SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número4Neoconservadorismo e Políticas Educacionais no BrasilA construção de um ethos coletivo de trabalho: PPG em Educação UNISINOS, 1994-2019 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação UNISINOS

versão On-line ISSN 2177-6210

Educação. UNISINOS vol.23 no.4 São Leopoldo out./dez 2019  Epub 06-Jul-2020

https://doi.org/10.4013/edu.2019.234.12 

Encarte Especial: 25 Anos PPG-Educação/Unisinos

25 anos do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos: a construção histórica e social de seu ethos

Gelsa Knijnik1 

1Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) gelsak@unisinos.br


Introdução

A escrita deste texto foi inspirada em minha participação na mesa redonda “A construção histórica e social do ethos do PPG Educação”, ocorrida quando da celebração dos 25 anos do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos. Naquela ocasião, iniciei minha fala apontando para as questões que se constituíram em seu eixo estruturador: Que princípios orientaram a concepção do Programa desde seu início e que se mantiveram, passados 25 anos, por terem se mostrado férteis no âmbito da pesquisa e da formação? Em outras palavras, quais atributos foram conformando a identidade do Programa ao longo deste quarto de século e que o levaram a ser bem posicionado entre os Programas de Pós-Graduação em Educação do país? Ou ainda, o que caracteriza, de modo mais contundente, o ethos do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos?

Neste trabalho, escolhi para discutir três desses atributos que, entre outros tantos, concorreram para a conformação do Programa ao longo desses 25 anos de existência. Meu propósito é, concomitantemente, indicar os desafios que hoje - nestes tempos de neoconservadorismo, desigualdades sociais, xenofobia, racismo e temores pelo presente e futuro de nosso país - estão postos para que o Programa possa seguir cumprindo, em um nível de excelência acadêmica, sua função educacional, social e política.

O tempo presente e os 25 anos que o antecederam

Este último quarto de século foi um tempo de grandes e muito céleres transformações do mundo. Basta que lembremos os movimentos da África do Sul que levaram à democratização daquele país e à libertação de Mandela, o ataque terrorista de 11 de setembro, quando muitos estadunidenses entenderam que “chickens come home to roost”, a globalização das mídias sociais, a finalização do Projeto Genoma, que poderá abrir caminho para a cura de doenças geneticamente transmissíveis, os avanços tecnológicos que possibilitaram o advento da Inteligência das Coisas, o Telescópio Espacial Hubble e a Estação Espacial Internacional, que trouxeram mais informações sobre o Universo do que tudo que a humanidade havia acumulado nos 3.000 anos anteriores.

No que tange ao Brasil, matérias que circulam na mídia nacional informam que a cultura digital é presença no país. Por exemplo, “quase 140 milhões dos 210 milhões de habitantes do Brasil são usuários de internet (66%)” (PagBRASIL, 2018); e a pesquisa anual sobre o mercado brasileiro de tecnologia da informação, realizada pelo Centro de Tecnologia de Informação Aplicada Fundação Getúlio Vargas prevê que “até o final do ano, haverá em uso no país nada menos que 420 milhões de dispositivos digitais” (TELESINTESE, 2019).

Mas concomitantemente a tudo isso, em nosso país, aproximadamente 50 milhões de brasileiros, que corresponde a 25,4% da população, ainda vivem na linha de pobreza (IBGE, 2017); no mapa da violência contra a mulher no mundo, elaborado pela ONU, em 2015, o Brasil ocupava o 5º lugar, com a taxa de 4,8 homicídios para cada 100 mil mulheres (ONU, 2015); e “a taxa de analfabetismo da população com 15 anos ou mais de idade no Brasil caiu de 7,2% em 2016 para 7,0% em 2017, mas não alcançou o índice de 6,5% estipulado, ainda para 2015, pelo Plano Nacional de Educação (PNE)” (IBGE, 2018).

Expandindo nosso olhar para o que está ocorrendo no mundo, mesmo que se considere os dados do Banco Mundial (2018), indicando que na atualidade “embora menos pessoas vivam numa situação de pobreza extrema, quase metade da população mundial - 3,4 bilhões de pessoas - ainda luta para satisfazer as necessidades básicas”, “hoje, no mundo, o número de dispositivos móveis é o dobro do de habitantes. Ainda que 3.900 milhões de pessoas careçam de acesso à internet, 7 de cada 10 pessoas entre as 20% mais pobres do planeta possuem celulares, às vezes antes mesmo que água potável” (ABC, 2019).

Este é o nosso mundo... Um mundo intensamente desigual, um mundo no qual a pobreza cresce, no qual milhares de famílias de refugiados buscam desesperadamente encontrar um lugar para construir uma vida digna, no qual impera a precarização dos direitos dos trabalhadores, a disseminação de atitudes xenófobas, a violência doméstica contra a mulher... Mas também um mundo altamente tecnologizado, marcado por muito rápidas e radicais transformações.

Essas transformações têm atingido de modo radical todas as dimensões da vida humana, o que levou o sociólogo Ulrich Beck (2016, p. 15) a afirmar que “vivemos num mundo que não está apenas mudando, mas está se metamorfoseando”. E explica: “A metamorfose implica uma transformação muito mais radical, em que velhas certezas da sociedade moderna estão desaparecendo e algo inteiramente novo emerge” (Beck, 2016, p. 15).

Beck (2016, p. 69) considera que “não é a pobreza, mas a riqueza, não é a crise, mas o crescimento econômico, [...] são os laboratórios de tecnologia, ciência e negócios que estão gerando a metamorfose”. Somos levados a pensar que a disrupção tecnológica da contemporaneidade nos coloca questões não somente sobre a economia e a política, mas também sobre nossa intimidade, as relações pessoais e o próprio futuro do ser humano.

Neste presente em constante metaforseamento, me parece central nos perguntarmos sobre qual formação, do ponto de vista humanista, queremos oferecer às novas gerações. É nessa perspectiva que desejo inserir meu pensamento sobre o ethos do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos.

Do específico ao mais geral: pesquisas com relevância educacional, social e política

Ao refletir sobre o percurso do Programa ao longo de seus 25 anos de existência e examinar a produção bibliográfica dos professores e seus orientandos, que compuseram/compõem, nesse período, seu corpo docente e discente, um dos elementos que ganha destaque é a escolha de temáticas de estudo que, tendo um caráter regional e abarcando o tempo presente ou passado, tiveram/têm uma relevância educacional, social e política em âmbito nacional e internacional.

Um dos exemplos marcantes dessas temáticas encontramos nos processos de imigração/colonização alemã e italiana, que ocorreram no Rio Grande do Sul, a primeira iniciada em 1824 e a segunda, em 1870. No que tange à imigração/colonização alemã, os estudos desenvolvidos inicialmente pelo professor Lucio Kreutz (1996, 1999), e a seguir, com as pesquisas de Bredemeier (2011), Souza e Grazziotin (2012), Grazziotin e Frank (2013), entre outras, o Programa foi se tornando uma referência, no país e no exterior. Quanto à imigração italiana, estudos desenvolvidos, por exemplo, por Corsetti (2004) e Grazziotin e Luchese (2014, 2015) também se constituem em exemplos da visibilidade nacional e internacional da produção acadêmica do Programa.

Na atualidade, a problemática dos processos migratórios tem ganhado cada vez maior importância, em particular no âmbito da Educação. No que se refere à aprendizagem da “nova” língua, argumentamos, em outro trabalho que

Devido à intensificação dos movimentos migratórios que vêm ocorrendo na contemporaneidade, em distintas partes do mundo (Bade, 2007; Castels; Miller, 2009; Düvell, 2006), hoje ganham relevância estudos que tematizam a escolarização de crianças e jovens, filhos de imigrantes. Em efeito, essa intensificação acaba por povoar as escolas com crianças que, em geral, não se comunicam na língua do país. Como mostram, entre outros, Wenning (2013, 2011, 2010), Gogolin et all (2013) e Norton (2000), um imperativo pedagógico da contemporaneidade é que os filhos de imigrantes aprendam a ‘nova’ língua para poderem ter êxito em sua escolarização e, como consequência, terem facilitada sua inserção social, econômica e cultural. Diante desse contexto, cabe questionar como a escola tem lidado com as tensões geradas pela necessidade de as crianças se apropriarem da língua do país e seus modos de se expressar na língua materna em outras formas de vida que não a escolar, em especial, em seu convívio familiar. Trata-se de um questionamento que assume diferentes conotações em função da posição sociocultural da família. Naquelas pertencentes a estratos de maior poder aquisitivo ou intelectual, adultos e crianças (desde muito pequenas) transitam por duas ou mais línguas, o que é estimulado e valorizado socialmente. No entanto, não é isso que ocorre, por exemplo, com os filhos dos imigrantes pobres, como os turcos que têm imigrado para a Alemanha e os haitianos que têm imigrado para o Brasil. (Knijnik et al., 2017, p. 54).

Um segundo exemplo merece destaque. Trata-se dos trabalhos desenvolvidos sobre a temática da Educação Popular, iniciada pelo professor Danilo Streck (2006, 2017), em uma dimensão nacional, e, posteriormente, ampliada para a América Latina, como nos trabalhos de Streck e Moretti (2013) e Sobottka e Streck (2014).

Importante ressaltar que os estudos sobre Educação Popular têm especial interesse no país e no exterior, com grande destaque para as ideias de Paulo Freire. Suas precursoras ideias sobre os estreitos vínculos entre educação e cultura, a politicidade dos processos educativos e suas contundentes críticas ao que nomeou por “educação bancária”, passadas décadas de sua formulação, têm se mantido atuais e inspirado trabalhos em diferentes partes do mundo, em especial em regiões de maior precariedade educacional. Essa atualidade se deve, principalmente, às novas reflexões que têm sido feitas, a partir do/com o pensamento freiriano.

A interlocução do corpo docente do Programa com outros Programas do país se estabeleceu desde seu início. No entanto, somente mais tarde houve possibilidades de constituir relações internacionais, que possibilitaram convênios com grupos de pesquisa da América Latina e Europa.

Trabalho coletivo como orientador das práticas de pesquisa e formação do Programa

Em tempos neoliberais, marcados por processos cada vez mais sofisticados de controle e avaliação, nos quais estamos inevitavelmente enredados, nesses tempos da exacerbação do sobre trabalho, que nos posicionam como eternos devedores - do artigo que deveria ter sido escrito, do projeto que deveria estar pronto, do relatório que deveria ter sido entregue, do parecer que deveria ter sido enviado - nesses tempos difíceis de lidar, em que tudo se transformou em mercadoria e a competição está no cerne do sistema universitário, o convívio entre colegas, quer seja de uma mesma universidade ou, em particular, de um mesmo programa de pós-graduação, é algo complexo de ser levado a bom termo.

Essa complexidade, que obviamente não se restringe ao contexto acadêmico, pode ser pensada como tendo seu ponto de partida em nossa convicção de que objetivos dos pensadores do Iluminismo falharam. De fato, como apontaram autores como Sarup (1996. p. 94), a partir do século XX, as ideias de progresso linear, verdades absolutas, de planejamento racional do ordenamento social e as padronizações de conhecimento e da produção abraçadas pela Modernidade, o extraordinário esforço intelectual produzido por seu projeto no desenvolvimento de "uma ciência objetiva, uma moralidade universal e uma arte autônoma" e suas crenças "na justiça e possibilidade de felicidade do ser humano foram cruelmente destruídas". Essa desesperança em um futuro melhor para a humanidade, associada aos ideais neoliberais, hoje vigentes, são os ingredientes que dificultam a vida em comum, o com-viver.

Podemos pensar essa dificuldade a partir do que escreve Gaviria (2013) em seu artigo “Biopolítica y gubernamentalidad. Intereses, aprendizaje y cooperación contemporânea”, no qual remete à Lipovetsky (1994, p. 65), quando discute que, nos dias de hoje, “a ideia de bem-estar é contrária à ideia da filosofia antiga de fazer o bem, pois bem-estar significa justamente isso: estar bem”. O autor argumenta que na atualidade está se tornando cada vez mais difícil fazer o bem, estabelecer relações éticas com o outro, de modo a que fazer o bem não seja contrário ao bem-estar. “Bem-estar e viver-com pareceram ser dois lugares de enunciação opostos” (Lipovetsky, 1994, p. 65). Gaviria (2013, p. 65) aponta para a urgência de “uma espécie de retorno ao modo helênico da filosofia, e fazer dela um exercício para o espírito”, de modo a que seja possível reconstruir a ideia de fazer o bem em sintonia com a cooperação, com o viver-com.

Richard Sennet (2013), em sua obra "Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação”, articula um amplo e sofisticado conjunto de elementos para pensar as possibilidades dessa reconstrução. Discute as múltiplas facetas da cooperação, não restringindo-a às pessoas, pois mostra que “todos os animais sociais colaboram porque, na solidão, a abelha, o lobo ou o ser humano não são capazes de garantir a própria sobrevivência. Precisam - precisamos - uns dos outros.” (Sennett, 2013, p. 89). Esse contraponto etológico torna ainda mais potente a linha argumentativa que desenvolve, pois permite-lhe afirmar que “a cooperação certamente está inscrita nos nossos genes. [...]. Mas a cooperação tampouco pode ser estável [...]: o ambiente natural nunca é fixo.” (Sennett, 2013, p. 88) para, a seguir, mostrar que “a cooperação natural começa, assim, pelo fato de que não podemos sobreviver sozinhos” (Sennett, 2013, p.92).

Para os propósitos deste artigo, cabe lembrar, então, a pergunta formulada por Sennett (2011, p. 13), em “A cultura do novo capitalismo”: “Quais os valores e práticas capazes de manter as pessoas unidas no momento em que as instituições em que vivem se fragmentam?” Sua multifacetada resposta a essa questão está em sua extensa obra, antes citada, que no original foi publicada seis anos mais tarde. Nela, é categórico em afirmar serem as habilidades dialógicas condição para o exercício da cooperação. E explica: “Elas podem percorrer toda a gama de ações implicadas em ouvir com atenção, agir com tato, encontrar pontos de convergência e de gestão da discordância ou evitar a frustração em uma discussão difícil” (Sennett, 2011, p.17).

Em nosso Programa, o exercício das habilidades dialógicas, mencionadas pelo autor, tem sido estimulado. Há 25 anos atrás, devido à inexistência da organização da pesquisa em torno de grupos de pesquisa, nos cursos de pós-graduação do país, era algo praticamente inexistente. Cada um de nós, pesquisadoras e pesquisadores, éramos ilhas isoladas, com nossas atividades investigativas individuais. Mas, buscando na memória vestígios do que então ocorria, percebo que havia uma atitude que fazia com que nos interessássemos um pela pesquisa do outro, que tivéssemos interesse em construir pontes entre nossas pesquisas. Assim, gradativamente, com as inevitáveis tensões próprias das mudanças mais radicais, foi se constituindo o que hoje é hegemônico no âmbito da pós-graduação no Brasil e no mundo: os grupos de pesquisa. Isso representou uma mudança radical na produção acadêmica nacional e internacional (mesmo que, no exterior, assumam outras nomenclaturas, tais como Laboratórios de Pesquisa etc.), exigindo de professores e alunos do Programa o aprimoramento de suas habilidades dialógicas. Estabelecer uma interlocução, uma conversa entre os pares foi uma dessas habilidades que necessitou ser aprimorada. “A conversa é como um ensaio, que depende da capacidade de escuta” (Sennett, 2013, p. 37). Sennett considera que, como atividade interpretativa, exige do interlocutor que focalize a especificidade do que está sendo dito, mesmo que não explicitamente. Podemos pensar a prática da conversa a partir de dois procedimentos: o dialético e o dialógico. O primeiro, “pelo jogo dos contrários, que leva a um acordo”, o segundo, “pelo ricochetear dos pontos de vista e experiências de forma aberta” (Sennett, 2013, p. 37). Esse foi um dos grandes desafios que enfrentamos e que, possivelmente, ainda enfrentaremos.

A organização em grupos de pesquisa exigiu também o aprimoramento de outras habilidades dialógicas: que passássemos a agir com tato, encontrássemos pontos de convergência e de gestão da discordância ou evitássemos a frustração em discussões difíceis. Assim ocorreu, por exemplo, quando nós, professores, fomos compelidos a alterar nossa própria concepção de como construir um projeto, para que passasse a ser, a partir de então, uma rede de subprojetos articulados em torno de um objetivo maior, mas que também isoladamente trouxessem uma contribuição, um alargamento da fronteira do conhecimento.

Essa mudança conceitual foi um desafio que, em certa medida, permanece como tal, porque implica que cada um dos professores busque estar vigilante para não se afastar da almejada cooperação dialógica. Por sua vez, exige de nossos estudantes, principalmente os de Doutorado, que, em geral, quando iniciam seu curso, já sabem “de antemão” o que querem pesquisar, muitas vezes tenham de abrir mão do que inicialmente tinham a intenção de pesquisar e, então, num gesto de abertura ao coletivo, entrem em sintonia com os temas objeto de estudo do grupo no qual vão se inserir.

Atitude ética na prática da pesquisa

Apresento a discussão do terceiro atributo que tem marcado o Programa sob duas dimensões, que se interligam. A primeira delas se refere ao cuidado ético na relação que o pesquisador ou a pesquisadora estabelece com seus pesquisados. A segunda diz respeito à escrita de nossos textos. Trata-se, portanto, de uma atitude ética que se reatualiza em dois tempos, expresso por Geertz (1989) no título de seu artigo “Estar lá, escrever aqui”.

Ao mencionar o “estar lá”, o antropólogo se referia ao trabalho de campo que desenvolvem pesquisadores de sua área de conhecimento. Mesmo que, no âmbito da Educação, não pratiquemos a etnografia no sentido estrito, do ponto de vista de procedimentos metodológicos, há a recorrência de estudos de tipo etnográfico, isto é, de inspiração etnográfica, com o uso de entrevistas, gravações em áudio, em vídeo etc. Isso tem levado a que estejamos atentos a questões problematizadas pela Antropologia, em décadas mais recentes, sobre seus históricos vínculos com o período colonial, com a “descrição do Outro”, como a “evidente assimetria entre os sujeitos pesquisadores e os sujeitos pesquisados, algo que esse campo de pesquisa compartilha, sem dúvida, com os outros campos das assim chamadas ciências sociais” (Larrosa, 2014).

Estudos realizados por docentes e discentes de nosso Programa, como os de Bocasanta (2009), Wanderer (2007) e Toledo e Toledo (2017) apontam para as complexas relações de poder que perpassam a relação pesquisador-pesquisados. Mais do que isso: analisam tais relações, mostram sua inevitabilidade e, frente à impossibilidade de sua “superação”, indicam como atitude ética sua discussão, no próprio texto escrito nas quais elas se fazem presentes, isto é, no “escrever aqui”.

Como escrevi em outro trabalho (Knijnik, 2004), estamos cientes da importância de assumirmos que os relatórios de nossas pesquisas se constituem em “nossas” narrativas sobre o que nós, com nosso inevitável olhar parcial, observamos e ouvimos ao realizar o trabalho de campo. Além disso, estamos cientes de que não estivemos "descobrindo" o que "estava lá". O ato de “escrever uma cultura por outra” implica, de fato, “construir uma cultura para outra”. O que está sendo produzido, portanto, não é um reflexo da "verdade" de outras culturas, mas uma representação delas"(Lidchi, 1997, p. 200). Questões relacionadas à representação - o que é representado, quem a representa e como o fazem - têm sido, portanto, levadas em conta no trabalho investigativo. Em síntese, na pesquisa educacional, temos buscado compreender o discurso sobre o “Outro” como um processo representacional, marcado por relações de poder. Essa posição tenta evitar a arrogância daqueles que afirmam falar em nome de outros e consideram sua palavra como a mais valiosa.

Também está no âmbito das relações de poder o cuidado ético de quem investiga no que se refere às escolhas que faz quanto ao conteúdo a ser publicado. Temos ciência de que há segmentos da pesquisa de campo que podem, de algum modo, comprometer (quer seja do ponto de vista político, social ou mesmo pessoal) o participante do estudo e/ou membros de sua escola, comunidade etc. e não temos como prever suas repercussões. Assim, uma das medidas que buscamos efetivar consiste em propiciar aos sujeitos da pesquisa a leitura dos textos dos quais fazem parte.

E o que dizer quanto ao uso das “palavras alheias”? Aqui se trata de examinar duas categorias de palavras: aquelas colhidas no trabalho de campo e outras, selecionadas da literatura que serve de base para nossos estudos. Quanto às primeiras, muitas são as discussões que vêm sendo empreendidas sobre como inserir, nos textos, os excertos dos sujeitos de nossas pesquisas. Em função do interesse do estudo, por exemplo, se a linguagem do sujeito é um dos focos a ser examinado, tenho tido o cuidado de que a transcrição seja a mais rigorosa, no sentido de demarcação de detalhes linguísticos que, usualmente, não utilizamos em trabalhos da área da Educação. No entanto, estou atenta para que, mesmo sem esse rigor, seja preservada o que chamo de “gramática” do falante, isto é, o que “marca” sua fala, tais como a concordância verbal que utiliza, a finalização de frases com expressões tais como “né” etc. De modo análogo, para garantir um mínimo de simetria, ao transcrever minhas falas, também busco preservar o modo como me expresso, mesmo que muitas vezes seja surpreendida com os “vícios” de linguagem que cometa.

Quanto ao uso de excertos da literatura, temos observado um fenômeno que foi se exacerbando. Na última década, houve a intensificação do processo que vem sendo nomeado no meio universitário por “produtivismo”, resultado da exacerbada pressão sobre os acadêmicos para que cada vez aumentem o número de suas publicações. Os efeitos desse processo, associado às facilidades do acesso à informação, fruto dos avanços tecnológicos, tem feito com que o plágio, assim como o autoplágio se tornem um problema de maior vulto. Adentramos, aqui, no domínio da ética, que, nos tempos de hoje, sofre ataques em todas as instâncias da vida social.

A existência de comitês de ética para a pesquisa, nas áreas biomédicas não é algo recente. Mas nos últimos anos, também na área da Educação houve a formação desses comitês, com vistas a orientar os estudos nesse âmbito do conhecimento. Mainardes (2017), em seu artigo “A ética na pesquisa em educação: panorama e desafios pós-Resolução CNS n 510/2016”, que se tornou referência sobre o tema, faz uma detalhada análise histórica sobre questões relativas à ética no âmbito da Educação, em particular, sobre as discussões relativas à formação de comitês de ética da área. Aponta que, a partir do início dos anos 2000, “algumas associações de Ciências Humanas e Sociais (CHS) [...] vêm criticando a regulamentação centralizada e baseada no modelo biomédico, que acarreta sérias limitações para a revisão ética dos protocolos de pesquisa da área de CHS” (Mainardes, 2017, p.163). A detalhada discussão que empreende em seu texto o leva a concluir que mais relevante do que a atenção a normas e procedimentos, importa conceber a “ética na pesquisa como uma questão de formação, que envolve o estudo e a discussão da ética na pesquisa na graduação e na pós-graduação (princípios e procedimentos)” (Mainardes, 2017, p.167).

Essa atitude de não dar prioridade a regras e resoluções, que têm, com frequência, ocupado a comunidade acadêmica, e, em oposição a isso, valorizar os aspectos formativos dos futuros pesquisadores na dimensão da ética tem se constituído em um dos objetivos centrais do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos.

Para seguir com o pensamento...

As ideias partilhadas com o leitor neste texto, como em seu início esclareci, tiveram origem em uma apresentação oral. Sua escrita me propiciou dar novos sentidos a meu próprio pensamento, na interlocução com Ulrich (2016), Geertz (1989) e Sennett (2013), entre outros. Mantive, no entanto, sua estrutura inicial. Assim, após a introdução, busquei situar o tempo presente e os 25 anos desde o surgimento do Programa de Pós-Graduação da Unisinos para, a seguir, discutir três dos atributos que considerei relevantes para a excelência de sua conformação: Do específico ao mais geral: pesquisas com relevância educacional, social e política; Trabalho coletivo como orientador das práticas de pesquisa e formação do Programa; e Atitude ética na prática da pesquisa. Busquei não somente olhar para o que já está consolidado. Busquei também apontar para os desafios que permanecem, ciente as mudanças subjetivas que podemos observar nas mulheres e nos homens do nosso tempo.

As mudanças em nossas formas de viver, em nossas formas de sofrer não são meras consequências ou efeitos secundários do sistema neoliberal altamente tecnologizado no qual vivemos. Ao contrário. A produção dessa subjetividade é um elemento fundamental na reprodução e na extensão desse próprio sistema. O que está em questão, para nós, é definirmos que escolhas queremos fazer para não sermos meros espectadores deste momento de tanta desesperança política e social, para que possamos, com nossas pesquisas, com nosso fazer educativo, contribuir, mesmo que de modo infinitesimal, para abrir possibilidades de dar novos sentidos ao que aí está.

Referências

ABC, 2019. Disrupción tecnológica: la mayor revolución jamás conocida. Disponível em: http://www.abc.es/tecnologia/abci-disrupcion-tecnologica-mayor-revolucion-jamas-conocida-201803250339_noticia.html. Acesso em: 22/07/2019. [ Links ]

BADE, K. 2007. Leviten lesen: Migration und Integration in Deutschland. V & R Unipress, Göttingen. [ Links ]

BANCO MUNDIAL. 2018. Quase Metade do Mundo Vive com Menos de USD $5.50 por Dia. Disponível em: https://www.worldbank.org/pt/news/press-release/2018/10/17/nearly-half-the-world-lives-on-less-than-550-a-day-brazilian-portuguese. Acesso em: 22/07/2019. [ Links ]

BECK, U. 2016. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. São Paulo, Zahar, 279 p. [ Links ]

BOCASANTA, D. M. 2009. “A gente não quer só comida”: Processos educativos, crianças catadoras e sociedade de consumidores. São Leopoldo, RS. Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, 160 p. [ Links ]

BREDEMEIER, M. L. 2011. O ensinar e o aprender português nas escolas da imigração alemã no Rio Grande do Sul. Calidoscopio (Online), 9:67-78. - doi: 10.4013/cld.2011.91.07 [ Links ]

CASTELS, S.; MILLER, M. 2009. The Age of Migration. Palgrave Macmillan, Houndmills, 420 p. [ Links ]

CORSETTI, B. 2004. Política Educacional, colonização e nacionalização no Rio Grande do Sul (1889/1930). História. Debates e Tendências, 5 (1): 167-181. [ Links ]

DÜVELL, F. 2006. Europäische und internationale Migration. LIT Verlag, Münster. [ Links ]

GAVIRIA, D. A. R. 2013. Biopolítica y gubernamentalidad. Intereses, aprendizaje y cooperación contemporánea. Revista Colombiana de Educación. (65): 65-75. [ Links ]

GEERTZ, C. 1989. Estar lá, escrever aqui. Diálogo. 22(3): 58-63. [ Links ]

GOGOLIN, I. et all. 2013. ‘Sprabilon: Sprachentwicklung bilingualer Kinder in longitudinaler Perspektive’. In: A. REDDER; S. WEINERT (ed.). Sprachförderung und Sprachdiagnostik: interdisziplinäre Perspektiven. Waxmann, Münster, p. 37-56. [ Links ]

GRAZZIOTIN, L. S. S.; FRANK, J. 2013. Do Schüler-Zeitung ao O Ateneu: marcas da cultura escolar nas páginas dos periódicos (São Leopoldo/RS, 1964-1973). História da Educação, 17: 319-336. [ Links ]

GRAZZIOTIN, L. S. S.; LUCHESE, T. A. 2014. The schooling process and teacher training in the Italian colonial region of Rio Grande do Sul, Brazil (1910-1940). History of Education & Children's Literature (Testo Stampato), 2: 579-601. [ Links ]

IBGE, 2017. IBGE: 50 milhões de brasileiros vivem na linha de pobreza. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-12/ibge-brasil-tem-14-de-sua-populacao-vivendo-na-linha-de-pobreza. Acesso em: 22/07/2019. [ Links ]

IBGE, 2018. Analfabetismo cai em 2017, mas segue acima da meta para 2015. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/21255-analfabetismo-cai-em-2017-mas-segue-acima-da-meta-para-2015. Acesso em: 22/07/2019. [ Links ]

KNIJNIK, G. 2004. Lessons from research with a social movement. A voice from the South. In: P. Valero; R. Zevenbergen (eds.), Researching the socio-political dimensions of mathematics education: issues of power in theory and methodology. Dordrecht, Kluwer Academic Publishers, p. 125-142. [ Links ]

KNIJNIK, G.; LENHARD BREDEMEIER, M. L.; WANDERER, F. 2017. Educação matemática e linguística nos jornais pedagógicos para professores das escolas de imigração alemã do sul do Brasil. Diálogos Latinoamericanos [en linea], (26): 53-68. [ Links ]

KREUTZ, L. 1996. Literatura Escolar dos Imigrantes Alemães no RS: A Representação de Educação e Processo Identitário. Estudos Leopoldenses, 32(147): 73-84. [ Links ]

KREUTZ, L. 1999. A representação de identidade nacional em escolas da imigração alemã no Rio Grande do Sul. História da Educação (UFPel), 3(5): 141-165. [ Links ]

LARROSA, J. B. 2014. 20 Minutos na Fila: sobre experiência, relato e subjetividade em Imre Kertész. Bolema, 28 (28-49): 717-743. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1980-4415v28n49a13Links ]

LIDCHI, H. 1997. The poetics and the politics of exhibiting other cultures. In: S. Hall (ed.), Representation: cultural representation and signifying practice. London, Sage, p. 151 - 208. [ Links ]

LIPOVETSKY, G. 1994. El crepúsculo del deber. Barcelona: Anagrama. [ Links ]

LUCHESE, T. A.; GRAZZIOTIN, L. S. 2015. Memórias de docentes leigas que atuaram no ensino rural da Região Colonial Italiana, Rio Grande do Sul (1930 - 1950). Educação e Pesquisa - Revista da Faculdade de Educação da USP, 41: 341-358. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022015041795Links ]

MAINARDES, J. 2017. A ética na pesquisa em educação: panorama e desafios pós-Resolução CNS nº 510/2016. Educação (Porto Alegre), 40 (2): 160-173. DOI:http://dx.doi.org/10.15448/1981-2582.2017.2.26878Links ]

NORTON, B. 2000. Identity and language learning: Social Processes and Educational Practice. Pearson Education, Harlow, 200 p. [ Links ]

PAGBRASIL, 2018. Insights essenciais do mundo digital no Brasil. Disponível em: https://www.pagbrasil.com/pt-br/noticias/mundo-digital-brasil/. Acesso em: 22/07/2019. [ Links ]

SARUP, M.; RAJA, T. 1996. Identity, culture, and the postmodern world. Athens, University of Georgia Press. [ Links ]

SENNETT, R. 2011. A cultura do novo Capitalismo. São Paulo, Record, 190 p. [ Links ]

SENNETT, R. 2013. Juntos: Os rituais, os prazeres e a política da cooperação. São Paulo, Record, 378 p. [ Links ]

SOBOTTKA, E. A.; STRECK, D. R. 2014. When local participatory budgeting turns into a participatory system. Challenges of expanding a local democratic experience. International Journal of Action Research, 10: 156-183. [ Links ]

SOUZA, J. E.; GRAZZIOTIN, L. S. S. 2012. Memórias evocadas: imagens recompondo as aulas isoladas em Novo Hamburgo/RS (1913 a 1952). Aedos: Revista do Corpo Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS (Online), 4: 652-674. [ Links ]

STRECK, D. R. 2006. The Scale of Participation: From Municipal Public Budget to Cities'Conference. International Journal of Action Research, 2(1): 78-97. [ Links ]

STRECK, D. R. 2017. José Martí, Paulo Freire e a construção de um imaginário pedagógico latino americano. Pedagogia y Saberes, 46: 55-63. [ Links ]

STRECK, D. R.; MORETTI, C. Z. 2013. Colonialidade e insurgência: contribuições para uma pedagogia latino-americana. Revista Lusófona de Educação, 24: 33-48. [ Links ]

TELESINTESE, 2019. Brasil terá 420 milhões de dispositivos digitais em uso ao final de 2019. Disponível em: http://www.telesintese.com.br/brasil-tera-420-milhoes-de-dispositivos-digitais-em-uso-ao-final-de-2019/. Acesso em: 22/07/2019. [ Links ]

TOLEDO E TOLEDO, N. 2017. Educação matemática na escola técnica do Instituto Federal do Rio Grande do Sul - SE: um estudo genealógico. São Leopoldo, RS. Tese de Doutorado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, 281 p. [ Links ]

WANDERER, F. 2007. Escola e matemática escolar: mecanismos de regulação sobre sujeitos escolares de uma localidade rural de colonização alemã do Rio Grande do Sul. São Leopoldo, RS. Tese de Doutorado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, 228 p. [ Links ]

WENNING, N. 2010. Interkulturelle Pädagogik - ein Spielball sich verändernder gesellschaftlicher Rahmenbedingungen?. Erwägen Wissen Ethik. 21(2): 215-217. [ Links ]

WENNING, N. 2011. Modelle zur Beschreibung der Migration. In: A. KREUS; W. KORBY, N. Ruhren (ed.). TERRA Geographie für Rheinland-Pfalz. Ausgabe für Gymnasien und Gesamtschule. Schülerbuch. Oberstufe. Klett: Stuttgart, 219-222. [ Links ]

WENNING, N. 2013. Die Rede von der Heterogenität - Mode oder Symptom?. In: J. BUDDE (ed.). Unscharfe Einsätze: (Re-) Produktion von Heterogenität im schulischen Feld. Springer VS, Wiesbaden, 127-150. [ Links ]

2Encarte Especial - 25 anos do PPG-Educação Unisinos

1Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/UNISINOS. Líder do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação Matemática e Sociedade (GIPEMS).

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons