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Educação UNISINOS

versão On-line ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.23 no.4 São Leopoldo out./dez 2019  Epub 06-Jul-2020

https://doi.org/10.4013/edu.2019.234.04 

Dossiê: Educação em Contextos Híbridos e Multimodais

APP-DIÁRIO na formação de pesquisadores em Programa de Pós-Graduação em Educação*

APP-DIARY in the training of researchers in a Postgraduate Program in Education

Simone Lucena1 

Edméa Santos2 

1Universidade Federal de Sergipe (UFS) sissilucena@gmail.com

2Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) edmeabaiana@gmail.com


Resumo

Na contemporaneidade, com a disseminação do digital em rede, que saberes os pesquisadores em formação mobilizam ao produzirem seus diários de pesquisa online utilizando as tecnologias digitais móveis? Para responder esta questão realizamos uma etnopesquisa com alguns pesquisadores em formação (mestrandos e doutorandos) que, imersos na cibercultura, produzem app-diários com diferentes interfaces. O referencial teórico da pesquisa teve como base os estudos da cibercultura e multirreferencialidade. Como achados da pesquisa observamos que na atual sociedade em que as tecnologias digitais móveis, principalmente os smartphones, encontram-se disseminadas entre pesquisadores/praticantes culturais imersos na cibercultura, não é mais possível produzir diários de pesquisa distanciados do espaçotempo da investigação, pois estas tecnologias possibilitam a produção de narrativas multimodais que (re)mixam textos, áudios, vídeos, fotografias, e geolocalização em tempo real.

Palavras-chave: Educação; cibercultura; app-diário

Abstract

In contemporaneity with the dissemination of digital network, what knowledge do the researchers in training mobilize when producing their online research diaries using mobile digital technologies? To answer this question we conducted an ethnoresearch with some researchers in training (masters and doctoral students) immersed in cyberculture that produce app-diaries with different interfaces. The theoretical reference of the research was based on cyberculture studies and multireferentiality. As research findings, we observed that in today's society in which mobile digital technologies, especially smartphones, are disseminated among cultural researchers / practitioners immersed in cyberculture, it is no longer possible to produce research journals that are far from the research space production of multimodal narratives that (re) mix texts, audios, videos, photographs, and geolocation in real time.

Keywords: Education; cyberculture; app-diary

Introdução

As tecnologias digitais móveis tem potencializado aos praticantes culturais outras formas de interagir e de compartilhar saberes com os aplicativos (apps) disponíveis nos dispositivos móveis em diferentes espaçostempos na cidade. Na contemporaneidade, com a disseminação do digital em rede, que saberes os pesquisadores em formação mobilizam ao produzirem seus diários de pesquisa online utilizando as tecnologias digitais móveis? Para responder esta questão realizamos uma etnopesquisa crítica com pesquisadores em formação (mestrandos e doutorandos) do Grupo de Pesquisa Docência na Cibercultura (GPDOC) que produzem app-diários com diferentes aplicativos. Nosso objetivo foi compreender a processo de produção dos diários de pesquisa, com as tecnologias digitais móveis, dos pesquisadores em formação identificando que aplicativos utilizam, como utilizam e por que os utilizam.

A etnopesquisa crítica tem como preocupação “os processos que constituem o ser humano em sociedade e em cultura e compreende esta como algo que transversaliza e indexaliza toda a ação humana e os etnométodos que ai se dinamizam” (Macedo, 2010, p. 9). Para a etnopesquisa a experiência dos atores sociais é o estruturante de todo o processo investigativo. Nesse sentido, conversar com pesquisadores do GPDOC nos possibilitou uma imersão nos seus saberesfazeres sociotécnicos no sentido de experienciar também na nossa pesquisa a produção de app-diários com diferentes aplicativos. Assim, buscamos compreender seu processo de produção dos diários de pesquisa de forma multirreferencial interligando com nossa própria experiência com as tecnologias móveis e seus aplicativos nas mais variadas funções e atividades cotidianas.

Em diferentes momentos e contextos da nossa vida profissional e acadêmica desenvolvemos práticas de formação docente com diários online. Este tipo de diário ganhou visibilidade na internet a partir da Web 2.0 que possibilitou o desenvolvimento da interface blog voltada para a produção de diários que possibilitam a (re)mixagem de hipertexto e hipermídia. Em uma das nossas experiências formativas no Programa de Bolsa de iniciação à Docência (Pibid) percebemos que o “diário virtual tem se constituído em mais um ambiente importante na formação, pois nele são exercidas a autoria e a co-autoria” (Lucena, Nunes e Oliveira, 2016, s/p) que se atualizam constantemente. Apesar de termos a escrita de diários em mobilidade também usando cadernos de anotações é somente com o desenvolvimento e a disseminação do digital em rede, a conectividade e a ubiquidade própria das tecnologias móveis, que os diários irão adquirir novas dimensões, pois com os aplicativos instalados nos smartphones a produção em hipermídia passa a ser feita de forma mais acelerada e compartilhada.

Chamamos de aplicativo ou simplesmente app, o software aplicativo ou programa criado para realizar funções específicas em computadores e/ou nas tecnologias móveis (smartphones e tablets). De acordo com Lucena e Oliveira (2017) tanto os apps quanto os softwares sociais começaram a ser desenvolvidos a partir dos anos 2000, principalmente com a disseminação do smartphone, pois passamos a utilizar esta tecnologia no nosso cotidiano nas mais diversas atividades como para fotografar, acessar dados bancários, fazer compras, usar geolocalização, navegar na internet, interagir nas redes sociais, aprender idiomas e também escrever diários dentre tantas outas atividades possíveis. Os aplicativos, gratuitos ou não, podem ser instalados no smartphone por meio da loja virtual do aparelho. O fato do smartphone ser atualmente a tecnologia que converge diferentes mídias e linguagens e está presente na vida de 10,9%3 da população brasileira tem contribuído para que cada vez mais as pessoas realizem suas tarefas com esta tecnologia móvel, pois ela possibilita a mobilidade, a ubiquidade, a hipertextualidade e a hipermídia.

Este artigo está dividido em duas partes. Na primeira, discutimos sobre a construção do diário como dispositivo da escrita de si e pesquisa, que inicialmente era produzido em suporte analógico que não lhe permitia modificar as anotações já registradas. Ao passar a ser produzido com as tecnologias digitais os diários ganham novas características próprias da plasticidade do digital em rede. Porém, a grande mudança na produção do diário ocorre quando este passa a ser produzido por meio de aplicativos, disponibilizados nas tecnologias móveis, utilizados pelos pesquisadores em formação dentrofora dos seus campos de pesquisa, constituindo assim o que chamamos de app-diário. Na segunda parte do artigo apresentamos alguns app-diários produzidos pelos praticantes da pesquisa e argumentamos que para produzir app-diário é necessário possuir saberes experienciais na cibercultura. Por fim, apresentamos algumas reflexões finais a partir também do nosso app-diário onde experimentamos que no contexto atual da sociedade, com a disseminação das tecnologias digitais móveis, não é mais possível produzir diários de pesquisa distanciados do espaçotempo da investigação, pois estas tecnologias possibilitam a produção de narrativas hipermídias que (re)mixam textos, áudios, vídeos, fotografias, e geolocalização em tempo real.

DO DIÁRIO AO APP-DIÁRIO

A origem da escrita de diários ocorre desde a antiguidade e data da época do Império Romano. Barcellos (2009) nos revela que os romanos adquiriram dos soberanos persas a prática diarística de anotar os fatos diários como forma de preservar os acontecimentos marcantes da época. Desta forma, no Império Romano são produzidas autobiografias políticas que deram origem as tradicionais crônicas de eventos da Europa. Contudo, é no Renascimento que surge na cultura europeia as origens do diário íntimo. Barcellos (2009) aponta que a grande transformação na forma da escrita dos diários ocorre quando as mulheres passam também a escrever seus próprios diários revelando sentimentos, desejos, segredos que não podiam expressar publicamente, tornando o diário uma forma de escapatória literária. Os diários femininos passam a relevar detalhes de observações feitas no meio social e na família.

A produção de diários chega à modernidade como uma escrita de si, íntima que revela traços da personalidade, seu cotidiano, desejos e inquietações. É com este caráter privado que o diário passa a ser utilizado como técnica de pesquisa na qual o pesquisador irá registrar o dia a dia do seu trabalho investigativo. Nesse sentido, percebemos que a escrita de diário de campo não é uma técnica, instrumento novo usado por investigadores, porém cada área de pesquisa irá definir como usar o diário sob diferentes aspectos. Por exemplo, na área da saúde o diário assume um caráter unicamente descritivo, como se fosse uma agenda de tarefas realizadas pelo pesquisador (Araújo et al, 2013).

Entretanto, queremos destacar aqui o diário de campo produzido nas abordagens qualitativas nas ciências da educação e antropossociais, como dispositivo de pesquisa onde são produzidas narrativas densa, autoral e multirreferencial (Macedo, 2000, 2010). Para Macedo (2009) é importante desenvolvermos artefatos e procedimentos na investigação que produzam mediações entre culturas diferentes tanto a cultura do pesquisador como a dos praticantes culturais pesquisados. Neste sentido,

tomar artefatos, procedimentos de pesquisa como dispositivos que guardam coerência com as orientações epistemológicas e políticas do processo de produção do conhecimento, retira-os da mera perspectiva instrumentalista que estamos acostumados a verificar. Vê-los como prolongamento da capacidade do pesquisador apreender a realidade, com tudo de criação e implicação ontológica aí imbricado, permite que possamos discutir essa pauta da pesquisa como algo que interfere para além da eficiência e da eficácia em coletar “dados”. (Macedo, 2009, p. 94).

Assim, compreendemos o diário de campo, de pesquisa ou de itinerância (Barbier, 2002) como sendo os registros, descrições e narrativas circunstanciadas, feitos pelos pesquisadores das situações vividas no cotidiano da pesquisa. São narrativas multirreferenciais que exprimem sentimentos, sentidos, informações, subjetividades e acontecimentos experienciados pelo pesquisador em diferentes momentos seja participando de eventos ou estando in loco no campo da pesquisa. A abordagem multirrefencial para Ardoino “propõe-se a uma leitura plural de seus objetos (práticos e teóricos), sob diferentes pontos de vista, que implicam tanto visões específicas quanto linguagens apropriadas às descrições exigidas” (1998, p. 24).

Santos e Weber (2014) discutem a prática e uso do diário na pesquisa e na formação utilizando suportes midiáticos variados desde o material até o digital. De acordo com as autoras, o fato de o diário ter sido produzido no suporte material “fez com que durante muito tempo a escrita do diário ficasse restrita ao mundo privado do autor, o diarista” (Santos e Weber, 2014, p. 15). Para as referidas autoras, com o advento da imprensa os diários ganharam publicização o que possibilitou a distribuição do seu conteúdo para outros interlocutores, mas sem que estes pudessem interferir no conteúdo cocriando com o diarista, pois o suporte material não permite que autores e interlocutores interajam.

É somente com o suporte digital que os diários passam a ter plasticidade que os potencializam serem alterados, transformados simultaneamente por vários interlocutores que interagem em rede. O desenvolvimento das tecnologias digitais e da internet possibilitaram a criação de interfaces comunicacionais que permitiram a produção de conteúdos que (re)mixam textos, áudios, vídeos e fotografias criando um hipertexto que pode também conter links para a redes sociais da internet. Leão (2005) denomina de hipermídia a tecnologia que engloba o hipertexto e a multimídia e que possibilita ao sujeito interator navegar por diferentes caminhos na ordem em que desejar.

Conforme já mencionamos, o blog foi a primeira interface voltada para a produção de diário virtual, porém nesta fase inicial a interface era ainda limitada à publicação de textos organizados em ordem cronológica decrescente por data. Numa segunda fase o blog passa a ter outras possibilidades, pois com o desenvolvimento da hipermídia tornou-se possível (re)mixar diversas linguagens a sonora, a visual, verbal (Santaella, 2009). Atualmente vivenciamos uma terceira fase dos diários online com os aplicativos disponibilizados nos smartphones. A produção de diários com estes aplicativos inaugura outra fase da cibercultura com o imbricamento humano tecnologia, isso porque os smartphones possuem proporções pequenas, mas com alta capacidade de processamento e armazenamento de informações, que nos permite acessar o mundo na palma da mão apenas com o deslizar do indicador na tela. O blog, que antes apenas podia ser acessado no computador ou notebook, hoje já possui aplicativo que permite sua atualização instantânea. Além do blog, outros aplicativos foram sendo criados a fim de possibilitar às pessoas guardarem seus registros, suas memórias, seus sentimento e informações do cotidiano e da sua própria formação.

APP-DIÁRIOS DE PESQUISA

A escolha de um aplicativo para produzir diários não é algo simples, pois existem hoje diferentes apps que possibilitam criar diários hipermidiáticos. No que se refere à produção de diários de pesquisa, a escolha por um determinado aplicativos vai depender da imersão que o pesquisador tem na cibercultura, ou melhor dizendo, do seu saber experiencial na cibercultura. O que estamos considerando como saber experiencial ou da experiência são os saberes que “resultam do vivido pensado” (Macedo, 2015, p 19). Experiência é tudo aquilo que nos toca, que nos acontece, que sentimos e que vivenciamos, pois como nos coloca Larrosa Bondía (2002, p. 25) “É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre”. Desta forma, para construirmos saberes experienciais é preciso viver a experiência, senti-la com todos os sentidos. Não basta apenas ter a informação sobre alguma coisa, algum lugar, algum acontecimento para adquirirmos experiência, pois “a informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência” (Larrosa Bondía, 2002, p. 21).

Na nossa pesquisa conversamos com três pesquisadoras em formação, membros do GPDOC que desenvolveram seus app-diários de pesquisa com diferentes aplicativos Evernote, WhatsApp e Google drive. Realizamos estas conversas na perspectiva da entrevista narrativa que tem como prioridade compreender o saber experiencial dos praticantes culturais a partir da sua narração com o mínimo de interferência possível do entrevistador. Segundo Macedo (2015, p. 75) “trata-se, acima de tudo de uma entre-vista, porque mesmo tendo seu fluxo e sua lógica discursiva valorizados, se dá num encontro negociado e eivado de expectativas mútuas, como toda entrevista”.

Para escolher um aplicativo não basta apenas termos informações sobre suas funcionalidades é necessário experienciar o aplicativo, compreender suas (im)possibilidades e se preciso criar táticas de praticantes da cibercultura para produzirmos nossas próprias autorias. Desta maneira, é possível escolher o aplicativo mais adequado às nossas necessidades de pesquisa e formação. Podemos perceber isso na nossa investigação, pois cada uma das entrevistadas antes de criar seus app-diários experienciaram diferentes aplicativos até encontrar o que melhor atendia às suas expectativas.

Tania Maddalena4, a primeira pesquisadora com quem conversamos, optou por criar seu app-diário no Evernote, porém antes de escolher este aplicativo ela já tinha experiência com escrita de diário no blog (http://loscactus.net/), mas segundo ela o Evernote é mais completo para um diário de pesquisa, pois nele é possível criar cadernos/pastas por assuntos específicos e utilizar as potencialidades do hipertexto e da hipermídia.

Quando eu comecei no campo de pesquisa a Méa queria que a gente tivesse um Moodle e que conversasse pelo chat do Moodle, depois ela me sugeriu fazer um Google drive, compartilhar um arquivo do Google mesmo. Como eu já era usuária do Evernote eu comecei a fazer meu diário de pesquisa no Evernote, só que era uma coisa pra mim, não era para mostrar para ela porque não dá para você compartilhar. Dá para você compartilhar uma vez que a nota já está escrita, mas você não tem escrita colaborativa. Não é um lugar que funciona como o drive do Google. (...) Tem escrita, tem links, tem fotos do momento. É um diário hipertextual. (Relato da Tania).

Escrever, narrar, relatar, descrever, capturar imagens e ao mesmo tempo gravar áudio sobre os fatos e acontecimentos no instante em que vivenciamos a experiência no campo da pesquisa não são ações possíveis de serem realizadas sem as tecnologias digitais móveis. Nesse sentido, o Evernote permite todas estas formas de registros e ainda marcar a localização onde o acontecimento ocorre. Outra possibilidade deste aplicativo é a sua sincronização com outros dispositivos, pois uma vez que as notas do diário ficam armazenadas “em nuvem”5 é possível serem acessadas em computadores, tablets e smartphones a qualquer hora e em qualquer lugar. “Assim, o diário on-line rompe com a linearidade do texto em razão das funcionalidades oferecidas pelo digital. Ou seja, a hipermídia e o hipertexto tornam-se componentes presentes na narrativa espacial” (Santos, Maddalena e Rossini, 2016, p. 97).

Nossa segunda entrevistada foi a Alexsandra Barbosa6 que ao iniciar sua pesquisa de mestrado tentou fazer seu diário em cadernos analógicos, porém logo percebeu que esta forma de escrita não se adaptava ao seu objeto e campo de investigação, pois nesse formato era difícil localizar as notas produzidas, uma vez que as possibilidades no digital em rede não existem no modelo analógico e linear. Logo, como uma praticante da cibercultura, ela procurou testar outras formas de produzir seu diário. Tentou usar o Evernote, pois outros pesquisadores do GPDOC já criavam app-diários com este aplicativo, mas ela não se adaptou a este app

Porque ele me limitava para áudio. (...) Então, o problema com o Evernote foi o áudio. Eu cheguei a pagar (a versão completa), depois eu não gostei. Aí eu falei: ‘desisto!’ Porque aqui eu não posso enviar (...). Eu achei que ficou pesado. Eu não sei. Eu não gostei dele.

Porque eu gravava as aulas (...) eu gravava tudo. E eu fiquei pensando: poxa, o WhatsApp, quando eu gravo no meu celular, eu posso encaminhar pro meu WhatsApp o áudio, e ele não tem limite (Relato da Alexsandra).

Desenvolver saberes experienciais na cibercultura é vivenciar cada espaçotempo desta cultura. A atual fase da cibercultura compreende a mobilidade com conexões generalizadas em redes sem fio diferente da primeira fase da cibercultura cuja conexão possível era por meio de cabos de rede. Com as tecnologias digitais móveis vivenciamos uma cibercultura outra que está presente nos diferentes espaços da cidade, acoplada ao corpo, na palma da mão permitindo sermos ubíquos, isso porque “a afiliação à rede situa o usuário não mais em um espaço estritamente territorial, mas em um híbrido território/rede comunicacional” (Santaella, 2010, p 18).

Para Lemos “o fluxo comunicacional se dá por redes sem fio e dispositivos móveis, caracterizando a era da comunicação ubíqua, senciente e pervasiva” (2008, p. 218). Lemos (2008) denomina as zonas de intersecção entre o ciberespaço e o espaço urbano de território informacional que não é o mesmo que ciberespaço, mas trata-se de um espaço híbrido, movente constituído pela relação entre o espaço físico e o espaço das redes telemáticas. Desta forma, andar pela cidade, estar no campo da pesquisa com os dispositivos móveis permite que possamos fazer leituras, escritas, registros e relatos instantaneamente sem perder nenhum detalhe importante para a compreensão do fenômeno investigado, além disso, é possível compartilhar com outros dispositivos ou com outras pessoas.

Muito mais que circular pelos espaços urbanos portando a mídia e a linguagem, circulamos agora com a convergência de diversas mídias e linguagens, que se configuram e reconfiguram para além da dicotomia upload e download (Santos, 2014, p. 33).

Poder produzir dados da pesquisa em mobilidade e estar ubiquamente conectada com os sujeitos da pesquisa foi o que fez Alexsandra optar pelo aplicativo WhatsApp na hora de criar seu app-diário, pois a linguagem escrita deixou também de ser a única forma de registro com este app, pois ele possibilita a convergência de diferentes linguagens e mídias.

O WhatsApp está o tempo todo comigo. É o aplicativo que mais uso. Se eu posso conversar comigo, eu posso tirar foto com ele mandar para mim. E eu posso escrever, eu posso gravar áudio, eu posso fazer tudo com o WhatsApp. Eu posso fazer todos os registros com o WhatsApp, inclusive dialogar comigo. (...) Eu me salvei como um contato comum, e aí o WhatsApp reconheceu como usuário (Relato da Alexsandra).

Os praticantes da cibercultura (re)criam táticas, maneiras de fazer (Certeau, 1994) com os aplicativos disponíveis nos seus dispositivos móveis para produzirem saberes, sentidos e significados. Muitas vezes, estas maneiras de fazer subvertem completamente a lógica, o objetivo para o qual o aplicativo foi criado. Criar novas táticas requer que o praticante seja imerso na cibercultura, que compreenda sua lógica não linear, que procure (re)combinar, (re)mixar linguagens e modulações a fim de encontrar soluções para os possíveis problemas que surgem. Ao escolher o WhatsApp como seu app-diário Alexsandra percebeu que tinha a mesma dificuldade que possuía antes com o caderno analógico, pois ela não conseguia encontrar com facilidade as informações armazenadas. Porém, com a tecnologia digital foi possível encontrar soluções

eu criei, digamos assim, os meus hiperlinks. Porque quando eu tirava uma foto... A foto sobre “estratégias e táticas” de Certeau, eu tinha que informar, de certa forma, que aquela foto era sobre estratégia e táticas de Certeau, para eu poder pesquisar depois. Por que como é que eu ia pesquisar uma foto? Então, essa foi a forma que eu encontrei de criar os hiperlinks.

Eu marquei, tirei a foto, né?! Que antes eu transcrevia tudo. E aí para o WhatsApp eu fiquei pensando: e depois? Como é que eu vou achar esse texto aqui? Porque ele está em foto. Aí o que é que eu fiz? Eu mandava a foto, em seguida dizendo o que era; mapa dialógico, Spink, livro tal, ano, página. (...) Aí depois quando que queria pesquisar, por autor, era só jogar: Spink, aqui no “pesquisar”, e aí aparece (Relato da Alexsandra).

Nossa terceira entrevista foi a doutoranda Frieda Marti7 que também criou app-diário como dispositivo de pesquisa. Assim como as outras entrevistadas, Frieda testou diferentes aplicativos até decidir o que melhor se adaptaria às necessidades da sua pesquisa. Desta forma,

o meu diário de pesquisa eu inicialmente, até mesmo vendo o exemplo da Tânia, eu comecei com Evernote, eu não gostei do Evernote. (...) Eu participava de alguma ação educativa, um curso lá no Museu, então eu ia fazendo algumas descrições do que eu estava vivenciando na hora ali, live, tirando a foto ao vivo e subindo, só que o Evernote ele começou a mudar, começou a mudar não, ele mudou, então ele passou a ter um limite de upload e toda vez que eu queria mandar mais imagem para o Evernote entrava o marketing pedindo que eu fizesse assinatura e esse tipo de coisa me irrita profundamente. (...) Porque cada vez ia ficando mais difícil, eu não podia na mesma entrada colocar muitas imagens, e assim foi ficando cada vez mais difícil, além disso, eu comecei por causa da minha experiência anterior nas Ciências Naturais eu ainda tenho essa mania de separar tudo em caixinhas, então todas as minhas notas se eu participava de uma coisa relacionada ao GPDOC eu botava na caixinha GPDOC, se eu participava de alguma coisa relacionada ao Museu eu botava na caixinha do Museu, isso dentro de um único diário, mas todo fragmentado assim em pastas e não estava funcionando também no Evernote, não estava e aí eu me dei conta, eu falei: ‘gente eu ainda estou com esse pensamento né, meio que segregando uma coisa da outra’, mas assim o que me fez desistir do Evernote foi justamente essa questão do marketing, ele parou de ter um upload livre (Relato da Frieda).

A Imagem 1 apresenta a tela de um smartphone com diferentes aplicativos que podem ser utilizados na produção de app-diários tais como: Evernote, Bloco de notas, Câmera fotográfica, Google Maps, Google drive, WhatsApp, Gravador, Instagram, Agenda e Easyblog. Todos estes apps possibilitam diferentes maneiras de produzir diários com os mais variados recursos. Contudo, o mais importante é selecionar o aplicativo que melhor se adapta a nossa forma de escrita e que nos possibilite autorias variadas.

Fonte: Acervo das autoras

Imagem 1 Aplicativos para diários online 

A Frieda não conseguiu se adaptar ao Evernote como fez a Tania Maddalena e nem ao o WhatsApp da Alexsandra, mas criou seu app-diário (re)mixando linguagens e mídias com o Google docs.

Eu já usava o Google docs para outras coisas também, para começar a escrita de artigos e para compartilhar coisas com outras pessoas, textos com outras pessoas, a própria escrita do meu projeto de pesquisa foi no Google docs, está sendo no Google docs. Então eu vou mandar tudo para o mesmo ambiente porque fica mais prático, porque eu basicamente copiei e colei tudo do Evernote, fui copiando e colando. (...) Eu fui organizando um só documento, que está gigantesco no meu Google docs, que tem todas as imagens. Aí eu não tenho limite de upload de imagem, nada eu copiei e colei tudo. (...) Está num documento e aí o que eu fiz, para saber com mais rapidez do que se trata? eu criei títulos para as entradas. (...) Então assim pra mim é mais objetivo eu colocar os pontos e depois que eu vou lendo e lembrando e vou fazendo assim. Então a questão das imagens, por exemplo, é muito mais tranquilo porque eu faço upload e ainda não tem limite, pelo menos até agora não está me dando problema nenhum, e eu trabalho com ele no meu notebook em casa, e acesso pelo celular, então quando eu estou num evento, alguma coisa assim ou na universidade e quero fazer algum registro eu pego o celular e abro o meu Google docs, o meu documento diário e coloco ali (Relato da Frieda).

As narrativas das três pesquisadoras do GPDOC nos mostram a importância de produzir diários como dispositivos de pesquisa e formação que possibilita refletir sobre sua prática de pesquisa, narrar seus sentimentos, impressões, dilemas, conflitos e achados. Entretanto, como mencionamos no início deste texto, a escrita de diários não é algo novo, porém, o que as tecnologias digitais móveis e os aplicativos estão potencializando é algo que antes não era possível sem a presença do digital em rede: a plasticidade, o hipertexto, a hipermídia, a comunicação em mobilidade e a ubiquidade.

Cada registro feito no app-diário depois pode ser relido, ampliando, melhorado tornar-se ou não parte do relatório final da pesquisa. Se o pesquisador está em mobilidade física, mas não quer deixar de registrar algo importante é possível gravar o relato em forma de áudio ou vídeo no próprio app-diário. As pesquisas qualitativas nas ciências da educação e antropossociais que se distanciam das abordagens positivistas e cartesianas podem, com as tecnologias digitais móveis, criar app-diários como espaços multirreferencias bricolando linguagens e mídias.

ALGUMAS REFLEXÕES FINAIS

Elegemos como objetivo desse texto compreender a processo de produção dos diários de pesquisa, com as tecnologias digitais móveis, dos pesquisadores em formação identificando que aplicativos utilizam, como utilizam e por que os utilizam. Durante a realização desta pesquisa decidimos que a melhor forma de alcançar este objetivo seria vivenciar também cada aplicativo utilizado pelos sujeitos da pesquisa para criarmos nosso app-diário. Assim inicialmente utilizamos o Evernote, pois de todos os apps sugeridos este era o que tínhamos menos conhecimento. Começamos pelo cadastro gratuito, mas logo tivemos o desejo de experienciar outras possibilidades do app e por isso optamos pela versão paga. Desta forma, passamos a criar cadernos no Evernote com diferentes temas relacionados ou não com a pesquisa em desenvolvimento. Nesse sentido, este aplicativo passou a ser nosso bloco de notas para toda e qualquer nota, relato ou narrativa que estejamos com vontade de fazer. Testamos no Evernote o registro com a linguagem escrita, imagética e sonora e criamos links com geolocalização

Fonte: Acervo das autoras

Imagem 2 App-diario no Evernote 

A descoberta de como criar diário no WhatsApp fez com que criássemos neste aplicativo um app-diário coletivo o - CiberDiário Formação - onde as autoras desse artigo trocavam experiências, relatavam fatos acontecido no campo da pesquisa, compartilhavam dicas de leituras e debatiam ideias, reflexões.

Fonte: Acervo das autoras

Imagem 3 CiberDiário Formação 

Esta pesquisa nos fez acreditar ainda mais que para compreender precisamos, como bem nos coloca Macedo (2010), compreender a compreensão. Porém, isso apenas é possível sendo implicado na pesquisa e experienciando os acontecimentos. Neste trabalho investigativo, nossa compreensão sobre app-diários apenas foi alcançada porque além das entrevistas narrativas realizadas, construímos nossos próprios saberes experienciais na cibercultura a partir das vivencias diferenciadas nos espaços híbridos, informacionais da comunicação móvel e ubíqua. E é com esta compreensão das possibilidades dos aplicativos que afirmamos que não é mais possível na contemporaneidade, produzir diários de pesquisa, de campo ou de itinerância sem as potencialidades da hipermídia e da hipertextualidade, pois são estas potencialidades que nos permitirão produzir diferentes autorias individuais, coletivas e compartilhadas

REFERÊNCIAS

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4Foi doutoranda no GPDOC e autora da tese: MADDALENA, T. L. 2018. Digital Storytelling: uma experiência de pesquisa formação na cibercultura. Rio de Janeiro-RJ. Tese de doutorado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, 198 p.

5Nesse tipo de armazenamento de dados é feito em serviços que poderão ser acessados de qualquer lugar, a qualquer hora, sem a necessidade de instalação de programas ou de armazenar dados. O acesso a programas, serviços e arquivos é remoto, através da Internet - por isso a alusão à nuvem. Em inglês usa-se a expressão cloud computing.

6Foi mestranda do GPDOC e autora da dissertação: SILVA, A. B. 2018. Docência online: uma pesquisa-formação na Cibercultura. Rio de Janeiro-RJ. Dissertação de mestrado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, 196 p.

7Atualmente é doutoranda em educação na UERJ onde desenvolve a tese sobre “O museu na cibercutura”. É membro do GPDOC.

*Este texto é resultado de pesquisa desenvolvida com apoio da FAPITEC/SE e CAPES por meio Edital CAPES/FAPITEC/SE N° 01/2016 - Programa de Apoio a Pós-doutorado no Estado de Sergipe (PPDOC-SE).

3De acordo com dados recentes da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o Brasil possui 229 milhões de linhas móveis. Disponível em: http://www.anatel.gov.br/dados/acessos-telefonia-movel Acesso em: 18 fev 2019

Recebido: 07 de Março de 2019; Aceito: 01 de Novembro de 2019

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Professora no Departamento de Educação e no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe/UFES. Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Realizou Pós-Doutorado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ. Líder do Grupo de Pesquisa Educação e Culturas Digitais (ECult/UFS/CNPq). Site: http://grupoecult.blogspot.com/ Instagram: @ecultufs

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Professora Titular-Livre na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), atuando no Instituto de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDUC). Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia/UFBA. Líder do Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura (GPDOC/UFRRJ/CNPq). Site/acervo: www.edmeasantos.pro.br

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