Disputas iniciais
Para o mundo que a gente vivia não vamos mais voltar1 (IAMARINO, 2020). Foi com essa ideia que o Doutor em microbiologia pela USP, com pós-doutorado em Yale, o biólogo Atila Iamarino alcançou a maior audiência da história do programa Roda Viva na TV Cultura. O seu nome também se tornou um dos termos de maior crescimento dos últimos meses no Brasil por interessados em busca de informações sobre a pandemia da COVID-19 que são divulgadas através das suas lives no YouTube. O canal pessoal do biólogo, que contava 222 mil inscritos em 9 de março de 2020, tem agora 1,16 milhão de inscritos (um crescimento de 522%) e bateu picos de até 5.643.039 de visualizações durante a live de 20 de março de 2020, intitulada ‘O que o Brasil precisa fazer nos próximos dias’, revelando a importância do isolamento social como forma de preservação da humanidade.
Na busca por sentido diante da nova realidade, nos dias de quarentena, com o distanciamento físico e todos os impactos da pandemia do Coronavírus, a vida cotidiana encontrou no digital em rede novas configurações de ser e de se existir no ciberespaço. O milagre de viver e sobreviver à revelia da pandemia nos motivou a criar e a explorar lives que são, essencialmente, expressões vívidas de vídeo síncrono online nas quais se materializam metodologias. Nesse sentido,
[...] o que são exatamente as lives? Lives são transmissões síncronas de conteúdo em forma de vídeo online. Esses vídeos se materializam em diversas metodologias. Transmissões de conteúdos individuais e ou coletivos. Muitas vezes, com interação direta em diferentes plataformas e redes sociais ou em convergências com outras interfaces de textos, a exemplo dos chats (salas de bate-papo). No meio acadêmico, essas lives vêm levando e reconfigurando para o ciberespaço, eventos científicos já praticados em nossas universidades: palestras, conferências, mesas, rodas de conversas, encontros de e entre grupos de pesquisa, aulas, entrevistas. A diferença agora é que estamos geograficamente dispersos e praticando outras formas de presencialidade em rede. Essas presencialidades são coletivas e atingem um grande público. (SANTOS, 2020 - Online)
A comunicação síncrona - em tempo real - é a marca das lives. Entretanto, sua potência de comunicação também é assíncrona - acesso em diferentes tempos -, uma vez que elas podem ser gravadas e disponibilizadas no ciberespaço em diferentes plataformas. A gravação da live a transforma em um “artefato curricular” e ou cultural em potência, ou seja, podemos reutilizá-las em nossas aulas, atividades formativas ou para uso privado e autoestudo.
Neste contexto, unimos os espaços de existência - os territórios e lugares do lar, trabalho e estudo - para vivermos uma virada reflexiva sobre as condições de vida humana e os condicionantes das mediações tecnológicas em relação ao saberfazer e conviver em sociedade. Com isso, a complexidade da vida nos fez assumir riscos exponenciais, porque foi preciso garantir, mesmo nas dinâmicas desses novos espaços compartilhados, o desafio de continuar produzindo pesquisas e práticas educativas em educação online em tempos de pandemia.
Em nossa prática de pesquisa na internet, as narrativas e rastros de autoria dos praticantes culturais são analisados (visando “compreender a compreensão” do praticante cultural) sempre pela potencialidade de argumentação e conversas que podem ser desdobradas e tensionadas, para que possamos pensar e tecer operações conceituais autênticas e inclusive gerar outras perguntas de pesquisa. A quantidade de ocorrências, de sentidos parecidos, nos ajuda a validá-los como dados importantes de análise, mas também nos interessa sobretudo a qualidade do debate que apenas um rastro de narrativa poderá gerar, mesmo que seja apenas a expressão de uma única narrativa no conjunto das conversações online. (SANTOS, 2020 - Online)
Ante o fechamento material das instituições de ensino, a perspectiva da divulgação científica e da difusão de ciência através da Internet se torna uma alternativa viável de proporcionar aos indivíduos uma forma funcional de participação no processo cultural da ciência e da tecnologia, não apenas para a compreensão objetiva sobre assuntos científicos, mas principalmente para a sensibilidade de entender melhor como a ciência pode apresentar respostas para vida humana e o bem-estar social (PORTO, 2013).
De fato, dependemos agora das inovações tecnológicas para (re)produzir presencialidades nas escolas, universidades e centros culturais, entre outros espaços geográficos em que desempenhamos nossas atividades comuns. Essa tática se contrapôs à preferência deliberada de alguns praticantes culturais pelo encontro presencial, porque este passou a não ser mais uma opção viável, tornando esse interstício em quarentena uma oportunidade de autorreflexão na perspectiva de se “reaprender a pensar o espaço” (AUGÉ, 19922 apud SANTAELLA, 2007, p. 155), visto que
[...] o espaço não é percebido apenas com os sentidos, nós vivemos nele, projetamo-nos nele, estamos ligados a ele por laços emocionais. O espaço não é apenas percebido, ele é vivido. Por isso, quando percebidos, os espaços adquirem conteúdos específicos derivados de nossas intenções e imaginações (MATORÉ, 19623 apud SANTAELLA, 2007, p. 167).
Analisando-se então os sintomas dessa nova condição, agora é preciso atentar para os entrelaçamentos das práticas sociais mediadas pelo digital em rede para compreender o novo normal da reconfiguração dos sentidos da vida. Neste sentido, a questão da inclusão digital retorna para a mesa de discussões com ainda mais potência, uma vez que o acesso à Internet é um direito humano4. Por seu turno, a alienação a esse direito em situações de pandemia pode levar não somente à supressão dos mecanismos mais básicos de existência social, como também da própria manutenção da vida.
Partindo dessas considerações iniciais com que procuramos trazer o contexto do tema principal do artigo, o texto está organizado em mais duas outras partes conforme demonstramos a seguir: ‘Educação científica para quê?’, seção na qual introduzimos o conceito e discursamos sobre a importância da educação científica na contemporaneidade; ‘Lives acadêmico-científicas no contexto de pandemia’, em que apresentamos o fenômeno das lives acadêmico-científicas como dispositivo de formação docente online em tempos de pandemia. Por fim, buscamos através desse artigo resgatar a importância da educação científica na realidade brasileira e suas implicações acerca das políticas públicas em relação ao fazer ciência no Brasil. Para isso, a escolha foi explicitar o fenômeno evento científico online, um fenômeno da educação científica como ressonância da cibercultura e um desdobramento da difusão científica online. Espera-se com isso ampliar a compreensão social deste fenômeno sociotécnico e, ao mesmo tempo, descrever densamente a atualização de sua nomenclatura lives acadêmico-científicas, preservando os limites da essência fenomenal. E, ainda, ampliar o repertório científico sobre a percepção pública de ciência da sociedade brasileira, bem como colaborar com as reflexões instauradas atualmente na sociedade pelo impacto causado pela contaminação da COVID-19.
Educação científica para quê?
Se as “ordens socioculturais” (MACEDO, 2006) são instauradas a partir de relações práticas e intersubjetivas, compreendemos que a cultura se constitui nesse processo incessante de interações simbólicas com o mundo-vida, onde somos capazes de produzir significações e sentidos, além de atribuir a essas a qualidade de saber cultural. A necessidade de organizar esses saberes nos possibilitou construir algumas particularidades, como o conhecimento científico. Resumidamente, trata-se de um conhecimento metodológico e sistematizado sobre os fenômenos.
Neste sentido, Vogt (2017, p. 49) define cultura científica como um “conjunto de fatores, eventos e ações do homem nos processos sociais, voltados para a produção, a difusão, o ensino e a divulgação do conhecimento científico”. Para melhor compreensão da dinâmica da cultura científica, o autor propôs a teoria “espiral da cultura científica” (VOGT, 2012) à semelhança de uma espiral em metáfora com o movimento contínuo entre os quatro quadrantes de práticas conceituais nos quais os fatos e acontecimentos institucionais se situam e se relacionam no tempo: produção e difusão de ciência, ensino de ciência e formação de cientistas, ensino pra a ciência e divulgação científica.
O ponto de partida se fixa na produção e difusão de ciência entre os cientistas e pesquisadores - destinadores e destinatários - que realizam as pesquisas institucionais, através das universidades e centros de pesquisas como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), as agências de fomento, a exemplo da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e os órgãos governamentais de ciência e tecnologia, tais como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Esses professores-pesquisadores garantem a publicação dos resultados de pesquisa e seus processos num movimento de divulgação científica (DC) e difusão científica em hipermídia, ao modo, por exemplo, das revistas científicas ComCiência5 e a Revista Docência e Cibercultura - Re-doc6, incluindo os eventos científicos.
O movimento dos praticantes culturais - cientistas e pesquisadores -, destinadores em relação aos estudantes universitários e aos níveis de ensino da educação básica, graduação e pós-graduação - destinatários -, revela o segundo quadrante que objetiva o ensino de ciência e a formação de cientistas. O terceiro quadrante, ensino para a ciência, agrega os destinadores, cientistas e pesquisadores responsáveis por produzir conhecimento científico, aos destinatários - estudantes e público jovem - nos museus e feiras de ciência do gênero da Semana Nacional da Ciência e Tecnologia.
Nessa bacia semântica implicada em fazer ciência na contemporaneidade, o autor completa a participação dos amadores de ciência, com o quarto e último quadrante: a divulgação científica praticada por cientistas, pesquisadores e jornalistas científicos, destinadores responsáveis por fazer circular as revistas de divulgação científica, páginas e editoriais de jornais, programação de TV para o grande público e a sociedade em geral. O movimento contínuo da espiral na sociedade do conhecimento produz, ainda, as comissões e os conselhos normativos reguladores da Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). “O progresso científico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos, às necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação”. (FREIRE, 1996, p. 147).
Freire (1996) nos elucida o sentido do progresso científico. No mesmo sentido, para Vogt (2011, p.119), “somos todos, se não profissionais, amadores da ciência, como torcedores e divulgadores críticos e participantes de sua prática e de seus resultados para o bem-estar social e o bem-estar cultural das populações do planeta”. Ao considerar a diversidade das regionalidades brasileiras, ainda temos um longo trajeto de conscientização sobre a ciência nos cotidianos. A essa necessidade formativa se soma uma discussão que perpassa a divulgação científica acerca da adequação da linguagem empregada, principalmente na escrita científica.
Complementamos, com o pensamento de que o serviço de divulgação científica mais do que nunca precisa alcançar toda a humanidade, porque faz parte dos direitos humanos o acesso à informação de qualidade, assim como a educação, para que dentro do espaçotempo de cada indivíduo haja a possibilidade de emancipação com condições mais equânimes. Todavia, cabe ao poder público prover políticas públicas nos mais diversos campos do saber e âmbitos sociais, inclusive para que haja uma justa compensação cognitiva e histórica dos direitos humanos anteriormente negados aos grupos marginalizados, discriminados, oprimidos e escravizados como as mulheres, os negros, indígenas e pobres, incorrendo na pena de alongarmos o processo de aculturação.
Ao longo da história da ciência, vimos que a produção do conhecimento científico ocorreu com maior frequência dentro das universidades públicas. Isso cooperou para que, na contemporaneidade, a função universitária assumisse o ensino superior, a pesquisa e a DC. Reis (2018) defende deste modo a importância em divulgar a ciência:
[...] cremos que a explicação mais ampla consiste na própria consciência da importância social da ciência.
Nos países em desenvolvimento, onde é grande a massa dos autodidatas, o jornal funciona como escola de tudo, inclusive ciência. A divulgação adquire então, além da função atualizadora, a de ensinar ou recordar grandes princípios básicos e esclarecer o público quanto ao valor do trabalho científico. Temos falado desse trabalho como o de um ‘magistério sem classes’ (REIS, 2018, p. 85).
O discurso da ciência passou a ser pleiteado pelo grande público quando os saberes científicos foram associados aos riscos em potencial. Atualmente, a exposição da sociedade ao novo Coronavírus que ameaça a vida humana, principalmente em reuniões presenciais com proximidade ou contato dos corpos físicos, também justifica o interesse público pela ciência. A ágora virtual contemporânea - a internet - nos possibilita explorar a comunicação síncrona mediada por artefatos culturais de aprendizagem como os aplicativos (App) que permitem as conversações em tempo real. Um benefício dos usos das redes telemáticas são os rastros deixados pelos usuários, ou seja, temos a opção de gerar recursos audiovisuais de aprendizagem a partir das lives acadêmico-científicas. Ao mesmo tempo, em multiplataforma compartilhamos chats e fóruns, recursos da comunicação assíncrona. O aprimoramento dessas tecnologias significou também uma convergência hipermidiática.
De fato, o elemento propulsor da ciência para si mesma com a criação de suportes e linguagens que favorecem e potencializam a difusão científica na Internet (PORTO, 2009) se efetiva na apropriação do conhecimento científico pelas universidades em processo ativo e constante, em diferentes momentos de ressignificação do conhecimento, através da subversão de usos dos dispositivos pelos diversos contextos humanos.
Quanto à finalidade do serviço de documentação e divulgação científica, compreendemos que a perspectiva educacional se difere quando se propõe a ir além da transmissibilidade da informação. O campo da didática necessita desenvolver estratégias adequadas à cultura contemporânea. Um caminho pedagógico que busca inovar nas proposições interativas foi desenvolvido por Santos (2005) com a noção de educação online como um fenômeno da cibercultura na educação: “a educação online é o conjunto de ações de ensino-aprendizagem, ou atos de currículo mediados por interfaces digitais que potencializam práticas comunicacionais interativas, hipertextuais e em mobilidade” (SANTOS, 2014, p. 63).
Nesse viés da educação científica, em especial na formação de professores, buscamos ressignificar a perspectiva de produção do conhecimento científico e os processos de apropriação desse conhecimento com os cotidianos em rede multirreferencializada. Neste caso, a noção de multirreferencialidade nos ajuda a pensarfazer. A apropriação do conhecimento científico, numa abordagem multirreferencial, implica em questionar a tradição da ciência que enaltece esse tipo de conhecimento, enquanto se esforça para construir uma terceira via do pensamento científico com a proposição de uma nova ciência comprometida em “legitimar outras referências e/ou saberes e conhecimentos” (SANTOS, 2014, p. 72).
Assim, forjamos a concepção teórico-metodológica do fenômeno evento científico on-line, um fenômeno da educação científica como ressonância da cibercultura e um desdobramento da difusão científica online (COSTA, 2016). Na atualidade, os movimentos dos profissionais da educação, principalmente na voz dos professores que compreendem a necessidade de avançar na construção de uma experiência formativa politizada, têm produzido dispositivos disparadores de narrativas que também enriquecem a produção científica e seus processos com os usos de diversas linguagens e ganham visibilidade e interatividade com as lives acadêmico-científica ou “lives de maio”, que em sua maioria foram transformadas em objetos de aprendizagem disponíveis nas redes para disparar outras imprevisíveis narrativas.
Os eventos científicos na cibercultura mobilizam ações colaborativas de Grupos de Pesquisa, liderados por professores-pesquisadores das universidades, com a intenção de buscar soluções coletivas para os dilemas da prática docente nesse novo momento da vida humana.
Em síntese, a compreensão de temas científicos implica não só em conhecer os termos, conceitos e noções, como também ter a clareza de que existe uma intenção de rigor para interpelar a realidade, comum a todas as áreas do conhecimento, em relação ao fazer ciência. Entretanto, a partir da perspectiva ontológica e epistemológico-metodológica dos cientistas e pesquisadores de cada área, serão empregados métodos de pesquisa adequados aos fenômenos.
O que nos interessa nesta pesquisa de âmbito educacional é o ser expressivo e falante materializado nos encontros e nas narrativas dos professores, pesquisadores e cientistas presentes com seus horizontes e ambientes por meio das lives acadêmico-científicas.
Lives acadêmico-científicas no contexto de pandemia
Temos aqui por finalidade tecer conversas sobre as lives acadêmico-científicas no contexto de pandemia como dispositivo de mediação didática que se configura a partir das práticas educativas em ambientes online. No meio acadêmico, essas lives vêm levando para o ciberespaço, reconfigurando-o, uma diversidade de movimentos e eventos científicos em novas presencialidades em rede (SANTOS, 2020).
Partindo do debate do contexto da pandemia da COVID-19 até suas implicações econômicas, educacionais e políticas de reconfiguração da vida e da perspectiva de um presente colaborativo online, as lives divulgaram uma multiplicidade de conceitos e noções da educação na contemporaneidade, em atos de currículo praticados em tempos da COVID-19, didáticas de ensino em ambientes online, de aprendizagem e a contração das distâncias através dos usos da hipermídia.
Estes temas e interfaces foram mapeados a partir da divulgação e difusão científica online das lives acadêmico-científicas em redes educativas no Facebook e Instagram no período de distanciamento social, principalmente entre os meses de março e maio do ano 2020. Em síntese, esta cartografia de temas compreende a dinâmica da formação de professores em relação à pesquisa científica, de maneira intencionada, que parte da busca por informações científicas em espaçotempos de ciência, ao mesmo tempo em que se envolve com as atividades de ciência num movimento de reflexividade necessário à própria prática docente implicada.
Esses atores sociais - professores da educação básica e do ensino superior, professores-pesquisadores participantes das lives acadêmico-científicas - instituem novas ‘ordens sociais’ que viabilizam o voo pelas redes telemáticas onde houver a intenção de informar-se e formar-se, em um movimento de resistência humana colaborativa que se revela em práticas de luta pela sobrevivência, ao garantir a manutenção do trabalho docente como atividade essencial que é em tempos de imprevisibilidade e desinformação. Nesse momento, a obra acadêmica autoral se materializa e vem se materializando em publicações científicas, orientações de monografias, dissertações e teses, rastros de autorias pelo ciberespaço em narrativas imagéticas, sonoras, audiovisuais e textuais, transmídias, multimídias e hipermídias circulando em rede no formato de vários dispositivos de pesquisa-formação na cibercultura (SANTOS, 2020).
Nesse sentido, ressaltamos aqui os processos necessários às pesquisas com os cotidianos (OLIVEIRA; ALVES, 2008; OLIVEIRA; GARCIA, 2015), nos quais o movimento do ‘mergulho’ que está implicado com o lugar de fala docente, praticantepensante que procura ampliar a própria experiência formativa com a intenção de pesquisa. A necessidade de compreender essas novas problemáticas do cotidiano, com o desafio de sistematizar os dilemas, os posicionamentos e os acontecimentos, mobilizou os profissionais da educação, principalmente os professores a criar/hospedar/participar de lives acadêmico-científicas.
A partir de toda essa contingência global, os disparadores eclodiram. Na oportunidade dos encontros proporcionados pelas lives acadêmico-científicas de maio, praticantes culturais do campo da educação online convergiram esforços para demonstrar soluções didáticas, visando a realização de uma prática educativa mediada por tecnologias digitais em rede, ao mesmo tempo em que compartilharam suas experiências, preocupações e achados em novas ocorrências associadas às demandas do momento.
Essas experiências formativas online provocaram, sobretudo, um movimento de conscientização não apenas das práticasteorias pedagógicas cotidianas de formação acadêmica e da pesquisa-formação na cibercultura, mas também de táticas de enfrentamento ao modelo de Educação a Distância (EAD) que vem sendo proposta pelo Ministério da Educação (MEC), de desvalorização e sucateamento da ciência e do movimento de negacionismo que cresce em linha com o abafamento das políticas de divulgação científica.
A tessitura do conhecimento e suas significações foram produzidas com as redes educativas que as circunstâncias permitiram. Em uma visão holística, parece que um grito forte saiu da garganta dos professores que ainda vivenciam a sutileza dos caminhos possíveis da educação brasileira. Em tempos sombrios em que o ‘pão nosso de cada dia’ precisou ser defendido com mil e uma artimanhas, foi preciso ainda aprender a se dividir entre as rotinas domésticas, o trabalho, o estudo, a pesquisa, os noticiários e as lives. Os temas em discussão revelaram nas/para as redes os anseios e os dilemas daqueles docentes que estavam utilizando os aplicativos entre aqueles dois primeiros meses de quarentena para aprenderensinar.
Esta abordagem qualitativa do fenômeno live acadêmico-científico colabora para a compreensão da compreensão de professores e educadores em relação ao termo ciência e tecnologia diante de uma transformação dos cotidianos com a dinâmica social impactada pela contaminação da COVID-19 no Brasil. A participação dos movimentos sociais, das redes de solidariedade, das redes de pesquisadores nessas lives em tempos de pandemia foi fundamental para ampliar a compreensão e a dimensão das temáticas praticadas pelas ciências humanas e, assim, tecer um olhar qualitativo em pesquisa. Segundo Macedo (2006, p. 38-39), “para o olhar qualitativo, é necessário conviver com o desejo, a curiosidade e a criatividade humanas; com as utopias e esperanças; com a desordem e o conflito; com a precariedade e a pretensão; com as incertezas e o imprevisto”.
De alguma maneira, o campo da educação usa esse momento de pandemia para desvelar as amarras que prendem o voo com as redes telemáticas, mediante processos educacionais que permanecem praticamente com as mesmas abordagens pedagógicas sem justificativa para a juventude conectada de pensadores de outro século, principalmente nas questões curriculares ainda apartadas dos conflitos, das controvérsias, das possibilidades de ser e estar no mundo-vida.
Essas implicações socioculturais, ao resgatar o elo da história perdida, camuflada ou omitida no processo educacional, podem revelar outros lugares de fala, outras perspectivas que vão enriquecer a formação dos jovens e transformar o exercício da cidadania, porque outras vozes e narrativas terão espaço de escuta, de reflexão, de mobilização, sem a prevalência de um só discurso, o hegemônico, que marca a diversidade, a heterogeneidade quando desconsidera as narrativas de indivíduos e/ou grupos sociais hostilizados, discriminados, dos que rejeitam o tratamento ‘politicamente do modo correto’, dos que nos ajudam a reconhecer as nuances históricas omitidas em nome da justiça e da ciência, tal como a noção “racismo científico” trazida na fala de Pinheiro (2020) ao expor o fenômeno antropossocial em sua pesquisa sobre as experimentações científicas, preferencialmente com pessoas negras, mulheres numa relação de exploração por pesquisas ginecológicas que pleiteiam o respeito à dignidade humana com as mesmas oportunidades de fala, de existência. É desse lugar da diferença ignorada, tratada de ‘modo politicamente correto’ que nos mobilizamos em meio às denúncias contidas nas lives educacionais.
A carência de investimento público na educação básica, técnica e científica, o descaso com a formação sociocultural e educacional da população, a estagnação e a falta de investimento no desenvolvimento científico do país e as ações excludentes estabelecidas impositivamente nos cotidianos também são responsáveis pelas críticas e inquietação com este mais recente fenômeno da cibercultura.
Mais uma vez, propiciar o acesso à Internet para todos é importante para a transformação educacional quanto ao déficit na formação de professores em cursos de graduação e licenciaturas; conectar a escola à aprendizagem móvel e ubíqua já praticada pelas gerações nascidas em tempos de cibercultura (jovens conectados há pelo mesmo uns 20 anos de transformações culturais); melhorar as relações interpessoais afetadas pela impossibilidade do contato físico imposto pela COVID-19.
O que as lives anunciam? Novas formas de ser e estar no mundo-vida, novas formas de se relacionar com o outro, com as coisas e com meio ambiente, novos modelos de trabalho via Internet, a inclusão de sistema Home Office para vários tipos de trabalho docente e as condições de realização desse trabalho sem reduzir essas práticas à mera economia institucional, alijando o direito do trabalho intelectual.
Conclusão
O tema em discussão certamente colabora para ampliar os conhecimentos docentes em torno da educação contemporânea em rede. O contexto de pandemia da COVID-19 oportunizou a aprendizagemensino de professores sobre algumas técnicas operacionais com os aplicativos (App) de comunicação síncrona, entre outras atividades assíncronas em plataformas digitais. Os encontros gerados em tempos reais dos App de comunicação síncrona Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RPN)8, Google Meet9, Zoom10 e YouTube11 entre outros foram o suporte necessário para a realização de lives acadêmico-científicas.
Abordar essas questões foi importante para que conquistassem seu espaço outros lugares de fala, unindo-se para operar outras táticas com os cotidianos, inclusive nas mediações online das lives acadêmico-científicas no calor dos processos interativos de pensarfazerpesquisar, inclusive com encontros mais exclusivos entre pesquisadores via FaceTime12.
Um desafio para a “educação problematizadora” é proporcionar experiências formativas online construtoras de uma consciência existencial crítica que precisa se fazer presente na formação de professores, enquanto trabalhamos na desconstrução de perspectivas educacionais que cismam por subutilizar o potencial comunicacional humano em rede com a antiga prática da colonização brasileira acomodada a modelos de aula que objetivam preencher os educandos com conteúdo (FREIRE, 1987, p. 63), como se o papel do professor fosse fazer depósito de comunicados, falso saber (FREIRE, 1987), em relação aos alunos, uma roupagem digitalizada típica da concepção bancária do séc. XX, uma caixa de pandora na interface Educação e Tecnologia.
A garantia do “direito humano para a inclusão digital”, como disse Santos (2020) na live 1º Ciclo de Debates Forgrad do canal Fórum Nacional de Pró-Reitores de Graduação (ForGRAD), é o ponto fulcral para mobilizar as práticas educativas com a educação online, em todos os níveis educacionais, principalmente nas Instituições de Ensino Superior (IES), para “pensarfazerpesquisar” (SANTOS, 2020), a própria prática didático-pedagógica na contemporaneidade. Conseguinte, para que o ensino se efetue será preciso a criação de ambiências formativas políticas necessárias à educação online.