Introdução
Neste texto procuramos trazer alguns subsídios para a compreensão de um tema premente no contexto das políticas educacionais no Brasil. Isso requer algumas considerações preliminares, em termos introdutórios:
a) A complexidade do tema, já que o conservadorismo não é um fenômeno político único ou homogêneo, apresentando-se com características bastante específicas, em vários países, na contemporaneidade;
b) Do nosso ponto de vista, devemos procurar entender o conservadorismo numa perspectiva histórica de longa duração, considerando seu surgimento e suas manifestações em diversos momentos da história;
c) O tema não pode ser tratado isoladamente, mas sim, no contexto atual, merece ser abordado em sua relação com o neoliberalismo;
d) Recentemente, alguns acontecimentos sinalizaram que estamos diante de um inequívoco recrudescimento do conservadorismo, tanto em termos nacionais quanto internacionais. Em editorial, os Editores da Revista Educação & Sociedade (v. 38, nº 141, out.-dez. 2017, p. 865) destacaram que a aprovação do Brexit na Inglaterra, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, bem como as eleições na França, na Alemanha, na Áustria e, ainda mais recentemente, na Tchecoslováquia, confirmam essa tendência. Também no Brasil e em diversos países da América Latina verificamos esse fenômeno, tanto no que tange à formulação de políticas, como no plano das relações sociais e culturais. Entre nós, diversos projetos e/ou iniciativas revelam que vivemos momentos expressivos dessa recente onda conservadora;
Traremos algumas reflexões, mais no sentido de oportunizar o debate, sem a pretensão de dar conta desse fenômeno em toda sua complexidade.
O Neoconservadorismo: uma tentativa de entendimento
Numa tentativa de abordar o conservadorismo em toda sua complexidade, nos valemos da contribuição de Felipe Araújo Castro (2018), quando indica que, no quadro da modernidade europeia, a gênese do pensamento conservador teve seu início em torno de partidos que surgiram como reação às revoluções liberais, como foi o caso do partido Tory na Inglaterra do século XVII e do partido da Restauração na França pós-revolucionária. A pretensão desses partidos era conservar certa relação de poderes e instituições após a derrubada das estruturas do antigo regime e da emancipação política dos cidadãos.
No século XX, na Europa Ocidental, a renovação do pensamento conservador se constituiu como uma terceira via entre o liberalismo e o socialismo, buscando uma espécie de síntese possível entre as duas posições. A democracia cristã na Alemanha introduziu a ideia de uma economia social de mercado por meio da intervenção estatal que objetivava mitigar os malefícios de uma política liberal mais ortodoxa. A denominada via média do partido Tory na Inglaterra, por sua vez, estava a meio caminho entre o capitalismo livre e o planejamento social. Defendendo uma transição pacífica de um capitalismo livre para um capitalismo planejado. (Castro, 2018).
No entanto, é nos Estados Unidos da América que a renovação do conservadorismo assumirá formas semelhantes à ideologia que hegemonizou as eleições brasileiras de 2018. Abandonando o campo da regulação da economia, uma série de autores endossarão projetos de regulação da moral e dos costumes, a partir da leitura que o grande “mal” do Ocidente seria a profunda crise de valores que destrói as fundações da moralidade social.
Um conjunto de autores apontaram para a ocorrência de uma crise moral, como Alan Bloom, Charles Murray, Francis Fukuyama, entre outros. Segundo Castello-Branco (2016), esses trabalhos alertavam para a desestruturação da família americana (biparental e nuclear), ameaçando a própria sociedade estadunidense. Para esses intelectuais deveriam ser eliminadas as políticas de discriminação positiva e promovida uma maior liberdade de escolha individual, ficando a função do Estado no plano da promoção das virtudes morais consideradas ameaçadas.
O avanço das extremas direitas neoconservadoras ao redor do mundo é comumente associado aos ciclos das crises do capitalismo. No entanto, a explicação economicista não dá conta do fenômeno como um todo. Isso pode ser percebido se considerarmos que países que foram atingidos pela crise mais recente, como Portugal, Espanha e Grécia, não apresentam, em seu cenário político, partidos de extrema-direita significativos, enquanto países historicamente estáveis apresentam essas siglas, como é o caso da Suíça e Áustria. (Castro, 2018).
Segundo Michael Löwy (2015), em sua análise intitulada “Conservadorismo e extrema direita na Europa e no Brasil”, na Europa Oriental o fenômeno assume algumas particularidades que permitem uma aproximação com o novo conservadorismo brasileiro, já que, nesses países, o bode expiatório é menos o imigrante estrangeiro do que as minorias nacionais (judeus e ciganos) - frequentemente atacadas por milícias civis que apoiam e são toleradas pelas organizações e governos de extrema-direita. Ocorre também, nesses movimentos, um forte componente anticomunista, em função dos fracassos das suas transições para o capitalismo, lideradas por liberais ou social-democratas. (p. 656).
Na análise a que antes nos referimos, Michael Löwy (2015, p. 652-653) apresenta uma importante contribuição para o entendimento do tema de que tratamos. Informa que:
As eleições europeias na França confirmaram uma tendência que, há alguns anos, já estava aparente: o crescimento do apoio à Frente Nacional. Essa evolução não é especificamente francesa: por quase todo o continente europeu vemos o espetacular levante da extrema-direita. O fenômeno não encontra precedentes desde os anos 1930. Em muitos países, a direita xenófoba já havia obtido entre 10% e 20% dos votos durante a última década; em 2014, em três países (Reino Unido, Dinamarca, França) alcançaram de 25% a 30%. Além disso, sua influência é maior do que o seu próprio eleitorado: suas ideias contaminam também a direita “clássica” e até parte da esquerda social neoliberal. O caso francês é o mais sério deles, com o avanço da Frente Nacional excedendo até mesmo as previsões mais pessimistas.
Conforme Löwy (2015, p. 654), extrema-direita europeia, na atualidade, é muito diversa, sendo constituída de partidos abertamente neonazistas, como o Aurora Dourada na Grécia, a forças burguesas perfeitamente bem integradas ao jogo político institucional, como o suíço União Democrática do Centro.
O que eles têm em comum é o seu nacionalismo chauvinista - e, portanto, oposição à globalização “cosmopolita” e a qualquer forma de unidade europeia -, xenofobia, racismo, ódio a imigrantes e ciganos, islamofobia e anticomunismo. Além disso, em sua maioria, senão em sua totalidade, são favoráveis a medidas autoritárias contra a “insegurança” (usualmente associada a imigrantes) por meio do aumento da repressão policial, penas de prisão e pela reintrodução da pena de morte. A orientação reacionária nacionalista, na maioria das vezes, é “complementada” com uma retórica “social”, em apoio às pessoas simples e à classe trabalhadora (branca) nacional. Em outras questões - por exemplo, neoliberalismo, democracia parlamentar, antissemitismo, homofobia, misoginia ou secularismo - esses movimentos são mais divididos.
O próprio autor alerta, no entanto, que a realidade é bastante complexa, e algumas dessas formações políticas podem apresentar nuances de vários tipos diferentes, mas não iremos aprofundar essa discussão nesse momento. Interessa-nos verificar a análise de Löwy sobre a situação no Brasil.
No Brasil, a extrema-direita e o neoconservadorismo apresentam várias das características antes descritas. Podemos considerar que, dos movimentos da Europa Oriental apropriaram a luta contra o comunismo e o antagonismo às minorias, curiosamente num país que nunca teve um governo comunista, ou mesmo esteve sob a ameaça efetiva se sua implantação. Do cenário norte-americano, com meio século de atraso, ressuscitam o discurso sobre a necessidade de enfrentar o ativismo político, que teria hegemonizado as universidades por meio do “marxismo cultural” e degradado os valores da verdadeira Nação brasileira.
Conforme Castro (2018), seu nacionalismo populista é neoliberal e cosmopolita, preterindo as indústrias e o emprego nacional pela retomada de relações econômicas norte-sul, de forma claramente subserviente aos interesses dos EUA. Nesse contexto, podemos afirmar que neoconservadorismo brasileiro, ultraliberal, neopentecostal e militarista, sequer é compatível com o pensamento conservador.
Parece-nos importante considerar o que Michael Löwy nos apresenta, como alguns elementos de síntese, comparando os fenômenos europeus com o Brasil:
1) Enquanto na Europa existe, em vários países, uma continuidade política e ideológica entre movimentos neofascistas atuais e o fascismo clássico dos anos 1930, isso não ocorre no Brasil. O fascismo brasileiro, o integralismo, chegou a ter bastante peso nos anos 1930, inclusive influenciando o golpe do Estado Novo, em 1938. Mas a extrema-direita brasileira atual tem pouca relação com essa matriz antiga;
2) Não existem no Brasil, como no Europa, partidos de massa tendo o racismo como sua principal bandeira. Claro, o Brasil está longe de ser uma democracia racial, e um racismo difuso está bastante presente na sociedade. Porém, um partido brasileiro que tentasse fazer do racismo seu programa principal nunca teria 25% dos votos como na França;
3) O tema da luta contra a corrupção não é específico da extrema-direita, mas tem sido demagogicamente manipulado, com certo sucesso, por setores conservadores, na Europa e, sobretudo, no Brasil;
4) O que é comparável na extrema-direita francesa e brasileira são dois temas de agitação sociocultural do conservadorismo mais reacionário: I. A ideologia repressiva, o culto da violência policial [...]. II. A intolerância com as minorias sexuais, em particular os homossexuais;
5) O elemento mais preocupante da extrema-direita conservadora no Brasil, que não tem um equivalente direto na Europa, é o apelo aos militares. O chamado a uma intervenção militar, o saudosismo da ditadura militar, é sem dúvida o aspecto mais sinistro e perigoso da recente agitação de rua conservadora ocorrida no Brasil. (LÖWY, 2015, p. 662-663).
Essa relação entre neoliberalismo e neoconservadorismo pode ser identificada, no Brasil, principalmente a partir da década 1990, com os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. O ajuste neoliberal envolveu a privatização de diversas empresas estatais, além de reformas políticas que objetivaram a desresponsabilização do Estado na garantia de direitos sociais.
Após as eleições de 2014, a agenda neoconservadora retomou o cenário político brasileiro, principalmente a partir das bancadas conservadoras: evangélicos radicais (bancada da bíblia), ruralistas (bancada do boi), militares e fabricantes de armas (bancada da bala), ex-jogadores de futebol e demais esportistas (bancada da bola), que propuseram dentre outros temas, a redução da maioridade penal e a flexibilização e redução dos direitos trabalhistas. (Bezerra Neto e Santos, 2016, p. 53).
A Modernização Conservadora e a Educação
Michael Apple nos oferece uma contribuição relevante para se compreender como têm sido as saídas propostas para a chamada crise na educação nas últimas décadas, ao discutir as consequências desse processo sobre a educação americana, em sua obra Educando à direita: mercados, padrões, Deus e Desigualdade (Apple, 2003). Apesar de já decorridos mais de quinze anos desde a sua publicação e de sua análise dedicar-se à educação daquele país, sua temática é de extrema atualidade e nos ajuda a entender os rumos da educação brasileira hoje. Marília Gouveia de Miranda (2016) destaca, especialmente, a forma como o autor caracteriza a guinada para a direita na educação, a “modernização conservadora”, como um processo que agrega quatro grupos fundamentais: os neoliberais, os neoconservadores, os populistas autoritários e, por fim, a nova classe média de gerentes e profissionais qualificados.
Em Educando à Direita (2003, p. 21), Apple analisa em primeiro lugar o neoliberalismo, por entender que este é o principal paradigma político/econômico de nossa época, no qual a noção liberal de democracia, que compreendia as dimensões políticas e econômicas, é traduzida como um conceito puramente econômico. Miranda (2016, p. 571) registra o destaque dado por Apple de que os neoliberais são grandes críticos da educação escolar em curso, atribuindo à sua ineficiência os maus resultados da economia, como perda de produtividade, desemprego, pobreza, falta de competividade no cenário internacional, entre outros.
Os neoconservadores se constituem em aliados imprescindíveis dos neoliberais, apesar de suas diferenças. Na educação, isso pode ser constatado nas propostas que defendem “currículos obrigatórios no nível nacional e estadual, provas no nível nacional e estadual, um ‘retorno’ a um padrão de qualidade melhor, uma revivificação da ‘tradição ocidental’, patriotismo e variantes conservadoras da educação do caráter”. (Apple, 2003, p. 57). A essa onda neoconservadora se soma o que Apple nomeia como os populistas autoritários da nova direita, ou seja, a “direita cristã”, com seu apelo a determinadas visões de autoridade bíblica. Para eles a educação pública é uma ameaça, pois representa uma “decadência moral”. Reivindicam a centralidade das “questões de autoridade, moralidade, família, igreja e ‘decência’”. (Apple, 2003, p. 68).
A esse bloco neoliberal, neoconservador e populista autoritário se soma um quarto grupo, a nova classe média de profissionais qualificados e gerentes. São pessoas altamente qualificadas, preocupadas com critérios de eficiência, fortemente comprometidos com as estratégias de avaliação, medição e controle de qualidade. Para Apple (2003, p. 68), esses agentes não estão necessariamente identificados com as agendas mais conservadoras, mas, “enquanto especialistas em eficiência, administração, provas e avaliação, fornecem os conhecimentos técnicos necessários para implementar as políticas de modernização conservadora”. (Miranda, 2016, p. 572).
Outro autor que merece ser considerado, pela contribuição que oferece ao debate do tema que estamos analisando, é Luiz Carlos de Freitas, identifica um neoliberalismo de feição ultraconservadora na base das políticas educacionais em curso no Brasil e em outros países, especialmente os Estados Unidos. Freitas traz para nossa reflexão o papel dos “reformadores empresariais”, em suas pesquisas sobra as políticas de avaliação.
No texto Os Reformadores Empresariais da Educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação, Freitas (2012) aborda diversas publicações de pesquisadores americanos de grande significação para refletir sobre as políticas educacionais no Brasil, já que os reformadores empresariais entendem a educação como um negócio, tendo em vista o grande mercado vislumbram para a iniciativa privada. Sua argumentação se sustenta no combate às causas da crise da educação do país, analisadas a partir das lentes de um renovado tecnicismo. Este neotecnicismo tem como fundamento três elementos centrais: responsabilização, meritocracia e privatização.
Esses três componentes, responsabilização, meritocracia e privatização se constituem no sustentáculo das grandes diretrizes das políticas neoliberais para a educação nos Estados Unidos e no Brasil. A expressiva literatura americana apresentada por Freitas (2012) demonstra com propriedade a ausência de sustentação empírica para essa experiência, nos termos dos resultados obtidos na educação daquele país. No entanto, isso não tem sido suficiente para impedir que o discurso em defesa das mesmas categorias se fortaleça no Brasil, sinalizando inquietantes perspectivas para nossa educação, principalmente no que concerne à escolarização pública. (Miranda, 2016, p. 573).
As políticas neoliberais no Brasil foram, sobretudo, desenvolvidas no governo de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 a 2003, mesmo que já fossem sinalizadas desde o governo Collor. Nos governos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef, as tentativas de conter as iniciativas neoliberais conservadoras foram insuficientes para inviabilizar as pautas neoliberais e neoconservadoras, possibilitando a sua forte retomada nos governos Temer e Bolsonaro.
Em termos de síntese, podemos dizer que, frente às razões que são apresentadas pelos neoliberais e neoconservadores para afirmar a existência de uma crise na educação são por eles enfrentadas com a proposição de um conjunto de reformas marcadas por uma racionalidade economicista e neotecnicista. A realidade evidencia o reforço à privatização do ensino público, fundamentado em “novos paradigmas” para a educação, com ênfase na questão da aprendizagem e na meritocracia. Essas reformas deslocam os eixos de obrigatoriedade/gratuidade/laicidade para equidade/qualidade e contêm um viés extremamente conservador e autoritário.
Repercussões do Neoliberalismo Conservador na Educação Brasileira
Os elementos até aqui apresentados permitem compreender que os desdobramentos das políticas neoliberais e neoconservadoras no campo educacional no Brasil são expressivos e de diversas características. Não pretendemos, neste artigo, pelas suas limitações, abranger todas as ações envolvidas. Focaremos em algumas delas, como expressão da amplitude das repercussões que acarretaram.
Umas das primeiras medidas aprovadas após o golpe parlamentar de 2016 foi a EC Nº 95/2016, sancionada no dia 15 de dezembro de 2016, conhecida como PEC do teto dos gastos públicos, também chamada de PEC da morte pelos movimentos sociais. Com essa emenda, muda o preceito constitucional de aplicação de, no mínimo, 18% da receita líquida de impostos do ano corrente, uma vez que congela por vinte anos os gastos com educação, tendo como referência a aplicação do ano de 2017.
Em relação ao impacto dessa decisão, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2016a) registra que nenhum centavo novo vai chegar para construir escolas, pré-escolas, creches, melhorar as universidades públicas, a educação básica, o salário dos professores. Em resumo, essa proposta praticamente inviabiliza as metas e estratégias do Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei 13.005/2014), o qual prevê, na sua meta 20, a ampliação dos recursos púbicos aplicados na educação, de modo a atingir 10% do PIB até o final de vigência do Plano, além de outras metas e estratégias estabelecidas para os diversos níveis e modalidades de educação, bem como para formação e valorização dos profissionais de educação, dentre outras. Com isso, o PNE atual permanecerá letra morta ou uma carta de intenções. (Araújo; Sobral; Ayres, 2018, p. 92-93).
nesse cenário, conforme informou a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a educação perderá, em 10 anos de vigência da EC Nº 95/2016, em torno de 58 bilhões de reais, os quais serão redirecionados ao pagamento da dívida pública. A gravidade dessa situação sinaliza que o congelamento dos gastos implicará uma maior precarização da educação pública, que se destina às crianças e aos jovens de nosso país, que encontram na escola pública a sua possibilidade de escolarização.
Outra medida de grande impacto na educação básica é a reforma do ensino médio, que consiste em uma mudança estrutural em todo o nível por modificar as bases curriculares, pedagógicas e organizativas do ensino médio nacional, a carga horária, a língua estrangeira obrigatória oferecida, dentre outros aspectos.
Antes da Lei do Ensino Médio (Lei nº 13.415/17) ser aprovada pelo Congresso e sancionada pelo governo de Michel Temer - é válido destacar -, o ensino médio brasileiro já era o nível de ensino da educação básica com maior grau de estrangulamento, evasão, reprovação, distorção entre a idade e a série etc. Dermeval Saviani (1999), ao explicitar o papel do ensino médio, a saber, o de recuperar a relação entre “o conhecimento e a prática do trabalho”, distingue-o de projetos que deformam esse nível de ensino com uma orientação profissionalizante. Isso pode ser entendido como “[...] um adestramento em uma determinada habilidade sem o conhecimento dos fundamentos dessa habilidade e, menos ainda, da articulação dessa habilidade com o conjunto do processo produtivo [...]” (p. 40), o que parece ser a tônica da proposta do governo Temer.
A contrarreforma do ensino médio imposto pela MP 746/16, hoje convertida em Lei 13.415/2017, objetiva calibrar a formação na educação básica às necessidades de força de trabalho no país. É parte do movimento de volta ao Estado pré-1988. A avaliação dos setores dominantes é de que o grosso da força de trabalho irá desempenhar trabalho simples; por isso, o empobrecimento da formação pretendida, algo muito semelhante à formação do nível médio preconizada pela Lei 5.692/1971 vigente na ditadura empresarial-militar. Como parte desse processo de ajuste da formação às demandas do capital, a contrarreforma objetiva incidir, também, sobre a socialização ideológica da juventude, daí a tentativa de extinguir a formação em artes, sociologia, filosofia, expressões corporais. (Leher; Vittoria; Motta, 2017, p. 18-19).
Conforme reforçam os autores indicados na citação anterior, as redefinições do currículo denotam os reais objetivos da MP: privar os filhos dos trabalhadores “de uma dimensão crucial da formação humana sem a qual a imaginação e a sensibilidade estética, histórica, e o fazer criativo tornam-se rudimentares”. (Leher, 2017, p. 6-7). Após o currículo comum que tende a reforçar o caráter minimalista, os sistemas estaduais, federal e privado terão de estabelecer itinerários educacionais que institucionalizam o dualismo educacional, aprofundando ainda mais as desigualdades entre as redes. (p. 19).
Outro projeto que nos interessa indicar, nesse estudo, é o Movimento Escola Sem Partido foi criado pelo procurador de justiça de São Paulo, Miguel Nagib, no ano de 2004. Mas apenas em 2014 que, a pedido do deputado estadual do Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro, o procurador elaborou um Projeto de Lei com as ideias do movimento. a proposta do Movimento parece zelar pela educação integral dos alunos, no entanto ao observar o conteúdo disponível na página do MESP (http://www.escolasempartido.org) nos deparamos com ataques às teorias políticas e educacionais oriundas do pensamento crítico, aos docentes e às universidades. (Ferreira, 2019, p. 35).
A investigação realizada por Verônica Ventorini Ferreira (2019, p. 37) possibilitou, entre outros estudos, a compreensão do significado desse movimento.
[...] a Escola Sem Partido são três faces da manifestação de um fenômeno, que virá a ser explicado mais adiante: um movimento, uma associação e uma empresa de aperfeiçoamento. Não é receoso afirmar que estamos no nascedouro de mais uma parceria público-privada para a educação. No entanto, é fundamental entender as implicações de cada uma: a) a primeira deveria apresentar ideias sobre alguma temática, no caso a educação; b) a segunda tem a pretensão de reunir pessoas com as mesmas ideias e, nesse caso específico, assessorar juridicamente; c) enquanto a terceira parece se tratar de, após legitimadas ideias e práticas, assim como legalizadas as propostas do movimento, oferecer uma formação para os profissionais da educação.
A autora conclui que sob o ponto de vista mercadológico, estamos diante do nascimento de um novo nicho no mercado educativo, o combate à doutrinação. Sob o ponto de vista profissional pode-se perceber o desmonte da, já desgastada, figura do professor. Sob o ponto de vista moral estamos diante da instrumentalização da justiça para o esvaziamento da formação do cidadão no espaço escolar. E sob o ponto de vista da formação estamos diante de uma incógnita sobre o futuro dos que virão. (p. 38).
Na Educação Superior, as repercussões são também expressivas. Com a PEC 55/16, já aprovada, as universidades públicas e o sistema de Ciência e Tecnologia já são seriamente afetados. Não há lugar para a pesquisa científica e tecnológica no padrão de acumulação pretendido pelo bloco no poder.
Conforme informam Leher, Vittoria e Motta (2017), a possibilidade de abandono de políticas industriais que protejam o ‘conteúdo nacional’ de parte das cadeias produtivas - como vem sendo apregoado pelo núcleo dirigente da política econômica - é uma ameaça real à indução da pesquisa tecnológica e da Pesquisa e Desenvolvimento (Inovação). Em países dirigidos por forças políticas e econômicas adeptas do neoliberalismo, a dependência tecnológica pode ser completa.
As mudanças políticas em curso podem significar, também, o abandono de medidas que possibilitaram a expansão relativa da educação superior pública. As políticas de austeridade, a rigor, de contrarreforma do Estado, podem estancar o financiamento das universidades públicas em favor do repasse de recursos para as privadas. No Brasil, a referida mudança constitucional que congela os gastos públicos por 20 anos, significará uma queda anual nos gastos sociais equivalente a 0,8% do PIB por ano. Em 6 anos, isso equivaleria a toda verba para a educação brasileira, atualmente em torno de 5% do PIB. (Leher; Vittoria; Motta, 2017, p. 21).
As decisões de contingenciamento das verbas orçamentárias que já se efetivam em nosso país reforçam essa preocupação. Em paralelo, a mercantilização da educação superior avança expressivamente. Só para exemplificar, no Brasil, uma única associação de fundos de investimentos, agrupando os grupos Kroton, Anhanguera e Estácio possuirá 1,5 milhão de estudantes, 400 mil a mais que todas as 63 universidades federais juntas.
Em síntese, o que podemos perceber, ao analisar os desdobramentos no campo educacional é que as políticas implementadas acentuam o ódio à democracia, a privatização e o esvaziamento da educação pública, a destruição da profissão e da carreira docente e a definição de políticas de currículo, de avaliação, de financiamento, de formação dos professores alinhadas com os pressupostos políticos e ideológicos do neoliberalismo e do neoconservadorismo.
Considerações Finais
Como é possível constatar, desde seu surgimento, o conservadorismo é um pensamento que se opôs às utopias liberais e socialistas, mas que de maneira nenhum objetivava caminhar para trás, antes, defendia sim o progresso e o respeito a certas instituições tidas como culturalmente tradicionais. O projeto neoconservador brasileiro é claramente antagônico a essa visão, ao estabelecer a sua utopia num passado falseado, o Brasil de 40 anos atrás, onde supostamente estávamos seguros e livre da corrupção - nas palavras do próprio Bolsonaro. (Castro, 2018).
A eleição Jair Bolsonaro se constitui numa ponte para o passado, representando, com o avanço do neoconservadorismo no Brasil, uma ameaça aos direitos sociais, à soberania nacional, à preservação do meio ambiente, ao desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro, à educação pública, comprometendo, com outras tantas iniciativas de seu governo, o reconhecimento internacional de nosso país.
Conforme colocou Michael Löwy (2015, p. 663), em vários países da América Latina está colocada a discussão sobre uma alternativa que recupera as bandeiras emancipatórias latino-americanas, de Simón Bolívar a Ernesto Che Guevara, de José Martí a Farabundo Martí, de Emiliano Zapata a Augusto César Sandino, de Zumbi dos Palmares a Chico Mendes.
Nesse cenário complexo que vivemos no Brasil, mais do que nunca precisamos atuar no sentido de que a independência de pensamento, a cultura e a concepção política sejam não somente garantidas, mas consideradas como fundamento ético de uma educação que garanta a democracia plural como imprescindível.