderia rever a explicação sobre o ponto estudado ou enviar um e-mail (disponível no website) ao seu professor para esclarecer alguma dúvida. Através de questionário respondido pelos alunos participantes, verificou-se, então, a aceitação do website por esses ao término da experiência. Os resultados mostraram ser tal ferramenta um bom auxílio no ensino-aprendizagem de inglês por propiciar aos alunos uma maior quantidade de insumo e mais oportunidades para a prática. Em sua avaliação, os alunos fizeram comentários positivos sobre as vantagens em estudar por meio do computador (“é mais divertido e dinâmico”; “posso buscar explicações sempre que sinto necessidade”; “ajuda no aprendizado”; etc.).

Os alunos tinham entre 17 e 20 anos de idade, portanto, podemos considerá-los como pertencentes à geração dos X-ennials; neste caso, embora a tecnologia seja simples e o nível de digitalização baixo (no projeto não tinha opções de comunicação via avatar, realidade aumentada, gráfica 3D ou similares), os alunos responderam positivamente à um ambiente de colaboração, onde a web possibilitou uma interação continua entre pessoas com um objetivo comum, e também compartilhamento de experiências que poderia não acontecer na presença física, caso os alunos tivessem vergonha por ainda não falar corretamente.

Quanto à aceitação do website pelos professores envolvidos nessa pesquisa, esses o consideraram um ótimo meio de aprendizagem. Todos os professores fizeram uso do website sem apresentar receio na utilização dessa ferramenta no ensino-aprendizagem de inglês de seus alunos. Assim como os comentários feitos pelos alunos, os comentários dos professores ao responderem questionário aplicado pela pesquisadora ao final da experiência também foram positivos (“estimula a aprendizagem”; “forma diversificada de aprender”; “uso efetivo da língua inglesa”; etc.).

A geração dos professores é provavelmente a Geração X, portanto eles já estão acostumados com o meio tecnológico, ou ao menos, tiveram familiaridade. Isto è, possivelmente, uma das motivações pelas quais foi escolhida uma tecnologia simples, que pudesse ser utilizada por diferentes gerações com diferentes papeis, contribuindo para a aprendizagem dos alunos e o ensino dos professores. A força real do projeto, para as gerações envolvidas, consiste na possibilidade de ter um lugar e um tempo sempre presente para praticar a lingua. O website se torna o lugar onde è possível realizar aprendizagem formal, de um modo informal, o que é muito mais próximo destas gerações, e que representa o sistema cultural de referencia: não existem alfândegas, nem horários estabelecidos, existe apenas um espaço digital onde a aprendizagem pode acontecer da mesma forma com que acontecem a maioria das experiências das “novas gerações” (isto é, onde os professores tem também que ir para conhecê-las).

Iremos considerar também um projeto digitalização em nível diferente do que o apresentado anteriormente, realizado em Cubatão-S.P. em 2016. O projeto (Pardo, 2016) foi desenvolvido durante o primeiro bimestre da disciplina de língua inglesa, no terceiro ano do curso do Ensino Médio técnico integrado em informática, em uma escola técnica pública federal. Embora o publico-alvo desta pesquisa seja diferente do curso referido anteriormente, tratando-se de alunos entre 14 e 18 anos de idade, ela nos oferece um interessante ponto de vista sobre o ensino das línguas, por meio de tecnologias digitais, na nossa compreensão, de uma perspectiva intercultural.

A proposta de projeto previa que os alunos do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo - campus Cubatão, na região da baixada santista, apresentassem um pouco de suas histórias de vida, família, estilos, hobbies, preferências musicais, gastronômicas, entre outros, com o objetivo de fazer uma sondagem do conhecimento prévio dos alunos, bem como retomar e revisar alguns conceitos básicos da língua inglesa estudados nos anos anteriores. Esta primeira fase foi considerada útil e necessária especialmente para os alunos sairem daquela fase de timidez, devido ao fato de ficar em um grupo bem diferenciado quanto à posição social, renda e sub-cultura. Os alunos pertenciam à diferentes realidades sociais e culturais e, a maioria deles, não tinha aproximação frequentemente com línguas diferentes do português.

Os objetivos do projeto envolviam o desenvolvimento de epistemologias digitais, entendendo o conhecimento como forma de negociação entre mundos virtuais e entre modos de conhecimento para a construção de sentidos, e de sentidos comuns. O procedimento de produção de texto foi, portanto, dividido em três fases: (1) a pré-produção; (2) a produção, etapa que englobou a primeira produção e as atividades para a execução da tarefa; (3) a apresentação, etapa em que o aluno finalizava e apresentava o produto final. As etapas podem ser sintetizadas da forma seguinte (Pardo, 2016, pp. 29-30):

Durante a fase de pré-produção houve a criação de um grupo fechado no Facebook para cada uma das três turmas em que o projeto foi desenvolvido, não apenas para facilitar a comunicação, mas também para a democratização do espaço de aprendizagem, de modo a facilitar a interação e o compartilhamento de informações em um espaço virtual para além da sala de aula. Em seguida, os alunos tiveram um primeiro contato, ainda na etapa de apresentação da situação (Dolz, Noverraz, 2004), com alguns tipos do gênero relato pessoal multimodal, por meio de exemplos pesquisados no sítio Youtube, os quais também foram disponibilizados por meio do compartilhamento no grupo do Facebook. Nesta fase, o objetivo era ilustrar algumas possibilidades de usos de ferramentas, aplicativos e diferentes modos para a produção dos relatos multimodais.

Nesta fase, onde os alunos foram orientados a explorar seu potencial criativo de acordo com suas capacidades em relação ao uso das tecnologias digitais, a colaboração foi estimulada pelo professor, mais na verdade representou um processo quase espontâneo: a troca de conhecimento acontecia em lugares familiares para os alunos, portanto, era muito mais fácil para eles lidar até com um conteúdo mais difícil do que acostumavam.

Na fase de produção, a qual teve duração aproximada de um mês, os alunos foram orientados a utilizar diversos modos semióticos para a construção de seus relatos, tais como texto, imagem, som, música, áudio e vídeo. Na verdade, o projeto pretendia estimular o uso da criatividade dos alunos para produzir os relatos da forma que julgassem mais conveniente. Uma das poucas recomendações feitas pelo professor se restringiu à instrução de que os alunos não deveriam simplesmente ligar suas câmeras e gravar um vídeo, uma vez que a atividade pressupunha a multimodalidade, ou seja, nesse caso, o uso de diferentes modos semióticos.

Uma das questões observadas nesta fase é que alguns alunos estavam receosos em produzir os relatos, por motivos de insegurança para a utilização oral do idioma ou até mesmo timidez, fator este que vai de encontro aos objetivos iniciais da proposta pedagógica. No entanto, como a atividade abrangia diferentes modos de construção de sentido, tais alunos foram orientados a optar por outras formas de narração, nas quais não precisassem falar ou aparecer perante a câmera, por exemplo, o uso de fotografias, voice over e legendas. (Dolz, Noverraz, p. 30)

Podemos ressaltar como a questão da identidade entra com força nesta fase do projeto. A identidade do aluno não encontra-se definida apenas pelo rosto ou a capacidade de falar face to face, ou por meio de um video, mas sim se define através de todas as formas que o aluno encontra para manifesta-la. Por um lado, esta fase esclarece que a assim chamada “Invisible generation” existe, e não quer se mostrar nem nas mídias sociais, onde o computador vira a ferramenta que me permite comunicar com o mundo, nunca mostrando a real identidade; por outro lado, a mesma mídia social possibilita a expressão da identidade de outras formas: gráficas, texto, audiovisuais, porém, não por isto menos pessoais.

A terceira fase, a apresentação dos trabalhos criados pelos alunos, foi realizada via postagem do produto final nos grupos do Facebook de cada uma das turmas. O objetivo era compartilhar todos os relatos com as demais turmas, verificou-se também o caso de alguns alunos que não se sentiam à vontade em ver seus trabalhos expostos no grupo; nestes casos, os trabalhos foram enviados por e-mail diretamente ao professor.

Alguns alunos utilizaram a criação de avatares para não precisar falarfrente à câmera, ou se expor de qualquer forma. Ressalta-se como a escolha dos avatares foi fortemente ligada às capacidades criativas dos alunos, bem como os participantes que escolheram utilizar video em stop motion para se apresentar. Mais uma vez, a identidade desta geração bilingue encontra-se descrita em várias e diferentes formas, permanecendo identidade.

Enfim, o projeto evidenciou que:

[…]um dos objetivos da proposta pedagógica, a qual era diminuir a insegurança e a timidez com relação ao uso do idioma, sobretudo na sua forma oral, não foi alcançado de forma plena, uma vez que alguns alunos não se sentiram confortáveis com a realização da tarefa. Por outro lado, nota-se que a inventividade dos alunos fez com que encontrassem soluções criativas para amenizar tais fatores, principalmente, por meio da autorrepresentação de forma icônica, através de imagens, desenhos, fotografias e avatares, bem como pela substituição da oralidade por meio da legenda, o que demonstra que o uso de diferentes códigos semióticos para a construção de sentidos, neste caso, foi um facilitador para a realização da atividade. (Dolz, Noverraz, p. 34)

Conclusões

O surgimento das assim chamadas “novas gerações” dentro de uma sociedade e de uma cultura híbrida, precisa nos interrogar sobre o papel da educação nos seus diferentes níveis.

Os Xennials e os “nativos digitais” são gerações diferentes de qualquer outra; falam e aprendem as línguas de forma diferente do passado, e consegue utilizar as tecnologias digitais para realizar processos de aprendizagem formal e informal, tais como eles costumam fazer na vida diária.

O desenvolvimento do mundo digital traz implicações para as epistemologias tradicionais, as quais são a todo momento desafiadas pelas epistemologias digitais. Nesta relação, as mudanças na educação formal envolvem ideias como a cognição distribuída, a prática colaborativa, a inteligência em rede e as comunidades de prática. Tais práticas (Pardo, 2016) envolvem outras formas de conhecimento além do proposicional, o qual estaria associado à epistemologia convencional, principalmente o conhecimento dito processual, que está associado ao saber como. As regras da convivência e do viver juntos com outras culturas é, para estas gerações, uma realidade usual.

As novas gerações talvez não sabem muito: mas, sabem como. Assim, surgem sugestões para próximas pesquisas: como implementar os processos interculturais dentro do mesmo processo de aprendizagem? Como potencializar a aprendizagem informal das línguas nas “novas gerações”, para desenvolver processos empoderados pelas diferenças culturais, transformando-nas em nova base de conhecimento? Pesquisas integradas e multidisciplinares que possam indagar todo este novo sistema irão representar, na nossa compreensão, um ponto focal na abordagem, conhecimento e potencial das gerações de hoje e de amanha.

Referências

AA.VV. The First Generation Of The Twenty-First Century. An introduction to The Pluralist Generation by Magid Generational Strategies, em https://static1.squarespace.com/static/56d7388222482e1e2c87c683/t/56e0cdc2cf80a14684670194/1457573327672/MagidPluralistGenerationWhitepaper.pdf (01/02/2019) [ Links ]

BACKES, L. 2013. Hibridismo tecnológico digital: configuração dos espaços digitais virtuais de convivência. In: III Colóquio Luso-Brasileiro de Educação a Distância e E-Learning. Lisboa, Portugal. [ Links ]

CASTELLS, M. 199. A Sociedade em Rede. Volume I. São Paulo: Paz e Terra. [ Links ]

FERREIRA, E. M. 2006. As narrativas interativas dos games: o cinema revisitado. ECO-PÓS, 9(1): 155-166. [ Links ]

GOMES DE MATOS, F. 2002. Comunicar para o bem. Rumo à paz Comunicativa. São Paulo: Editora Ave Maria. [ Links ]

HALL, S.; WOODWARD, K. (org.). 2000. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Ed. Vozes. [ Links ]

HOWE, N.; STRAUSS, W. 2000. Millennials rising: The next greatest generation. New York: Vintage Books. [ Links ]

KRASHEN, S. D. 1982. Principles in Second Language Acquisition. Oxford: Pergamon Press. [ Links ]

LATOUR, B. 2012. Reagregando o Social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. São Paulo: EDUSC. [ Links ]

LAUX, L. C. P. D.; SCHLEMMER, E. 2011. Anatomia no Metaverso Second Life: colaboração e cooperação interdisciplinar e interinstitucional. In: VIII CONGRESSO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO. 2011, São Leopoldo. Anais... São Leopoldo, Programa de Pós-Graduação em Educação da UNISINOS. [ Links ]

LEMOS, A. 2007. Comunicação e práticas sociais no espaço urbano: as características dos dispositivos híbridos móveis de conexão multiredes (DHMCM). Comunicação, mídia e consumo, 4(10): 23-40. Disponível em: http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/ article/view/110/108. [ Links ]

MACEDO, C. F.; CARVALHO, C. B. 2018. O uso das tecnologias digitais no ensino-aprendizagem da língua inglesa no ensino médio. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento, 10:48-70. [ Links ]

McCONIGAL, J. 2011. Reality Is Broken: Why Games Make Us Better and How They Can Change the World. Penguin Press HC, The. [ Links ]

MARINHO DE LIRA, W. 2007. O multiculturalismo e a aprendizagem das línguas estrangeiras. Revista Cientifica da FAETE. [ Links ]

MARTINS MENEZES DE FREITAS GOMES, C. 2012. Tecnologias digitais no ensino-aprendizagem das línguas. Revista da Faculdade Cearense, 5(1). [ Links ]

MATURANA H. REZEPKA, S. N. de. 2000. Formação Humana e Capacitação. Petrópolis, RJ: Vozes. [ Links ]

MORETTI G. 2012. Cultura (s) quase-digital (s). POÉTICAS VISUAIS, 2: 30-51. [ Links ]

MORETTI G. 2013. Cultura digital, cultura hibrida: sugestões para um olhar sobre gerações e tecnologias na sociedade contemporânea. In: Atas do 1o Congresso Internacional de Psicologia, Educação e Cultura Desafios Sociais e Educação: Culturas e Práticas, vol. 1, p. 612-626. [ Links ]

OBLINGER, D. 2003. Boomers, Gen-Xers, Millennials. Understanding the new students. Educase, 37-47. Disponível em http://net.educause.edu/ir/library/pdf/ERM0342.pdf. [ Links ]

PARDO, F. 2016. Epistemologias digitais, cibercultura e a construção de relatos pessoais multimodais no ensino e aprendizagem de língua inglesa. Revista Veredas, 20(1). [ Links ]

PRENSKY, M. 2001. Digital Natives Digital Immigrants. In: M. PRENSKY, M. On the Horizon. NCB. University Press, 9(5). Disponível em http://www.marcprensky.com/writing/. [ Links ]

SACCOL, A. Z.; SCHLEMMER, E.; BARBOSA, J. L. V. 2011. M-learning e U-learning: Novas Perspectivas da Aprendizagem Móvel e Ubíqua. 1. ed. São Paulo: Pearson Education, v. 1. 192p. [ Links ]

SANTAELLA, L. 2008. A ecologia pluralista das mídias locativas. Revista FAMECOS, 37: 20-24. Disponível em http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/4795. [ Links ]

SCHLEMMER, E.; BACKES, L. 2015. Learning in Metaverses: Co-existing in Real Virtuality. 1. ed. Hershey: IGI Global. v. 1. 356p. [ Links ]

SCHLEMMER, E.; MARSON, F. 2013. Immersive Learning: Metaversos e Jogos Digitais na Educação. In: CISTI'2013 (8 ª Conferência Ibérica de Sistemas e Tecnologias de Informação). 2013, Lisboa, Portugal. [ Links ]

SCHLEMMER, E. 2014ª. Gamificação em espaços de convivência híbridos e multimodais: design e cognição em discussão. Revista FAEEBA, 23: 73-89. [ Links ]

TAPSCOTT, D. 1998. Growing up digital: The rise of the Net Generation. New York: McGraw-Hill. [ Links ]

VARELA, F. J. 2005. La enacción: uma alternativa ante la representación. In Conocer. Las Ciencias Cognitivas: tendencias y perspectivas: Cartografia de las ideas actuales. Gedisa Editorial. 4ed. Barcelona. [ Links ]

VEEN, W.; VRAKKING, B. 2009. Homo Zappiens: educando na era digital. Porto Alegre: Artmed. [ Links ]

VERALDI R, MORETTI G. 2014. Digital Culture, hybrid culture. Suggestions for a look on generations and technology in the contemporary society. In: DIGITAL LIBRARIES AND DIGITAL ARCHIVES. BELGRADO, 7-8/04/2014, BELGRADO: BELPAK, vol. 1, p. 72-76. [ Links ]

ZICHERMANN, G.; LINDER, J. 2010. "Game-Based Marketing." Jargonlab, Inc. and Joselin Linder. Disponível em: http://www.slate.com/id/2289302/Links ]

2The First Generation of the Twenty-First Century, in https://static1.squarespace.com/static/56d7388222482e1e2c87c683/t/56e0cdc2cf80a14684670194/1457573327672/MagidPluralistGenerationWhitepaper.pdf

Recebido: 02 de Março de 2019; Aceito: 16 de Setembro de 2019

1

Professora de Comunicação Intercultural - Departamento de Ciências Políticas, Econômicas e Línguas Modernas na Libera Università Maria Ss. Assunta (LUMSA). Doutora em Comunicação pela Università Maria Ss. Assunta (LUMSA).

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons