SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número4Intercultura e linguagem: perspectivas híbridas-digitais para o ensino das línguasAPP-DIÁRIO na formação de pesquisadores em Programa de Pós-Graduação em Educação índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação UNISINOS

versão On-line ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.23 no.4 São Leopoldo out./dez 2019  Epub 06-Jul-2020

https://doi.org/10.4013/edu.2019.234.03 

Dossiê: Educação em Contextos Híbridos e Multimodais

Configuração do espaço híbrido e multimodal: Literaturalização das Ciências na Educação Superior

Hybrid and multimodal space configuration: literaturalization of sciences in College Education

Luciana Backes1 

Fábio La Rocca2 

Eduardo Lorini Carneiro3 

1Universidade La Salle luciana.backes@unilasalle.edu.br

2Université Paul-Valéry Montpellier 3 fabio.la-rocca@univ-montp3.fr

3Colégio Agrícola Estadual Daniel de Oliveira Paiva dudu.carneiro@gmail.com


Resumo

As tecnologias potencializam de maneira mais intensa e rápida as transformações em diferentes segmentos. Na Educação identificamos a configuração do espaço por meio do hibridismo entre elementos distintos, separáveis e contraditórios e da multimodalidade na tessitura entre educação presencial e on-line. Assim, destacamos tendências em compreender as Ciências de forma literaturada e metafórica. Logo, emerge a questão: De que forma a literaturalização das ciências participa da configuração do espaço híbrido e multimodal na Educação Superior? Articulamos as pesquisas desenvolvidas no COTEDIC UNILASALLE/CNPq e no LERSEM IRSA-CRI, de natureza exploratória e qualitativa. Evidenciamos que a configuração a partir da literaturalização das ciências ocorre na tensão entre paradigmas dominantes e emergentes; nas redes de conhecimentos e no hibridismo das linguagens; em práticas pedagógicas dialógicas contemplando espaços geográficos e digitais virtuais e com tecnologias analógicas e digitais.

Palavras-chave: Espaço Híbrido e Multimodal; Educação Superior; Literaturalização das Ciências

Abstract

The technologies potentialize and intensify transformations in different segments. In Education, we identify the configuration of space through hybridism between distinct, separable and contradictory elements and of multimodality in the context of presential and online education. Thus, we highlight tendencies in understanding the sciences in a literary and metaphorical way. Therefore, the question arises: How does the literaturalization of sciences participate in the configuration of the hybrid and multimodal space in College Education? We articulate the research developed in COTEDIC UNILASALLE/CNPq and LERSEM IRSA-CRI, of an exploratory and qualitative nature. We show that the configuration from the literaturalization of the sciences occurs in the tension between dominant and emerging paradigms; networks of knowledge and the hybridism of languages; in pedagogical dialogical practices contemplating geographical spaces as digital virtual spaces and with analog and digital technologies.

Keywords: Hybrid and Multimodal Space; College Education; Literaturalization of the Sciences

Introdução

Ao longo da história da humanidade identificamos diferentes dinâmicas entre os seres humanos ao estabelecer a convivência, definindo: política, trabalho, economia, educação, desenvolvimento, cultura, lazer e religião. Em algumas teorias, essas dinâmicas são definidas como “ondas”, que caracterizam as ações realizadas para o desenvolvimento da humanidade, inicialmente as tendências agrícolas, após industriais e atualmente comunicacionais, impulsionadas pelo desenvolvimento tecnológico (Toffler, 1980). Na relação sociedade e tecnologia as ações dos seres humanos são compreendidas por meio das sociedades da informação e do conhecimento, como continuação do industrialismo, informacionalismo, capitalismo e estatismo, a fim de explorar a sociedade em rede (Castells, 2003). Para o autor, a organização social em redes é uma configuração realizada em outros tempos e espaços, porém, a partir do novo paradigma da tecnologia da informação encontramos a base material para sua expansão e desenvolvimento na estrutura social.

Na relação sociedade e conhecimento são identificados os paradigmas que representam modelo ou padrão de um conjunto de conceitos e teorias das ciências e da epistemologia. Assim, a ciência, ou a cientificidade, sempre acentuam, predoninantemente, o valor das ideias teóricas. No entento, a proposição de paradigma, de um ponto de vista epistemológico, enquanto modelo de pensamento e também, enquanto campo de interpretação da realidade, coloca a sociedade numa condição de reconsiderar tanto o aporte teórico quanto a compreensão do mundo. A perspectiva do paradigma de Khun (1962) atribui funções e dinâmicas às ideias que fascinam a vida científica, então, podemos constatar que a ciência é um conhecimento que o pesquisador trabalha constantemente, logo, está em mudança permanente. Conforme o autor essa passagem para o novo paradigma é uma revolução científica e assim podemos explorar a ideia de uma ciência “aberta”, ou seja, na perspectiva de sempre reconstruir os conhecimentos a fim de que esses conhecimentos sejam pertinentes para leitura do mundo. A abertura de espírito pode ser associada às concepções de método conforme Morin (1982), assim como com a sua compreensão de “complexidade” (Morin, 2005), que trata de uma ciência de realiança e não mais o paradigma do pensamento clássico, tal como o cartesianismo, separando objeto e sujeito, assim como disciplinas e conceitos.

Para Santos, B (2004) identificamos um conjunto de teorias denominadas de paradigma dominante, desenvolvidas na modernidade, passando pela sua crise, até chegar ao período de transição em que vivemos, quando emerge novas teorias que seguem outros modelos e padrões paradigmáticos, sendo denominadas de paradigmas emergentes na pós-modernidade. Logo, o ser humano, que na modernidade era o indivíduo considerado “mestre de si mesmo como do universo” (Maffesoli, 2012, p. 12), atualmente, na pós-modernidade, passa a ser compreendido num contexto comunitário como “pessoa plural em sua tribo de escolha, vai ser o que é a partir das ligações que o constituem. Ligações de afetos, odores, gostos, sentimentos, sensações, tudo fazendo que cresçamos com” (Maffesoli, 2012, p. 12). Ou seja, a pessoa cresce com o outro e através desse outro, no viver e conviver. Estamos no mundo ao estabelecer diferentes laços sociais, ao “estar juntos”, em comunhão, compartilhando com o outro.

No entanto, está cada vez mais complexo caracterizar as formas de convivência e atribuir adjetivos aos paradigmas existentes, segundo Capra (1991). Há o fluxo e refluxo entre ondas, sociedades e paradigmas. Evidenciamos dinâmicas entre tendências, contraditórias, paradoxais, semelhantes, ambíguas, dicotômicas e dialéticas, a serem estabelecidas num único espaço, numa perspectiva que ultrapassa a coexistência. Essas dinâmicas entre diferentes tendências apresentam uma perspectiva híbrida e multimodal.

A perspectiva híbrida pode ser pensada de maneira aberta, ou seja, a partir de uma "sociologia aberta" nas palavras de Busino (2003), conectando, e não separando, os domínios teóricos a fim de apresentar uma visão ampla pressupondo uma inter-relação de várias formas sociais e de pensamentos. O híbrido, também pode ser pensado como uma metáfora tanto da realidade quanto da própria ciência. Destacamos que o termo híbrido potencializa os paradoxos ou as interrogações, sendo essas interrogações que nos permitem pensar de forma híbrida como meio de conhecimento e como resultado da realidade social no sentido proposto por Descola (2014), tendo como base a compreensão de "hibridização do mundo". Ou seja, as sobreposições do mundo dos indivíduos. A partir dessa dimensão contemporânea, presenciamos uma hibridização que está cada vez mais presente nos diversos setores de nossa sociedade, graças também aos efeitos das tecnologias que possibilitam uma outra configuração de espaço e tempo e modos de estar juntos.

A compreensão do multimodal encontra-se em processo de sistematização, havendo diferentes compreensões em relação ao vocabulário. Para Schlemmer, Backes e La Rocca (2016) consiste em um contexto que integra diferentes modalidades em caráter de continuidade e prolongamento da interação, para o desenvolvimento dos processos de ensino e aprendizagem. Assim, para os autores, os processos são desenvolvidos por meio de livros, aplicações, jogos, dispositivos móveis tanto em sala de aula quanto nos diferentes espaços da cidade. Com o intuito de ampliar a compreensão da multimodalidade, vamos explorar a metáfora do mosaico de Benjamin (1997) estabelecendo a relação entre as particularidades de cada elemento, as vezes paradoxais, para a compreensão do todo, ou seja, não estamos tratando da modalidade a distância ou da modalidade presencial, mas a polissemia de realidades que participam dos processos de ensino e de aprendizagem, considerando o todo.

Na medida em que nos reconhecemos como sociedade, como grupo, configuramos o espaço que ocupamos, alterando e nos relacionando com a natureza de distintas formas e criando objetos geográficos que nos caracterizam enquanto cultura - casas, pontes, cidades, lavouras, usinas etc (Santos, M, 2017). Nesta dinâmica, ressaltamos que ocorre também a transformação de nossa relação com outros seres humanos e culturas a partir de práticas que incluem fluxos de poder, regionalizações, alterações de paisagem, dominação e demarcação de territórios etc.

O espaço é produzido e ressignificado através do tempo e de nossas ações permeadas por objetos artificiais - os quais chamamos também de artefatos - que alteram nossa maneira de interagir com a natureza e com a sociedade culturalizada. Em um hibridismo multifacetado entre: ser humano, culturas, linguagens e artefatos tecnológicos, emergem novas formas de configuração de distintos espaços, que podem ser físicos e geográficos ou digitais virtuais. Assim, a humanidade se desenvolve, transforma, constrói, destrói, reconstrói, estabelece normas, poder, política e forças, configurando os diferentes espaços no viver e conviver, bem como a humanidade é ampliada e reconstruída a partir dessa configuração.

As crises e os impasses que acompanham esse viver, causando tensões nas relações entre os homens e as mulheres, provocam as transformações, emergindo o viver de um determinado tempo e espaço. Para Santos (2004, p. 14):

Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de comunicação interactiva libertada das carências e inseguranças que ainda hoje compõem os dias de muitos de nós: o século XXI a começar antes de começar. Por outro lado, uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os perigos cada vez mais verossímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos temer que o século XXI termine antes de começar.

Nesse artigo queremos refletir sobre a educação superior nesse espaço contemporâneo, considerando o ser humano enquanto participante da configuração, para além da compreensão reduzida a ação profissional no mercado de trabalho da sociedade. Para tanto, Roggero (2007, p. 31) sugere que a formação do ser humano contemple:

a) uma perspectiva multi e interdisciplinar de abordagem de questões relativas às múltiplas linguagens, que se explora na contemporaneidade da ciência e do mundo do trabalho; (b) à tecnologia, cujas inovações têm produzido avanços sem precedentes para a qualidade de vida humana e, ao mesmo tempo, contradições que exigem atenção permanente; e (c) aos valores que são questionados e reclamam a construção de uma nova ética no mundo globalizado.

Assim, entendemos que o grande desafio da educação superior está em estabelecer esse diálogo entre a complexidade do espaço contemporâneo, a participação dos seres humanos nessa configuração, a emergência das novas tendências paradigmáticas e o desenvolvimento tecnológico. Esse diálogo se concretiza a partir de práticas pedagógicas que potencializam a construção do conhecimento. A partir das pesquisas4 desenvolvidas no Grupo de pesquisa Convivência e Tecnologia Digital na Contemporaneidade COTEDIC UNILASALLE/CNPq e do Laboratório de pesquisa em Sociologia LERSEM IRSA-CRI da Université Paul-Valéry Montpellier 3, nos movimentamos a partir da questão: De que forma a literaturalização das ciências participa da configuração do espaço híbrido e multimodal na Educação Superior?

Para essa reflexão, iniciamos com a compreensão de espaço a fim de sublinhar a participação dos seres humanos. Após, abordamos a complexidade dos espaços híbridos e multimodais na educação superior. Assim, entendemos como alternativa emergente para a educação superior a literaturalização das ciências. Ao final, construímos reflexões sobre a problematização e destacamos as considerações finais.

A configuração do espaço: participação do ser humano

A noção do que compreendemos por espaço possui múltiplas abordagens. Em uma conceituação através da arquitetura, Ching (2016, p. 100) ressalta:

O espaço engloba constantemente nosso ser. Através do volume do espaço nos movemos, percebemos formas, ouvimos sons, sentimos brisas, cheiramos as fragrâncias de um jardim em flor. É uma substância material como madeira ou pedra. Ainda assim, constitui uma emanação inerentemente informe. Sua forma visual, suas dimensões e escala, a qualidade de sua luz - todas essas qualidades dependem de nossa percepção dos limites espaciais definidos pelos elementos da forma.

Na geografia, Santos, M (1988) define o espaço como um resultado da ação humana, compreendendo objetos naturais e artificiais, bem como a vida que os preenche, ou seja, a sociedade. O autor salienta também que o espaço é “um misto, um híbrido, um composto de formas-conteúdo” (2017, p. 42), portanto, se trata de todas as relações naturais, técnicas, de trabalho, de socialidade e de poder realizadas ao longo do tempo, nas quais muitas vezes possui influência umas sobre as outras, gerando novas relações a partir das transformações feitas originalmente. A noção trazida pelo autor é compreendida por Suertegaray (2001) como um espaço uno e múltiplo, formado pela paisagem, território, lugar e ambiente. O espaço pode ser lido conforme cada uma destas variáveis sem desconhecermos que cada uma delas está também contida nas demais.

Dessa forma, o espaço não pode ser considerado como uma categoria fixa ou imóvel, mas, ao contrário, compreendê-lo sempre em movimento, mudando constantemente através de suas várias tessituras de significados. Portanto, pode ser considerado na perspectiva do hibridismo, isto é, um cruzamento de várias imagens e histórias, como por exemplo, a imagem metafórica do pergaminho que consiste em uma série de extratos sobrepostos, camadas de significados escritos ao longo do tempo e que o ser humano pode reatualizar por meio de suas experiências. Assim, presenciamos a espacialização da sociedade, se aderirmos à ideia fundamental da convergência entre espaço e seres humanos, ou a sua fusão em um efeito recíproco. Há uma construção espacial na construção social e vice-versa, o que reforça a relação entre a natureza humana e a natureza espacial.

Percebemos nestas abordagens que não há espaço sem o nosso ser e sem a presença do trabalho humano, resultando na técnica. O espaço é dinâmico justamente porque a sociedade é dinâmica. Se transforma a partir da culturalização (ou artificialização) das paisagens em um processo que se acelera cada vez mais (Santos, M, 1988). A natureza aos poucos deixa de ser natural para se tornar um objeto artificial nas mãos humanas, sendo ressignificada como um meio de trabalho e de produção. Santos, M afirma que “no mundo de hoje, é frequentemente impossível ao homem comum distinguir claramente as obras da natureza e as obras dos homens e indicar onde termina o puramente técnico e onde começa o puramente social” (2017, p. 101). A dinamicidade que existe entre a natureza e a sociedade resulta em um hibridismo, entendido como “a mistura entre diferentes elementos, que resultam num novo elemento composto dos anteriores” (Schlemmer, 2015, p. 407). Conforme Backes (2011; 2015) esse hibridismo representa a congruência entre seres humanos, tecnologia e sociedade na configuração do espaço.

Numa compreensão sociológica, segundo Castells (2003, p. 501) o conceito de espaço, considerando o desenvolvimento tecnológico, é definido a partir do espaço de fluxo:

O espaço de fluxo é a organização material das práticas sociais de tempo compartilhado que funcionam por meio de fluxos. Por fluxos, entendo as sequências intencionais, repetitivas e programáveis de intercâmbio e interação entre posições fisicamente desarticuladas, mantidas por atores sociais nas estruturas econômicas, políticas e simbólicas da sociedade.

Na materialidade das práticas sociais, a configuração ocorre no fluxo das relações entre natureza, cultura, humano, não humano, cidade, digital virtual, em redes estabelecidas nos jogos, mídias sociais, blogs, micro-blogs e ambientes virtuais, construindo novas paisagens.

As novas paisagens, na dimensão perceptiva dilatada, são as expressões da produção multifacetada onde cada elemento é pensado como parte de um todo maior, formando assim um hibridismo de paisagens interativas, de informações espaciais, de tecnologização da existência e de espaços onipresentes. Todos os elementos integram no mundo sócio-espacial e, portanto, influenciam a reconfiguração ontológica do espaço. Há então a pluralidade de paisagens influenciadas pelas mídias interativas que transformam o significado das práticas habitacionais, dos modos de viver e de estar juntos. Assim, destacamos uma espécie de neverleben tecnológico5: isto é, uma mudança de impressões externas e internas, de nossos estímulos e de nossa sensorialidade, uma mudança que é o resultado dessa hibridização, cada vez mais persistente. Nessa lógica, testemunhamos a mudança no domínio da sensibilidade do ser humano, da percepção e da experiência. Além disso, não podemos esquecer que a paisagem é constituída a partir de sentimentos, percepções, assim como, da imaginação que forja a visão.

Então, o conceito de paisagem remete a ideia de hibridismo no espaço. Para Santos, M (1988, p. 21), trata-se de “tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança. Esta pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons, etc.” Identificamos na paisagem um mosaico, uma sobreposição onde diferentes objetos naturais e artificiais de tempos e natureza distintos se entrelaçam, o atual se encontra com o passado formando uma acumulação de diferentes tempos, caracterizando a complexidade e multiplicidade do espaço. Além disso, ao nos referirmos à metáfora do mosaico, podemos entender essa visão multimodal de uma realidade ainda em construção, a riqueza das várias peças, fragmentos que compõem a visão complexa das coisas. Poderia ser pensado ao mesmo tempo como uma proposição metodológica. Os fragmentos, compondo a ideia multiforme do mosaico, também significam uma liberação das restrições ou ato de conhecimento, se seguirmos a teoria de Benjamin (1997). Enfrentamos o que pode ser proposto como hermenêutica do fragmento, uma montagem de visões e percepções, a partir do pensamento benjaminiano leva à construção de uma constelação de imagens, pensamentos, idéias que permitem abrir a visão a uma dimensão maior onde os vários elementos estão em constante relação recíproca. Parece-nos óbvio, portanto, que não estamos mais diante de uma visão totalizante, reduzindo a realidade e sintetizando a complexidade do mundo social. Em vez disso, na atmosfera atual, é necessário ampliar a visão e observar a polissemia da realidade social, o ser humano está em interação com um vasto conjunto de objetos, visões, influências sensoriais e estímulos variados, frutos da interrelação digital cada vez mais urgente e presente.

O que Santos (1988) nos apresenta como objetos artificiais, Latour chama de atores não humanos no contexto da Teoria Ator-Rede (TAR), nos quais se encontram os artefatos cada vez mais presentes em nossa sociedade. Assim, o espaço também pode ser compreendido como uma rede formada por distintos atores humanos e não humanos, onde sociedade e tecnologia se conectam constituindo uma relação de hibridismo (Latour, 2012). Tal contexto encontra suporte na ciência geográfica a partir do que Santos, M (2017) chama de “meio técnico-científico-informacional”, no qual a ciência, a tecnologia e as relações sociais e econômicas são encaradas de forma conjunta.

Logo, as noções de espaço se reconfiguram para atender também as relações que ocorrem em ambientes que não são necessariamente físicos e geograficamente localizados, mas permeados pela tecnologia, na emergência do ciberespaço, que para Lévy (2010), é compreendido como um meio de criação de informação, de comunicação e de simulação, bem como um canal de suporte de memória da humanidade. O ciberespaço reconfigura nossas relações econômicas (evidenciadas nas ações em bolsas de valores, cartões de crédito virtuais, criptomoedas e compras on-line); políticas (presentes na globalização, “estreitamento” de fronteiras e relações de geopolítica); e sociais (culturalização, mídias sociais e educação em contextos como Educação a distância, mobile learning e gamificação).

Essas múltiplas mudanças afetam nossas vidas diariamente. Estamos, portanto, numa dimensão de digitalização da vida cotidiana onde os vários aspectos aqui ilustrados são testemunhas da interdependência do ciberespaço na construção da realidade social. O espaço social é vivido em um ir e vir incessante entre a materialidade e a imaterialidade, onde a instantaneidade se torna o fator que catalisa ao mesmo tempo as expressões sociais e econômicas, a disponibilidade e uso dos objetos e, também, as formas de aprendizagem e conhecimento. A conectividade permanente é uma forma expressiva do nosso espírito temporal e isso nos leva a considerar um tipo de presença flutuante entre o espaço geográfico e o digital. A presença, o estar no mundo, a multiplicação das ligações e lugares, nos colocam na condição de pensar quais são os efeitos da sinergia entre o geográfico e o digital, a dimensão de hibridização, para redefinir as formas comunicativas e os conhecimentos.

A partir da configuração da educação em diferentes espaços, sejam eles geográficos ou digitais virtuais, emergem problematizações epistemológicas e metodológicas, acerca das relações de ensino e aprendizagem em espaços híbridos e multimodais, nos quais estão em congruência os diversos atores humanos e não humanos, objetos naturais e artificiais.

Espaço híbrido e multimodal: a configuração no cotidiano

Os espaços híbridos e multimodais são configurados na articulação de diferentes elementos no conviver. Segundo Backes, Schlemmer e Ratto (2017), normalmente os seres humanos, em suas ações, criam conjuntos, misturas e estabelecem diferentes relações em vários domínios. Assim, identificamos a utilização, ao mesmo tempo, da mídia social, correio eletrônico, sites e comunicadores instantâneos, enquanto estamos nos supermercados, restaurantes, praças e salas de aula. Para os autores, essa articulação ocorre naturalmente nas ações cotidianas, dificultando a identificação entre o que fizemos na dimensão material e o que fizemos na dimensão digital virtual. Mobilizamos, então, informações, comunicações e conhecimentos, em diferentes situações, inclusive, na educação, mesmo que de forma não intencional ou não contemplada nas práticas pedagógicas.

No contexto educativo, principalmente no Ensino Superior, estudantes e professores utilizam ambientes virtuais de aprendizagem, mapas mentais, apresentações on-line, portais da pesquisa, tecnologias de compartilhamento e livros (físicos e digitais), complementando com a criação de grupos em mídias sociais, contatos via comunicadores instantâneos, reuniões de estudo na universidade. Também nesse contexto, evidenciamos as dificuldades no desenvolvimento dos processos de ensino e de aprendizagem em congruência com a contemporaneidade, utilizando os artefatos e produzindo conhecimentos, a partir da compreensão paradigmática dominante, ou seja, disponibilizando referencial teórico, “ferramentas” de avaliação e controle. Ou ainda, de maneira inapropriada, fazendo uso de plágio, disseminando fake news, bullying entre estudantes e professores, marcando presenças fictícias, entre outros.

A partir dessas consideração, faz-se necessária a reflexão sobre os impactos e os efeitos das tecnologias na educação considerando a ideia das Humanidades Digitais (HD), que proliferam em toda parte nas práticas das diversas disciplinas e são objeto de discussão em todos os campos e nas estratégias acadêmicas. As HD têm uma perspectiva específica do ponto de vista pedagógico ao modificar as práticas do pesquisador em relação ao uso que ele faz do digital. A ideia de HD é obviamente ampla, mas nesta discussão, parece relevante referir-se a isso como um conjunto de métodos e instrumentos aplicáveis à pedagogia e como artefato de pesquisa. Então, é preciso dizer que fazer ciência e pensar os fundamentos metodológicos e epistemológicos nas ciências humanas e sociais, precisam estar relacionadas ao digital.

O domínio científico é, então, o da transdisciplinaridade, de um diálogo mais aberto das ciências em uma relação de complementaridade. Em nossa compreensão, pode representar uma das facetas do “pensamento em mosaico ou em fragmentos”, uma vez que os elementos em interação representam o todo ampliado, que não desnaturaliza a pesquisa e as teorias como alguns acreditam a partir de sua fortaleza conceitual. Mas oferece uma visão diferente, ou pelo menos uma visão em congruência com os efeitos digitais que não podem mais ser negligenciados, tanto para o melhor, quanto para o pior.

Na educação em uma sociedade híbrida, na qual interagimos diretamente e constantemente com a tecnologia, evidenciamos o que Latour (1994) chama de mediação técnica, ou seja, a relação entre o ser humano e o artefato muda em decorrência desta interação, bem como a relação do ser humano com os demais membros do seu coletivo. A partir da nossa apropriação da tecnologia no contexto educativo, nossa interação nos permite diversas possibilidades, desde pesquisar acerca de um determinado tema para a realização de uma tarefa até procurar alguma fonte com o trabalho já pronto para a entrega. A mediação consiste em evitar qualquer tipo de determinismo (tanto do ser humano em relação à tecnologia como da tecnologia sobre o ser humano), compreendendo as potencialidades e os limites de cada artefato em cada situação.

Assim, na configuração dos espaços, identificamos o hibridismo na tensão entre elementos distintos, separáveis e contraditórios (Latour, 1991) e a multimodalidade na tessitura entre educação presencial6 e educação on-line7. Nesta tensão, emerge a relação homem-máquina e as questões vinculadas à presença da tecnologia no cotidiano das sociedades. Historicamente, há a preocupação com a tecnologia enquanto artefato de dominação e reprodução, símbolo do capitalismo. Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, Ogburn (1949) demonstra tal problemática ao estabelecer uma conexão entre as invenções da época com a sua apropriação para fins militares, dentre as quais o autor destaca a bomba atômica. Tal visão privilegia um determinismo tecnológico no qual a sociedade é dependente e se molda a partir dos artefatos.

Lévy (2010) questiona até que ponto a sociedade é passiva diante das tecnologias, visto que estas são justamente produtos de uma sociedade e uma cultura. Inferir que nós sejamos determinados pela tecnologia implica na ausência de autonomia dos seres humanos, visto que apenas a utilizaríamos sem reconhecer seu propósito, atribuir significado e incorporar conhecimento através dela. A partir do hibridismo, não pressupomos um determinismo de uma parte em relação à outra, nem dos atores humanos (objetos naturais, sociedade), nem dos atores não humanos (objeto artificiais, artefatos). Pressupomos uma relação de interação entre ambos, na qual se evidencia a influência mútua entre ser humano e artefato (Santaella e Cardoso, 2015). Em vista de tal relação, Latour propõe a substituição do termo “sociedade” por “coletivo”, sendo este “definido como uma troca de propriedades humanas e não humanas dentro de um corpo corporativo” (1994, p. 46, tradução dos autores)8, pois tais artefatos mobilizam e ressignificam as ações humanas, assim como nossas ações reconfiguram e atribuem significados distintos aos artefatos que nos permeiam.

Na interação entre os próprios seres humanos, assim como entre os seres humanos e o espaço, no qual se percebem estes atores não humanos, ou seja, na interação entre todo o coletivo, evidenciamos novas possibilidades de ensino e de aprendizagem em sala de aula, alterando a clássica compreensão entre sujeito-objeto com a compreensão de interação. Assim, o centro da educação não está nos conhecimentos ou nos estudantes e tão pouco nos professores e nas políticas. O centro da educação está na interação, no todo e nas partes ao mesmo tempo, ultrapassando os tempos e espaços escolares no movimento contínuo da vida, conforme sugere Masetto (2015).

Portanto, diferentes artefatos apresentam a potencialidade para contribuir na reconfiguração do espaço de aprendizagem, expandindo-o para além das paredes da sala de aula por meio da comunicação multidirecional. Evidenciamos, assim, a emergência da multimodalidade, entendida como “distintas modalidades educacionais imbricadas, ou seja, modalidade presencial, modalidade on-line” (Schlemmer, 2015, p. 408) na qual se encontram metodologias que contemplem o rompimento das concepções tradicionais, tais como mobile learning, gamificação, aprendizagem baseada em jogos e etc.

Literaturalização das Ciências: congruência com a contemporaneidade

Na complexidade em que nos encontramos e na tentativa de superação dos tensionamentos entre o contexto social e educacional, com o intuito de contemplar a congruência entre os mesmos, bem como de estar em sintonia com a Declaração Mundial sobre a Educação Superior no Século XXI: Visão e Ação da UNESCO (1998)9, evidenciamos algumas possibilidades em Literaturalizar as Ciências, fundamentados em Alves (2008) e Palma (2014).

Obras como “O Mundo de Sofia”, “Quando Nietzsche Chorou”, “A Cura de Schopenhauer” entre outros, sempre se destacaram por serem romances que tratavam de conhecimentos científicos. Da mesma forma que a literatura é um meio de compreender o conhecimento e ampliar a realidade, a partir de práticas pedagógicas, também podemos considerar o filme como um artefato potencializador de aprendizagem, de descobertas e de raciocínio e não apenas em sua compreensão de objeto cultural. De fato, a imagem, no sentido amplo de fotografia, vídeo ou filme, é uma potencialidade para o conhecimento, um canal privilegiado para a construção dos significados e representações do mundo com seu rigor e valor científico. O filme, por exemplo, também é uma metáfora para visões de mundo, nos dá vislumbres e a polissemia da realidade, assim, pode ser usado em práticas pedagógicas para aprendizagem. Se levamos em conta a importância do digital, parece óbvio contemplarmos a lógica do visual em práticas pedagógicas relacionadas as Humanidades Digitais, não podemos reduzir a simples crítica social, mas é necessário consolidar sua relevância na construção do conhecimento e nas formas de fazer pesquisa. Numa dimensão cada vez mais visual e digital do mundo, a imagem em todos os seus estados é um bem simbólico e deve afirmar-se como prática científica (La Rocca, 2007; 2014; 2015, 2016).

Apesar das críticas destacadas por Bouveresse (2005), questionando o rigor científico no “reducionismo da ciência”, consideramos a emergência da contemporaneidade, destacando alguns movimentos que contemplam os conhecimentos científicos (teorias) em contextos (cenários) fictícios de maneira metafórica e lúdica. Palma (2014, 2016) salienta o distanciamento, característico de um discurso científico, de uma linguagem metafórica, estética, mitológica, literaturalizada, conforme a perspectiva que Santos, B (2004) define como paradigma dominante. Para Palma (2014), na compreensão do paradigma dominante, o uso de metáforas em discursos científicos, como o caso das obras citadas anteriormente, representa mero recurso didático-pedagógico, sem valor cognitivo. No entanto, atualmente, o conhecimento, para além das bibliotecas e produções acadêmicas, se multiplicam e se socializam em espaços que não estão vinculados às universidades e aos laboratórios, segundo Masetto (2015).

Então, produzimos conhecimentos na ação profissional, nas ruas e em casa de maneira rigorosa, atendendo às especificidades do conhecimento científico, refletindo sobre as experiências vividas, construindo hipóteses, estabelecendo relações com teorias e construindo formas de lidar com a diversidade, diferença e o heterogêneo. Portanto, para Alves (2008, p. 15), “há modos de fazer e de criar conhecimentos nos cotidianos, diferentes daqueles aprendidos, na modernidade, especialmente, e não só, com a ciência”. Logo, segundo Santos, B (2004), atualmente vivenciamos a emergência de novos paradigmas. Assim, Palma (2014, 2016) compreende as metáforas na associação com a literatura, como fontes de criatividade, de significados difusos, livres, sem limites e que têm a potencialidade de alcance e socialização do conhecimento científico para a humanidade.

Também numa perspectiva emergente, Alves (2008) define a construção do conhecimento por meio dos modos de fazer/pensar num movimento dinâmico de prática/teoria/prática, constituindo redes de conhecimento e tecendo conhecimento em redes. “Esses conhecimentos e as formas como são tecidos exigem que admitamos ser preciso mergulhar inteiramente em outras lógicas para aprendê-los e compreendê-los” (p. 16). Nesse movimento dinâmico é indispensável uma nova maneira de escrever, narrando a vida e literaturizando as ciências. Nessa dinâmica é possível integrar e articular diferentes áreas do conhecimento para o enfrentamento das tensões emergentes, permitindo o surgimento de novas profissões tais como educação, tecnologia e urbanismo ou ainda arte, economia e biologia, constituindo a interdisciplinaridade, segundo Masetto (2015).

Na compreensão interdisciplinar, consideramos as metáforas epistêmicas de Palma (2014, 2016) e a revolução dos modos de construir e representar o conhecimento, segundo os modelos propostos pelo paradigma emergente, ao narrar a vida e literaturar as ciências (Alves, 2008), propomos a literaturalização das ciências (Backes e Mantovani, 2017). Conforme as autoras, considerando o atual contexto cibercultural, temos a possibilidade de representar o conhecimento científico, proposto no currículo de diferentes disciplinas a partir de práticas pedagógicas que contemplem teatro, mapas mentais, reflexões sobre a prática, diferentes pesquisas e e-books, estabelecendo diálogos entre pensamentos antagônicos, paradoxais e/ou contraditórios e articulando o pensamento científico e o pensamento literário, as artes e as humanidades, o digital e o analógico, entre outros. Ou seja, compreendendo o material educativo na dinâmica de uma epistemologia com características sistêmicas10 e complexas11 para uma educação on-line.

A educação on-line, na perspectiva de Silva (2012), emerge como uma demanda da sociedade da informação, manifestando-se como um fenômeno da cibercultura, “[...] garantindo aprendizagem na flexibilidade e na interatividade próprias da Internet” (p. 11), transformando e ressignificando o modelo educacional tradicional de cunho transmissivo, disciplinar e hierárquico, proveniente do paradigma dominante. Por meio da interatividade e flexibilidade características dos dispositivos conectados à Internet, estudantes e professores comunicam, interagem e cooperam em rede, superando as barreiras de tempo e espaço e potencializando a hipertextualidade na construção do conhecimento e a autoria dos estudantes, em relações heterárquicas. Para que a educação on-line se configure, “[...] será preciso educar com base no diálogo, troca, participação, intervenção, autoria, colaboração” (Silva, 2012, p. 12), ou seja, repensar o modelo paradigmático dominante.

Reflexões para o Ensino Superior

As pesquisas são desenvolvidas no Ensino Superior, a nível de graduação e pós-graduação, vinculadas à área de conhecimento de Ciências Humanas, contemplando a Educação (Pedagogia), Psicologia e Licenciaturas, na modalidade Educação a Distância. Os dados foram coletados entre os anos de 2016-2018, a partir de observações no campo empírico e os registros das interações dos participantes, ou seja, representações carregadas de significados. A natureza exploratória se justifica pela exploração de novas práticas pedagógicas para a Educação On-Line, contemplando a configuração do espaço híbrido e multimodal. Para tanto, envolve levantamento bibliográfico, coleta de dados e análise.

A abordagem qualitativa ocorreu por meio das interpretações atribuídas às situações vividas e registradas nos componentes curriculares dos cursos de graduação e nos seminários da pós-graduação, considerando as reflexões teóricas emergente do COTEDIC UNILASALLE/CNPq e no LERSEM IRSA-CRI. Então, segundo Minayo (2009), a pesquisa qualitativa, “[...] trabalha com um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores, atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos” (p. 21).

A configuração dos espaços híbridos e multimodais, apesar de ser natural, em congruência com as tecnologias digitais e, espontânea nas formas de viver e conviver, ainda representam desafio para o contexto educativo. A história da educação se passa em um contexto clássico, cartesiano, dicotômico e hierárquico, por meio de paradigmas dominantes que atribuem as instituições, escolas e universidades, a condição de único espaço para a construção do conhecimento. Assim, mesmo com o cenário contemporâneo, dinâmico e complexo, nem sempre é possível a emergência das tensões, pluralidades, polissemias e diferenças. Ainda professores e estudantes, por meio dessas instituições, buscam a verdade única e absoluta. Então, há a necessidade de propor práticas pedagógicas intencionais para a configuração do espaço hibrido e multimodal, contextualizar os conhecimentos a partir dos cotidianos, construir tessituras para o conhecimento em rede e articular objeto (conhecimento) e sujeito (ser humano), espaço geográfico e espaço digital virtual, conhecimento do senso comum e conhecimento científico, artefatos analógicos e digitais, escola (conhecimento) e sociedade (cotidiano), a cultura, a emoção e a razão.

Por meio dos artefatos tecnológicos digitais e analógicos, podemos propor diversas modalidades de aula: onde todos encontram-se no mesmo espaço geográfico, porém desempenhando diferentes funções, estudantes aprendem ensinando e professor ensina aprendendo. Ou ainda, no desempenho de diferentes funções: co-aprendentes e co-ensinantes, que encontram-se no ciberespaço através da videoconferência interagindo por meio de vídeo, áudio e chat. Nessas multimodalidades o fundamental é manter o fluxo de interação pela comunicação, a participação de todos, a manifestação das perturbações e a produção da autoria. Assim, podemos visualizar a possibilidade construir o mosaico de conceitos, a partir das realidades polissêmicas de cada participante do processo de construção do conhecimento.

Os conhecimentos que construímos estão vinculados a uma rede de outros conhecimentos, não são isolados, são interdisciplinares e transdisciplinares, constituindo a tessitura de conhecimentos em rede. Para tanto, precisamos explorar no Ensino Superior essa lógica de compreensão, olhar para a história que cada conhecimento carrega em si. “Esses conhecimentos e as formas como são tecidos exigem que admitamos ser preciso mergulhar inteiramente em outras lógicas para aprendê-los e compreendê-los” (Alves, 2008, p.16), de maneira rigorosa. Esse mergulhar ocorre por meio de um conjunto de teorias, articuladas com o cotidiano, os significados, as percepções e os modos de estar juntos, portanto, exige uma outra forma de representação, para além da representação clássica que conhecemos, a fim de narrar a vida e literaturizar a ciência, segundo Alves (2008, p.30-31).

Há assim, uma outra escritura a aprender: aquela que talvez se expresse com múltiplas linguagens (de sons, de imagens, de toque, de cheiros, etc.) e que, talvez não possa mais ser chamada de “escrita”; que não obedeça à linearidade de exposição, mas que teça, ao ser feita, uma rede de múltiplos, diferentes e diversos fios; que pergunte muito além de dar respostas; que duvide do próprio ato de afirmar, que diga e desdiga, que construa uma outra rede de comunicação, que indique, talvez, uma ecritafala, uma falaescrita ou uma falaescritafala.

A partir dessas compreensões, sistematizamos a literaturalização das ciências, por meio da transformação ou tradução de um assunto teórico, científico e/ou complexo, numa linguagem literaturalizada, conforme Palma (2015), utilizando personagens existentes na literatura ou criados de forma específica numa narrativa metafórica com linguagens híbridas para contextualizar o conhecimento, em congruência com a cibercultura, por meio do hibridismo tecnológico, representação da imersão e elementos de gamificação. Assim, literaturalização das ciências ocorre em narrativas que exploram redes de conhecimentos e tessituras de conhecimentos em redes. Nessas redes, as metáforas são exploradas em analogias estabelecidas entre as características do conhecimento científico com as do objeto do cotidiano, em narrativas literárias. As metáforas epistêmicas são definidas por um conjunto de elementos que, simultaneamente, pertencem a dois ou mais planos que, convertidos por um autor, produzem um resultado novo e inesperado (Palma, 2015).

Propomos reflexões aprofundadas relacionando conhecimento científico e metáforas, a partir da narrativa de “Alice no País das Maravilhas”, na versão contemporânea, intitulada Educação, Tecnologia e Cibercultura (Backes; Mantovani; Vaz, 2018). Diferentes práticas pedagógicas foram desenvolvidas no Ensino Superior envolvendo reuniões de estudo e sala de aula, onde configuramos o espaço hibrido e multimodal através das dramatizações: O Chá de desaniversário, para discutirmos o conhecimento sobre o processo de interação entre Alice, Lebre de Março e o Chapeleiro Maluco; A Alice ensina as horas ao Coelho Branco, para discutirmos o conhecimento sobre as teorias de aprendizagem (Apriorista, Empirista e Construtivista). Aspectos epistemológicos dos conhecimentos nas metáforas epistêmicas propostos por Palma (2015) foram explorados, tais como: a novidade na forma de produzir significados na criação da metáfora; identificação das características do conhecimento científico; analogias com objetos; elementos contextuais da história fictícia e dos estudantes na construção da metáfora; possibilidade de construir conhecimentos.

Dessa forma, percebemos diferentes aspectos a serem considerados: discutir o conhecimento por meio de diálogos entre os personagens; explorar as características do conhecimento nas ações dos personagens; inserir o conhecimento na narrativa da história; e representar na escrita a imersão do estudante no enredo.

Considerações finais

Para a compreensão da configuração dos espaços híbridos e multimodais por meio da literaturalização das ciências precisamos de paradigma emergente, rompendo a dicotomia, o cartesianismo e a verdade absoluta, aspectos fundamentais no paradigma dominante. Assim, partimos do pressuposto de que as formas de conhecimento devem ser consideradas sempre num constante movimento e mudança, com congruência com o contexto social. Isso quer dizer que o pensamento não pode ser limitado à dogmas científicos, mas aberto para explorar e legitimar diferentes maneiras de pesquisar e construir conhecientos.

Atualmente, os debates ocorrem em novos espaços, permeados por teorias clássicas e ressignificas de forma híbrida a partir das teorias contemporâneas. Dessa forma, a partir do reconhecimento, entendemos que a ciência avança, atribui novos significados, provoca aprendizagens e explora a natureza empírica. Especialmente no contexto da cibercultura, vivenciamos a emergência das múltiplas facetas, da hipertextualidade, da desterritorialização, configurando os espaços híbridos e multimodais.

Nesse raciocínio, podemos oferecer algum tipo de “conhecimento comum” (Maffesoli, 1985) do mundo, uma epistemologia abrangente que integra uma visão multi-perspectiva para emergir o campo da ação híbrida, que consiste em considerar a diversidade e da pluralidade de fragmentos em uma fusão global, atribuindo relevância científica ao digital, às metáforas visuais e às múltiplas linguagens. Assim, tensionamos os métodos clássicos para a construção do conhecimento e as produções empíricas, a fim de legitimar um pensamento mais aberto, ou melhor, uma ciência (mais) aberta.

Propomos essas mudanças no Ensino Superior, a fim de tensionar os paradigmas dominantes e emergentes entre professores e estudantes, construindo redes de conhecimentos para compreender a tessitura dos conhecimentos em redes. Ressignificamos a educação clássica, de cunho transmissivo, para uma educação emergente, de cunho criativo e rigoroso. Entendemos que esse rigor ultrapassa a mera descrição ou opinião pessoal sobre o objeto de conhecimento, consiste em conhecer a razão da existência desse objeto para poder explica-lo de acordo com a realidade vivida, conforme Freire (1992). Logo, podemos vislumbrar a reconstrução do conhecimento, por meio de metáforas e o hibridismo de linguagens, literaturalizando as ciências. Para tanto, necessitamos de práticas pedagógicas dialógicas contemplando espaços geográficos e digitais virtuais e com tecnologias analógicas e digitais.

REFERÊNCIAS

ALVES, N. 2008. Decifrando o pergaminho: os cotidianos das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In: N. ALVES; I. B. OLIVEIRA (orgs.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas. Petrópolis: DP&A, p. 15-38. [ Links ]

BACKES, L.; MANTOVANI, A. M. 2017. Educação On-line na Cibercultura: Desafio de literaturalizar a ciência em E-book. Informática na Educação: teoria & prática. 20 (4): 95 - 113. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-1654.76261Links ]

BACKES, L.; MANTOVANI A. M.; VAZ, D. 2017. Educação, Tecnologias e Cibercultura (E-book). Canoas: Unilasalle Canoas, 153 p. [ Links ]

BACKES L.; SCHLEMMER, E.; RATTO, C. G. 2017. A convivência de natureza digital virtual nas tribos: formação na perspectiva do hibridismo tecnológico digital. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, 12 (2): 1194 - 1216. DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v12.n.esp.2.9881Links ]

BACKES, L. 2015. O hibridismo tecnológico digital na configuração do espaço digital virtual de convivência: formação do educador. Inter-ação, 40(3):435-457. DOI: https://doi.org/10.5216/ia.v40i3.35419Links ]

BACKES, L. 2011. A Configuração do Espaço de Convivência Digital Virtual: A cultura emergente no processo de formação do educador. São Leopoldo, RS. Tese de doutorado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, (co-tutela Science de l’Education), Université Lumière Lyon 2, Lyon, 346 p. [ Links ]

BENJAMIN, W. 1997. Paris, capitale du XIX siècle. Le livre des passages [1924-1939]. 3ª ed, Paris, éd. du Cerf, 974 p. [ Links ]

BOUVERESSE, J. 2005. Prodígios e vertigens da analogia: O abuso das belas-letras no pensamento. 3ªed., São Paulo, Martins Fontes, 258 p. [ Links ]

BUSINO, G. 2003. La place de la métaphore em sociologie. Revue européenne des sciences sociales, XLI (126): 91 - 101. [ Links ]

CAPRA, F. 1991. Pertencendo ao universo. 1ªed., São Paulo, Cultrix/Amana, 199 p. [ Links ]

CASTELLS, M. 2003. Sociedade em rede. 7ªed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 698 p. [ Links ]

CHING, F. D. K. 2016. Arquitetura: forma, espaço e ordem. 4ªed., São Paulo, Martins Fontes, 454 p. [ Links ]

DECLARAÇÃO mundial sobre educação para todos e plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem. UNESCO, 1990. Disponível em < https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000086291_por >. Acesso em 18/01/2019. [ Links ]

DESCOLA, P. 2014. La composition des mondes. 1ªed., Paris: Flammarion, 384 p. [ Links ]

FREIRE, P.; SHOR, I. 1992. Medo e ousadia: cotidiano do professor. 4ªed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 224 p. [ Links ]

GAARDER, J. 1995. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. 1ªed., São Paulo, Companhia das Letras, 555 p. [ Links ]

KHUN, T. 1962. The stucture of scientific revolution. 1ªed., Chicago: University of Chicago Press, 264 p. [ Links ]

LA ROCCA, F. 2007. Introduction à la sociologie visuelle. Sociétés Revue des sciences humaines et sociales, 95(1) 33 - 40. [ Links ]

LA ROCCA, F. 2014. A reprodutibilidade tecnológica da imagem. Tessituras, 2 (2): 114-128. DOI: http://dx.doi.org/10.15210/TES.V2I2.4857Links ]

LA ROCCA, F. 2015. Visual perception: digital imagination and the sensitive experience of the social world. Im@go, IV (6): 50 - 65. DOI: http://dx.doi.org/10.7413/22818138046Links ]

LA ROCCA, F. 2016. L’imaginaire numérique et les formes communicatives. Cultures of Communication, I (1). Disponível on-line em: <http://www.culturesofcommunications.ro/limaginaire-numerique-et-les-formes-communicatives/>. Acesso em 03/02/2019. [ Links ]

LATOUR, B. 1991. Nous n’avons jamais été modernes, essai d’an thropologie symétrique. Paris, La Découverte, 211 p. [ Links ]

LATOUR, B. 1994. On technical mediation - philosophy, sociology, genealogy. Common Knowledge, 3 (2): 29-64. [ Links ]

LATOUR, B. 2012. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. 1ªed., São Paulo, Edusc, 399 p. [ Links ]

LÉVY, P. 2010. Cibercultura. 3ªed., São Paulo, Editora 34, 270 p. [ Links ]

MAFFESOLI, M. 2012. O Tempo Retorna: formas elementares da Pós-modernidade. 1ªed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 114 p. [ Links ]

MAFFESOLI, M. 1985. La connaissance ordinaire: précis de sociologie compréhensive. 1ªed., Paris: Librairie des Méridiens, 260 p. [ Links ]

MASETTO, M. T. 2015. Desafios para a Docência no Ensino Superior na Contemporaneidade. In: M. M. D. CAVALCANTE; J. A. M. SALES; I. M. S. FARIAS; M. S. L. LIMA. (orgs.). Didática e Prática de Ensino: Diálogos sobre a Escola e Formação de Professores e a Sociedade. Fortaleza: EdUECE, p. 00779-00795. [ Links ]

MINAYO, M. C. S. 2009. O desafio da pesquisa social. In: DASLANDES, S. F; GOMES, R.; MINAYO, M. C. S. (org.). Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. 28ª ed., Petrópolis (RJ): Vozes, p. 9-29. [ Links ]

MORIN E. 1982. Science avec conscience. 1ªed., Paris: Fayard, 328 p. [ Links ]

MORIN E. 2005. La pensée complexe. 3ªed., Paris: Seuil, nouvelle édition, coll. Point, 160 p. [ Links ]

OGBURN, W. F. 1949. Technology and International Relations. 1ªed., Chicago: The University Of Chicago Press, 182 p. [ Links ]

PALMA, H. 2016. Ciencia y metáforas: critica de uma razón incestuosa. 2ªed., Ciduad Autónoma de Buenos Aires: Prometeo Libros, 275 p. [ Links ]

PALMA, H. 2015. A Ciencia y metáforas: Los viejos ruidos ya no sirven para hablar. Cuadernos de Neuropsicologia, [s.l.], 9 (1): 134-146. [ Links ]

PALMA, H. 2014. Metáforas científicas. Límites y posibilidades de una relación tradicionalmente incestuosa. In: H. BAUZÁ, (compilador), Reflexiones contemporáneas. Nuevos aportes desde las humanidades y la ciência. Buenos Aires: Academia Nacional de Ciencias de Buenos Aires. p. 107-132. [ Links ]

ROGGERO, R. 2007. Organização do Trabalho Docente: uma discussão necessária na educação superior. Boletim Técnico do SENAC, 33 (2): 21-37. [ Links ]

SANTAELLA, L.; CARDOSO, T. 2015. O desconcertante conceito de mediação técnica em Bruno Latour. Matrizes, 9 (1): 167-185. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v9i1p167-185Links ]

SANTOS, B. S. 2004. Um discurso sobre as ciências. 2ªed., São Paulo: Cortez, 92 p. [ Links ]

SANTOS, M. 1988. Metamorfoses do espaço habitado. 1ªed., São Paulo: Hucitec, 136 p. [ Links ]

SANTOS, M. 2017. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4ªed., São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 388p. [ Links ]

SCHLEMMER, E.; BACKES, L.; ROCCA, F. L. 2016. L’Espace de coexistence hybride, multimodal, pervasif et ubiquitaire: le quotidien de l’éducation à la citoyenneté. Educação UNISINOS (ONLINE), 20 (3): 299-308. DOI: http://dx.doi.org/10.4013/edu.2016.203.03Links ]

SCHLEMMER, E. 2015. Mídia social em contexto de hibridismo e multimodalidade: o percurso da experiência na formação de mestres e doutores. Rev. Diálogo Educ., Curitiba, 15 (45): 399-421. DOI: http://dx.doi.org/10.7213/dialogo.educ.15.045.DS02Links ]

SILVA, M. 2012. Educação online: teorias, práticas, legislação, formação corporativa. 4ªed., São Paulo: Loyola, 540 p. [ Links ]

SUERTEGARAY, D. M. A. 2001. Espaço geográfico uno e múltiplo. Scripta Nova, V (93). [ Links ]

TOFFLER, A. 1980. A Terceira onda. 1ª ed., Rio de Janeiro, Record, 491 p. [ Links ]

YALOM, I. D. 2015. Quando Nietzsche chorou. 35ª ed., Rio de Janeiro: Agir, 376 p. [ Links ]

YALOM, I. D. 2005. A cura de Schopenhauer. 1ª ed., Rio de Janeiro: Ediouro, 614 p. [ Links ]

4A pesquisa Educação On-Line: reconfigurações, reconstruções e significados na prática pedagógica para ensino e aprendizado, submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa CAAE: 65848417.0.0000.5307, foi contemplado no CONSÓRSIO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTIFICO E TECNOLOGICO - (CHAMADA UNIVERSAL MCTI/CNPq Nº 01/2016).

5Expressão construída a partir de Simmel e Benjamin com o intuito de expressar o paroxismo, a decomposição da unidade e a reunificação dos opostos, em um constante reconhecer-se divididos-unidos.

6Processos de ensino e de aprendizagem desenvolvidos a partir de uma determinada epistemologia, em espaços geográficos, vinculados à uma instituição educativa. As metodologias exploradas são fundamentadas na epistemologia.

7Processos de ensino e de aprendizagem desenvolvidos a partir de uma determinada epistemologia, em congruência com diferentes tecnologias digitais, podendo potencializar a comunicação, a interação e a hipertextualidade, em um espaço de fluxo e em um tempo intemporal. As metodologias exploradas são fundamentadas na epistemologia e nas tecnologias digitais escolhidas.

8Texto original: “defined as an exchange of human and nonhuman properties inside a corporate body”.

9A declaração compreende o Ensino Superior como a formação de pessoas altamente qualificadas e cidadãos responsáveis. Para tanto, propõe o incentivo à aprendizagem permanente com o intuito de promover, gerar e difundir a pesquisa em congruência com os valores atuais, contemplando o mundo do trabalho e as necessidades sociais.

10 Refere-se ao pensamento sistêmico, que observa e compreende o objeto pelas suas partes, não se apoiando, somente, no seu todo.

11Refere-se a Teoria da Complexidade, que consiste em compreender que por trás do estudante existe um contexto cultural, relacional e pessoal. Portanto, não se deve simplificar suas construções como indivíduo.

Recebido: 03 de Setembro de 2019; Aceito: 01 de Novembro de 2019

1

Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade La Salle/UniLaSalle. Pesquisadora visitante ao Laboratoire Sciences, Société, Historicité, Education, Pratiques (S2HEP) Université Claude Bernard Lyon 1. Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos em cotutela com a Université Lumière Lyon 2.

2

Professor de Sociologia na Université Paul-Valéry Montpellier 3. Doutor em Sociologia pela Université Paris Descartes Sorbonne.

3

Professor no Colégio Agrícola Estadual Daniel de Oliveira Paiva. Mestre em Educação pela Universidade La Salle/UniLaSalle.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons