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Revista Práxis Educacional

versión On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.17 no.44 Vitória da Conquista ene./mar 2021  Epub 10-Jun-2022

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v17i44.8020 

DOSSIÊ TEMÁTICO: Vitalidade do sujeito e poder de formação: narrativas autobiográficas em diálogo

UM TRABALHO PELA VIDA: NARRATIVA DE SI CONTRA A COISIFICAÇÃO DOS CORPOS

A WORK FOR LIFE: SI NARRATIVE AGAINST THE COISIFICATION OF BODIES

UMA OBRA PARA LA VIDA: SI NARRATIVA CONTRA LA COISIFICAÇÃO DE LOS CUERPOS

1Universidade da Região de Joinville - Brasil raquelsenavenera@gmail.com


Resumo:

Esse artigo é um esforço teórico construído a partir de deslocamentos provocados por narrativas produzidas durante as pesquisas no contexto do Grupo de Pesquisa Subjetividades e (auto)biografias e que revelam situações de vulnerabilidade e precariedade da vida. Trata-se de pensar as narrativas como uma das formas de expressão de potência no trabalho pela vida. Entendendo que o trabalho pela vida consiste em lutar contra uma coisidade completa. O argumento construído tem sua fundamentação em Mbembe (2018a; 2018b; 2018c), para pensar as condições pelas quais as vidas são submetidas na lógica neoliberal. Mas não só, em termos epistemológicos as leituras de Mbembe (2018a) disparam reflexões da psicanálise e corroboram para evidenciar o engendramento dos lugares de potência das narrativas nos processos formativos. Sobretudo, essa aposta também é política uma vez que problematiza um sistema que produz a coisificação da vida e transforma humanos em “criptas vivas do capital”, como nomeia Mbembe. O argumento é um elogio as narrativas como amálgama dos imaginários fantasmagóricos - que faz consistir no sujeito que narra - e o simbólico como um “poder noturno” - que o faz existir. Ou seja, a organização da linguagem e da memória como capacidade performática do corpo em metamorfose para (ex)istir, ou existir em um fora. Dessa forma, as narrativas ao dar a ver o sujeito que narra, revelam um lugar fulcral da potência vital, que coincide com a formação de si, quais seja, um entre “o poder noturno” e o “mundo fantasmal” nas palavras de Mbembe.

Palavras chave: Narrativas; Potência; Vida

Abstract:

This article is a theoretical effort constructed from displacements provoked by narratives produced during research in the context of the Subjectivities and (auto)biographies Research Group that reveal situations of vulnerability and precariousness of life. It is about thinking of narratives as one of the forms of expression of power in work by life. Understanding that life's work consists of fighting complete coisity. The constructed argument has its foundation in Mbembe (2018a; 2018b; 2018c), to think about the conditions by which lives are submitted in neoliberal logic. But not only, in epistemological terms, the readings of Mbembe (2018a) trigger reflections of psychoanalysis and corroborate to evidence the engendering of the places of power of narratives in the formative processes. Above all, this bet is also political since it problematizes a system that produces the coisification of life and transforms humans into "living crypts of capital", as Mbembe names. The argument is a compliment to narratives as an amalgam of ghostly imaginaries - which consists of the subject who narrates - and the symbolic as a "nocturnal power" - that makes it exist. That is, the organization of language and memory as the body's performative capacity in metamorphosis to (ex)istir, or exist in one outside. Thus, the narratives in giving to see the subject who narrates, reveal a central place of the vital power, which coincides with the formation of ones, that is, one between "the nocturnal power" and the "ghost world" in The words of Mbembe.

Keywords: Narratives; Power; Life

Resumen:

Este artículo es un esfuerzo teórico construido a partir de desplazamientos provocados por narrativas producidas durante la investigación en el contexto del Grupo de Investigación de Subjetividades y (auto)biografías que revelan situaciones de vulnerabilidad y precariedad de la vida. Se trata de pensar en las narrativas como una de las formas de expresión del poder en el trabajo por vida. Entender que el trabajo de la vida consiste en luchar contra la coisity completa. El argumento construido tiene su fundamento en Mbembe Mbembe (2018a; 2018b; 2018c), para pensar en las condiciones por las que las vidas se presentan en lógica neoliberal. Pero no sólo, en términos epistemológicos, las lecturas de Mbembe (2018a) desencadenan reflexiones de psicoanálisis y corroboran para evidenciar la generación de los lugares de poder de las narrativas en los procesos formativos. Sobre todo, esta apuesta también es política ya que problemática un sistema que produce la coisificación de la vida y transforma a los seres humanos en "criptas vivas de capital", como Mbembe nombra. El argumento es un cumplido con las narrativas como una amalgama de imaginarios fantasmales - que consiste en el sujeto que narra - y lo simbólico como un "poder nocturno" - que lo hace existir. Es decir, la organización del lenguaje y la memoria como capacidad performativa del cuerpo en metamorfosis a (ex)istir, o existir en uno exterior. Así, las narrativas al dar para ver al sujeto que narra, revelan un lugar central del poder vital, que coincide con la formación de los, es decir, uno entre "el poder nocturno" y el "mundo fantasma" en Las palabras de Mbembe.

Palabras clave: Narrativas; Potencia; Vida

Introdução

O livro de Achille Mbembe, Crítique de la raizon négre, publicado em 2013 em Paris, sugere deslocamentos das formas como se tem pensado e mobilizado categorias tão caras aos movimentos sociais antirracistas, como a diferença e a igualdade. Diante de um mundo branco, pensado sob as regras fundamentalmente europeias e anglo-saxônicas, há que se questionar o direito a igualdade humana e denunciar as desumanidades raciais direcionadas historicamente aos povos africanos, aos asiáticos e aos povos originários da Oceania e ou americanos. Sobretudo, convoca-nos todos, indiferente do marcador fenótipo, ao desafio de pensar uma democracia do futuro, em um “em comum” que “pressupõe uma relação de co-pertença e de partilha, de mutualidade - a ideia de um mundo que é o único que temos e que para que seja duradouro, deve-se ser compartilhado por todos aqueles que a ele têm direito” (MBEMBE, 2018a, p. 19).

Para tal desafio, ele retira a categoria “negro” do jogo simbólico e intimidatório que historicamente esteve e, o apresenta como apenas uma palavra grávida de sentidos e significados. Propõe a palavra “negro” como um devir no mundo, uma condição de todos que formam um excedente na lógica econômica neoliberal. Trata-se de um nós. Todos que, além de serem tratados como mercadorias, são instilados ao desejo de se pôr a si mesmo a venda e se converter em objeto. Uma pré-disposição de tornar as pessoas em coisas. Essa categoria chegou aos estudos do Grupo de Pesquisa Subjetividades e (auto)biografias como uma possibilidade desafiadora diante das experiencias em pesquisas com histórias de vidas de sujeitos em vulnerabilidades. As análises de narrativas (auto)biográficas que o esse grupo tem desenvolvido consideram que, por um lado, a precariedade ontológica da vida reforça um sentido de humanidade comum a todos, por outro lado, essas mesmas narrativas revelam o destaque da diferença e desigualdades no jogo implacável contra uma ideia universal. Temos então duas operações de compreensão: (i) a reflexão sobre algo “em comum” e (ii) a tensa relação entre os conceitos “universal” e “particulares”.

Ainda que a precariedade da vida ou a emoção do desamparo sejam tomadas em análises como uma característica comum da espécie, elas são sentidas e narradas pelos sujeitos como externas a eles, provocadas pelas tensões sociais raciais, étnicas, de classe, migratórias, de saúde/doença, etárias entre outras. As narrativas de vida de sujeitos em condições de vulnerabilidade social das mais diversas, evidenciam uma compreensão de que é pelo reconhecimento de uma diferença que se poderia acessar uma inclusão no mundo. Ou dizendo de outra forma, somente quando os não doentes, os não negros, os não nativos originários, os homens, os não LGBTQI+ reconhecerem as necessidades das pessoas doentes, negras, das populações nativas originárias, mulheres, LGBTQI+ entre outras em suas diferenças, então, suas inclusões poderiam acontecer no mundo do trabalho, na assistência social e nos acessos a bens e serviços do mundo. Ou seja, a conquista da igualdade de direitos e de humanidade - o valor universal mais evidente -, passa pelo reconhecimento da diferença. As narrativas (auto)biográficas dão conta da visibilidade das diferenças frente a ideia universal que, grosso modo, responde a máxima do homem branco ocidental, cristão, heterossexual, de classe média, saudável. Nas palavras de Mbembe (2018a, p. 315) “com frequência o desejo de diferença emerge justamente ali onde se vive mais intensamente uma experiência de exclusão. Nessas condições, a proclamação da diferença é a linguagem invertida do desejo de reconhecimento e de inclusão”.

Esse artigo é um aceite ao desafio proposto por Mbembe (2018c), de pensar essa democracia do futuro, a partir do acolhimento a ideia de um “em comum” e problematizações ao jogo entre o universal e os particulares. Pensar as narrativas a partir de novas ferramentas, diferentes daquelas do pensamento universal x particulares. A proposta é entender a vulnerabilidade ontológica, mas sobretudo como condição em que estamos submetidos a partir da categoria “negro”, ou na condição de coisas em um mundo de produção e consumo antropofágico, em que as vidas se transformam em mercadorias. A proposta do artigo é pensar as narrativas como uma expressão de potência no trabalho pela vida. Com Mbembe (2018a), entende-se por trabalho pela vida a luta contra uma coisidade completa. Busca-se em um primeiro momento apresentar uma compreensão sobre a produção do livro Crítique de la raizon négre, por um autor camaronês, na França e nos EUA.

Em um segundo momento, escolhe-se o texto “Réquiem para o escravo”, capítulo narrado pelo próprio autor como o “mais poético, mas também o mais perturbador [...] representa o subsolo do livro” (MBEMBE, 2018c, p. 12), como proposta para localizar as narrativas como amálgamas dos imaginários fantasmagóricos - que faz consistir no sujeito que narra - e o simbólico como um “poder noturno” - que o faz existir. O autor recorre a uma escrita figurativa, que nas palavras dele, “oscila entre a vertigem, a dissolução e a dispersão” (MBEMBE, 2018c, p. 13). Ele se utiliza de literaturas africanas, pouco conhecidas no ocidente e, da minha parte como leitora ocidental, me utilizo de ferramentas da Psicanálise para cumprir a função de interpretá-lo. Certamente, também provoquei distorções ao seu pensamento, como pressuposto de toda interpretação. Ou seja, esse artigo não se propõe um trabalho hermenêutico do autor, mas antes, uma interpretação do lugar das pesquisas (auto)biográficas que tomam como suporte algumas ferramentas da Psicanálise. Ainda sobre esse último recurso, vale dizer que não existe nenhuma pretensão especializada no campo da Psicanálise, as reflexões aqui empreendidas têm muito mais de leituras curiosas de uma analisanda e muito pouco de um estudo sistemático de formação para a prática do analista.

Encontro ao final da leitura o ponto de fuga deixado pelo autor. E é nesse ponto que aposto a organização da linguagem e da memória como capacidade performática do corpo em metamorfose para (ex)istir, ou existir em um fora. As narrativas postas como parte das “reservas de vida”, um desejo de ser, cada um do seu jeito, seres humanos por inteiro na recusa de perecer. Vale ainda dizer que este artigo foi escrito no contexto de isolamento social provocado pela pandemia do Covide19, quando no Brasil a soma dos mortos já ultrapassava 150 mil e a naturalização desse cenário evidenciava a coisificação da vida. Nesse contexto e no lugar desse ponto de fuga apontado por Mbembe (2018a), o esforço é defender que seres humanos, como seres de história, quando se narram permitem que o mundo seja mundo. Nas palavras de Mbembe (2018a, p. 312) a duração desse mundo só se realizará “quando o desejo de vida se tornar a pedra de toque de um novo pensamento da política e da cultura”.

Talvez uma memória da vulnerabilidade

O pressuposto pelo qual se diz que as criações humanas são as próprias marcas da vida de seu criador não é novidade no campo da pesquisa (auto)biográfica. Portanto, os estudos de Achille Mbembe que esse artigo apresenta, consideram algumas observações acerca da compreensão que se tem da história que se sabe sobre o autor. Narrativas que estão disponíveis na internet dão conta de que Joseph-Achille Mbembe nasceu em Camarões, em 1957. Ou seja, ainda na colônia Francesa, três anos antes da declaração da independência. Sabemos que em 1961 a recém independente Camarões se fundiu a parte inglesa formando-se a República Federal dos Camarões. A História nos conta que essas decisões territoriais não foram realizadas em paz, a guerra contra as forças militares francesas foi até 1971 e em 1972 o país foi renomeado como República Unida dos Camarões e como República dos Camarões em 1984. Essas mudanças de nomes não foram gratuitas e nem ausentes de tensões e sangue camaronês. Foram contados sessenta (60) mil mortos e duzentas (200) línguas que ainda hoje lutam por existência. Esses fatos históricos fazem crer que Mbembe viveu os primeiros quinze (15) anos de vida em um estado de guerra no seu país de origem; se viveu entre familiares, talvez tenha ouvido e vivido entre memórias de quem experimentou a vida de colônia, as memórias de escravidão racial de séculos. Talvez ele saiba sobre a vulnerabilidade a partir de uma memória específica, da experiencia com as relações de poder do branco sobre o corpo dos outros, todos negros como ele.

Contudo, Mbembe estudou História em Sorbonne, Paris, se especializou em Ciências Políticas, sabe-se que ele ocupou cargos em diversas universidades e institutos de pesquisa reconhecidos no mundo ocidental pela excelência como Universidade Columbia, Pensilvânia, California, Yale, Instituto Brookings. Dialoga com pensadores como Michael Foucault, Gilles Deleuze, Frantz Fanon entre outros. Seus temas de pesquisa perpassam a política e a história africana; colônia e África pós-colonial; juventudes e a África negra atual. Nas palavras dele:

Minha preocupação é contribuir, a partir da África em que vivo e trabalho, para uma crítica política, cultural e estética do nosso tempo, o tempo do mundo. É um tempo marcado, entre outras coisas, por uma profunda crise das relações entre a democracia, a memória e a ideia de um futuro que possa ser compartilhado por toda a humanidade. Essa crise é agravada pela confluência entre capitalismo e animismo, por um lado, e a recodificação em curso de todos os campos de nossas existências, no seio e por meio da linguagem da economia e da neurociência. Essa recodificação levanta dúvidas sobre a ideia que fazemos do elemento humano e das condições de sua emancipação desde pelo menos o século XVIII (MBEMBE, 2018c).

Seu pensamento produziu um deslocamento na forma como o grupo de pesquisa citado vem tratando a memória e a identidade. Ou seja, uma orientação pela qual os conceitos têm sido tradicionalmente tratados no século XX e início do XXI, sobretudo, a partir ou no contexto do Holocausto judeu. Os estudos de Mbembe escancaram o lugar da vulnerabilidade da vida e no limiar com a morte, mas não na perspectiva do que já se sabe sobre o Holocausto, mas sobre o Plantation. É desse lugar que se propõe pensar as narrativas de memórias, da política de morte ou o que ele chama de necropolítica, a soberania sobre a morte dos outros.

O autor dialoga com o conceito biopoder trabalhado por Michael Foucault quando problematiza o poder soberano que decide entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer. A esse exercício de poder Mbembe destaca o racismo e afirma que “na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possível as funções assassinas do Estado” (MBEMBE, 2018b, p.18). Para falar de biopoder Michael Foucault (2002) apresenta a história do modelo de teoria de Estado que ele chamou de “filosófico-jurídico” - um outro tipo de política disciplinar dos corpos cuja emergência ele aponta o século XVIII.

Ora, durante a segunda metade do século XVIII, eu creio que vê aparecer algo de novo, que é uma outra tecnologia de poder, não disciplinar dessa feita. Uma tecnologia de poder que não exclui a primeira, que não exclui a técnica disciplinar, que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo vai utiliza-la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graças a essa técnica disciplinar prévia. [...] Algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano, mas eu chamaria de uma “biopolítica” da espécie humana. (FOUCAULT, 2002, p. 288-289)

Diferentemente, a necropolítica, diz Mbembe (2018b), é um tipo de poder revelado na conquista colonial, anterior ao século XVIII, cuja soberania do colonizador sobre o corpo do colonizado decide quem morre e quem permanece vivo e subjugado. Os corpos feitos escravos se transformam em coisas, em “criptas vivas do capital”, corpo metal, corpo ferramenta. A necropolítica, ou política de morte define quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é, mas ainda que permaneça vivo, sua humanidade se desfaz e se confunde com o animismo. Ou seja, a emergência de um tipo de poder que Foucault apontou no século XVIII, como biopolítica, Mbembe vai encontrar como necropolítica nas colônias do XVI. Essa divergência entre Mbembe e Foucault, não é apenas de datação, mas da forma como se entende as guerras raciais e do lugar pelo qual as observam. O que se convencionou analisar nos horrores contra o povo judeu, desde a história hebraica que Foucault analisou no curso “Em defesa da Sociedade”, em 1975-1976, Mbembe (2018b, p. 32) afirma que “a conquista colonial revelou um potencial de violência até então desconhecido. O que se testemunha na Segunda Guerra Mundial é a extensão dos métodos anteriormente reservados aos “selvagens” aos povos da Europa”.

É do lugar da ocupação colonial que Mbembe desenvolve seu argumento da necropolítica. O cenário que ele descreve diz sobre populações que necessariamente não são uma comunidade, uma vez que por definição, a comunidade implica o exercício do poder de fala e de pensamento. Nas palavras do autor, em uma colônia:

Populações inteiras são o alvo do soberano. As vilas e cidades sitiadas são cercadas e isoladas do mundo. A vida cotidiana é militarizada. É outorgada liberdade aos comandantes militares locais para usar seus próprios critérios sobre quando e em quem atirar. O deslocamento entre células territoriais requer autorizações formais. Instituições civis locais são sistematicamente destruídas. A população sitiada é privada de suas fontes de renda. Ás execuções a céu aberto somam-se matanças invisíveis” (MBEMBE, 2018b, p. 49)

No Plantation a forma de produção condiciona o corpo negro a tripla perda: (i) de um “lar”; (ii) dos direitos sobre o corpo; (iii) do estatuto político. No entanto, essa política de morte se efetiva para além das colônias todas as vezes em que se decide soberanamente quem morre, ou quem se deixa morrer, quando o “terror e morte tornam-se os meios de realizar o telos da história, que já é conhecido” (Mbembe, 2018, p.26). O autor aciona essa reflexão para o contexto contemporâneo e seus desdobramentos e afirma que as políticas de morte dedicadas ao corpo negro desde o Plantation, tornou-se evidência no corpo branco judeu no Holocausto.

No tempo presente, durante a pandemia do Covid19, quando as desigualdades sociais se escancaram, como as carências nas condições básicas de acesso a água, alimentos e sistema de saúde digno, a necropolítica se torna evidente nas práticas políticas e sociais que funcionam quando se deixa morrer. As mais de 150 mil mortes pelo Covid19; as sessenta (60) mil mortes pelo tráfico, em média, nas grandes cidades, na maioria entre os mais pobres, negros e desassistidos; as mortes dos povos originários moradores das florestas ou nas zonas urbanas não foram inevitáveis, mas resultado da necropolitica. O pensamento de Mbembe é potente porque é um convite indistinto ao reconhecimento de uma condição “negra”. Primeiro foram os africanos feitos escravos nas colônias, depois os judeus, os homossexuais, os deficientes, os ciganos e os povos originários. Em algum momento podem ser as mulheres, os operários, os trabalhadores uberizados, os prestadores de serviços ou uma sociedade inteira sob o signo do “negro”, dos homens e mulheres-máquinas, homens e mulheres-coisas. Na esteira do pensamento de Aimé Césaire, ele diz que o negro “não é uma realidade biológica ou a uma cor de pele, mas a ‘uma das formas históricas da condição humana’ (MBEMBE, 2018a, p. 276).

O subtítulo desse artigo, “Talvez uma memória da vulnerabilidade” sugere o lugar da experiencia de vulnerabilidade como potência para um outro pensamento, novas ferramentas que permitem pensar, a partir de memórias da África, uma democracia do futuro. Não seria exatamente esse fenômeno que Mbembe, ao propor o estudo, também põe em ato? O autor destaca especialmente as experiências contraditórias desse contexto da necropolitica desde a colônia. Se por um lado o colonizador subtrai a liberdade da pessoa e da propriedade e toma posse sobre a sua vida, o assume como forma de comércio, por outro lado, o negro escravizado, tratado como ferramenta, é capaz de extrair de qualquer objeto, linguagem ou gesto uma representação e estilizá-la. A potência no mesmo lugar da vulnerabilidade tanto é a questão do pensamento do autor, quanto o seu próprio ato de produzir deslocamentos e novos mundos possíveis. Trata-se da memória de vulnerabilidade e de potência dos ressurgentes.

Vulnerabilidade e potência dos ressurgentes

A proposta de Mbembe (2018a) é estudar o tráfico de negros no plano fenomenal. No capítulo intitulado “Réquiem para o escravo”, ele poeticamente dedica um estudo cheio figuras de linguagens, metáforas e uma plasticidade que se revelou na extrema vulnerabilidade do corpo negro. Com a definição “sujeito plástico que sofreu um processo de transformação através da destruição, o negro é efetivamente, o espectro da modernidade” (MBEMBE, 2018a, p. 229), ele busca onde está a potência desse corpo. Para tanto, se utiliza de três literaturas africanas La vie et demie de Sony Labou Tansi, pseudônimo de Marcel Ntsoni; The Palm Wine Drinkard e My life in the Bush of ghosts, ambos de Amos Tutuola.

La Vie et Demi foi publicada em 1979, é uma ficção que se passa em um país africano imaginário e imenso. O herói da história é Martial, um homem morto, mas que se recusa a morrer de todas as formas de assassinatos que o tirano infligiu a ele. Para isso ele se refugia no corpo de sua filha Chaidana. Trata-se então da história de um corpo ressurgente. The Palm Wine Drinkard foi o primeiro romance publicado em inglês, no reino Unido em 1952 e nos EUA em 1953. Trata-se de contos populares iorubás, escritos em inglês iorubá e em primeira pessoa. As histórias contam sobre um homem muito rico que pode pagar seu próprio cervejeiro ou decantador. Quando o cervejeiro morre, cortando seu suprimento, o narrador desesperado parte para a cidade de Dead para tentar trazê-lo de volta. Nessa procura ele encontra muitos espíritos e aventuras. Ele viaja por um mundo de seres mágicos e sobrenaturais, sobrevivendo a vários testes e finalmente ganha um ovo mágico com vinho de palma sem fim. História de um corpo que vai se ver com a morte e nessa luta algo ressurge - um prazer eterno, um poder, um vinho de palma sem fim. O My life in the Bush of ghosts, também foi publicado em inglês, tanto no Reino Unido, quanto nos EUA em 1954. Trata-se de uma coleção de narrativas relacionadas, mas não sequenciais. São histórias de um garoto da África ocidental, que é abandonado por sua família, junto com seu irmão mais velho e eles precisam fugir de comerciantes de escravos armados que se aproximam da aldeia. Nessa fuga ele se separa de seu irmão, que supostamente foi capturado pelos comerciantes de escravos, e é quando ele involuntariamente entra no mato ou no deserto sem saber que os fantasmas ou espíritos vivem lá. Também escrito em primeira pessoa, o garoto descreve suas experiências surreais com este lugar e seus seres estranhos. Trata-se da história de um corpo jovem que vai se ver com os fantasmas em plena vulnerabilidade.

As três literaturas escolhidas por Mbembe são fortemente metafóricas e autobiográficas. Expressões como “economia noturna”, “poder fantasmal”, “a sombra, o reflexo e o brilho” aparecem no texto e exigiram um esforço hercúleo na interpretação do lugar ocidental. Algumas pistas levaram essa leitura a recorrer as ferramentas da Psicanálise. Afirmações como “uma dimensão central dessa economia noturna se relaciona como o fenômeno da multiplicidade e do excedente” (MBEMBE, 2018a, p. 230) acionaram essas ferramentas, ou seja, o que poderia ser algo que sempre excede senão o real? Mesmo sem citar os clássicos da Psicanálise como Freud e Lacan, Mbembe segue dando pistas de que a lógica do enlace borromeano foi mobilizado no texto, mesmo sob rasura. A exemplo dos textos “Existe um regime de troca entre o imaginário e o real, se ainda assim tal distinção fizer sentido” (MBEMBE, 2018a, p. 231), ou ainda “O verdadeiro núcleo do real é uma espécie de reserva, de excedente situado em algum outro lugar, num devir. Sempre há uma sobrecarga, possibilidades de elipse e de disjunção. E são esses fatores que possibilitam os estados órficos, que tanto podem ser atingidos seja pela via da dança e da música, da possessão ou do êxtase” (MBEMBE, 2018a, p. 231).

O Real, esse dado que sempre transborda em excedentes; o Imaginário que se faz no regime de troca com o real e o Simbólico, também fruto desse excedente e que possibilita a visibilidade dos estados órficos do Imaginário que aparecem nas linguagens, na dança e na música. O imaginário que faz consistir uma existência, que nasce do afeto materno, do olhar da mãe que instaura no corpo do bebê a sua descoberta e o impede da primeira alienação. Um olhar e afeto, na simbiose mãe e bebê, que constitui um corpo desejado, produz nessa relação a consciência de dois corpos: o corpo desejado do bebê e corpo desejante da mãe. O lugar primordial do Imaginário, do onírico, do nirvana. O simbólico, que faz existir a partir da instauração da falta primordial com a lei do pai ou primeira castração. Esse fenômeno faz existir três corpos envolvidos na tríade primordial. Trata-se de um terceiro que informa ao bebê que ele não é o único a ser desejado e tampouco o único que deseja e instaura na relação bilateral um ponto de falta ou um vazio.

Se o Imaginário produz um mundo mágico, o Simbólico produz a expressão do Imaginário pela linguagem e impede a completa paranoia na constituição do sujeito. Se o Simbólico foi construído pelo dolorido trauma primordial da lei do pai, o Imaginário produz a consistência afetiva que impede a completa esquizofrenia causada pelos cortes da castração. Nesse enlaçamento é possível dizer então que o real (ex)iste, ou só existe em um lugar fora, só se faz ver no que excede. Nas palavras de Mbembe (2018a, p. 231),

O real é composto por várias camadas, vários estratos, vários invólucros. Só se pode apreendê-lo - algo nada fácil - por meio de fragmentos, provisoriamente, a partir de uma multiplicidade de planos. [...] Aliás, não existe real - nem vida, portanto - que não seja ao mesmo tempo espetáculo, teatro e dramaturgia. [...] Seu conteúdo sempre excede a forma.

O que se apresenta em forma de linguagem, apenas engendra o real e não pode ser confundido com ele. É nesse engendramento intervalar entre o simbólico e o imaginário que as cintilações do real se mostram, um existir fora. É nesse lugar do entre que Mbembe vai buscar responder à pergunta “em que consiste a potência?” Que poder é esse que faz o corpo negro um ser plástico, que faz o corpo em farrapos viver? Algo que vai se ver com a morte, com o mundo dos fantasmas, com a resiliência de viver os lutos. “A potência se obtém e se consagra graças à capacidade de estabelecer relações cambiantes com o meio mundo das silhuetas ou então com o mundo dos duplos” (Mbembe, 2018a, p. 232). Como o homem que se recusa a morrer na literatura de Amos Tutuola e se apossa do corpo da filha. Fazer viver um outro já morto, metaforicamente pode ser o mesmo que se apropriar das memórias poderosas dos ancestrais ou das identidades que se alimentam das memórias que aparecem em narrativas.

O autor se utiliza de figuras de linguagem ao dizer que é preciso saber dançar com as sombras, tecer relações estreitas entre a força vital, o imaginário e o simbólico e outras cadeias de forças sempre situadas num outro lugar, num espaço exterior para além da superfície do visível: o real. Os “donos do poder”, ele diz, ou os sujeitos que de forma consciente mobilizam sua potência, sabem retraçar o curso da sombra, sabem se tornar outro e se multiplicar; estão sempre em movimento; sabem dar e receber formas; sabem desprender das formas dadas; mudam tudo permanecendo o mesmo; apropriam-se de formas de vidas inéditas; entram em relação com a destruição, a perda e a morte. (Mbembe, 2018a, p. 232 - 233) Ou seja, o poder está no corpo e na sua subsistência, na necessidade e ao mesmo tempo na performatividade. É um corpo desejo, um corpo fetiche. “O corpo do poder só é fetiche porque participa do corpo de um outro qualquer, de preferência um morto outrora dotado de potência, de quem aspira assumir o duplo” (MBEMBE, 2018a, p. 233).

Poder é também farmácia, diz Mbembe (2018a), pois transforma os recursos da morte em força germinativa e cura. Essa afirmação ele faz se utilizando das literaturas e da forma figurativa em que os personagens sobrevivem e escapam da morte quando se apropriam de um morto. Na bibliografia ocidental, alguns registros dão conta de rituais semelhantes e poderosos como esses destacados por Mbembe. A “Orda Primitiva de Darwin”, ou o “Repasto Totêmico” registrado por W. Robertson Smith, ambos citados por Freud em 1958, no texto Totem e Tabu (FREUD, 1958, p. 214-231). O pai tirano, líder de uma tribo, possuía o domínio de todas as mulheres e se apresentava a todos como um modelo invejado e temido.

Nessa história, os filhos, invejaram o pai, desejaram as mesmas mulheres, se revoltaram contra a sua tirania. Combinaram de se juntar, o mataram e o devoraram em uma festa. Passada a festa, perceberam que a morte do pai não resolveu o problema, mas criou outros tantos. Sem um líder, todos os filhos que desejaram igualmente todas as mulheres, poderiam se matarem e entre si extinguirem a tribo. Descobriram a função paterna na experiência com da perda do pai e sentiram culpa. Da obediência retrospectiva nasceram os dois grandes tabus da humanidade: o incesto e o parricídio. Nas palavras de Freud (1958, p. 216), “o repasto totêmico, talvez a primeira festa da humanidade, seria a reprodução comemorativa desse ato memorável e criminoso, com o qual tiveram começo as organizações sociais, as restrições morais e a religião”. Desse ato, os filhos criaram o totem que nomeia a tribo, um simbólico que faz existir um pai imaginário, que excedeu de um real traumático. Esses filhos encarnaram o corpo de um pai morto com a duração da função paterna de ordem instaurada na tribo.

Talvez a história da “Orda primitiva de Darwin” seja mais próxima do mundo ocidental para entender o poder que se exerce quando se toma o corpo de um morto. “Portanto, não existe poder sem um lado maldito, um lado canalha, um lado sujo, que se tornou possível pela duplicação e que sempre se paga ao preço de uma vida humana, seja a de um inimigo ou, se necessário - o que com frequência é o caso -, a de um irmão ou parente” (Mbembe, 2018a, p. 234). O poder consiste em estar presente em vários mundos, inventar no presente um mundo novo ao mesmo tempo que faz durar a segurança de um passado. Saber viver um luto, escapar da morte ao mesmo tempo que regressa dos mortos como um outro, em uma outra face do absoluto. “Há assim, no poder e no vivente, uma parte que deriva do espectro - uma parte fantasmagórica” (Mbembe, 2018a, p. 234)

Voltando à questão que o autor persegue: em que consiste a potência? Se o poder está entre aqueles que sabem se ver com a morte, ele está entre os que se tornam um duplo com seu próprio luto, encarando de frente o poder noturno, o mundo noturno. O autor trabalha o texto com metáforas e diante da violência da função paterna que castra, corta e produz fissuras como a lei do pai, o poder noturno é a expressão que dá conta daquilo que instaura a linguagem. No entanto, existe ali onde nasce a linguagem, um esquecimento da violência do seu marco gerador.

O corpo também é, em si, uma potência que de bom grado se cobre com uma máscara. Pois, para ser domesticado, a face da potência noturna deve ser previamente coberta, isto é, desfigurada, restituída ao seu estatuto de horror [...] superfície viva e figurativa, pois essa é justamente a definição derradeira do corpo [...] sempre a ponto de extravasar o real. (MBEMBE, 2018a, p. 234)

Ao falar sobre esse corpo da experiencia com o poder noturno, Mbembe se vale da metáfora do farrapo humano da literatura La Vie et Demi e o personagem que se recusa a morrer de todas as mortes. O que seria um farrapo? Parece ser o contrário de potência a figura degradada, arruinada, irreconhecível, entidade que perdeu sua autenticidade e integridade ou um infra-humano. O autor faz ver a outra face do farrapo humano, são os cortes do poder noturno, o real que excede em linguagens. Nas palavras do autor: “Mas o farrapo humano não deixa de ter vontade. Nele restam só os órgãos, mas restam também a fala, último sopro de uma humanidade devastada [...]” (Mbembe, 2018a, p. 238). Na literatura de Sony Labou Tansi, o personagem como um farrapo humano ainda diz: “Não quero morrer desta morte”. O poder é o espírito de morte na medida em que, tanto sabe se apropriar do corpo de um morto, quanto dispor dos sentidos das suas relíquias. A linguagem que excede do real do poder noturno é ferramenta de vida continuada.

[...] evocar e convocar a morte exige que se saiba dispor dos restos ou relíquias dos corpos daqueles que matamos, capturamos o seu espírito. Esse processo de captura e de sujeição dos espíritos e das sombras daqueles que foram mortos constitui, na verdade, o trabalho do poder noturno” (MBEMBE, 2018a, p. 240).

A lógica totêmica é aparente no texto de Mbembe quando diz que “só há poder noturno se o objeto e o espírito do morto que está no interior do objeto tiverem sido alvo de uma apropriação feita de forma correta e exata” (Mbembe, 2018a, p. 240). Como a lei do pai que só se torna eficiente se o filho mobilizar as regras além da morte paterna, mesmo que simbólica, como na lógica totêmica. No entanto, o poder noturno, que como a lei do pai aciona o simbólico e, portanto, a linguagem, não é um poder em si mesmo. Em um corpo desprovido do poder fantasmal é um corpo esquizofrênico, retalhado por cortes e sem consistência de um uno. Um corpo sem imaginação, apenas em farrapos. Para implantar um poder totêmica, o imaginário é fundamental.

O poder noturno cerca sua presa por todos os lados, lança-se sobre ela e a constringe até o ponto da fratura e da asfixia. Sua violência é, antes de mais nada, de ordem físico-anatômica: meios corpos cortados em todos os sentidos, tornados incompletos pela mutilação e pela ausência de simetria resultante, corpos estropiados, pedaços perdidos, fragmentos dispersos, ranhuras e chagas, a totalidade abolida, em suma, o desmembramento generalizado. (MBEMBE, 2018a, p. 246)

Por outro caminho, o poder fantasmal opera por captura, assim como a função materna que faz consistir no imaginário. No entanto, o domínio fantasmal por si só, também não pode ser um poder em si mesmo ou seria a pura paranoia e o delírio. “A vida se desenrola ali [no domínio fantasmal] como um espetáculo em que o passado se encontra no futuro, e o futuro num presente indefinido” (Mbembe, 2018a, p. 244). Seria uma completa ausência de norte temporal e simbólico, o puro mundo onírico.

A partir das metáforas das literaturas The Palm Wine Drinkard e My life in the Bush of ghosts, Mbembe (2018a) se utiliza de metáforas como “sombra, reflexo e brilho”, algo que liga o sujeito a sua imagem ou ao seu duplo, e aos mortos que ele encarna. A sombra, produzida no ato de convocar o espírito do morto e na capacidade de sair de si, assistir sua duplicação. Um gesto objetivo, consciente e reflexivo enquanto se subjetiva. Segundo Mbembe (2018a, p. 241-242) a sombra se faz em duas propriedades, “o poder [...] de convocar, provocar o retorno e a aparição do espírito do morto e também da sua sombra [...] o poder, de que dispõe o sujeito iniciado, de sair de si e de se tornar espectador de si mesmo, incluindo eventos como a sua morte e o seu funeral”.

Já o reflexo, age como um duplo fugaz, um outro de si mesmo, plástico e efêmero. É a capacidade autômato de escapar às amarras que estruturam a realidade sensível. Devido a impossibilidade de tocar o reflexo, o sujeito inaugura um divórcio entre o ver e o tocar. Algo já aventado nos estudos ocidentais acerca das representações. Entre o reflexo e a coisa refletida está o intangível, esse negativo entre um eu e a sua sombra. Mbembe (2018a, p. 241) afirma que “A pessoa que se identificou com a sua sombra e assumiu o seu reflexo sempre se transforma”.

Mas, ainda há o brilho que é o que excede entre o eu e a sombra, um outro real.

Com efeito, não existe reflexo sem um certo modo de lançar a luz contra a sombra e vice-versa. Sem esse jogo, não pode haver nem ressurgimento nem aparição. Em grande medida, é o brilho que permite abrir o retângulo da vida. Uma vez aberto esse retângulo, a pessoa iniciada pode finalmente ver, como às avessas, o lado de trás do mundo, a outra face da vida. Ela pode, finalmente, ir ao encontro da face solar da sombra - potência real e em última instância”. (MBEMBE, 2018a, p. 242)

Quando o autor desenha o retângulo da vida - o sujeito, a sombra, o reflexo e o brilho que excede disso - parece dizer novamente e sob outros caminhos, sobre os desdobramentos de um fazer-se a própria vida depois da tríade primordial da Psicanálise. Esse facho de luz que nasce entre o eu e sua sombra e seu reflexo, essa captura libidinal do sujeito - o desejo que o empurra ou seu brilho. Os arranjos da identidade em movimento, o mostrar-se socialmente nas sombras de seus mortos e a consciência desses arranjos, como um ver-se de fora de si, ao mesmo tempo em que furtivamente não se deixa capturar, parece ser uma marca do poder. Uma certa autonomia da psiquê em relação a corporeidade. Uma “inquietante possibilidade de emancipação do duplo fictício, que adquire, ao fazer isso, uma vida própria” (Mbembe, 2018a, p. 243). Esse brilho produzido da tríade primordial, o desejo. O retângulo da vida, ou em outras palavras o nó borromeano em equilíbrio - o real, o simbólico, o imaginário.

A potência na condição vulnerável da vida, em um mundo que acontece no instável, na evanescência, em um constante estado de alerta, consiste em se penetrar no domínio fantasmal, ou seja, em um limiar da vida, como se pela borda. Nesse domínio é possível sonhar, salvar-se oniricamente. Organizar-se em um corpo que não é o seu, na junção de próteses de mortos, de memórias e fantasmas cercados como presas pela violência do poder noturno. Outros modos de capturas passam pelo desejo, pela projeção da luz que se faz em um entre a sombra e o reflexo, um outro de si mesmo. “A luz faz emergir da sombra outras formas novas. Combinando de forma inaudita cores e esplendor, ela institui uma outra ordem de realidade” (Mbembe, 2018a, p. 247). O personagem dos contos de Tutuola vai dizer “Por isso comecei a girar como uma roda, no exato momento em que experimentei todas essas luzes como uma mesma e única luz” (Mbembe, 2018a, p. 247).

Foi na experiencia ressurgente, quando teve de se ver com os fantasmas, que o personagem conheceu Tambor, Canto e Dança. Traços simbólicos e imaginários da expressão daquela potência que ele conheceu no entre lugar por onde se projetou o brilho. Linguagens agenciadas por imaginários, arte, poesias que funcionam como expressão do real que excede sem cessar.

Narrativas em favor de um trabalho pela vida

O trabalho pela vida consiste, segundo Mbembe (2018a) em estar atento para a própria defesa, estar à espreita da morte e se antecipar a ela. Em evidência está o corpo, ausente se significação, ou seja, existe pelo poder fantasmal, um pouco de coisidade em cada corpo. Ser o objeto de desejo do outro, como na relação primordial materna, é se permitir, em certa medida, ser um pouco coisa. Por esse fato, o sujeito pode se liberar para dissociar-se de si mesmo, e se for preciso, emprestar os brilhos de outros, fazer permutas. O trabalho pela vida exige metamorfose, mobilidade e improvisos. De acordo com Mbembe (2018a, p.252), é preciso prestar mais atenção no caminho do que no pretendido ponto de chegada, porque a potência está na mobilidade, no trajeto.

Aceitar a condição de “negro”, como proposto no início do artigo, é ter a consciência de que a qualquer contexto se pode ser mais ou menos matável em uma sociedade gerida pela necropolítica, onde a vida vale pelo capital simbólico e coisas que se pode agregar. Uma ação do poder noturno, que cancela, desprende e descarta quando bem lhe prove. No contexto neoliberal em que as vidas mesmas tornam objetos de consumo, o “trabalho pela vida” e pela não coisificação completa do corpo é um gesto de resistência como o personagem que se recusava morrer dessa morte. “O trabalho pela vida consiste precisamente em evitar que o corpo caia na coisidade absoluta; consiste em evitar que seja por completo um mero objeto.” (Mbembe, 2018a, p. 251)

E o que seria então essa vida, pela qual se deve lutar? Na melhor definição do autor:

[...] a vida não passa de uma sequência de instantes e de durações quase paralelas, carente, portanto, de unidade genérica. De qualquer modo, saltos contínuos de uma vivência a outra, de um horizonte a outro. Toda a estrutura da existência é tal que, para viver, é preciso eludir constantemente a permanência, pois esta é portadora de precariedades e expõe à vulnerabilidade. A instabilidade, a interrupção e a mobilidade, por outro lado, oferecem possibilidades de fuga e de evasão. (MBEMBE, 2018a, p. 257).

Nesse seu conceito de vida, ele destaca a precariedade e vulnerabilidade e, nesse lugar, nos traz outras possibilidades de estéticas de existências. Em Mbembe (2018a) se entende a natureza da vida nas rupturas, na finitude, e nas vulnerabilidades. É o que oferece pontos de fungas. Na defesa do trabalho pela vida, Mbembe chama atenção para as vidas que perdem seus traços de humanidade, vivem para o trabalho, para o consumo e para fazer circular a roda viva do mercado. Perdem seu tempo de ócio, de criação, de contemplação. Vivem nos metrôs, fábricas, escritórios e engarrafamentos como zumbis. São as “criptas vivas do capital”, utilizando as palavras dele. São coisas ou ferramentas de trabalho e otimização de lucros.

As identidades nesse contexto, só podem ser vividas enquanto identificações em movimento. “A permanência num ente específico só pode ser provisória” (Mbembe, 2018a, p. 253). Defender a vida consiste em acionar a potência de um entre lugar fluido e furtivo como mencionado anteriormente. Entre o imaginário e o simbólico e o que excede do real, ou usando as metáforas de Mbembe (2018a) entre o poder noturno e o poder fantasmal, a sombras e o reflexo, esse brilho ou desejo que pode mobilizar o sujeito.

Volta-se a pergunta inicial: onde está a potência? Agora pensada no trabalho pela vida, talvez nas linhas de fuga desse entre lugar, mas essas acarretam perigos porque se avizinham ao poder fantasmal. E nesse paradigma, só existe arrolamento da experiência, sem uma organização temporal - um mundo psicótico e lunático. No campo do poder noturno por sua vez, só pode haver sujeito esquizofrênico - pelo corte, pela fragmentação produtora da linguagem, “até aceitando o banal código edipiano” (MBEMBE, 2018a, p. 259). O trabalho pela vida está em um entre lugar, um escape entre dois mundos.

O trabalho pela vida consiste, por conseguinte, em sempre se afastar da lembrança no momento exato em que nela nos apoiamos a fim de lidar com as guinadas da vida. Mal se tendo delineado os esboços da vida, o sujeito fantasmal já precisa a cada instante escapar de si mesmo e se deixar levar pelo fluxo do tempo e dos acidentes. Ele se produz no acaso, por meio de uma cadeia de efeitos eventualmente calculados, mas que nunca se materializam nos termos exatos de antemão previstos. É, pois, nesse inesperado e nessa absoluta instabilidade que ele se cria e se inventa. (MBEMBE, 2018a, p. 260).

Utilizando-se das metáforas da literatura de Tutuola, é lá no ponto de fuga, no entre lugar onde brilha o desejo, capaz de levantar Tambor, Canto e Dança, que relampeja a potência. Tambor, Canto e Dança corporificam esse entre lugar que excede do real, em linguagens e imaginários. Nesse artigo, é também nesse entre lugar que se apresentam as narrativas como potencias em um trabalho por defesa da vida.

Narrativas como Tambor, Canto e Dança, algo que organiza, liberta, emancipa e traduz vitalidade. As lembranças, sempre furtivas e aninhadas no paradigma fantasmal, é capaz de subverter qualquer cronologia lógica para serem costuradas em forma de memórias. Narrativa é a capacidade humana de colocar um conjunto de lembranças do mundo onírico em um corpo consistente. É uma organização temporal, cognitivamente lógica das lembranças, capaz de criar novos mundos, emocionar e passível de ser compreendida pelos outros. A precariedade e vulnerabilidade do “devir negro” no mundo é um convite a resistência e ao trabalho pela vida; é lutar contra a coisidade completa; é se adiantar a morte e aos perigos necropolíticos; é estar atentos diante das fissuras do poder noturno.

Esse artigo, apostou no lugar da vulnerabilidade como potência, e escolheu Mbembe (2018) e algumas reflexões da psicanálise, para argumentar favoravelmente a essa defesa. Acessar a potência do entre lugar, exercitar a narrativa para o trabalho pela vida. A narrativa produzida no brilho, da projeção da sombra e do reflexo, do tornar-se outro de si mesmo, servindo-se dos poderes noturno e fantasmal.

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. [ Links ]

MBEMBE, Achille. Réquiem para o escravo. In: MBEMBE, Achille., Crítica da razão negra. Tradução Sebastião Nascimento. Paris: La Découverte, 2013; 2015; São Paulo: n-1, 2018a. [ Links ]

MBEMBE, Achille. Necropolítica, Tradução Renata Santini. São Paulo, 2018b. [ Links ]

MBEMBE, Achille. O fardo da raça. Entrevista de Arlette Fargeau e Catherine Portevin. São Paulo, 2018c. [ Links ]

FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In: MBEMBE, Achille, Obras Completas de S. Freud, v. 14. Tradução J. P. Porto Carrero. Rio de Janeiro: Delta, 1958. [ Links ]

TANSI, Sony Labou. La vie et demie. Paris: Honoré Champion, 1979. [ Links ]

TUTUOLA, Amos. The Palm Wine Drinkard. United States: Grove Prees, 1953. [ Links ]

TUTUOLA, Amos.. My life in the Bush of ghosts. United States: Grove Prees , 1954. [ Links ]

Recebido: 16 de Outubro de 2020; Aceito: 30 de Novembro de 2020

Raquel ALS Venera Doutora em Educação pela Unicamp; Pós-doutorado em Educação pela Université Lille3. Professora do Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade e Curso de História, ambos da Universidade da Região de Joinville, Univille - Joinville, SC. Brasil. Líder do Grupo de Pesquisa Subjetividades e (auto)biografias, Univille e vice-líder do Grupo de Pesquisa Memória e Identidade: ativismos e políticas, UFBA.

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