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Revista Práxis Educacional

versión On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.17 no.44 Vitória da Conquista ene./mar 2021  Epub 10-Jun-2022

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v17i44.7587 

DOSSIÊ TEMÁTICO: Vitalidade do sujeito e poder de formação: narrativas autobiográficas em diálogo

FORMADOR DE ADULTOS: O POTENCIAL (TRANS)FORMADOR DA BIOGRAFIA

ADULT EDUCATOR: THE CONTRIBUTION OF BIOGRAPHY IN TRANSFORMATIVE LEARNING

FORMADOR DE ADULTOS: EL POTENCIAL (TRANS)FORMADOR DE LA BIOGRAFIA

1Instituto de Educação da Universidade de Lisboa | UIDEF - Portugal carmen@ie.ulisboa.pt


Resumo:

O texto tem como objetivo analisar o potencial formativo da narrativa autobiográfica no formador de adultos. A análise resultou de uma investigação-formação-ação, filiada na hermenêutica, realizada com formadores de adultos, na condição de estudantes de mestrado, em Portugal. A investigação enquadrada no campo científico das Ciências da Educação baseou-se em dois pressupostos teóricos estruturantes: primeiro, considera-se que a educação e a formação são processos amplos e difusos, que ocorrem em todas as idades e contextos de vida e promovem uma transformação silenciosa; segundo, reconhece-se a importância de os formadores de adultos compreenderem o seu próprio processo de formação, como forma de potenciar o poder de ação e de transformação. Os formadores de adultos elaboraram uma biografia educativa centrada no percurso profissional e no processo de formação. A elaboração da narrativa biográfica mobilizou o sujeito num processo de reflexão, de rememoração, de seleção, de análise e de (re)elaboração da sua experiência, em dinâmicas de alternância entre o individual e o coletivo, a oralidade e a escrita. A análise destas narrativas biográficas permitiu compreender o poder formativo e transformador gerado pela reflexão, pela escrita de si e pela socialização da experiência. Os formadores de adultos atribuíram sentido e apropriam-se da sua experiência profissional e do seu processo de formação, o que desencadeou a autoformação. Nesse sentido, a biografia educativa apresentou um potencial transformador capaz de restituir o poder de ação e de formação dos formadores de adultos.

Palavras chave: Formadores de adultos; Formação; Narrativa autobiográfica

Abstract:

The text aims to analyse the contribution of biography in transformative learning in the adult educators. The analysis resulted from a research-training-action with adult educators, master students, affiliated with hermeneutics, in Portugal. The research fell within the scientific field of Educational Sciences. The research was based on two assumptions: the learning is a broad and diffuse process, which occurs at all ages and contexts of life, and promotes a silent transformation; the importance of adult educators understanding their own learning process, as a way to enhance their power of action and transformation. Adult educators developed an educational biography focused on the professional path and the learning process. The elaboration of the biography mobilized the subject in a process of reflection, remembrance, selection, analysis and (re)elaboration of this experience, in dynamics of alternation between the individual and the collective, orality and writing. The analyses of these biographical narratives allowed us to understand the learning and transforming power generated by reflection, self-writing and the socialization of experience. Adult educators attributed meaning and appropriated their professional experience and learning process, which triggered self-learning.

Keywords: Adult Educators; Transformative learning; Educational biography

Resumen:

El texto tiene como objetivo analizar el potencial formativo de la narrativa autobiográfica en el formador de adultos. El análisis resultó de una investigación-formación-acción, afiliada a la hermenéutica, realizada con formadores adultos, estudiantes de máster, en Portugal. La investigación encuadrada en el campo científico de las Ciencias de la Educación se basó en dos supuestos teóricos estructurantes: primero, se considera que la educación y la formación son procesos amplios y difusos, que ocurren en todas las edades y contextos de la vida y promueven una transformación silenciosa; en segundo lugar, se reconoce la importancia de que los formadores de adultos comprendan su propio proceso de formación, como una forma de potenciar el poder de acción y transformación. Los formadores de adultos han elaborado una biografía educativa centrada en la trayectoria profesional y en lo proceso formativo. La elaboración de la narrativa biográfica movilizó al sujeto en un proceso de reflexión, recuerdo, selección, análisis y (re) elaboración de su experiencia, en dinámicas de alternancia entre lo individual y lo colectivo, la oralidad y la escritura. El análisis de estas narrativas biográficas permitió comprender el poder formativo y transformador que genera la reflexión, la auto-escritura y la socialización de la experiencia. Los formadores de adultos atribuyeron significado y se apropiaron de su experiencia profesional y du proceso de formación, lo que provocó la autoformación. En este sentido, la biografía educativa presentó un potencial transformador capaz de restaurar la capacidad de acción y formación de los educadores de adultos.

Palabras clave: Formador de adultos; Formación; Narrativa autobiográfica

Introdução

O texto tem o objetivo de analisar o contributo (trans)formativo do trabalho biográfico em formadores de adultos. O formador de adultos desenvolve a sua atividade profissional num campo complexo, marcado pela diversidade de práticas educativas e sociais, e pela heterogeneidade de comtextos. A emergência da designação “formador de adultos” ocorreu a partir dos anos 1960, no decurso de uma reconfiguração do campo da educação e formação de adultos, suscitada por orientações políticas de organismos supranacionais e nacionais, centradas na importância estratégica da formação de adultos no desenvolvimento económico. Essa reconfiguração do campo da educação e formação de adultos originou também uma reconfiguração da atividade profissional. Françoise Laot (2005), referindo-se ao contexto francês, considera que o formador de adultos surgiu como nova figura profissional, face às anteriormente existentes - o educador popular, o professor do ensino noturno, o monitor, o militante e o instrutor. No entanto, as anteriores figuras profissionais persistiram e passaram a coexistir com a mais recente. A unificação da designação da atividade profissional não ocorreu devido à complexidade, resultante da diversidade e heterogeneidade, deste domínio.

A investigação realizada enquadra-se no campo científico das Ciências da Educação e baseou-se em dois pressupostos teóricos: primeiro, considera-se que a educação e a formação são processos amplos e difusos, que ocorrem em todas as idades e contextos de vida (CANÁRIO, 1999; CAVACO, 2009; FREIRE, 2000; ILLICH, 1985); segundo, reconhece-se a importância de os formadores de adultos compreenderem o seu próprio processo de formação, para potenciar o poder de ação e de (trans)formação (DOMINICÉ, 2002; CAVACO, 2015). Os formadores de adultos, entendidos nas suas diversas designações, funções e finalidades, tem uma dimensão em comum - exercem a sua atividade profissional com adultos, no sentido de promover processos de educação e formação. Todavia, na maioria dos casos, a sua formação académica de base não incidiu sobre as especificidades de intervenção no campo da formação de adultos, pelo que o desenvolvimento de saberes e de competências, requeridas para a atuação neste tipo de práticas, ocorreu através da formação em contexto de trabalho, mais concretamente, por meio de dinâmicas de formação experiencial. A formação de formadores de adultos é um processo dinâmico e continuo, atravessado por múltiplas relações, com os outros (heteroformação), com o contexto (ecoformação) e consigo próprio (autoformação), que permite rever, aperfeiçoar e reconfigurar os saberes e os esquemas de ação. Formar formadores de adultos é criar condições para lhes permitir “a apropriação da formação, através da reflexão teórica e da ação sobre esta realidade, a partir de instrumentos concetuais e técnicos […], de modo a que tenham a possibilidade de ser os produtores da sua própria teoria da ação” (GUGLIELMI e ARDOINO, 1996, p.20). Esta forma de entender a formação de formadores é suportada na “fenomenologia do homem capaz” (RICŒUR, 2005, p.125), porquanto, se reconhece que o sujeito tem a “capacidade de dizer, de agir, de narrar-se” (RICŒUR, 2005, p.126), e de se formar.

Do ponto de vista metodológico, a análise apresentada apoiou-se numa investigação-formação-ação, filiada na hermenêutica, com formadores de adultos, na condição de estudantes de mestrado, em Portugal. Os formadores de adultos elaboraram uma biografia educativa centrada no seu percurso profissional e no processo de formação. A elaboração da narrativa biográfica mobilizou o sujeito num processo de reflexão, de rememoração, de seleção, de análise e de (re)elaboração da sua experiência, em dinâmicas que alternaram o individual e o coletivo, a oralidade e a escrita. O formador de adultos neste processo adotou diversos papéis - o de estudante, o de sujeito que vivencia situações, as transforma em experiências e aprendizagens, o de escritor e autor, que escreve sobre o percurso profissional realizado, o de investigador, que lê, pesquisa e analisa o processo de formação, as aprendizagens e os saberes. A multiplicidade e transição de papéis são mencionadas por Marie-Christine Josso (2002), quando refere o “jogo de papéis”, “do estudante ao actor da formação”, “do actor ao actor-contador”, “do actor-contador ao actor-escritor”, “do autor-escritor ao escritor-leitor”, “do actor-leitor ao actor potencial” (p.115). A dinâmica gerada pelo “jogo de papéis” apresenta um elevado potencial (trans)formador, através do distanciamento face ao vivido, da reflexão, (re)elaboração e socialização da experiência. Neste caso, a metodologia visava assegurar, entre os formadores de adultos participantes, uma dinâmica de investigação centrada no sujeito e na sua atividade profissional, um processo de formação através da reflexão, explicitação e apropriação da sua experiência, dos seus saberes e competências, e, por último, a conceção e desenvolvimento de um projeto profissional. A análise apresentada neste texto é um recorte centrado nos contributos da elaboração da biografia educativa no formador de adultos, a partir da interpretação dos próprios sujeitos.

O texto está organizado em três partes, a primeira aborda a dimensão epistemológica e a metodologia da investigação, a segunda o formador de adultos e a sua profissionalização, a terceira a biografia educação, as questões da reflexão e da (re)elaboração da experiência, e a quarta, o reconhecimento e as questões da formação e da transformação.

Dimensão epistemológica e metodologia - a valorização da interpretação dos sujeitos

A investigação que suportou a análise apresentada neste texto filiou-se numa perspectiva hermenêutica. Deste modo, reconheceu-se a importância da interpretação realizada pelos sujeitos participantes, de modo a construir conhecimento sobre o processo de formação resultante da atividade profissional. O recurso ao trabalho biográfico, na investigação em Ciências da Educação, advém da valorização e reconhecimento da subjetividade humana na construção do conhecimento científico (FERRAROTTI, 2013; SOUSA SANTOS, 1987). A metodologia de investigação-formação-ação baseou-se na abordagem biográfica, por entendermos que o ato de “compreender tem seu ponto central na exposição ou interpretação dos restos da existência humana preservados na escrita” (DILTEY, 1999, p.15). Com base na hermenêutica é possível compreender “o autor melhor do que ele mesmo se compreendeu” (DILTEY, 1999, p.31), o que desencadeia um duplo processo de interpretação, a que o sujeito faz sobre si próprio e a que o investigador realiza sobre os elementos disponibilizados pelo sujeito implicado. Assim, a herméutica possibilita a fundamentação da importância estruturante da interpretação na construção do conhecimento científico, nas Ciências Sociais e Humanas e, de forma particular, nas Ciências da Educação. A hermenêutica reconhece que “da reflexão sobre a vida nasce a experiência da vida” (DILTHEY, 2000, p.10), pressuposto basilar no recurso à abordagem biográfica. Deste modo, a nossa filiação na hermenêutica fundamenta a importância do recurso à investigação-formação-ação biográfica com formadores de adultos, como modo de potenciar a sua reflexão sobre a vida profissional e, assim, fazer emergir a sua experiência profissional. Este processo de reflexão sobre o vivido promove a atribuição de sentido e apropriação das experiências de vida, o que despoleta um importante processo de formação.

A investigação biográfica ao incidir na reflexão, explicitação, (re)elaboração, atribuição de sentido e apropriação da experiência, a partir das temporalidades da vida e da sua interdependência - passado, presente e futuro - possibilita a promoção de um processo de formação, a apropriação do poder de formação e do poder agir, por parte do sujeito. É nesse sentido, que falamos de investigação-formação-ação. Os estudantes de mestrado em Ciências da Educação, na especialidade de Formação de Adultos, apresentavam uma longa experiência profissional como formadores, no entanto, na sua formação académica de base não adquiriam conhecimentos específicos sobre o campo da formação de adultos. Deste modo, implementou-se um dispositivo de formação-investigação-ação centrado na reflexão, explicitação e análise da experiência profissional dos estudantes, na sua condição de formadores, e, em simultâneo, na conceção de um projeto a desenvolver no âmbito da atividade profissional. Este trabalho realizado por três docentes, numa dinâmica de trio pedagógico, no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, permitiu a formação pedagógica de mais de uma centena de formadores, ao longo de alguns anos. Procurou-se “permitir o aparecimento do sujeito num processo de formação, a emergência da pessoa na construção da identidade profissional” (GUGLIELMI; ARDOINO, 1996, p.20).

O recurso à investigação biográfica requer cuidados acrescidos do ponto de vista ético, porquanto, o sujeito é implicado na elaboração de uma narrativa biográfica, centrada na sua vida. Os estudantes envolvidos foram informados da organização e do funcionamento do dispositivo de formação e foi-lhes dada a oportunidade de optarem por outro tipo de trabalho, caso pretendessem. A elaboração da narrativa biográfica foi acompanhada em regime tutorial pelo docente orientador, durante o ano letivo. A abordagem biográfica foi trabalhada do ponto de vista epistemológico, concetual e metodológico nas aulas, e os estudantes tiveram acesso a um conjunto de bibliografia de referência no domínio. Ao longo do primeiro semestre, realizaram-se aulas em pequeno grupo, numa lógica de atelier biográfico, nas quais os estudantes tiveram a possibilidade de reflectir, explicitar e socializar a sua experiência profissional com um ou dois colegas. Esta dinâmica visou a alternância entre o trabalho individual e coletivo, e entre a oralidade e a escrita. Após a conclusão da escrita da narrativa biográfica, focada em momentos significativos do percurso profissional, avançaram com a análise do processo de formação, tendo por base a narrativa e diversos textos de autores de referência no campo da formação de adultos. O percurso de formação-investigação-ação foi suportado em princípios éticos, assentes na escuta, no respeito, na empatia, na valorização, no reconhecimento, na honestidade e no diálogo entre os participantes (ALLEA, 2017; SPCE, 2014).

Formadores de adultos - Uma profissionalização em construção

Na sociedade contemporânea, o trabalho tem vindo a assumir-se, cada vez mais, como um elemento estruturante da vida, em termos sociais e pessoais. No âmbito desta tendência, a profissionalização ganhou progressiva importância, numa sociedade em que o estatuto do sujeito passou a depender, essencialmente, das tarefas que desempenha, em termos profissionais (LIETARD, 1990). Nas últimas décadas, o fenómeno da profissionalização foi concomitante com o investimento na educação e formação, o que originou uma crescente mobilização de formadores de adultos. Deste modo, percebeu-se também a importância da profissionalização dos formadores de adultos, que desempenham a sua atividade profissional, na educação e formação, numa grande diversidade de contextos e de práticas. A tendência de profissionalização de formadores de adultos é notória através de um conjunto de indicadores - “criação de organismos representativos, existência de um mercado de trabalho específico, início da definição de saberes necessários ao exercício profissional, recomendações deontológicas, desenvolvimento de possibilidades de formação” (LIETARD, 1990, p.338). A qualificação profissional do formador de adultos decorre da síntese de uma grande diversidade de fatores - formação académica, formação em contexto de trabalho e experiências de vida.

O debate sobre as profissões e a profissionalização é complexo e ocorre num espaço de disputas sociais e de relações de poder, no qual um grupo procura, num determinado momento, assegurar um melhor posicionamento social em termos de autonomia intelectual e de autonomia de exercício profissional, associados a vantagens económicas e de reconhecimento social (JOBERT, 1990, p.113). Trata-se de uma construção social, de natureza, essencialmente, retórica, porquanto é necessário justificar o seu relevo em termos de existência de uma necessidade social a suprir, do domínio de conhecimentos, saberes e competências complexos e específicos, e, por fim, de códigos éticos e deontológicos que regulam e sustentam o exercício profissional (JOBERT, 1990). Como destaca, Guy Jobert (1990) quando este processo de luta e de reivindicação, pela autonomia, é materializado no reconhecimento da profissão, os profissionais conquistam poder para regular o acesso à mesma. Esta regulação ocorre através da definição de um saber específico, da emergência de uma estrutura que define e regula as normas éticas e deontólogicas, e, por fim, a difusão da ideia de que a intervenção em determinados domínios é da responsabilidade exclusiva destes profissionais. Tendo como referência estas dimensões, o formador de adultos parece reunir condições efetivas para reinvindicar a profissionalização, contudo, isso apenas se concretiza quando há um reconhecimento da profissão e estes profissionais passam a dispor de legitimidade e de mecanismos para regular e condicionar o acesso à mesma, o que, até ao momento, não sucedeu. Assim sendo, é importate perceber o que estará na base da dificuldade da profissionalização de uma atividade relevante e necessária à sociedade.

O formador de adultos é um profissional que atua numa multiplicidade de práticas e de contextos, com funções e atividades diversificadas. Essa diversidade reflete-se na proliferação de designações para denominar a atividade (CANÁRIO, 1999; STROUMZA, 1990) - formador, formador, professor, tutor, monitor, animador, instrutor, conselheiro, consultor, multiplicador, técnico de reconhecimento e validação, técnico de orientação, acompanhante, etc. A heterogeneidade de designações reflete, por um lado, a diversidade de contextos e de práticas educativas nas quais estes profissionais desempenham as suas funções, o que corrobora a importância social desta atividade, mas, por outro lado, indicia a fluidez e instabilidade deste domínio, interdependente das mudanças sociais, culturais, económicas e políticas. A heterogeneidade que carateriza as práticas de educação de adultos e a diversidade de áreas académicas, inerentes à formação de base, dos formadores de adultos são fatores com repercussões em termos de saberes e competências profissionais. A questão do saber profissional é um elemento determinante para a profissionalização e, neste caso, pode ser o fator justificativo da dificuldade em legitimar o poder para regular e condicionar o acesso à profissão (JOBERT, 1990). A diversidade de saberes, a heterogeneidade de formas de construção desses saberes e a missão de os partilhar com as outras pessoas têm funcionado como obstáculos à profissionalização dos formadores de adultos, contudo, são também esses elementos que definem a especificidade, a riqueza e a complexidade desta atividade profissional.

O reconhecimento do formador de adultos é um processo concomitante com o aumento da procura e da valorização social da educação e formação, em todas as idades e contextos de vida, materializado no crescimento de emprego neste setor. Nas últimas décadas, esta atividade tem contribuido para a inserção profissional, nomeadamente, de diplomados cuja área de formação académica regista elevados índices de desemprego. Em Portugal foram emitidos 448 567 certificados de competência pedagógica e estão registados mais 350 mil formadores, em 77 áreas de educação e formação (IEFP, 2020). Atendendo ao número de empregados no país, em 2019, 4 913 100 (PORDATA, 2020) os certificados de competência pedagógica emitidos representam quase 10% desse universo. Esses valores embora sejam indicativos do dinamismo da atividade do formador de adultos, retratam apenas uma parte dessa dinâmica, dado que um significativo número de formadores de adultos não possui o certificado de competências profissionais, por este não ser requerido no âmbito das suas funções. Estes profissionais, que desempenham funções complexas e muito diversificadas, embora possuam formação académica de nível superior numa determinada área do conhecimento, reconhecem a necessidade e a importância de adquirem ou aperfeiçoarem conhecimentos no âmbito da formação de adultos. Face ao exposto, considermos, à semelhança de Guy Jobert (1990), que o reforço da identidade e do reconhecimento dos formadores de adultos passa pelo desenvolvimento de formação que permita desencadear um processo de investigação sobre a sua própria prática profissional. Esse tipo de formação contribui para a sistematização, apropriação, produção e divulgação dos seus conhecimentos, ou seja, para o desenvolvimento profissional dos formadores de adultos e para o seu reconhecimento.

Biografia educativa - reflexão e (re)elaboração da experiência

A biografia educativa é uma narrativa, retrospetiva e prospetiva, realizada pelo sujeito sobre a experiência e o processo de formação, tendo como enquadramento o presente, as expetativas e os projetos para o futuro. As narrativas biográficas são componentes da “subjetividade moderna” (ALHEIT, 2019, p.32), que permitem aceder ao posicionamento do sujeito, nomeadamente, à sua relação com o mundo, consigo próprio e com os outros, através de uma história e de um enredo, situados no tempo e no espaço (ALHEIT, 2019). A elaboração da narrativa escrita implica o sujeito na rememoração, seleção, reflexão, explicitação e (re)elaboração da experiência de vida. O sujeito é confrontado com a necessidade de refletir sobre si, sobre a sua experiência de vida, o que requer disponibilidade, motivação e um certo distanciamento face ao vivido; por outro lado, o sujeito é convocado a escrever sobre si e a (re)elaborar a sua experiência de vida. Definir o estilo de escrita que deseja adotar e, em simultãneo, o conteúdo da narrativa são dimensões exigentes do ponto de vista cognitivo, emocional e existencial. Ao longo deste processo, o sujeito implicado apercebe-se que a narrativa não é a sua vida, mas sim uma (re)elaboração da experiência efetuada, por meio do discurso sobre si. Deste modo, “o sujeito toma consciência de si através do discurso, embora a sua vida jamais seja plenamente expressa nesse discurso” (BUTLER, 2007, p.36), por isso, a narrativa pode ser sempre revista e reconstruída. O processo de (re)elaboração da experiência é complexo devido à mutação permanente a que está sujeito, decorrente da própria evolução da vida e da sucessão contínua de experiências.

A história de vida não está construída, pelo contrário, vai-se construindo no decurso da narrativa biográfica, na medida, em que o sujeito identifica e articula acontecimentos, atribui significados e despoleta um processo de apropriação da sua própria experiência. O processo de “biografização” (DELORY-MOMBERGER, 2019), através do qual o sujeito constrói uma narrativa, marcada por um enredo, define a singularidade do sujeito. A história de vida, resultante da biografização, evidencia o modo como a experiência e a formação decorrem de uma circularidade e interdependência recíproca entre, por um lado, os fatores pessoais e familiares e, por outro lado, os fatores sociais (culturais, económicos, políticos e religiosos). A imbricação combinada destes fatores dá origem à singularidade e à “complexidade biográfica” (DOMINICÉ, 2002, p.7). A narrativa biográfica permite compreender a prática individual, de cada sujeito, como uma atividade sintética, resultante de uma reinterpretação e apropriação do caráter totalizante, do contexto social (FERRAROTTI, 2013). Apesar das dificuldades sentidas, na fase inicial, principalmente, na reflexão, na elaboração da experiência e na escrita, os formadores de adultos reconhecem a importância do trabalho biográfico, centrado no percurso profissional e no processo de formação:

A realização desta reflexão sobre o meu percurso profissional não foi, de modo algum, algo fácil de conseguir. Inicialmente limitei-me a descrever o percurso sem me aperceber que o estava a fazer. Foram necessárias algumas dicas mais concretas do que era pretendido, fornecidas pela professora responsável pela orientação deste trabalho, para conseguir iniciar o processo reflexivo. Tive então a percepção de que, talvez devido ao acelerado ritmo em que vivemos, raramente paramos para reflectir sobre os acontecimentos e qual a influência que esses tiveram em nós. E ser capaz de parar e descobrir quais foram os momentos e pessoas que mais me marcaram e de que modo influenciaram e construíram a formadora que hoje sou foi a maior dificuldade que senti. (Inácia)

Percebi de imediato que este exercício, de difícil execução, também se afigurava útil. Em todas as áreas profissionais é-nos exigido que façamos uma constante e renovada reflexão sobre a forma e o modo como exercemos o profissionalismo, assim como da forma como assimilámos ou partilhamos conteúdos e competências. Desta feita, a área da educação e da formação com a qual tenho tido uma relação de âmbito profissional exige, se calhar de forma mais imperativa que porventura outras áreas, essa mesma reflexão. (Teresa)

Antes de iniciar este processo de narrativa, acreditava que a minha paixão pelo que faço e pela educação não vinha de sempre, havia sido descoberta ao longo do meu percurso profissional, por acaso. Contudo, e depois deste exercício de reflexão, acho que afinal sempre esteve lá, pois o que me liga à educação é o que me liga à vida: as pessoas. (Maria)

A biografia educativa, por meio da reflexão e da (re)elaboração da experiência, permite a apropriação e a interligação dos acontecimentos, a explicitação de aprendizagens e saberes, e a descoberta de sentidos para o vivido. Neste caso, a narrativa biográfica teve como finalidade “fazer falar os adultos sobre a sua formação, na densidade da sua vida, a fim de identificar os conceitos que permitem definir a dinâmica dessa formação” (DOMINICÉ, 2002, p.57). A dificuldades e os contributos da escrita sobre si residem no processo de biografização, ou seja, na reflexão e no discurso através dos quais dão “forma e sentido à sua existência e inscrevem a sua experiência no espaço social” (DELORY-MOMBERGER, 2019, p.47). A narrativa biográfica fundamenta-se no poder de dizer e assume que esta é uma capacidade “eminente do homem capaz” (RICŒUR, 2004, p.157). A elaboração da narrativa biográfica requer investimento e mobilização do sujeito na reflexividade sobre o seu percurso de vida e a sua formação, o que permite uma (re)apropriação “do seu poder de agir, de pensar, de sentir” (RICŒUR, 2004, p.7). Na escrita de si o sujeito assume a capacidade de se dizer e de se designar como aquele que fez ou faz determinada tarefa, no exercício das suas funções, remetendo para a sua responsabilidade, motivação e competência. Deste modo, a (re)apropriação do poder de agir, de pensar, de sentir e de se formar resultante da biografização é interdependente do reconhecimento, como se verifica na fala dos formadores de adultos. O formador de adultos é implicado no reconhecimento de si através da consciência reflexiva desencadeada pela narrativa biográfica. A reflexão e a socialização da experiência de vida inerentes à biografia educativa mobilizaram os formadores de adultos no “si-mesmo reflexivo” (RICŒUR, 2004, p.149), ou seja, numa “hermenêutica do si” (RICŒUR, 2004, p.150), e na ipsiedade.

Reconhecimento e (trans)formação

A formação é um processo natural, amplo e difuso, inseparável da vida e da história de cada sujeito, que ocorre em todos os tempos e espaços. Consideramos a formação uma transformação silenciosa, pois é “global, progressiva e contínua, resulta de uma correlação de fatores, e como ‘tudo’ nela se transforma, nunca se demarca suficientemente para ser perceptível” (JULLIEN, 2009, p.17). Deste modo, “a formação não se dá facilmente a conhecer” (DOMINICÉ, 2002, p.30), o que justifica a importância de mobilizar o sujeito num processo de reflexão - intencional, sistematizado e orientado - para aceder à sua interpretação. A formação é “uma globalidade difícil de formular, a da relação do adulto com o saber, com a realidade social, e com a sua vida pessoal. A formação inclui tudo o que o adulto fez da sua história” (DOMINICÉ, 2002, p.56), através de um processo de atribuição de sentido e de apropriação das experiências, vividas na relação com os outros, em determinados contextos de vida. Deste modo, “a formação é um movimento que é importante saber captar em voo” (DOMINICÉ, 2002, p.57), através do próprio sujeito, porque ao ser incorporada não é passível de compreender, na sua complexidade, a partir do exterior. A biografia educativa, pelas caraterísticas anteriormentes discutidas, permite compreender o processo de formação, mas, em simultâneo, ao afigurar-se um trabalho biográfico, sistemático, organizado e orientado, é uma experiência com potencial de formação. A biografia educativa pelo trabalho biográfico sobre si, permite ao sujeito reconhecer-se como capaz e responsável pela sua história, pela sua vida, pela sua experiência e pela sua formação.

Para Paul Ricœur (2004), o reconhecimento apresenta duas dimensões - uma ativa e outra passiva. A dimensão ativa resulta do reconhecimento de algo, que pode ser o reconhecimento de pessoas, de si mesmo ou do outro. A dimensão passiva refere-se ao ser reconhecido e à procura de reconhecimento. As duas dimensões estão interligadas, porquanto, o reconhecimento de si e o ser reconhecido estabelecem uma relação dialética. O reconhecimento é um processo que engloba o reconhecimento de si, o reconhecimento pelo outro e o reconhecimento mútuo. Deste modo, o reconhecimento articula-se com a questão da identidade, ou seja, a forma como o sujeito se entende a si próprio e o modo como se sente percecionado pelo outro. Ou seja, “é a nossa identidade mais autêntica, a que nos permite ser o que somos, que requer ser reconhecida” (RICŒUR, 2004, p.43). Esta dinâmica é estruturante para o sujeito, pois a identidade resulta da “experiência do reconhecimento intersubjetivo” (HONNETH, 2000, p.120). O reconhecimento implica julgamento e atribuição de valor, através de dinâmicas de distinção e de identificação, o que justifica a importância dos outros neste processo. Através da escrita de si, realizada na narrativa biográfica, os sujeitos reconhecem a sua ação e “provam implicitamente que são capazes” (RICŒUR, 2004, p.153). O formador de adultos, por meio da biografia educativa, estimula a sua capacidade de narrar-se e compreende a possibilidade de narrar-se a si mesmo de outro modo, o que despoleta uma constante (re)elaboração da experiência e o reconhecimento da sua capacidade de agir e de se formar. Os excertos retirados de narrativas biográficas e da meta-análise, realizada pelos sujeitos, dão conta da dimensão formativa da narrativa biográfica e do processo de reconhecimento que desencadeia:

Esta narrativa autobiográfica ajudou-me imenso a definir aquilo que sou, até agora, como formador. Ajudou-me a descobrir que me formei a mim próprio no contacto com os outros, nos diferentes contextos por onde passei. A minha experiência enquanto aluno, professor, formador, o contacto com os alunos, com outros professores, com outros formadores foram situações decisivas para a minha construção como profissional da educação. (Inácio)

A elaboração da narrativa biográfica foi um processo reflexivo bastante interessante e gratificante, que permitiu tomar consciência de experiências, situações e pessoas que foram marcantes, no percurso formativo enquanto agente na área da educação e formação de adultos. Relembrar os episódios mais significativos, os momentos charneira, calculando o seu valor, as suas repercussões e a transformação consequente, permitiu tomar consciência da mudança que se impôs face a cada novo obstáculo. (Teresa)

Clarificando: quando falo de fazer justiça a mim própria, refiro-me à possibilidade que este mestrado me dá, de ver reconhecidos os meus adquiridos experienciais (tanto no contexto pessoal/social como profissional) e de poder deixar um registo, de pelo menos parte das minhas reflexões ao longo dos últimos anos, que fique para a posterioridade. Nem sempre temos oportunidade para fazê-lo e não sabemos quando e se teremos uma nova oportunidade. Esta ideia ficou patente na nossa abordagem à metodologia utilizada neste trabalho. (Susana)

Este mestrado surge como uma consequência natural de um processo de valorização pessoal permanentemente inacabado e latente, numa fase marcada pela ansiedade de querer saber mais, conhecer, partilhar, projectar e mudar. Assumo que a realização do primeiro relatório exerceu, em mim, um efeito extraordinariamente motivante, dado que vinha ao encontro de um gosto pessoal: a escrita, com alguma margem de liberdade. Reflectir acerca das minhas realizações profissionais, no âmbito da educação de adultos, resultou como um balanço de competências positivo, permitindo-me um maior auto-conhecimento. O processo de mestrado passou, então, a fazer sentido. Senti, por diferentes vias, o reconhecimento das competências que fui adquirindo ao longo da minha prática profissional, o que considero extremamente pertinente e justo no actual contexto académico. […] (Mariana)

É extremamente interessante e enriquecedor tomar consciência dos tais momentos-mudança, de que forma eles se ligam à nossa prática actual, bem como à nossa perspectiva e postura perante a vida, e possibilita-nos, inclusive, aumentar o conhecimento que temos sobre nós próprios. (Inácia)

Neste percurso reflexivo reconheci que me fui formando na acção enquanto profissional de educação, nomeadamente, ao passar por experiências que contribuíram para o desenvolvimento de competências tão fundamentais para o exercício da minha prática profissional actual. (Matilde)

O reconhecimento é destacado pelos formadores de adultos, o que demonstra importância na sua vida. A narrativa biográfica permite uma “interlocução em que a reflexividade se compõe com a alteridade: a fala pronunciada por um é uma fala dirigida ao outro, além disso, por vezes, responde a uma interpelação realizada pelo outro” (RICŒUR, 2004, p.158). O formador de adultos explicita e socializa o percurso, a ação, a experiência e a formação para se fazer reconhecer pelo outro. Neste processo torna-se notória a dialética entre a identidade e a alteridade, o que permite ao sujeito reconhecer-se e fazer-se reconhecer em termos de poder de dizer, de poder de agir e de poder de narrar e de narrar-se. O formador de adultos tece a narrativa biográfica através de um enredo que permite construir a coerência e “inteligibilidade a um conjunto heterogéneo composto de intenções, de causas e de imprevistos” (RICŒUR, 2004, p.164). Neste processo o sujeito toma consciência que a sua história de vida é atravessada e influenciada pelos outros, pois embora “comece por si-mesmo, descobre que este si é implicado numa temporalidade social que excede as suas próprias capacidades narrativas” (BUTLER, 2007, p.7).

Através da biografia educativa o formador de adultos compreende a importância da dimensão relacional e social na sua vida, no seu percurso profissional e na sua formação. O processo reflexivo e a elaboração da narrativa biográfica conduzem-no a compreender que existe para os outros e em virtude dos outros, porque “não posso narrar a minha autobiografia sem o outro, e não posso fazer referência a um ´eu´ sem a relação ao ´tu´, sem o ´tu´ a minha história de vida tornar-se impossível” (BUTLER, 2007, p.32).Todavia, a compreensão da importância da dimensão social na sua vida, contribui também para a explicitação e análise da sua singularidade, o que permite o reconhecimento. O sujeito toma consciência de si, da sua vida, das suas ações e da sua identidade, na relação com o outro (HONNETH, 2000). O formador de adultos dá conta da sua dependência dos outros, nomeadamente, dos que se cruzaram consigo ao longo da vida, nesse sentido, compreende que “não pode existir sem interpelar o outro e sem a interpelação do outro” (BUTLER, 2007, p.33). A tomada de consciência da importância da alteridade desencadeia o reconhecimento de si, no sentido em que o “outro me expõe a sua singularidade, mas eu também lhe exponho a minha […] nós estamos ligados um ao outro pelo que nos diferencia, ou seja, pela nossa singularidade” (BUTLER, 2007, p.34). Por outro lado, a alteridade possibilita uma maior empatia e compreensão do outro, o que pode induzir mudanças no sujeito. A importância de si, dos outros e dos contextos na formação é destacada pelos formadores de adultos, assim como, o potencial da alteridade na promoção de mudanças no sujeito.

Tive então a percepção de que, talvez devido ao acelerado ritmo em que vivemos, raramente paramos para reflectir sobre os acontecimentos e qual a influência que esses tiveram em nós. E ser capaz de parar e descobrir quais foram os momentos e pessoas que mais me marcaram e de que modo influenciaram e construíram a formadora que hoje sou foi a maior dificuldade que senti […] No entanto, é extremamente interessante e enriquecedor tomar consciência dos tais momentos-mudança, de que forma eles se ligam à nossa prática actual, bem como à nossa perspectiva e postura perante a vida, e possibilita-nos, inclusive, aumentar o conhecimento que temos sobre nós próprios. (Inácia)

As influências recebidas na família, nas relações sociais e na educação formal e não-formal, estiveram e estão sempre presentes, como um processo vital e existencial de heteroformação, no sentido da construção dos meus conhecimentos e da gestão do meu ser, que resultou também do meio ambiente físico e sócio-cultural onde tenho vivido. Foi da interacção com o meio ambiente, com o mundo e com as coisas, que me fui formando e dando sentido às experiências de vida e à minha capacidade criativa e imaginativa, que numa perspectiva ecoformativa, está presente quer no tempo de lazer e de trabalho, quer em todos os momentos numa contínua aprendizagem. (Marta)

Uma outra aprendizagem por mim realizada prendeu-se com uma maior compreensão das exigências e dificuldades pelas quais os adultos passam quando lhes é pedido para elaborarem um portefólio reflexivo de aprendizagens. Penso que esta tomada de consciência me permite agora dar um apoio mais eficaz e prestar maior atenção a questões éticas e deontológicas relacionadas com a abordagem de natureza biográfica. (Matilde)

Compreender como me tornei a profissional que atualmente sou, é um desafio estimulante e simultaneamente complexo, pois acredito que este processo de transformação envolveu inúmeras variáveis. Não passamos pelas várias situações e experiências de forma incólume, pelo que o processo em si transcende a mera socialização e a aprendizagem de normas sociais, e centra-se na minha própria experiência e apropriação em relação a estas informações e estímulos que diariamente vivi. E viver não é passar indiferente pelas situações, é comprometermo-nos com elas, tomar diariamente decisões e fazer escolhas, enquanto expressões daquilo que somos. […] Neste caminho vou rever pessoas com quem tive o privilégio de conviver e que muito me ensinaram, porque as coisas mais importantes foram aprendidas, sem dúvida, com elas. […] Senti durante muito tempo que tudo o que fiz e o que vivi assumia um propósito maior: ter um emprego, ter um bom emprego, ter conforto, ter prestígio, ser reconhecida…Hoje procuro outros sentidos, menos dependente dos outros e mais reais para mim. Procuro diariamente as coisas que me fazem sentir bem e procuro também tocar positivamente as pessoas à minha volta e o presente exercício foi essencial para esse processo de descoberta. (Iris)

O reconhecimento é interligado com a formação, porquanto “o ato do reconhecimento altera a organização do passado e o seu significado, ao mesmo tempo que transforma o presente de quem é reconhecido” (BUTLER, 2007, p.28). O reconhecimento desencadeia um processo de (trans)formação com possibilidade de mudanças nos vários domínios da vida do sujeito. O processo de formação decorrente da biografia educativa permite ao sujeito apropriar-se do seu poder de aprender e do seu poder de agir. O trabalho biográfico realizado na biografia educativa promove a projeção do sujeito para o futuro, com a (re)formulação de projetos mobilizadores, nomeadamente, na sua atividade profissional e com alterações nas formas de atuar:

[...] Acredito também que este exercício marca não só uma nova fase de vivência da minha profissão, como também me capacitou para novos desafios. [...] Procuro diariamente as coisas que me fazem sentir bem e procuro também tocar positivamente as pessoas à minha volta e o presente exercício foi essencial para esse processo de descoberta. (Maria)

Com a realização desta diligência foi possível perceber e dar valor às aprendizagens ao longo da vida, pois proporcionou dar-me conta de como efectivamente as minhas aprendizagens não formais e informais foram fundamentais para a concretização deste projecto. É importante perceber que nem só as aprendizagens formais têm valor. E é fundamental que tendo eu próprio experienciado ao longo do tempo a aquisição de competências pessoais pelas mais diversas vias e nos mais diversos contextos, esteja agora, como educador/formador de adultos - ou mesmo de jovens - em melhor posição de dar a devida importância às aprendizagens que foram sendo realizadas pelos meus educandos/formandos fora do ensino regular formal, para o que decisivamente contribuiu a investigação levada a cabo. (Martinho)

Sinto-me, acima de tudo, grata por ter iniciado este Curso de Mestrado. Curiosamente, encontrei, através dele, ainda mais questionamentos, desassossegos e dualidades. Todavia, cumpri, através dele, os desejos enumerados […] - aprendi, conheci, partilhei, projectei e mudei. Tornei-me, através dele, mais crítica, mais inconformada e mais segura da vontade de mudança (Mariana).

A reflexão autobiográfica sobre a experiência como professora e formadora, transformou-se no acréscimo de uma consciência social atenta e reflexiva e numa eventual perspectiva de mudança no contexto profissional e social em que nos encontramos inseridos. (Marta)

O processo de atribuição de sentido e de apropriação das influências dos outros e do contexto dá lugar à autoformação, como uma “formação de si”, numa perspectiva de “antropoformação” (PINEAU, 2019, p.197), que permite ao sujeito apropriar-se do poder pessoal e universal da formação para, entre outros, tentar transformar as relações de trocas sociais e de usos materiais em relações de sensatez” (PINEAU, 2019, p.197). Os excertos apresentados anteriormente, dão conta que o trabalho biográfico permite “um conhecimento da existencialidade e do saber-viver como recursos de um projecto auto-orientado” JOSSO, 2002, p.63). Deste modo, o sujeito formação é levado “a reconhecer-se como tal, a assumir a sua quota parte de responsabilidade no processo e, finalmente, a colocar-se numa relação renovada consigo, com os outros, com o meio humano e com o universo” (JOSSO, 2002, p.63).

Conclusão

A implicação na elaboração de uma narrativa biográfica conduziu os formadores de adultos à compreensão da formação como um processo amplo e difuso, presente em todos os tempos e espaços da vida, materializado numa transformação silenciosa. A narrativa biográfica permitiu compreender o poder formativo e transformador gerado pela reflexão, pela escrita de si e pela socialização da experiência. Os formadores de adultos implicados no trabalho biográfico, através da escrita de si, realçam que o “desejo de se formar faz parte integrante da vontade da vida, porque é o instrumento de uma energia biológica, psicológica e social que vem traçar os seus sulcos no caos do real” (BARBIER, 1990, p. 330). Através da biografia educativa os formadores de adultos atribuíram sentido e apropriam-se da sua experiência profissional e da sua formação, o que desencadeou um processo de autoformação. Nesse sentido, a narrativa biográfica, enquanto biografia educativa, apresentou um potencial (trans)formativo capaz de restituir o poder de agir e o poder de formação dos sujeitos implicados. Os formadores de adultos corroboram que “escrever a sua vida é uma aventura existencial que transforma uma vida: de prefigurada ela configura-se, mas provoca um amplo processo de reconfiguração, que pode desfigurar ou transfigurar” (VINCENTI; PINEAU, p.14). A escrita de si é um processo exigente e desafiante para o sujeito, porque implica reflexão, rememoração, seleção, análise, enunciação e a construção de uma narrativa. Apesar das dificuldades e dos desafios, os formadores de adultos reconhecem a importância deste trabalho na sua formação e no seu desenvolvimento profissional.

A (trans)formação resultante, em grande medida, da apropriação e da atribuição de sentido à experiência, impeliu o sujeito a um processo de reconhecimento, através do qual compreendeu o seu poder de aprender, de se formar e de agir, na sua relação de interdependência com os outros e com os contextos de vida. Deste modo, a escrita de si não só reconheceu como promoveu a “fenomenologia do homem capaz”, defendida por Paul Ricœur (2004). O recurso à biografia educativa para promover a formação de formadores de adultos afigura-se uma estratégia exigente, mas profícua, no sentido, em que permite articular a formação, o reconhecimento e a identidade profissional. Os formadores de adultos são profissionais que desempenham funções sociais e educativas complexas, devido à diversidade e ao caráter fluído e mutante dos domínios nos quais atuam. A diversidade de formações de base, de perfis profissionais, de funções e de domínios de atividade tem vindo a contribuir para o relevo social e educativo desta atividade profissional, mas também tem dificultado o reconhecimento e a identidade profissional. A escrita de si, promovida na elaboração da biografia educativa, permitiu a reflexão, sistematização, explicitação e (re)elaboração da experiência profissional dos formadores de adultos. Desta forma, a escrita de si e a socialização da experiência potenciaram o reconhecimento e a identidade profissional de formadores de adultos.

A reflexão, a escrita de si e a análise da narrativa biográfica promoveram um processo de (re)apropriação e de atribuição de sentido à experiência, assim como, a explicitação do processo de formação e das aprendizagens realizadas ao longo do percurso profissional. A reflexividade inerente à escrita de si, neste caso, centrada no percurso profissional conduziu os formadores de adultos a uma análise autocrítica do seu desempenho profissional e do seu processo de formação. Neste processo reflexivo, o sujeito ao pensar o seu pensamento e a sua atividade, “implica igualmente pensar-se nas condições históricas, culturais e sociais da sua própria existência” (MORIN, 2011, p.157). O tempo de reflexão e de escrita de si exigiram um distanciamento face ao seu percurso e à sua experiência, o que tem um potencial de (trans)formação, no sentido em que o sujeito pode rever, alterar e fortalecer as relações que estabelece com o outro e a relação consigo mesmo, contrariando um dos problemas da sociedade contemporânea “uma cegueira sobre si e sobre o outro” (MORIN, 2011, p.257).

O formador de adultos, por meio da reflexão e da análise sobre si e sobre a sua formação, apercebeu-se do seu valor enquanto profissional, da importância e da complexidade do processo de formação, sentindo-se mais capaz para intervir na formação de outras pessoas, respeitando os seus ritmos e singularidades e reconhecendo a sua experiência. O formador de adultos, na elaboração da narrativa biográfica, criou condições para se reconhecer a si próprio, para ser reconhecido pelo outro, e para promover um reconhecimento mútuo, nomeadamente, com os seus pares e com os educandos. A escrita de si suscitou condições para o reconhecimento de si, através de um mecanismo dialético, do reconhecimento pelo outro e do reconhecimento mútuo. A socialização da narrativa oral e escrita com os colegas e professores, também eles formadores de adultos, e a elaboração de um trabalho de investigação, centrado percurso profissional e na formação, reconhecido pela academia, são elementos desencadeadores de reconhecimento. Os formadores de adultos, ao longo do trabalho e no balanço final, reconhecem que são detentores de conhecimentos e de capacidades científicas, técnicas e humanas fundamentais para o exercício da sua atividade profissional. Reconhecem também o seu poder de refletir, de narrar, de se formar e de agir, elementos constituintes “do homem capaz” (RICŒUR, 2004), os quais possibilitam e desencadeiam o reconhecimento de si e o reconhecimento pelo outro.

O reconhecimento tem um efeito na (re)elaboração da experiência passada e, em simultâneo, transforma o presente de quem é reconhecido, projectando o sujeito para mudanças e projetos no futuro. Os formadores de adultos enunciam os efeitos compósitos do reconhecimento na sua vida, nomeadamente, na vida profissional, quando destacam o poder de agir para implementar mudanças significativas na sua atividade profissional, nomeadamente, no trabalho com os formandos. Estes profissionais reconhecem a especificidade da sua intervenção e revelam-se sensíveis, atentos e preparados para pensar e ultrapassar os problemas e os desafios a partir da singularidade e complexidade. A biografia educativa ao potenciar o reconhecimento também possibilitou o fortalecimento da sua identidade profissional, pois interferiu na “estima social” (RICŒUR, 2004, p.316). Este processo surgiu na medida em que a narrativa biográfica permitiu explicitar e dar visibilidade a conhecimentos, valores e a finalidades comuns entre os formadores de adultos, assim como, a atribuição de valor “às suas capacidades para a vida do outro” (RICŒUR, 2004, p.316). A narrativa biográfica reforça o mecanismo da identidade como uma dinâmica dialética, entre a identidade de si e a identidade para o outro, porquanto, a “história de vida se mistura com a de outros” (RICŒUR, 2004, p.169). Esta situação confronta o sujeito com a alteridade, no sentido em que o outro está intrinsecamente incorporado na sua experiência e na sua formação.

A formação decorrente da biografia educativa permite o reconhecimento da experiência e da capacidade de formação do sujeito, o que por sua vez pode ter um efeito multiplicador na ação dos formadores de adultos. A experiência de um processo de formação em que foram reconhecidos e entendidos enquanto sujeitos capazes, pode possibilitar uma transformação no modo como entendem os formandos e o seu papel como formadores. A sociedade contemporânea é marcada pela hegemonia da forma escolar e do modelo tradicional de ensino, como única possibilidade de ensino-aprendizagem. A formação promovida através da biografia educativa constitui-se uma via possível para o reconhecimento dos sujeitos em formação e para a reconfiguração do ensino-aprendizagem e do papel do formador. Os formadores implicados na biografia educativa compreendem a formação como um processo natural mas complexo, que ocorre na interação com os outros e com os contextos, no decurso de um processo de apropriação e de atribuição de sentido, realizado pelo próprio sujeito.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 21 de Setembro de 2020; Aceito: 16 de Novembro de 2020

Carmen Cavaco Doutoramento em Ciências da Educação/Especialidade Formação de Adultos na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa; é professora-investigadora no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa | UIDEF.

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