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Revista Práxis Educacional

versão On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.17 no.44 Vitória da Conquista jan./mar 2021  Epub 10-Jun-2022

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v17i44.8019 

DOSSIÊ TEMÁTICO: Vitalidade do sujeito e poder de formação: narrativas autobiográficas em diálogo

RURALIDADES ESGARÇADAS E OS MODOS DE GRAFAR A ESCOLA PELAS CRIANÇAS

FRAYED RURALITIES AND CHILDREN'S WAYS OF WRITING THE SCHOOL

RURALIDADES DESHILACHADAS Y MODOS DE GRAFITEAR EN LAS ESCUELAS POR LOS NIÑOS

Mariana Martins de Meireles1 
http://orcid.org/0000-0003-3288-3023

Elizeu Clementino de Souza2 
http://orcid.org/0000-0002-4145-1460

1Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - Brasil marianabahiana@hotmail.com

2Universidade do Estado da Bahia - Brasil esclementino@uol.com.br


Resumo:

O texto resulta de uma investigação realizada em uma comunidade rural no sertão da Bahia. Para tanto, moveu-se a partir da seguinte pergunta: o que narram as crianças sobre a experiência de habitar Canudos Velho? Ao longo do estudo buscamos compreender como as crianças tecem suas experiências, atribuem sentidos aos lugares e grafam espaços vividos. Do ponto de vista metodológico, o estudo ancorou-se em pressupostos da pesquisa (auto)biográfica, na vertente da pesquisa narrativa, utilizando-se de narrativas orais de três estudantes dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e de observações. A pesquisa revelou que, no contexto investigado, a experiência de habitar o rural é marcada por processos de exclusão e marginalização social, associados à negação de direitos e à ausência de políticas públicas que assegurem melhores condições de vida para os sujeitos. Tal cenário, que exibe o esgarçamento do rural, apresenta elementos emblemáticos para pensar o papel do estado e de políticas que atuem para a transformação dessa realidade, especificamente no tange à escola/educação.

Palavras-chave: Ruralidades; Narrativas infantis; Escola rural; Ensino Fundamental

Abstract:

The text results from an investigation carried out in a rural community in the backlands of Bahia. To this end, it moved from the following question: what do the children tell about the experience of inhabiting Old Canudos? Throughout the study we seek to understand how children weave their experiences, assign meanings to places and graph spaces lived. From the methodological point of view, the study was based on assumptions of (auto)biographical research, in the narrative research aspect, using oral narratives from three students of the Early Years of Elementary School and observations. The research revealed that, in the investigated context, the experience of living in rural areas is marked by processes of social exclusion and marginalization, associated with the denial of rights and the absence of public policies that ensure better living conditions for the subjects. This scenario, which shows the thinning of the rural, presents emblematic elements to think about the role of the state and policies that act to transform this reality, specifically in relation to school / education.

Keywords: Ruralities; Children's narratives; Rural school; Elementary School

Resumen:

El texto es el resultado de una investigación realizada en una comunidad rural del interior de Bahía. Por tanto, se partió de la siguiente pregunta: ¿qué cuentan los niños sobre la experiencia de vivir en Canudos Velho? A lo largo del estudio, buscamos comprender cómo los niños tejen sus experiencias, asignan significados a los lugares y grafican los espacios de vida. Desde el punto de vista metodológico, el estudio se basó en supuestos de investigación (auto) biográfica, en el aspecto de investigación narrativa, utilizando las narrativas orales de tres estudiantes de la Primera Infancia y las observaciones. La investigación reveló que, en el contexto investigado, la experiencia de vivir en el campo está marcada por procesos de exclusión y marginación social, asociados a la negación de derechos y la ausencia de políticas públicas que aseguren mejores condiciones de vida para los sujetos. Tal escenario, que muestra el desgaste de lo rural, presenta elementos emblemáticos para reflexionar sobre el papel del Estado y las políticas que actúan para transformar esta realidad, específicamente en lo que respecta a la escuela / educación.

Palabras clave: ruralidades; narrativas infantiles; escuela rural; escuela primaria

Nada havia ali de mais presente [...] senão a infância. O mundo começava ali. Nosso campo encostava na beira do rio (BARROS, 2006)

Quando miramos o cotidiano de Canudos Velho1, com um olhar sobre as práticas e os espaços que movimentavam e organizavam a vida na comunidade, vislumbramos que as crianças no contexto específico das ruralidades, também produzem maneiras singulares de ser e estar no mundo. Em Canudos Velho, a infância é constituída por elementos da natureza, especialmente pelas águas do Cocorobó. O rio com seu serpenteado, águas tranquilas e contornos delimitados, toma a forma de uma “rua” onde se pode encontrar os amigos, brincar e mergulhar. O rio assume lugar simbólico e de interação no cotidiano, funcionando como elemento de sociabilidades, do que se pode nomear de “infância ribeirinha”.

De certo modo, não há limites capazes de demarcar infância experienciada no rural ou fora dele, pois ela não se enquadra, ela transcende, se materializa na invenção e na criatividade das crianças, revelando-se plural e polissêmica. Por isso, é pertinente destacar que as infâncias experienciadas em contextos de ruralidades, ainda que possuam uma relação mais direta com a natureza e brincadeiras tradicionais, também são marcadas pelo acesso a tecnologias digitais como observamos junto às crianças de Canudos Velho.

Neste trabalho as crianças são consideradas como seres sociais em plenitude, por isso, nos aproximamos da concepção de infância pautada nos estudos da Sociologia da Infância que compreende o fenômeno da infância (social, biológico e cultural) para além de abordagens reducionistas (ARIÈS 1973; PINTO & SARMENTO, 1997; CERISARA, 2004; CORSARO, 2011). No âmbito da Sociologia da Infância, identifica-se a emergência de diferentes infâncias que resultam de realidades experimentadas e mundos justapostos ou em confrontação.

Além destas considerações introdutórias, esta investigação organizou-se a partir da seguinte pergunta: o que narram as crianças sobre a experiência de habitar Canudos Velho? Tendo em vista, a amplitude desta questão, buscamos delimitar objetivos no sentido de compreender como as crianças tecem suas experiências, atribuem sentidos aos lugares e grafam espaços vividos, movendo narrativamente questões de ordem local-individual e globais-sociais que envolvem as ruralidades contemporâneas. No percurso desta investigação, fomos compreendendo a porosidade das fronteiras entre as narrativas das crianças e os espaços onde se teciam suas histórias. Tal problemática se refere, sobretudo, as condições existenciais e materiais vividas no sertão da Bahia, colocando no centro deste debate a escola e oferta de uma educação pública, gratuita e de qualidade e, suas disputas políticas atuais.

Nesta perspectiva, “a narrativa aparece como a manifestação mais significativa dessa escritura do vivido” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 42), tornando-se uma via para a compreensão da experiência e seus contornos. Esta investigação, de base qualitativa, ancora-se em pressupostos da pesquisa (auto)biográfica, na vertente da pesquisa narrativa. A noção de pesquisa narrativa, busca explicar o sentido da aprendizagem narrativa e do capital narrativo que estão situados em um contexto pessoal ou comunitário (GOODSON, 2007). Tal modo singular de mirar a própria existência deve ser creditado à própria natureza da elaboração biográfica que seleciona e coloca acentos em alguns eventos experienciados. Desta forma, a narrativa assume uma disposição artesanal de comunicação, onde os narradores deixam suas marcas, imprimem sentidos e dão forma à narrativa contada (BENJAMIN, 2000).

Na pesquisa com as crianças, as narrativas foram produzidas através de duas atividades distintas, mas que dialogaram entre si, a saber: Oficina temática e Rodas de conversa. O tema que inspirou a produção das narrativas nas respectivas atividades foi “O lugar onde vivo”. Assim sendo, durante a pesquisa, Emili (10 anos), Raiane (11 anos), George (10 anos)2 elaboraram narrativas orais e imagéticas. A escola compareceu como um dos espaços vividos e narrados pelas crianças. Em função do recorte temático, neste texto apresentamos narrativas orais resultantes dos dados produzidos durante as rodas de conversa.

No que se refere as rodas de conversa que ocorreram nos dias 15 e 16 de dezembro de 2016, com duração média 40-42 minutos e tinham como finalidade escutar as crianças sobre seus cotidianos e espaços vividos, dentre eles a escola. A atividade se organizou em função da presença de uma boneca de palha, brinquedo tradicional do sertão. Desse modo, inspirando-me no trabalho de Passeggi, Nascimento e Oliveira (2016), a intenção com o brinquedo era provocar distanciamento e aproximação das crianças com as questões que envolviam a pesquisa. A boneca desempenhava, assim, a função de mobilizadora da construção narrativa, uma interlocutora fictícia, aproximando a pesquisadora do “mundo” das crianças.

No primeiro dia da roda, as crianças escolheram o nome para boneca. Receberam a informação de que ela não tinha nome e que morava em um lugar distante, onde não havia escola. Por isso, precisavam dizer para boneca como era a escola e o que mais gostavam de fazer por lá. Se fosse possível mudar, o que eles mudariam na escola. Depois de intensa negociação, as crianças deram à boneca o nome de Tatá. No segundo dia da roda de conversa, agora que a boneca já se tornara uma “amiga”, as crianças apresentaram parte da comunidade, situando espaços, pessoas e as atividades realizadas em seus cotidianos. À medida que narravam seus cotidianos, questões surgiam retroalimentando a partilha da vida na roda. Observamos que as crianças narraram com detalhes situações e práticas vivenciadas no contexto das ruralidades. Nesse sentido, podemos citar as brincadeiras, a pesca, as atividades ligadas à agricultura e à caprinocultura, a relação com a religiosidade, a cultura local e cotidiano escolar. Em seus modos de “praticar o lugar” (CERTEAU, 1994), as crianças teceram significações sobre um cotidiano ordinário.

As narrativas produzidas durante as rodas de conversa permitiram uma aproximação com as crianças e seus mundos vividos, narrados e subjetivados. Nessa perspectiva, tornou-se uma atividade importante no decurso da pesquisa, uma vez que possibilitou a elaboração e a circulação de narrativas orais que expressam experiências vivenciadas pelas crianças no contexto das ruralidades. Nas rodas de conversa, as crianças foram consideradas “sujeitos da experiência” (LARROSA, 2002) que, ao narrem seus modos de habitar, partilharam maneiras singulares de ser e estar no mundo.

Do ponto de vista da análise das narrativas produzidas durante as rodas de conversa, cabe dizer que foram gerados 83min de áudios gravados, posteriormente transcritos e textualizados. Após esse procedimento, os dados foram organizados e analisados na perspectiva “interpretativa-compreensiva” (RICOUER, 1976). Este movimento analítico, na perspectiva da hermenêutica, buscou compreender os sentidos e as significações elaboradas pelas crianças sobre os modos como praticam o lugar, experienciam a escola e elaboram suas formas de habitar Canudos Velho.

Ruralidades esgarçadas e as conexões com os modos de habitar

Na pesquisa empreendida, a apreensão das ruralidades deu-se por meio da observação do cotidiano, manifestou-se em práticas sociais e nas narrativas dos sujeitos. O rural, donde emanam as ruralidades, diz respeito a um lugar geográfico, social e de vida “onde as pessoas podem morar, trabalhar, estudar com dignidade de quem tem o seu lugar, a sua identidade cultural” (FERNANDES, 2004, p. 137). Assim sendo, ruralidades resultam de um mundo vivido e materializam-se à medida em que os sujeitos singularizam seus modos de habitar, usar e organizar o lugar. Esse rural apresenta-se como um mundo dinâmico de sociabilidades, marcado também por disputas e assimetrias no campo das questões políticas e culturais.

De certo modo, um “novo rural” surge a partir da inserção de novos objetos no espaço agrário brasileiro, expandidos em meados de 1990 com a emergência do período técnico-científico-informacional (SANTOS, 1994) que culminou nos processos de modernização agrícola. Com essa abertura e contestando as investidas do capital que elege o rural, prioritariamente, como espaço de produção agrícola surge o fenômeno da pluriatividade (GRAZIANO DA SILVA, 1998). Tal conformação do rural, relaciona-se com a diversidade de suas funções e a diversificação de suas atividades, ampliando assim o olhar sobre suas potencialidades: econômica, social, cultural, ambiental e patrimonial. Essa nova realidade nos permite afirmar que, no contexto brasileiro, não há apenas um rural, mas vários rurais3.

Nesse exercício esboçamos tipologias a partir da elaboração de uma cartografia das ruralidades, a saber: bioprodutivistas, contestatórias, inventivas e esgarçadas, cujas fronteiras dissolvem-se sob uma perspectiva analítica, formam uma cartografia complexa e diversa que mobiliza diferentes arranjos socioespaciais, distintos atores e seus coletivos. Para este texto, optamos por discutir apenas questões atreladas às ruralidades esgarçadas, onde está alocado o debate sobre a realidade da escola e educação.

As ruralidades esgarçadas caracterizam-se por suas condições de vulnerabilidade social e econômica vivenciadas pelos habitantes de um dado contexto rural. No cenário investigado, percebe-se que os sujeitos, de certo modo, vinculam-se a Canudos Velho em razão das questões de sobrevivência advindas da atividade de pesca do açude de Cocorobó. Nesta categoria, as ruralidades centradas no cotidiano dos mais vulneráveis do campo marcam a existência de um espaço que se personifica por uma experiência de luta permanente pela sobrevivência de seus sujeitos, permeada por condições adversas.

A preocupação com o presente imediato e com a vida futura da comunidade aparecem como questões inerentes ao cotidiano dos sujeitos rurais. Nessa perspectiva, os sujeitos são desafiados, cotidianamente, pela procura permanente de acesso a direitos básicos que garantam também a reprodução socioeconômica. Destacam-se nessa dinâmica questões relacionadas à sobrevivência em contextos de ruralidades e a busca por uma existência assentada no exercício da cidadania. Nesse sentido, a dimensão existencial do lugar habitado também se esgarça, na medida em que os sujeitos precisam fazer deslocamentos, por vezes forçados, para cidade em busca de outras alternativas, circunstanciando uma permanente transitoriedade do habitar (ROLNIK, 2015). Essa dinâmica tem gerado impactos nas pessoas que, sem condições mínimas, migram à procura de saúde, educação, trabalho, serviços, ou seja, uma vida um pouco mais digna e menos “severina”4.

Do ponto de vista da moradia e do acesso à terra em Canudos Velho, nota-se que há uma insegurança na posse da terra, implicando nas condições de vida dos sujeitos que raramente possuem registro jurídico ou titularidade (escritura) do solo que habitam. Segundo Rolnik (2015), grande parte das terras ocupadas por comunidades rurais não é reconhecida formalmente, provocando uma “vulnerabilização dos direitos à terra por parte das comunidades, tornando-as alvos fáceis de processos de usurpação” (p. 165). Essa transitoriedade que molda os arranjos inseguros de acesso à terra pelas comunidades rurais, articulada ao estigma territorial que atravessa estes “territórios sem nome”5, tornam-se elementos emblemáticos para pensar onde e como moram os pobres nesse país6 (Rolnik, 2015). Nota-se que são moradias simples, geralmente, resultado da autoconstrução, onde os moradores juntamente com a comunidade, reúnem-se para a construção. Durante a pesquisa, identificou-se distintos níveis de concentração fundiária e particularidades nos processos de direito à terra na comunidade.

As condições de lazer, bem como a oferta de emprego e serviços são bastantes reduzidos em Canudos Velho. Apesar de ter água e luz, a comunidade possui restrições quanto ao sinal de telefonia celular, acesso à internet. Há ainda, ausência de rede de esgoto e saneamento básico em geral. Essa realidade, associada aos limites de escolarização ofertados pela escola local, esgarçam esse rural, implicando na saída de jovens e adultos para a sede do município ou outras cidades onde as condições parecem ser menos precárias. Outro fator de esgarçamento é a precarização da escola, materializada em sua estrutura física e nas suas condições de funcionamento. Isto demonstra o quanto este rural, no que tange a efetivação das políticas públicas, é frágil e “limitado”, implicando na qualidade da educação que tem sido ofertada para os filhos dos trabalhadores rurais.

Destacamos ainda, a preocupação quanto a um fenômeno que tem atingido a realidade brasileira e também de Canudos: o fechamento das escolas localizadas em espaços rurais. Os dados do INEP (2014) confirmam que não se trata de simples absenteísmo das autoridades públicas, mas de apagamento de tais instituições de ensino que têm alcançado uma escala a nível nacional, com implicações também no estado da Bahia. No contexto brasileiro, os números são alarmantes, entre 1997 e 2014 foram fechadas 62.792 escolas dos Anos Iniciais, desse total 10.685 estão localizadas na Bahia.

No município de Canudos, o fechamento de escolas rurais tem atingido números alarmantes. Entre 2013 - 2016, por exemplo, das 16 escolas que ofertavam os anos iniciais foram fechadas 12, restando apenas 04. A Secretaria de Educação do Município justifica tal fenômeno em função de três questões: 1) Diminuição demográfica das comunidades rurais, 2) Projeto de Extinção da Classes Multisseriadas7 e a opção pela nucleação escolar8, 3) Redução de custos9. A fundamentação de tais argumentos não está alocada apenas no município de Canudos, antes, faz parte de uma política de fechamento, através da nucleação, de escolas rurais no contexto baiano e brasileiro.

Cabe ressaltar que a região Nordeste, da qual faz parte a Bahia, tem se posicionado no topo da lista dessa preocupante realidade. Caracterizada por ser uma região detentora de baixos índices de escolaridade, o fechamento de escolas, nesse contexto, e em tantos outros, implica no irremediável aumento do quadro de miséria e no escavamento de um fosso ainda mais abissal entre as já demarcadas hierarquias de classes. É nesse sentido que tal fenômeno de abandono para com o processo de ensino se constitui como um problema complexo e contemporâneo: a negação do direito à escola às crianças e jovens rurais.

Na conjuntura local de Canudos Velho, podemos situar quatros dimensões que compõem as ruralidades esgarçadas, a saber: 1) a luta pela garantia de acesso à educação de qualidade, bem como pela permanência da escola na comunidade como um direito; 2) a ausência de direitos constitucionais especificamente no que diz respeito à atenção básica de saúde visando cuidado e prevenção; 3) a insuficiência na oferta de serviços públicos: água, luz, telefone, internet, saneamento básico, rede de esgoto, acesso à bens culturais; 4) a insuficiência e a diversificação na oferta de trabalho, sobretudo, no período de proibição da pesca, diminuindo a migração das pessoas para centros urbanos.

Nessas circunstâncias, o rural aparece como condição de vulnerabilidade socioeconômica e insuficiência de bens básicos para a manutenção da existência nesse espaço. Para contrapor esse cenário de esgarçamento que atinge Canudos Velho, seria necessário proporcionar as condições mínimas para a garantia de direitos sociais. Muitos são os atores envolvidos nestas ruralidades, porém, os atores internos, ou seja, os mais vulneráveis seriam os primeiros a serem chamados a lutar por uma vida digna e justa, pela valorização de suas culturas, pela defesa de seus territórios e de suas existências.

Modos de grafar a escola pelas crianças

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul - Que nem uma criança [...] (Barros, 2010)

Durante a pesquisa, ao buscarmos compreender o modo como as crianças habitam o rural, produzimos um acervo de narrativas (orais e imagéticas) que deixam entrever a percepção das crianças sobre o lugar, a casa, a escola e outras de redes de sociabilidades. Nesta investigação, a infância comparece como uma etapa da vida humana e a criança enquanto sujeito histórico, social e cultural. Assim sendo, consideramos o conjunto de experiências vivenciadas pelas crianças em seus diferentes contextos espaciais, sociais, culturais e temporais na construção da significação da infância. Esta etapa da vida possui caraterísticas que lhes são peculiares, nela as crianças interagem, pensam, compreendem a existência de uma maneira particular (SARMENTO, 2008). Em Canudos Velho, isso torna-se evidente nas relações que as crianças estabelecem com as pessoas e seus “mundos circundantes” (HEIDEGGER, 2002), na maneira como explicitam suas condições de vida e elaboram sentidos sobre o lugar.

No caso das crianças que habitam os espaços rurais, tal como em Canudos Velho, observa-se que são distintas as formas de experienciar a infância. Vive-se a infância na rotina escolar, nas brincadeiras, na relação com outras crianças e adultos, na realização de tarefas domésticas, no auxílio aos pais em atividades de subsistência, a exemplo da pesca e da agricultura. Esta realidade encaminha para a construção de um argumento, conforme pautam os estudos sociológicos e antropológicos da infância, de que não há uma maneira única de vivenciar a infância, dada a diversidade das práticas culturais e sociais e dos lugares vividos e significados pelos sujeitos. Ora, se o contexto das ruralidades é diverso e heterogêneo, também as crianças e suas formas de viver a infância assim o são.

Nesse sentido, “falar de infância do campo, das crianças concretas que o habitam, é inexoravelmente falar de sujeitos do mundo, integrados a lugares” (SILVA et al, 2012, p. 420). Desse modo, os múltiplos contextos - geográficos, históricos, sociais e culturais - colaboram para a produção das diferentes maneiras de ser criança, despontando distintas infâncias nas diversas ruralidades. Ademais, no contexto das ruralidades contemporâneas as crianças ocupam espaços diversos, ao tempo que constroem referências e partilham aprendizagens com seu grupo social de pertença, elaboram, pois, formas de sociabilidades que são resultantes dos modos de produção da vida e da existência.

Os espaços retratos por Raiane, Emili e George podem ser tomados na perspectiva da “geograficidade”10. Tais espaços, enquanto realidade circundante, fazem referência à educação, à identidade, à memória, à história, às crenças e à religiosidade do lugar e dos sujeitos que ali habitam. As relações estabelecidas pelas crianças com o lugar são marcadas por topofilia e pertencimento à medida que elas atribuem sentidos e significados ao cotidiano. De certa maneira, este cenário alarga o sentido da experiência humana no mundo, da qual as crianças são parte e atuam como protagonistas. Raiane, Emili e George são crianças que interagem com as mais diversas práticas cotidianas e comunais.

Neste texto, optamos por trabalhar com as narrativas das crianças que elegem a escola como um dos principais espaços vividos e praticados. Segunda as crianças, a escola comparece como espaço privilegiado de educação formal. Ainda que, por vezes, se mostre deslocada das ruralidades e das práticas sociais e culturais da comunidade, é neste espaço que as crianças brincam, encontram os amigos e têm contato com o conhecimento sistematizado. A seguir, a narrativa de George expõe fragmentos da rotina escolar:

Entramos na escola todos os dias 7:30h e saímos 11:30h. [...] Na escola a gente estuda, escreve, brinca. Tem recreio e merenda. Eu estudo bastante, eu sou sabido Tatá (referindo-se à boneca). Não é bom viver num lugar que não tem escola. Por que não se aprende. Não aprende a ler, a escrever. [...] Sem saber ler, sem saber escrever vai ficar difícil conseguir trabalho. Acho que você gostaria de estudar aqui. O ruim é quando a gente não tem recreio, aí é muito ruim. [...] Nossa escola tem livros, brinquedos e buraco no chão. Se fosse para mudar alguma coisa eu queria que tirassem esses buracos e trocassem o piso da nossa escola (George, Roda de conversa, 2016).

George apresenta elementos importantes em sua narrativa. Inicia partilhando os horários de entrada e saída da escola, sendo este um ritual diário. Em seguida, ocupa-se em falar sobre o que faz na escola, resumindo em ações como estudar e brincar. Nesse encadeamento narrativo, declara-se estudioso e “sabido”. Os sentidos atribuídos à escola vão desde a importância que este espaço tem para a aprendizagem da leitura e da escrita às mazelas de condições físicas. De certo modo, a escola comparece como um “lugar aprendente” (SCHALLER, 2008), espaço privilegiado de compartilhamento de saberes e aprendizagens, marcado por sociabilidades entre as crianças e o professor.

George atribui relevância à escola associando o acesso a escolarização à empregabilidade: “Sem saber ler, sem saber escrever vai ficar difícil conseguir trabalho”. Aqui ele parece reproduzir discursos sociais, visto que, culturalmente, propaga-se a ideia de que: “é preciso estudar para ser alguém na vida”. De certa maneira, este ponto de vista dá conta de reduzir o sentido da educação escolar, tomando-a somente como preparação para o mercado de trabalho, na maioria dos casos, fora do contexto rural. De modo geral, há camadas de sentidos afetivos atribuídos por George à escola, quando supõe que a boneca Tatá, também, poderia gostar de estudar lá. De algum modo, a relação que ele estabelece com a escola aparece vinculada à uma experiência de topofilia (TUAN, 1983). Chama atenção o destaque dado ao recreio. Na rotina escolar, o recreio é o espaço-tempo “sagrado” do brincar.

Imersos em exercícios de imaginação, durante o recreio as crianças (re)inventam também outras maneiras de ser e estar no mundo, de viverem suas infâncias. Observamos durante a pesquisa que, neste espaço-tempo do brincar, especialmente nas brincadeiras individuais e coletivas, as crianças trazem para escola seus modos de vida, seus cotidianos rurais, seus mundos circundantes, de algum modo, sucumbidos pela escola, quando prioriza a lógica urbana em suas práticas e currículo.

Em outra perspectiva, George preocupa-se em realçar a estrutura física da escola, como fica evidente no seguinte trecho: nossa escola tem cadeira, aluno, livros, brinquedos e buraco no chão”. Em tom de tristeza, ele parece lamentar a precariedade existente, sobretudo, no que se refere ao piso de sua sala de aula. A inadequação da estrutura física da Escola Municipal Alto Alegre, vincula-se à realidade frequente da maioria das escolas rurais brasileiras que, historicamente, apresentam quadros precários em suas condições arquitetônicas, materiais e pedagógicas, resultado da desatenção dos governantes e da ausência de políticas públicas capazes de reverter este cenário de abandono e esgarçamento.

Ao analisarmos as narrativas de Raiane e Emili percebemos que elas também destacam as péssimas condições do piso da sala de aula. Nesse movimento, notamos a recorrência dessa questão e de outros aspectos concernentes à escola também apresentados por George, quando as mesmas afirmam:

A escola é boa. Gosto de estudar, gosto dos meus amigos, do professor, aqui eu me divirto muito. Na escola tem a sala onde a gente estuda, nela tem cadeiras, um quadro, livros e um filtro para beber água. O que eu mais gosto de fazer na escola é ler e brincar de dama. Não gosto da escola quando a gente tem que copiar muito. Doí a mão. Os buracos também não acho legal, a nossa sala poderia ser melhor (Raiane, Roda de conversa, 2016).

Acho minha escola muito boa, gosto do meu professor. Aqui a gente faz dever, estuda, desenha e depois vai para o recreio. Depois do recreio tem de voltar para sala. Às vezes a gente vai para o cantinho da leitura, outros dias se faz pesquisa no dicionário, coisas que eu gosto muito. O que eu não gosto na escola são os buracos na nossa sala. [...] Meu sonho é que na minha escola tivesse televisão, computador, internet e mais livros para gente ler (Emili, Roda de conversa, 2016).

Os fragmentos narrativos de Raiane e Emili apresentam aspectos bastantes semelhantes entre si e com elementos narrados por George. Fato que pode ser justificado a partir duas perspectivas: 1) A experiência de vivenciar o mesmo espaço-tempo da escola e da sala de aula; 2) A participação nas rodas de conversa, favorecendo a escuta das narrativas uns dos outros. Desse modo, numa espécie de giro narrativo, as crianças traçaram descrições similares da rotina escolar, bem como das condições estruturais da escola.

Do ponto de vista das narrativas, notamos a recorrência de uma rotina escolar marcada por tempos divididos e recortados. De um lado as tarefas escolares, do outro lado as brincadeiras. Embora ocorram brincadeiras na sala de aula como citou Raiane, referindo-se ao jogo de damas, de modo geral, as crianças compreendem que há períodos que marcam os rituais da escola, como destacou Emili: Aqui a gente faz dever, estuda, desenha e depois vai para o recreio. Depois do recreio tem de voltar para sala”. A partir das narrativas, pode-se inferir que a escola se constitui como um dos espaços aprendentes da comunidade, onde as crianças experienciam a infância e desvelam maneiras de “praticar o lugar” (CERTEAU, 1994).

Identifica-se ainda, nas narrativas de Emili e Raiane, sentidos afetivos atribuídos à escola, aos colegas, ao professor, às atividades presentes na rotina, especificamente àquelas relacionadas à leitura e à pesquisa. Nesse sentido, a partir dessa articulação afetiva que premia as relações entre a escola (lugar) e os sujeitos, deflagra-se a presença de uma topofilia (TUAN, 1983), que pode ser vislumbrada no modo como as crianças significam o contexto da escola, tomando-a como um espaço onde gostam de estar e conviver.

Outras questões são sinalizadas por Emili e Raiane sobre preferências e desejos quanto à escola: “[...] Meu sonho é que na minha escola tivesse televisão, computador, internet e mais livros para gente ler” (Emili, 2016); “Não gosto da escola quando a gente tem que copiar muito. Doí a mão” (Raiane, 2016). Estes dois fragmentos narrativos anunciam um sonho e um desprazer. Emili expressa a necessidade de mudanças nas condições estruturais de sua escola, tal como destaquei no contexto das ruralidades esgarçadas. Já Raiane se incomoda quando precisa escrever muito, demarcando uma não identificação com esta prática escolar.

Narrativas sobre a rotina, preferências e a estrutura também são realçadas por Raiane: “Na escola tem a sala onde a gente estuda, nela tem cadeiras, um quadro, livros e um filtro para beber água. O que eu mais gosto de fazer na escola é ler e brincar de dama”. Neste recorte, Raiane chama atenção para a pouca mobília da sala de aula, incluindo nessa lista os livros, que ficam localizados em uma estante próxima à mesa do professor. O filtro, uma espécie de bebedouro, é outro elemento citado. Feito de barro, ele fica em um dos cantos da sala, limitando o deslocamento das crianças para outros espaços da escola. Nas fotografias, disponibilizadas a seguir, é possível visualizar parte das condições físicas da escola.

Fonte: acervo da pesquisa (2016) Fonte: acervo da pesquisa (2016)

Foto 01/ Foto 02: sala de aula/ sala de aula 

Na fotografia da esquerda, tem-se um filtro (espécie de bebedouro) sobre um pequeno banco de madeira e no chão o jogo de damas. Na fotografia da direita, crianças aparecem em atividade coletiva. Nesta imagem, é possível notar a condição das cadeiras, da estante e do quadro, tem-se uma imagem mais “panorâmica” da estrutura física da sala de aula. A precária estrutura física da escola sinalizada pelas crianças quando se referem, sobretudo, aos buracos na sala de aula, conduziu às respostas das crianças sobre as mudanças desejadas por eles para a escola: “Se fosse para mudar alguma coisa eu queria que tirassem esses buracos e trocassem o piso da nossa escola” (George); “Os buracos também não acho legal, a nossa sala poderia ser melhor” (Raiane); “O que eu não gosto na escola são os buracos na nossa sala (Emili). Há, portanto, uma insatisfação entre as crianças quanto às condições estruturais. O que fica ainda mais evidente quando fazem o apelo para uma reforma predial.

Para além das revelações das crianças quanto às condições físicas da escola, identifica-se, em suas entrelinhas, outros problemas preocupantes, como observei durante a pesquisa de campo. Nesse sentido podemos citar: as práticas pedagógicas reprodutivas e pouco indagadoras; o distanciamento instalado entre a proposta da escola e as dimensões socioculturais da comunidade; a ausência de formação docente e de materiais didático-pedagógicos específicos para as classes multisseriadas. Além dos modelos padrões e urbanocêntricos de aula, de avaliação e planejamento; da excessiva regulação do trabalho docente, bem como das péssimas condições de trabalho dos professores.

Nesse sentido, a articulação entre a escola e os distintos “lugares aprendentes” seria uma possibilidade de sobrepujar o hiato entre a escolarização e o lugar - os sujeitos e as formas de habitar o mundo. Isto potencializaria, de certa forma, uma educação mais próxima das crianças, de seus contextos sociais e culturais, aproximando-se de seus repertórios de experiências. Esta perspectiva resultaria no reconhecimento dos sujeitos e seus modos de vida, bem como das forças coletivas presentes nas instâncias socializadoras e nos diversos espaços de aprendizagem. Para tanto, seria oportuno aproveitar o potencial deste rural na educação como uma espécie de “tática de resistência” (CERTEAU, 1994), face ao encobrimento das ruralidades nos modelos urbanos de ensino, vigentes nas escolas rurais.

Considerações finais

A pesquisa revelou que a experiência de habitar Canudos Velho é marcada por processos de exclusão e marginalização social, associados à negação de direitos e à ausência de políticas públicas que assegurem melhores condições de vida para os sujeitos. Com o esgarçamento do rural, os modos de vida são fragilizados e se intensificam condições adversas de sobrevivência. Este cenário reúne elementos emblemáticos para pensar o papel do estado e de políticas que atuem para a transformação dessa realidade, especificamente no tange à escola/educação. Neste ponto específico, o trabalho com a pesquisa (auto)biográfica, através de sua potência reflexiva e emancipatória, de certo modo, colabora para o reconhecimento de problemáticas locais-individuais e suas dimensões globais-sociais tal como identificamos nesta investigação.

As experiências relatadas pelas crianças evidenciam relações de pertencimento com o lugar e com o modo de vida rural. Anunciam, pois, uma infância constituída pelas relações estabelecidas na escola e em outras dimensões como a casa, as brincadeiras, o rio, a pesca, enfim com a comunidade, seus sujeitos e suas práticas culturais. De certo modo, estas instâncias socializadoras e suas distintas atividades contribuem para os processos de formação humana e identitária das crianças. Tais processos, manifestados nos saberes e nas práticas socioculturais, se inscrevem singularmente nos modos de habitar Canudos Velho.

No caso da escola rural, identificamos que o quadro anunciado não é um caso isolado quando analisamos o contexto brasileiro. Mesmo com alguns avanços resultantes da pressão de movimentos sociais na luta por uma educação do campo, tais escolas, em função do histórico negligenciamento político, ainda funcionam em péssimas condições físicas e pedagógicas. Este cenário reafirma que as populações rurais, em planos educacionais e sociais, estão entre as menos assistidas. Por isso, torna-se oportuno insistir na luta por uma educação pública de qualidade no/do campo. Tal defesa fundamenta-se no princípio de que a educação do campo é um direito humano, amparado constitucionalmente11.

Assim sendo, considerando a heterogeneidade do rural, é imprescindível que a escola respeite os modos de vida do campo, ousando outras epistemologias e metodologias. Enfim, outras formas de ensinar as “coisas” do mundo, tomando o lugar, seus sujeitos e práticas como referência. Almeja-se uma escola que não mais aparte as crianças de seus modos de ser e estar no mundo. Onde a cultura, a identidade e a diversidade deixam de ser a força que atua para legitimar a exclusão, passando a alargar o sentido da experiência humana no mundo, da qual as crianças do campo são parte (SILVA et al, 2012).

Essa perspectiva de conceber as escolas localizadas em espaços rurais pauta-se em um movimento político que traz em sua envergadura uma crítica à educação centrada em si mesma, deslocada dos seus contextos e do modo de vida dos sujeitos. Para vislumbrar outras perspectivas, seria oportuno que o debate pedagógico se aproximasse da realidade concreta dos estudantes e do cotidiano da comunidade. Para tanto, as práticas socioculturais constitutivas desses sujeitos, ou seja, seus conhecimentos, habilidades, modos de ser, produzir e suas formas de compartilhar a vida assumiriam centralidade nas práticas educativas.

Neste horizonte, defende-se, portanto, uma escola com uma infraestrutura adequada para atender as crianças do campo. Com um projeto de educação que apresente as características do seu povo, que respeite à cultura local e as diversas ruralidades em seus currículos e propostas educativas. Defende-se uma escola do campo/rural que “não seja mais uma experiência amarga, excludente, destrutiva de autoestima, de sua identidade já quebrada” (ARROYO, 2011, p. 63) como assistimos nas últimas décadas. Por isso, a urgência de um projeto de educação que dialogue com os contextos e seus sujeitos, que valorize os saberes dos estudantes, elaborados entre os seus pares e em diálogo com distintos lugares aprendentes.

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SOBRE OS AUTORES:

1Do ponto de vista empírico, a pesquisa realizou-se na comunidade rural de Canudos Velho, localizada no sertão da Bahia, distante 473 km da capital do estado. A formação do vilarejo iniciou no final da década de 1960, quando concluíram as obras do Açude de Cocorobó. Após a inundação da segunda Canudos, muitas famílias se deslocaram para a comunidade como uma das formas de preservar a própria existência. Canudos Velho é um povoado pertencente à cidade de Canudos, historicamente conhecida em função da guerra em 1897. A história de Canudos compreende uma luta que anuncia, por um lado, um ‘grito dos excluídos’, seus declames e suas inquietudes e, por outro, os ditames da velha república. Em 1969, Canudos foi invadida pelas águas represadas do Rio Vaza Barris, ação executada pelo governo do Presidente Getúlio Vargas. Em épocas de extrema seca, as ruínas da segunda Canudos podem ser vistas no interior do açude, emergindo num mar de mnemosyne.

2Nesta pesquisa, optamos por manter o nome de cada criança respeitando princípios éticos presente no “Termo de Consentimento Livre Esclarecido”, assinado pelas mesmas e seus respectivos responsáveis. Emili, George e Raiane foram selecionados em função de serem as únicas crianças da turma investigada que residiam na comunidade de Canudos Velho.

3Cabe destacar as tensões que marcam atualmente a realidade agrária brasileira, visto que a presença de políticas neoliberais, alavancadas pelo capital, têm instaurado um rural exclusivamente produtivista, ligado aos interesses do agronegócio e de seus atores. Nesse cenário, marcado pela modernização agrícola, intensificação do latifúndio e a ausência de direitos básicos, por vezes, esgarçam-se as condições de existência no espaço rural e, consequentemente, ocorre a migração das pessoas. Esse movimento de “empurrar” as pessoas para fora do rural acarreta na violação de modos de vida.

4Expressão inspirada na obra "Morte e Vida Severina" escrita por João Cabral de Melo Neto (1995) que retrata a condição do retirante nordestino, sua morte social e miséria.

5Terras passíveis de serem apropriadas pelo capital financeiro, pela ausência de título (Rolnik, 2015).

6Aqui é possível fazer referência a expressão slums, utilizada na literatura internacional desde 1840, designa os lugares onde moram os pobres (Rolnik, 2015, p. 156).

7Trata-se de uma forma de organização de ensino que no Brasil estão concentradas majoritariamente em espaços rurais, reunindo em único espaço estudantes com diferentes idades e séries. Para além de suas representações negativas, cabe destacar experiências positivas desenvolvidas no cenário nacional e internacional.

8Processo que tem por objetivo a organização do ensino no meio rural, em escolas-núcleo, contrapondo-se à organização em escolas multisseriadas. Argumentos de viés econômico-administrativos alegam que os custos com a nucleação são mais baixos, o que implicaria em melhores investimentos (GONÇALVES, 2010).

9Para os mais pobres, “destinados à exclusão”, basta ter acesso aos conhecimentos “igualmente pobres, fornecidos por processos de instrução simplistas e simplificados” (GENTILI; MC.COWAN, 2003, p. 31).

10Segundo Eric Dardel (1952), este conceito fundamenta-se na cumplicidade entre o eu e o mundo, entre a comunidade e o lugar. Compreendida como a essência geográfica dos fenômenos, torna-se “característica daquilo que possui existência, a partir de uma realidade geográfica (MARANDOLA JUNIOR, 2008, p. 70-71).

11Conforme prescreve os seguintes documentos legais: Constituição da República Federativa do Brasil (1988); Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº 9394/96); Diretrizes Operacionais para Educação do Campo (CNE/CEB nº. 01 /2002).

Recebido: 11 de Setembro de 2020; Aceito: 21 de Outubro de 2020

Mariana Martins de Meireles Professora Adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Campo-PPGEDUCAMPO - Linha 3 - Cultura, Raça, Gênero e Educação do Campo. Doutora e Mestre em Educação e Contemporaneidade pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade, da Universidade do Estado da Bahia (PPGEduC-UNEB). Licenciada em Geografia pela UNEB. Pesquisadora do GRAFHO (Grupo de Pesquisa (Auto)biografia, Formação e História Oral). Pesquisadora do Observatório em Educação do Vale do Jiquiriçá-OBSERVALE/UFRB

Elizeu Clementino de Souza Pesquisador 1C CNPq. Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade, Universidade do Estado da Bahia (PPGEduC-UNEB). Coordenador do Grupo de Pesquisa (Auto)biografia, Formação e História Oral (GRAFHO/UNEB). Pesquisador associado do Laboratorie EXPERICE (Université de Paris 13-Paris 8). Tesoureiro da Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica (BIOgraph). Diretor Financeiro da ANPEd (2013-2015) Membro do Conselho de Administração da Association Internationale des Histories de Vie en Formation et de Recherche Biographique en Education (ASIHIVIF-RBE).

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